DOI: http://dx.doi.org/10.5902/2179378634010

Submissão: 30/07/2018 Aprovação: 29/12/2018 Publicação: 30/04/2019

 


Fluxo contínuo

 

Príncipe Andrei Bolkónski, de Tolstói: um herói Schopenhaueriano

 

Prince Andrei Bolkónsky, by Tolstoy: a Schopenhauerian hero

 

Pedro Carné

Professor Substituto na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

pedrohpcarne@gmail.com

 

Resumo: O objetivo deste artigo consiste na elaboração da hipótese interpretativa segundo a qual o príncipe Andrei Bolkónski, um dos principais personagens do livro Guerra e Paz, de Liev Tolstói, pode ser considerado um herói schopenhaueriano.

Palavras-chave: Tolstói; Schopenhauer; Guerra e Paz.

 

Abstract: In this paper I intend to argue that Prince Andrei Bolkonsky, one of the lead characters of the novel War and Peace, by Leo Tolstoy, can be taken as a Schopenhauerian hero.

Keywords: Tolstoy; Schopenhauer; War and Peace.

 

Corpo e pensamento objetivo

 

O objetivo deste artigo consiste na elaboração da hipótese interpretativa segundo a qual o príncipe Andrei Bolkónski, um dos principais personagens do livro Guerra e Paz, de Liev Tolstói, pode ser considerado um herói schopenhaueriano. Pretendemos, com o auxílio desta expressão, designar um personagem ficcional cujos caráter e ações coincidiriam com algumas das principais teses defendidas por Arthur Schopenhauer.

A complexidade da relação entre Tolstói e Schopenhauer suscita os mais variados problemas[1]. Em função disso, a construção de nossa hipótese efetiva-se nas seguintes etapas. Em primeiro lugar, apresentamos as primeiras impressões manifestadas por Tolstói acerca do pensamento de Schopenhauer. Especificamente, destacamos que o primeiro contato de Tolstói com a obra de Schopenhauer coincide com a redação dos últimos tomos do livro Guerra e Paz. Na sequência, caracterizamos o príncipe Andrei Bolkónski. Uma vez que nossa intenção consiste em observar de que maneira este personagem ecoa algumas das teses defendidas por Schopenhauer, concentrar-nos-emos, para fins de análise, em um episódio específico dentre os muitos que poderiam ser movimentados para a construção desta relação (por exemplo, a amizade com Pierre Bezúkhov, os encontros com Natacha Rostóv, as Batalhas de Austerlitz e Borodinó etc.), ou seja, o momento de sua morte. Assim, apresentamos alguns elementos da filosofia schopenhaueriana com a intenção de observar de que maneira, no momento de sua morte, o príncipe Andrei Bolkónski acaba por se comprometer com alguns corolários da doutrina da indestrutibilidade de nosso ser em si.

 

A influência de Schopenhauer em Tolstói

 

O que sabemos sobre a influência do pensamento de Schopenhauer em Tolstói? A primeira informação que nos auxilia a construir esta relação encontra-se na famosa carta enviada por Tolstói a seu grande amigo, o poeta lírico Afanasy Fet, no dia 30 de agosto de 1869. Nela, afirma Tolstói: “você sabe o que este verão significou para mim? Arrebatamentos constantes por Schopenhauer, e uma série de prazeres espirituais que não havia experimentado até então”[2]. E, mais adiante, ele assevera: “não sei se algum dia mudarei de opinião, mas, neste momento, estou certo de que Schopenhauer é o mais brilhante dos homens”[3]. Ao final da carta, Tolstói diz ao amigo que começara a traduzir as reflexões de Schopenhauer e o convida a se unir a ele em um projeto de tradução de suas obras principais. Nada sabemos sobre estes exercícios intelectuais de Tolstói, mas Fet efetivamente elaborou a primeira tradução de O Mundo como Vontade e Representação e de A Quádrupla Raiz do Princípio de Razão Suficiente para a língua russa, alguns anos mais tarde (1880 e 1886, respectivamente).

O ano de 1869, porém, não representa exatamente o primeiro encontro de Tolstói com o pensamento de Schopenhauer. Em suas memórias, o cônsul americano Eugene Schuyler relata-nos que, durante sua permanência em Iasnaia-Poliana, entre os dias 14 e 21 de setembro de 1868, ou seja, quase um ano antes da carta de Tolstói a Fet, Tolstói já se encontrava bastante entusiasmado pela doutrina schopenhaueriana. Schuyler lamenta ter perdido boa parte das anotações que fizera sobre os debates literários travados com Tolstói neste período, mas afirma que certas coisas lhe causaram uma impressão forte demais para serem esquecidas. Em suas palavras, “entre outros escritores, recordo-me apenas de Schopenhauer, por quem, naquela época, [Tolstói] nutria uma grande admiração, e cujo estilo alemão ele particularmente elogiava[4].

Podemos afirmar, assim, que o entusiasmo manifestado por Tolstói acerca da filosofia de Schopenhauer direciona-nos para o final da década de 1860. Período no qual, nos termos de Thomas Mann, o grande escritor do país dos russos escrevia e reescrevia sua obra Guerra e Paz. Considerando-se, porém, a imensidão desta obra, com o que coincidiria exatamente o mês de setembro de 1868, mês em que Eugene Schuyler recorda ter experimentado o entusiasmo de Tolstói por Schopenhauer?

