Ensaio sobre o Visível: vislumbres teórico-metodológicos para pesquisas com/sobre imagens em Educação[1]
Essay on the Visible: theoretical-methodological insights for research with/on images in Education
Thiago dos Santos Antunes da Silva[2]
Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, Brasil.
Resumo
Interessa-me, no presente ensaio, perceber como o elemento visível configura parte da formação discursiva e as possibilidades deste entendimento fornecerem ferramentas teórico-metodológicas para a análise das imagens, e das subjetividades visuais por elas engendradas, nos estudos do campo da Educação. Recorro, para isso, aos pressupostos pós-estruturalistas, principalmente aos estudos arqueológicos e genealógicos de Michel Foucault, aos comentários de Gilles Deleuze sobre estes e aos conceitos esboçados por Georges Didi-Huberman inspirados na arqueogenalogia foucaultiana, especificamente, neste último caso, nas noções de anacronismo, arquivo, imagem, imaginário e imaginação.
Palavras-chave: Arqueogenealogia; Visibilidades; Educação-imagem.
Abstract
In this essay, I am interested in understanding how the visible element configures part of the discursive formation and the possibilities of this understanding to provide theoretical and methodological tools for the analysis of images, and the visual subjectivities engendered by them, in studies in the field of Education. To this end, I resort to post-structuralist assumptions, mainly to Michel Foucault's archaeological and genealogical studies, Gilles Deleuze's comments on this and the concepts outlined by Georges Didi-Huberman inspired by Foucault's archaeogenealogy: specifically, in the latter case, the notions of anachronism, archive, image, imaginary and imagination. Finally, I propose a small visual montage about the classroom, in order to demonstrate how I appropriate the assumptions and procedures outlined here.
Keywords: Archaeogenealogy; Visibilities; Image-education.
Estamos, no tempo presente, inundados pelas imagens. Elas mediam, em diversas camadas, as nossas formas relacionais e atuam como tecnologias subjetivantes que tomam parte das formas como vemos – e narramos – o mundo e a nós mesmos: dos álbuns de fotografia familiar aos aplicativos de relacionamento e redes sociais; das imagens de satélite e mapas digitais às chapas de raio-X e sensores infravermelho. Parece que, ao nosso redor, tudo se configura como imagem – ou por ela é atravessado.
Nos estudos do campo da educação, já há algum tempo, tem crescido o número de trabalhos que tomam as imagens como seu objeto. Na maioria dos momentos, tais estudos mobilizam o binômio educação-imagem sob duas rubricas: por um lado, as preocupações com o ensino de imagem – cinema, fotografia, artes plásticas – com foco na potência da imagem para as relações internas à sala de aula (Bergala, 2008; Fresquet, 2013, 2020, 2022; Barbosa, 2018, 2020; Migliorin, 2014; Pipano, 2019); e, por outro, a preocupação da imagem, em suas múltiplas formas, como pedagogia cultural, que reconhecem a imagem como elemento subjetivante e, frequentemente, tomam as imagens como corpus de pesquisa para pensar as relações educacionais, escolares ou não (Leandro, 2001; Fischer, 2007, 2009; Costa, Andrade, 2015; Costa, Wortman, Bonin, 2016; Egas, 2018). Tal distinção, ressalto, funciona apenas como elemento analítico, posto que as fronteiras entre tais estudos são movediças, não opostas, e estão amplamente relacionadas.
O segundo grupo de estudos, frequentemente, tem se amparado nos pressupostos pós-estruturalistas para realizar suas análises, principalmente nos estudos de Michel Foucault e Gilles Deleuze, com forte influência do conceito de discurso e dos procedimentos da análise do discurso. Ocorre, no entanto, principalmente aos pesquisadores iniciantes na relação educação-imagem, alguma dificuldade em estabelecer os princípios teórico-metodológicos com os quais proceder na análise das imagens – visto que, no senso comum, os discursos são frequentemente associados à palavra (falada e escrita). Há, ainda, certa rarefação dos estudos do discurso que detenham-se, especificamente, sobre a imagem e a própria condição visível.