Os estudos de Sigrid McLaughlin e Harry Walsh atestam-nos que o outono de 1868 coincide com a redação da terceira parte do terceiro tomo de Guerra e Paz, bem como com a elaboração e redação do quarto tomo da obra e de seu epílogo[5]. A partir desta informação, podemos inferir que as últimas partes de Guerra e Paz são atravessadas pelo entusiasmo de Tolstói por Schopenhauer. Contudo, o que isto significa? Isto significa, por um lado, que nem a teia capaz de conectar as famílias Bolkónski, Bezúkhov e Rostóv estava efetivamente tecida, nem o destino dos principais personagens destas famílias - Andrei, Pierre e Natacha - havia sido traçado. Por outro lado, isto também significa que as reflexões acerca da natureza da história, e dos conceitos de “liberdade” e “necessidade”, não se encontravam finalizadas.

Assim, se tanto o destino dos principais personagens (quarto tomo e primeira parte do epílogo), quanto as reflexões capazes de esclarecer a perspectiva adotada por Tolstói na construção de sua narrativa (notadamente, a segunda parte do epílogo) foram escritas a partir de 1868, sob o signo do entusiasmo manifestado por Tolstói em relação à doutrina de Schopenhauer, por qual motivo pululam as aproximações entre ambos a partir das reflexões sobre a natureza da história, e são negligenciados os indícios que nos autorizariam a ampliar nossas análises de semelhante relação para o interior da narrativa propriamente dita[6]? Ainda que seja impossível responder a esta pergunta de maneira definitiva, penso que o caráter e as ações de um de seus personagens principais revelam a forte influência de Schopenhauer. Isto é, ao analisarmos o percurso e o destino do príncipe Andrei Bolkónski, percebemos que uma série de temas e conceitos schopenhauerianos ocuparam a imaginação de Tolstói durante a redação final do enredo de seu livro.

 

O caráter e o destino do príncipe Andrei Bolkónski

 

A jornada do príncipe Andrei Bolkónski, ao longo de Guerra e Paz, pode ser caracterizada como um lento processo de desilusão em relação à vida, um processo que o fará associar a morte a um verdadeiro despertar. Deste modo, a breve exposição de alguns episódios de sua vida nos permitirá esboçar os traços de seu caráter que o fizeram compreender a vida como uma ilusão e a morte como um despertar.

Um dos traços fundamentais do caráter de Andrei, ao qual somos apresentados desde o início da narrativa, consiste em seu desprezo pelo corpo físico. Inicialmente, este desprezo manifesta-se no distanciamento e na rudeza direcionada à sua esposa, Lise Bolkónskaia, “a mulher mais sedutora de Petersburgo”.

Com efeito, Guerra e Paz inicia-se no salão de Anna Pávlovna, e, pela maneira como a entrada de Andrei neste salão é-nos descrita, “via-se logo que o príncipe não só conhecia bem todos os presentes no salão, como já estava farto de todos, de tal modo que só olhar para aquelas pessoas ou escutá-las era muito aborrecido para ele”[7]. E Tolstói acrescenta a esta cena, de maneira pungente: “entre todos os rostos que o aborreciam, a da sua esposa bonita lhe parecia o mais maçante de todos”[8].

Posteriormente, o desprezo de Andrei será dirigido ao seu próprio corpo, como evidencia sua reflexão durante um banho no lago com sua companhia:

“Carne, corpo, chair à canon!”, pensou [Andrei], olhando para o próprio corpo nu, que tremia, menos de frio do que de um horror e de uma repugnância que ele mesmo não entendia, ante a visão daquela enorme quantidade de corpos que se banhavam no poço lamacento[9].

Se o desprezo pelo corpo expressa um dos primeiros traços do caráter do príncipe Andrei Bolkónski, as duas principais batalhas narradas em Guerra e Paz - a Batalha de Austerlitz, em 2 de dezembro de 1805, e a Batalha de Borodinó, em 7 de setembro de 1812 - ajudam-nos a complexificá-lo.

A Batalha de Austerlitz resultou em uma retumbante derrota das forças austro-russas diante do exército francês. Ao final da batalha, encontramos o príncipe Andrei gravemente ferido. Sob as ordens de Napoleão, diversos soldados o conduzem para o acampamento francês, a fim de que ele possa receber o tratamento adequado à sua condição. Enquanto Andrei é carregado, acompanhamos as suas seguintes reflexões:

Como seria bom, como seria bom se tudo fosse tão claro e tão simples como parece à princesa Mária. Como seria bom saber onde procurar ajuda nesta vida e o que esperar depois, além da morte! Como eu seria tranquilo e feliz se agora pudesse dizer: Senhor, tenha piedade de mim!… Mas para quem vou dizer isso? Para uma força indeterminada, inconcebível, à qual eu não só não posso me dirigir, como não sou sequer capaz de exprimi-la por meio de palavras, um grande todo ou nada, ou para este Deus, que está aqui, costurado neste amuleto pela princesa Mária? Nada, não há nada de certo, a não ser a insignificância de tudo o que me é compreensível e a grandeza de algo incompreensível, porém mais importante[10].

Isto é, a dor e o sofrimento decorrentes de seus ferimentos intensificam a crença de Andrei na futilidade e na irrelevância de todas as ações humanas. Acelera-se, assim, seu lento processo de desilusão.

A incessante destruição das ilusões com as quais a maioria dos homens se consolam protagonizada por Andrei aprofunda-se com a chegada da Batalha de Borodinó. Antes da batalha, diz-nos o narrador que o príncipe medita os pensamentos mais simples, mais claros, e por isso mesmo terríveis, do mundo[11]; depois da batalha, talvez como consequência da compreensão da irrelevância das ações humanas, assistimos ao desabrochar de sua compaixão.

Assim, antes da batalha, Andrei rejeita as maiores mágoas de sua vida, adquirindo, em função desse movimento, um autoconhecimento mais intenso. Um autoconhecimento que, ao mesmo tempo em que se confunde com a desconstrução de suas ilusões, faz com que ele compreenda a vida como como uma espécie de jogo de sombras, que atormenta ao invés de apaziguar. A esse respeito, escreve Tolstói que:

Das alturas daqueles pensamentos, tudo o que antes o atormentava e o preocupava de repente se iluminou com uma luz fria e branca, sem sombras, sem perspectivas, sem definição de contornos. Toda a sua vida lhe surgiu como se fossem imagens de uma lanterna mágica para as quais ficara olhando por muito tempo, através de um vidro e sob uma luz artificial. Agora ele via de repente sem o vidro, sob a luz clara do dia, aqueles quadros mal pintados[12].

Ou seja, das alturas daqueles pensamentos claros, simples e terríveis, Andrei observa as imagens falsas que o perturbavam, o deleitavam e o faziam sofrer[13]. É quase inevitável conjecturar que, neste momento, a compreensão manifestada por Andrei é a de que, “por natureza, a vida não admite nenhuma felicidade verdadeira, que é essencialmente um sofrimento em aspectos diversos, um estado de infelicidade radical” (W I, § 59, p. 339).

Se antes da Batalha de Borodinó observamos o lento processo de desilusão de Andrei Bolkónski, após a batalha encontramo-lo mortalmente ferido. Não obstante, apesar de sua dor e de seus próprios ferimentos, Andrei expressa sua profunda compaixão pelos ferimentos e sofrimentos dos outros soldados. Nas palavras de Tolstói:

A compaixão veemente e o amor por aquele homem encheram o seu coração feliz.

O príncipe Andrei não conseguiu mais se conter e começou a chorar com lágrimas ternas e amorosas, pelas pessoas, por si mesmo, pelas ilusões delas e por suas próprias ilusões.

A compaixão, o amor por nossos irmãos, pelas pessoas que nos amam, o amor por aqueles que nos odeiam, o amor pelos inimigos — sim, esse amor que Deus preconizou na Terra, esse amor que a princesa Mária me ensinou e que eu não compreendia; é disso que me arrependo na vida, é isso que eu faria se ainda ficasse, se eu ainda vivesse. Mas agora já é tarde. Sei disso”[14]!

Isto é, os traços do caráter de Andrei revelaram-nos, até agora, seu desprezo pelo corpo, sua compreensão da inutilidade das ações humanas, a desconstrução de suas próprias ilusões e sua compaixão. Resta-nos investigar os frutos de suas relações com uma personagem fundamental, seja ela Natacha Rostóv.

O primeiro encontro entre Andrei Bolkónski e Natacha Rostóv, no grande baile de 1810, fez desabrochar em Andrei as mais ternas ilusões amorosas. Essas ilusões logo assumiram a forma de noivado, apesar da diferença de idade que havia entre eles. No curso de seu relacionamento, porém, Natacha encanta-se pelo príncipe Anatole Kuráguin e tenta fugir com ele para a realização de um casamento secreto. Com a descoberta da trama, o noivado entre Andrei e Natacha é encerrado. Pois bem, ao rememorar seu noivado com Natacha Rostóv, pouco antes da Batalha de Borodinó, Andrei exclama raivosamente que era um “menino inocente” por ter acreditado na existência de um amor ideal pela jovem Rostóv. E ele nos explica o que seria este amor ideal: um amor que lhe garantiria a fidelidade dela por um ano inteiro, durante sua ausência[15]. Mortalmente ferido após esta batalha, eis que ocorre o segundo encontro entre Andrei e Natacha. Um encontro que selará o destino de ambos.

Para Natacha Rostóv, o reencontro com Andrei Bolkónski desfez os impasses aos quais ela chegara durante seu noivado. Isso fica evidente na caracterização que Tolstói faz da expressão no rosto comovido de Natacha diante do moribundo Andrei: “uma expressão de amor, de amor ilimitado por ele, por ela, por tudo aquilo que fosse próximo da pessoa amada, uma expressão de pena, de sofrimento pelos outros e de um desejo fervoroso de abrir mão de tudo para ajudá-lo”[16]. Em outras palavras, o reencontro com Andrei tornou Natacha consciente de seu egoísmo e a preparou para dele se libertar.

A libertação de Andrei, porém, neste reencontro com Natacha, manifesta-se de maneira ainda mais intensa. Ao compreender o caráter ilusório da vida, Andrei liberta-se dela. Assim, Tolstói apresenta-nos as reflexões de Andrei em seus momentos derradeiros. Inicialmente, Andrei chega à conclusão de que “o amor é Deus, e morrer significa que eu, uma partícula de amor, vou voltar para a fonte universal e eterna[17]. Logo, porém, essa conclusão é descartada em função de seu caráter pessoal e intelectualizado. Segue-se, então, a esse raciocínio, a descrição de um sonho no qual Andrei encontra-se diante de uma porta. Diz-nos Tolstói que:

Tudo depende de ele conseguir fechar a porta. Ele caminha, se apressa, seus pés não se movem, e ele sabe que não vai conseguir fechar a porta, mesmo assim, dolorosamente, emprega todas as suas forças. E um temor torturante o domina. Esse temor é o medo da morte: atrás da porta, está aquilo. Mas ao mesmo tempo que ele, fraco e sem jeito, se arrasta para a porta, aquela coisa horrorosa, empurrando do outro lado, começa a abrir a porta. Não é algo humano — é a morte que força a porta, e é preciso contê-la. Ele agarra a porta, emprega suas últimas energias — já é impossível trancar — apenas segurá-la; mas suas forças estão debilitadas, abatidas, e, empurrada pelo horror, a porta abre e fecha outra vez.