Interessa-me, portanto, neste ensaio, perceber como o elemento visível configura a formação discursiva e as possibilidades desta configuração nos fornecerem ferramentas metodológicas para a análise das imagens, e das subjetividades visuais por elas engendradas, nos estudos em educação. Para tal, percorrerei os pressupostos sobre as possibilidades discursivas de ver um objeto qualquer, a partir de uma revisão bibliográfica, primeiro da arqueologia e da genealogia foucaultiana – amparado nos estudos de Foucault e de Deleuze – e, em seguida, daquilo que Georges Didi-Huberman toma da arqueogenealogia para seus estudos da filosofia da imagem.
A dimensão visível do discurso na Arqueologia e na Genealogia Foucaultiana
Às “possibilidades de ver”, chamamos de visibilidades; ou: o conjunto de condições de um certo tempo ver uma coisa qualquer, tal qual pressupõe a análise arqueológica de Michel Foucault (Foucault, 2000; Deleuze, 1988). Esta, por sua vez, é a operação metodológica produzida por Foucault para o estudo do saber ou da formação discursiva. Chamada de Arqueologia ou Arqueologia do Saber, podemos defini-la como uma “história das condições históricas de possibilidade de saber” (Castro, 2016, p. 40); “A disciplina dos arquivos” (Deleuze, 1988, p. 11). É, portanto, a forma como Foucault se movimenta em torno dos seus estudos dos discursos, principalmente através das investigações sobre o que, na modernidade, se veio chamar de ciências e suas epistemes.
Saber (savoir), aqui, não pode ser confundido com conhecimento ou informação, simplesmente. Podemos dizer que Foucault entende por “saber” justamente uma complexa relação entre o que se pode dizer e ver em cada tempo, as posições em que os sujeitos se situam para falar dos objetos, a coordenação entre os enunciados em que os conceitos emergem, são definidos, e as próprias possibilidades de articulação internas aos discursos (Castro, 2016). “O conjunto assim formado a partir do sistema de positividade e manifestado na unidade de uma formação discursiva” (Foucault, 1994, p. 793 apud Castro, 2016, p. 394). Por “positividade” entenderemos, aqui, a ação propriamente criadora, formuladora, do discurso; diferente da noção de representação – no qual os conceitos e imagens fazem alusão a algo que lhe são externos – o discurso engendra, produz: "os discursos formam sistematicamente os objetos de que falam" (Foucault, 2012, p. 56).
Os discursos são, portanto, o objeto e o elemento descrito pela arqueologia foucaultiana. Roland Barthes (2007, p. 1) nos relembra que “dis-cursus é, originalmente, a ação de correr para todo lado, são idas e vindas, ‘démarches’, ‘intrigas’”. Daí a necessidade de recorrer às ações ínfimas, aos objetos raros, ao que não tem eira nem beira, ao que não tem previamente um sentido único ou um fio vermelho em si mesmo, para perceber a constituição de uma dada formação histórica e sociedade são, fazem, falam, veem e podem. Esses discursos, nesse sentido, estão longe de serem apenas as falas ou atos de fala – como ficaram demarcados no senso comum. Eles são as práticas que um determinado tempo e sociedade podem realizar.
Fischer (2001, p. 200) ressalta que “tudo é prática em Foucault”, essas práticas, por sua vez, estão imersas em “relações de poder e saber, que se implicam mutuamente, ou seja, enunciados e visibilidades, textos e instituições, falar e ver constituem práticas sociais por definição permanentemente presas, amarradas às relações de poder” (idem). Em sua “Arqueologia do Saber”, Foucault nos aponta a direção de seu projeto:
[...] gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um léxico e uma experiência; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva. (...) não mais tratar os discursos como conjunto de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse mais que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever (Foucault, 2008, p. 54 - 55).
É por isso que a arqueologia não corresponde a uma disciplina interpretativa – como uma análise de conteúdo ou uma história das ideias –, pois não trata os discursos como signos de uma “outra coisa”, mas os descreve como práticas múltiplas e singulares no tempo e no espaço (Castro, 2016). O interesse não está em buscar quando algo foi dito pela primeira vez, mas na regularidade dos enunciados e nas asperezas que aparecem nas suas descontinuidades. O pressuposto arqueológico está, justamente, na ideia de que cada sujeito só consegue pensar o que pensa sua formação histórica. Só consegue dizer e ver o que diz e vê a sua formação histórica. Na singularidade descontínua de um tempo, a arqueologia se configura como o trabalho de atuar na superfície de emergência dos discursos… “o trabalho de reconhecer os solos que dão lugar à emergência de novos objetos para o pensamento” (Alves, 2009, p. 28), de novos objetos de discurso.