Novamente, aquilo empurra do outro lado. Os últimos esforços, sobre-humanos, são inúteis, e as duas partes da porta se abrem sem fazer ruído. Aquilo entrou, e aquilo é a morte. E o príncipe Andrei morreu.

Mas, ao mesmo tempo em que morria, o príncipe Andrei lembrou que estava dormindo e, no mesmo instante em que morria, fez um esforço e acordou.

“Sim, era a morte. Eu morri — eu acordei. Sim, a morte é um despertar!”, a ideia se acendeu de repente em seu espírito, e a cortina que até então ocultava o desconhecido foi erguida diante de seu olhar espiritual. Naquela leveza que não o abandonou mais a partir de então, ele sentiu como que uma libertação de energias, antes presas dentro dele.[18]

Deste modo, ao despertar de seu sono, o príncipe Andrei despertou para a própria vida. Tolstói afirma que “comparado à duração da vida, aquele despertar não lhe pareceu mais demorado do que o despertar do sono, em comparação com a duração do sonho”[19]. Não seria exagero afirmar que a compreensão de Andrei repete - ipsis litteris - a doutrina elaborada por Schopenhauer.

 

Schopenhauer e a indestrutibilidade de nosso ser em si

 

Schopenhauer afirma, no prefácio à primeira edição de O Mundo como Vontade e Representação, que seu livro procura comunicar um pensamento único. E acrescenta: “quando se levam em conta os diferentes lados desse pensamento único a ser comunicado, ele se mostra como aquilo que se nomeou seja Metafísica, seja Ética, seja Estética” (W I, Vorrede, p. 19)[20]. Podemos inferir, assim, que o estudo de sua filosofia inevitavelmente conduzirá a um entrelaçamento conceitual destas diferentes dimensões teóricas. Consequentemente, suas análises da natureza da morte prestam tributo a esta regra.

A caracterização da morte elaborada por Schopenhauer insere-nos no espaço de interseção entre a metafísica e a ética. De fato, diz-nos o filósofo que a própria necessidade metafísica experimentada pelo ser humano decorre de seu assombro em relação à finitude de sua existência (Cf. W II, Cap. 17, pp. 249-254). Em resumo, suas obras atestam uma correspondência entre a morte e a indestrutibilidade de nosso ser em si. A maior ou menor compreensão desta correspondência conduz, por conseguinte, a uma amplificação ou anulação do medo da morte, e a uma intensificação ou empalidecimento do tempo presente. Nesta breve exposição das reflexões de Schopenhauer acerca da morte, deter-nos-emos naquilo que é afirmado pelo filósofo em sua obra capital O Mundo como Vontade e Representação (notadamente, no § 54 do primeiro tomo, e no capítulo XLI do segundo tomo) e em seu livro Parerga e Paralipomena.

No § 54 de O Mundo, diz-nos Schopenhauer que nascimento e morte são acidentes da vida, palavras que só fazem sentido em relação à vida. A vida, nesta doutrina, é compreendida como a aparência visível da vontade, uma aparência cujos traços essenciais são-nos oferecidos pelo tempo, pelo espaço e pela causalidade, e cujo mais alto resultado consiste no princípio de individuação, do qual provém o indivíduo. E acrescenta o filósofo: “sem dúvida que, perante os nossos olhos, o indivíduo nasce e morre, mas o indivíduo é apenas aparência; se existe, é unicamente aos olhos deste intelecto que tem como única luz o princípio de razão suficiente, o principium individuationis” (W I, § 54, p. 289). Nascimento e morte, completa Schopenhauer, seriam tão-somente os polos deste fenômeno que é a vida quando analisada em seu conjunto, afinal, “é como fenômeno que o particular é perecível; como coisa em si, ele está, pelo contrário, fora do tempo, portanto não tem fim” (W I, § 54, p. 297).

Observamos, deste modo, que a caracterização da morte nos remete ao âmago do pensamento metafísico de Schopenhauer: sua doutrina da vontade. Se nascimento e morte são acidentes da vida, e a vida constitui-se como uma produção objetiva da vontade, isto é, se a vida é o espelho da vontade, precisamos compreender de que modo Schopenhauer especifica este conceito no interior de sua teoria. O primeiro passo a ser dado nesta direção, com efeito, consiste na recordação de que Schopenhauer considera-se herdeiro da filosofia kantiana. Em particular, ele preserva a distinção entre o fenômeno e a coisa em si mesma traçada por Kant, ao mesmo tempo em que reduz o conjunto de categorias kantianas à apenas uma: a causalidade.

O segundo passo necessário à compreensão da doutrina da vontade consiste na explicitação da via que nos permite atingir a essência íntima das coisas. Para Schopenhauer, todos os filósofos anteriores a ele comportaram-se semelhantemente a alguém que, sem encontrar a entrada de um castelo, dão voltas e mais voltas ao redor dele, acabando por desenhar apenas a fachada. Isto significa que, para ele, todos os filósofos anteriores possuíam a intenção de apresentar o caráter em si do mundo, mas todos acabaram por se restringir ao caráter fenomênico da realidade. A via, subterrânea, que nos permite atingir a essência das coisas revela a condição necessária para o conhecimento: a existência de um corpo. Schopenhauer afirma categoricamente que:

O sujeito do conhecimento, pela sua identidade com o corpo, torna-se um indivíduo; desde aí, esse corpo é-lhe dado de duas maneiras completamente diferentes: por um lado, como representação no conhecimento fenomenal, como objeto entre outros objetos e submetido às suas leis; e por outro lado, ao mesmo tempo, como esse princípio imediatamente conhecido por cada um, que a palavra Vontade designa (W I, § 18, p. 110).

Se o primeiro passo para a compreensão da doutrina da vontade explicita o quadro teórico no qual Schopenhauer se movimenta (o transcendentalismo Kantiano), e se o segundo passo esclarece a via a ser percorrida para apresentar o caráter em si do mundo (a íntima experiência de uma força que nos é estranha), o terceiro passo a ser dado consiste em uma especificação desta Vontade que unifica todos os seres. Uma vez que o aprofundamento deste tema nos conduzirá para bem longe de nosso objetivo, valho-me da concisa caracterização oferecida por José Thomaz Brum:

O mundo, enquanto não é fenômeno para um sujeito cognoscente, é uma força cega e dinâmica. Schopenhauer chega ao caráter alógico ou irracional do mundo a partir de uma interpretação do transcendentalismo kantiano. Se o mundo enquanto representação segue o princípio de razão suficiente (que afirma que tudo o que acontece deve ter uma causa, uma razão de ser), o mundo independente da representação não pode ser regrado pelas formas da razão-causalidade. Esse mundo em-si - o mundo enquanto vontade - será então “sem razão”, grundlos, impossível de ser explicado pela série de causas[21].

Devemos notar que os argumentos movimentados por Schopenhauer na demonstração de sua doutrina metafísica também fazem referência ao pensamento de Platão e aos hinos dos Vedas. Notadamente, o segundo ponto de vista do mundo como representação desenvolve uma singular interpretação da Teoria das Ideias, e, do mesmo modo, o segundo ponto de vista do mundo como vontade desenvolve uma singular compreensão dos mistérios do Tat-tvam-asi (“Isto és tu”). Retornemos, porém, às análises elaboradas por Schopenhauer acerca da natureza da morte e suas consequências.

                Se a natureza da morte revela o aspecto fenomênico da vida, isto é, amplia nossa compreensão acerca da diferença entre a essência e a aparência do mundo, o medo da morte permite-nos examinar dois outros temas relacionados com o caráter em si do mundo: seus graus de objetivação e suas formas de manifestação. Vejamos, em linhas gerais, o que isto significa.

Schopenhauer estabelece que a objetivação mais imediata da vontade não é a consciência individual, mas a espécie. Com efeito, diz-nos o filósofo que:

A Vontade de viver, que é tão poderosamente ativa, tem a sua raiz na espécie, e não realmente no indivíduo. Por outro lado, a consciência imediata pode ser encontrada apenas no indivíduo; portanto, este se imagina diferente da espécie, e, assim, receia a morte. A Vontade de viver se manifesta em referência ao indivíduo como fome e como medo da morte; em referência à espécie, como impulso sexual e cuidados apaixonados pela prole (W II, Cap. 41, pp. 178-179).

A partir desta explicação, estamos habilitados a concluir que não encontraremos, no interior das atribuições da natureza, a preservação individual. Ela, a natureza, está livre da ilusão que é o indivíduo. Os argumentos movimentados por Schopenhauer para fundamentar essa teoria desdobram-se em duas direções: por um lado, em sua Teoria das Ideias; por outro lado, em uma observação empírica da mecânica da natureza. Vejamos este aspecto.

Schopenhauer tem como objetivo demonstrar a tese segundo a qual a vida ou a morte do indivíduo pouco importa para a natureza. Em seu entender, a natureza preocupa-se apenas com a vida da espécie. Assim, solicita-nos o filósofo:

Considere o inseto em seu caminho: uma ligeira mudança inconsciente do seu pé é decisiva para sua vida ou morte. Veja o caracol na floresta, que não tem nenhum meio para a fuga, para a defesa, para se ocultar, ou para dissimular, uma presa fácil a todos. Repare no peixe descuidado se jogando na rede ainda aberta; no sapo impedido por sua indolência de tentar o salto que poderia salvá-lo; na ovelha vista e observada do matagal pelo lobo (W II, Cap. 41, p. 165).

Com a intenção de concluir:

Já que a natureza abandona sem reservas os seus organismos elaborados com arte inexprimível, não só para a cobiça predatória do mais forte, mas também para o cego acaso, ao sabor de cada tolice, e ao capricho de cada criança, ela expressa que a aniquilação desses indivíduos é uma questão indiferente para ela, não lhe prejudica, não tem nenhum significado, e que, nestes casos, o efeito não é de maior consequência do que o é a causa (W II, Cap. 41, p. 165).