Novos objetos do discurso são raros. Não é possível dizer e ver qualquer coisa, em qualquer tempo. A emergência dos discursos está condicionada às relações entre instituições, processos econômicos, modos de comportamento, ao sistema de normas vigente, entre outros campos do saber: “existe sob condições positivas de um feixe complexo de relações” (Lima, 2004, p. 59). O que Foucault denominou “formação discursiva” é uma maneira de operar com essas disputas e com as relações que engendram os discursos, ou com como algo torna-se verdadeiro em uma dada época e em um dado lugar. “O que interessa é pensar como se produzem efeitos de verdade no interior dos discursos”, diria Alves, ao que ressalta, “estes, em si mesmos, não são nem verdadeiros nem falsos. A verdade se dá no discurso” (Alves, 2009, p. 29). O trabalho da arqueologia, nesse sentido, é descrever as formações discursivas.
É preciso, assim, reter os arquivos que emergem em cada formação discursiva. Não me refiro simplesmente aos documentos guardados e dito importantes para uma sociedade. Os arquivos, no sentido aqui empregado, são as práticas de uma formação histórica, constituídos fundamentalmente de um “falar” e de um “ver”. Deleuze (2017) reafirma que o objetivo de Foucault, no que diz respeito a análise dos discursos, é justamente, extrapolar a dimensão das ideias para pensar em suas condições: “é como se cada época se definisse, antes de tudo, por aquilo que ela vê e faz vê, por aquilo que ela diz” (Deleuze, 2017, p. 13). Por isso mesmo Deleuze (1988) declara que o arquivo é audiovisual: é formado de um ver e de um falar, estes variando de formação discursiva em formação discursiva.
Disso recolhemos que as palavras e as coisas, além de constituírem os discursos, não estão no mesmo plano de significação. Dizer não é o mesmo que ver; embora, na formação discursiva, ambos estejam imbricados. Eis o primeiro ponto que me cativa na arqueologia foucaultiana, tal qual organizada por Deleuze: ver e falar constituem condições diferentes de uma mesma formação histórica, de um mesmo conjunto enunciativo. Deleuze (2017) afirma que o título irônico dado por Foucault ao livro “as palavras e as coisas” remete às disciplinas escolares francesas de seu tempo: a disciplina das coisas – onde o professor demonstrava os objetos do mundo, aponta as coisas que existem e exibe seus funcionamentos – e a disciplina das palavras – onde o professor trabalhava as questões gramaticais e morfossintáticas. Na aula das coisas o professor mostrava a “salina”, a “cadeira”, o “cachimbo”; mostrava uma imagem dessas coisas. Na aula das palavras, eleva fala “salina”, “cadeira”, “cachimbo”. A operação é fazer corresponder, equivaler, a imagem à palavra.
Essa mesma discussão remete a outro livro de Foucault, “Isso não é um cachimbo” (1988), no qual o autor faz um comentário da obra de René Magritte. A maioria de nós conhece essa tela, sobre a qual está escrita: Ceci n’est pas une pipe (Isso não é um cachimbo). Acima da frase, em uma produção detalhada, uma figura a qual poderíamos dizer claramente: isso é um cachimbo. A suposta ambivalência dos termos, para Foucault (1988, p. 6), não produziria nenhuma contradição, pois “só é possível existir contradição entre dois enunciados ou no interior de um mesmo enunciado”. Dessa forma, Foucault desloca o problema da “contradição” para o problema do “referente”: o incômodo seria gerado justo pela tentativa de associar o texto à imagem, ativando-a como um referente da palavra cachimbo.