Em outras palavras, a destruição de um indivíduo não afeta em nada a natureza em sua essência mais íntima, em seu ser em si. Naturalmente, pensa Schopenhauer, se a natureza é indiferente à morte de um indivíduo, nós também deveríamos ser. Afinal, não deveria haver diferença entre a vontade que se expressa na natureza e a vontade que se expressa em nós mesmos. De acordo com suas análises, é papel da reflexão e do conhecimento conduzir-nos a tais compreensões.

Uma vez que todo indivíduo deseja, de maneira imediata, conservar sua própria existência, a origem do medo da morte não dependeria do conhecimento. De fato, pensa Schopenhauer que o medo da morte se origina na própria vontade de viver, isto é, ele seria o reverso da vontade de viver. Deste modo, se o medo da morte é o reverso da vontade de viver, o apego à vida por ele produzido é algo irracional e cego. Logo, conclui Schopenhauer, “o conhecimento, pelo contrário, longe de ser a origem da adesão à vida, até mesmo se opõe a isso, uma vez que desvela a inutilidade da vida, e, desta forma, combate o medo da morte” (W II, Cap. 41, pp. 154-155). Isto é, o conhecimento e a reflexão podem nos ajudar a alcançar um estado de espírito no qual não é o indivíduo que se encontra em perspectiva, mas a unidade de todos os seres. E, sobre um indivíduo que tenha alcançado este estado, poder-se-ia dizer que:

Protegido por essa verdade da qual o munimos como de uma couraça, olharia ousadamente, com indiferença, voar à sua volta a morte levada nas asas do tempo: a seus olhos, pura aparência, fantasma vão, impotente, bom para assustar os fracos, mas sem poder sobre quem tem consciência de ser essa mesma vontade da qual o universo é a manifestação ou o reflexo, e sobre quem sabe através de que laço indissolúvel pertencem a essa vontade a vida e o presente, única forma conveniente para a sua manifestação: esse não pode temer nada de não sei que passado ou que futuro indefinido, em que não existirá; apenas vê nisso uma pura fantasmagoria, um véu de Maya, e tem tanto a temer da morte como o Sol tem a temer da noite (W I, § 54, p. 299).

No suplemento XLI ao Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer afirma que a natureza da vontade que constitui o nosso ser em si é bastante simples: a vontade quer e não conhece. Já no §54 da primeira edição desta obra, ele nos explicara que “a forma própria da manifestação do querer — por consequência, a forma da vida e da realidade — é o presente, só o presente, não o futuro nem o passado: estes têm existência apenas como noções” (W I, §54, p. 292). E, no pequeno ensaio “Sobre a Doutrina da Indestrutibilidade de Nosso Ser Verdadeiro pela Morte”, Schopenhauer complementa: “quem quer que se dê conta de modo intuitivo de que o presente, que é a única forma de toda realidade em sentido estrito, tem sua fonte em nós, portanto surge de dentro e não de fora, não pode duvidar da indestrutibilidade de sua própria essência” (P II, §139, p. 123). Devemos investigar o que esta tese significa, uma vez que dela se originará uma importante consequência para os nossos objetivos.

No prefácio à primeira edição de O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer afirma que somente uma coisa é requerida para a sua exposição: uma familiaridade íntima com a filosofia de Kant. Com efeito, Kant demonstrara, em sua Crítica da Razão Pura, que o tempo não pertence à coisa em si mesma, mas constitui “a forma do sentido interno, isto é, da intuição de nós mesmos e do nosso estado interior[22], ou ainda “a condição formal a priori de todos os fenômenos em geral[23]. Daí Schopenhauer concluir que “começar, findar e continuar são conceitos que derivam seu significado simples e unicamente do tempo. Consequentemente, eles são válidos somente sob o pressuposto do tempo” (W II, Cap. 41, pp. 190-191).

Como o tempo não possui uma existência absoluta, Schopenhauer estabelece que ele possui duas metades, uma objetiva e uma subjetiva. Estas duas metades são-nos explicadas da seguinte maneira: “a parte objetiva tem a intuição do tempo como forma e por isso escorre continuamente: a parte subjetiva permanece imóvel e por isso é sempre a mesma” (P II, §139, p. 122). A partir da imobilidade da parte subjetiva, compreendemos o fato de que o presente consiste naquilo que há de mais estável e inabalável no domínio fenomênico, e, ao compreender a perenidade do presente, também compreendemos o caráter fantasmagórico do passado e do futuro. Assim, arremata Schopenhauer: “a vontade de viver está ligada à vida: e a forma da vida é o presente sem fim; no entanto, os indivíduos, manifestações da ideia, na região do tempo, aparecem e desaparecem, semelhantes a sonhos instáveis” (W I, § 54, pp. 295-296).

A caracterização dos indivíduos como sonhos instáveis traz à tona a metáfora do sono para uma indicação da natureza da morte. Assim, Schopenhauer afirma que “a morte é para a espécie o que o sono é para o indivíduo, ou o piscar para o olho” (W II, Cap. 41, p. 172). Com efeito, Schopenhauer também afirma que “a morte é a grande oportunidade de deixar de ser esse Eu” (W II, Cap. 41, p. 208), e que ela é a grande reprimenda que nosso egoísmo essencial recebe da natureza. A morte, assim, diz-nos o filósofo, “é um sono em que a individualidade se esquece: todo o resto do ser terá o seu despertar, ou antes, ele não deixou de estar acordado” (W I, §54, p. 292), ou ainda, “a vida pode ser vista como um sonho e a morte como um despertar” (P II, §139, p. 123). o que a torna o nosso “despertar do sonho da vida” (W II, Cap. 41, p. 188). Nos termos de Tolstói:

Mas, ao mesmo tempo em que morria, o príncipe Andrei lembrou que estava dormindo e, no mesmo instante em que morria, fez um esforço e acordou.

Sim, era a morte. Eu morri — eu acordei. Sim, a morte é um despertar!”, a ideia se acendeu de repente em seu espírito, e a cortina que até então ocultava o desconhecido foi erguida diante de seu olhar espiritual. Naquela leveza que não o abandonou mais a partir de então, ele sentiu como que uma libertação de energias, antes presas dentro dele[24].

Afinal, como conclui Filaleto no diálogo que encerra o ensaio “Sobre a Doutrina da Indestrutibilidade de Nosso Ser Verdadeiro pela Morte”: “a individualidade não é uma perfeição, mas uma limitação; livrar-se dela, portanto, não é uma perda, mas um ganho” (P II, §141, p. 135).

 

Conclusão

 

O estudo da influência do pensamento de Schopenhauer sobre a atividade de Tolstói suscita as mais variadas investigações. Harry Walsh investiga as razões que fizeram com que Tolstói manifestasse, inicialmente, um intenso entusiasmo por Schopenhauer, para, depois, afastar-se violentamente de sua doutrina; Gregory Maertz, por sua vez, defende a tese segundo a qual a influência desempenhada pelo pensamento de Schopenhauer em Tolstói assemelha-se bastante àquela que Schopenhauer exerceu em Nietzsche. Isto é, uma influência tão profunda e entranhada que pode ser identificada ao longo de toda a vida[25].

Um dos estudos mais completos acerca da relação entre Tolstói e Schopenhauer, porém, encontra-se no ensaio de Sigrid McLaughlin. O trabalho nos apresenta uma comparação, parágrafo a parágrafo, entre Tolstói e Schopenhauer, uma apresentação que se espraia por toda a criação ficcional de Tolstói a partir de Guerra e Paz. Além de uma comparação minuciosa, capaz de abranger os mínimos pormenores da influência de Schopenhauer em Tolstói, McLaughlin especula que:

Não apenas as ideias de Schopenhauer estão contidos nos temas dos escritos de Tolstói, elas parecem mesmo encontrar um reflexo no próprio estilo e estrutura dos mesmos. A estrutura espiritual não apenas de Anna Kariênina, mas da maioria dos trabalhos de Tolstói pode ser vista em termos da filosofia de Schopenhauer[26].

Uma especulação cujo espírito esperamos ter aqui partilhado.

Nossa análise concentrou-se na semelhança entre as reflexões do príncipe Andrei Bolkónski pouco antes de sua morte e a caracterização da natureza da morte por Schopenhauer. Deste modo, à luz dos argumentos desenvolvidos, as teses seguintes apresentam-se como possíveis consequências.

Em primeiro lugar, é importante recordar que a familiaridade de Tolstói com o pensamento de Schopenhauer deu-se na redação das últimas seções de Guerra e Paz. Isto significa que o personagem Andrei Bolkónski não foi composto por Tolstói como uma máscara para a doutrina de Schopenhauer. Aliás, é uma tese de Harry Walsh que o motivo pelo qual a filosofia de Schopenhauer desempenha uma influência avassaladora sobre o imaginário de Tolstói deve-se ao fato de que as próprias reflexões de Tolstói já se inclinavam para temas para os quais Schopenhauer oferece uma sólida fundamentação metafísica. Como exemplo, Walsh menciona passagens dos diários e cartas de Tolstói nas quais ele manifesta sua crença na ilusão da vontade livre e na inapelável predominância dos desejos nas ações humanas[27].

Em segundo lugar, nossa análise se deteve na semelhança observável nas reflexões acerca da morte, mas, ainda que outros episódios mencionados em sua caracterização fossem analisados, julgamos que a mesma semelhança com a doutrina de Schopenhauer emergiria em nosso horizonte. O desprezo e distanciamento manifestado por Andrei Bolkónski em relação ao corpo, sua desilusão amorosa que faz com que ele descortine o significado do amor ideal, suas ações a partir da compaixão, enfim, todos esses temas apresentam correspondências no interior do pensamento de Schopenhauer.

Em terceiro lugar, sentimo-nos autorizados a validar nossa hipótese, que considera o príncipe Andrei Bolkónski como um herói Schopenhauriano, em função da notável semelhança entre as reflexões de Schopenhauer acerca da natureza da morte e a conclusão alcançada pelo príncipe Andrei Bolkónski no final de sua vida. Na seção anterior, observamos de que maneira o príncipe Andre ecoa - ipsis litteris - a fórmula de Schopenhauer acerca da natureza da morte. Isto é, enquanto Schopenhauer afirma que “a vida pode ser vista como um sonho e a morte como um despertar” (P II, §139, p. 123), Tolstói diz-nos que Andrei compreende, em seus derradeiros momentos, que “a morte é um despertar[28].

Há, porém, uma suave diferença entre a tese de Schopenhauer e a compreensão de Andrei. A tese de Schopenhauer, segundo a qual a nossa morte não acarreta a destruição de nosso ser em si, pode bem ser compreendida como um dos consolos que nos são oferecidos pelo filósofo para suportarmos a opressão da Vontade (o mais importante destes consolos, talvez, consista no reconhecimento da compaixão). Schopenhauer, porém, é um filósofo, e, de acordo com uma de suas caracterizações da atividade filosófica, sua tese apresenta um pensamento abstraído da experiência (Cf. P II, §4, p. 31-32). Tolstói, por sua vez, como um poeta, apresenta-nos, através do personagem de Andrei Bolkónski, uma maneira de observarmos esta tese em movimento, oferecendo à nossa imaginação os mais variados caracteres e situações. Assim, enquanto a tese de Schopenhauer manifesta-se in abstracto, a compreensão de Andrei processa-se in concreto. Deste modo, após Andrei compreender o fato de que a morte consiste em um despertar, diz-nos Tolstói que ele:

Experimentava a consciência de um alheamento em relação a tudo o que era terreno e uma alegre e estranha leveza da existência. Sem se apressar e sem se perturbar, esperava o que tinha de acontecer. Aquela presença terrível, eterna, desconhecida, que ele sentira o tempo todo no decorrer de sua vida agora estava próxima dele e — graças àquela estranha leveza da existência que ele experimentava — estava até quase ao alcance da mão, palpável……………………………………………………………………..………………………………………………………….……….……………… [sic][29].

Uma experiência que bem pode ser a de qualquer um que partilhe da mesma compreensão.

 

Referências

 

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KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Santos e Alexandre Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

 

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McLAUGHLIN, Sigrid. “Some aspects of Tolstoy’s Intellectual Development: Tolstoy and Schopenhauer”. California Slavic Studies, Vol. 5, eds. Nicholas V. Rissnovsky and Gleb Struve. Berkeley, Univ. of California, 1970.

 

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SCHUYLER, Eugene. Selected Essays. New York: Charles Scribner’s Sons, 1901.

 

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WALSH, Harry. Schopenhauer’s “On the Freedom of the Will” and the Epilogue to War and Peace. The Slavonic and East European Review. v. 57, n. 4, 1979, pp. 572-575.

 

WALSH, Harry. The Place of Schopenhauer in the Philosophical Education of Leo Tolstoi. In: Schopenhauer: New Essays in Honor of His 200th Birthday. Ed. Eric von der Luft, Studies in German Thought and History, vol. 10. Lewiston, Edwin Mellen Press, 1988.



[1] Diversas pesquisas dedicam-se a analisar a relação que Tolstói estabeleceu com a doutrina de Schopenhauer ao longo de sua vida. Dentre os estudos consultados para a elaboração deste artigo, merecem destaque os de Sigrid McLaughlin, “Some aspects of Tolstoy’s intellectual development: Tolstoy and Schopenhauer”, e de Harry Walsh, “The place of Schopenhauer in the philosophical education of Leo Tolstoy”.

[2] CHRISTIAN, R. F. Tolstoy’s Letters, p. 221.

[3] Idem.

[4] SCHUYLER, E. Selected Essays, p. 237.

[5] Cf. MCLAUGHLIN, I. “Some aspects of Tolstoy’s Intellectual Development: Tolstoy and Schopenhauer”, pp. 189-195; WALSH, H. “The Place of Schopenhauer in the Philosophical Education of Leo Tolstoi”, pp. 303-305.

[6] A este respeito, podemos citar, dentre muitos estudos, os de Harry Walsh, “Schopenhauer’s “On the Freedom of the Will” and the Epilogue to “War and Peace”, e de Caleb Thompson, “Quietism from the side of Happiness — Tolstoy, Schopenhauer, War and Peace”. Uma notável exceção é a pesquisa de David Becker, “Tolstoy and Schopenhauer and War and Peace: Influence and Ambivalence”.

[7] TOLSTÓI, L. Guerra e Paz, p. 27.

[8] Idem.

[9] Ibidem, p. 855-856.

[10] Ibidem, p. 351.

[11] Ibidem, p. 930.

[12] Idem.

[13] Cf. Idem.

[14] TOLSTÓI, L. Guerra e Paz, p. 982.

[15] Cf. Ibidem, p. 930.

[16] Ibidem, p. 1165.

[17] Ibidem, p. 1173.

[18] Ibidem, p. 1173-1174.

[19] Ibidem, p. 1174.

[20] Dispomos, em língua portuguesa, de duas diferentes traduções do primeiro tomo da obra O mundo como vontade e representação: a primeira foi elaborada por M. F. Sá Correia e a segunda foi elaborada por Jair Barboza. Com efeito, apenas a segunda tradução apresenta-nos os prefácios de Schopenhauer para sua obra. Deste modo, à exceção das citações extraídas do prefácio, todas as outras citações de Schopenhauer decorrem da tradução de M. F. Sá Correia.

[21] BRUM, J. T. O pessimismo e suas vontades, p. 23.

[22] KANT, I. Crítica da Razão Pura, A33/B49.

[23] Ibidem, A33/B49.

[24] TOLSTÓI, L. Guerra e Paz, pp. 1173-1174.

[25] Cf. MAERTZ, G. “Elective Affinities - Tolstoy and Schopenhauer.”

[26] McLAUGHLIN, I. “Some aspects of Tolstoy’s Intellectual Development: Tolstoy and Schopenhauer”, p. 216.

[27] Cf. WALSH, H. “The place of Schopenhauer in the philosophical education of Leo Tolstoy”.

[28] TOLSTÓI, L. Guerra e Paz, pp. 1173-1174.

[29] Ibidem, p. 1170.