Essa análise de Foucault abre, para nós, a possibilidade de perceber um certo saber da relação entre imagem-texto. Assim, ele trata do quadro de Magritte como um Caligrama: a ativação e a reativação de diversas associações possíveis e sentidos, que demonstram, em última instância, que imagem e texto estão em dimensões diferentes. Para Foucault, o que importa dessa relação é que “o signo verbal e a representação visual não são jamais dados de uma vez só” (1988, p. 14). O que chama atenção em Magritte, para Foucault, é “essa distância tão longa – que impede que possamos ser ao mesmo tempo e de uma só vez leitor e espectador – assegura a emergência abrupta da imagem acima da horizontalidade das palavras” (Foucault, 1988, p. 17). Ao que Deleuze complementa: ‘“isto não é um cachimbo” se torna “isto não é um cachimbo” na medida em que dizer não é ver” (Deleuze, 2017, p. 15). Daí a pressuposição de que o arquivo é audiovisual: pois é constituído de uma visibilidade e de uma dizibilidade, que agem conjuntamente, mas pertencem a dimensões diferentes de um mesmo discurso de uma formação histórica.
Esta mesma lógica de formação discursiva pode ser vista em outros gestos metodológicos de Foucault. Por exemplo, em “O Nascimento da Clínica” (1977) poderíamos perguntar: sob quais formas é visível uma doença em um dado tempo? O que dizemos quando dizemos “doença”? Podemos afirmar que, especificamente na Europa do século XVIII, a clínica é uma maneira de fazer ver a doença e é lá que se constitui toda uma maquinaria de isolamento, vide a prática de junção dos doentes em um espaço de controle das variáveis externas a fim de ver e fazer ver os sintomas, em suas múltiplas formas e séries, seja no que se apresenta em um só doente ou em vários, mas que constituem um “todo” – sempre contingente e expansível – da doença (visível). Porém, na mesma medida, a constituição de uma série de procedimentos de descrição e junção de sintomas, do sequenciamento de sintomas, do entendimento da doença como conjunto de sintomas, que juntas fazem emergir a ideia de Quadro Clínico (enunciável) (Foucault, 1977). Na clínica, a visão do médico configura uma pressuposição, um primeiro gesto de análise que antecede o toque, o primeiro instrumento que é anterior e essencial ao quadro clínico.
Em “Vigiar e Punir” emerge um outro espaço: a prisão. Poderíamos perguntar: como se encarcera em um certo tempo? Foucault (1987) analisa esta questão a partir do conjunto de enunciados nas formulações do direito penal do século XVIII – dentre eles a lei da vadiagem, em sua associação com outras instituições, como a fábrica. Porém, no que diz respeito ao visível, observa o panóptico de Bentham como uma dimensão específica – o Panoptismo (Foucault, 1987). Isso se dá, em primeiro lugar, porque o panóptico põe o olhar como prática central da prisão. Sua construção arquitetônica é pensada de tal forma em que aquele que vigia possa ver sem ser visto pelos encarcerados. Enquanto os encarcerados não poderiam ver os guardas e nem as outras celas. Em segunda instância, o que o panóptico gera é o deslocamento da função-prisão do enclausuramento para o controle. Na iminência de ser visto e na dúvida – nunca verificável – de se há alguém lhe vigiando ou não, o que acontece com o vigiado é a autoregulação de sua conduta. O domínio do corpo e da psique dos sujeitos presos. O que o panóptico demonstra, além do sadismo dos algozes, é como a noção de visível funciona na produção de sujeitos.
Podemos analisar de forma semelhante o “História da Loucura na Idade Clássica”, lançado 12 anos antes de “Vigiar e Punir”. O modus operandi de Foucault segue intuições semelhantes. Ele busca justo uma modalidade de enclausuramento dos loucos – no que se chamava então de hospital geral ou casas de correção – e um conjunto de enunciados médicos que formulavam um louco e uma loucura (Foucault, 1978). Deleuze (2017) relembra que para a emergência dos discursos sobre a loucura, tal qual concebida na modernidade, não bastaram as sistematizações sobre o louco, baseadas nos binômios razão/desrazão, produtivo/incapaz. Foi necessário ver um louco: daí o Salpêtrière, manicômio mais famoso da França, no séc. XVIII e XIX, realizar excursões dominicais para que a população em geral visse os loucos encarcerados (Deleuze, 2017). Didi-Huberman (2015), que chama Salpêtrière de “inferno feminino”, em “a invenção da histeria”, busca demonstrar o papel da fotografia na forma como Jean-Martin Charcot produz a histeria a qual descreve, analisa e “cura”. Não atoa ressalta que a fotografia em si é parte do trabalho de catalogador e analista que Charcot pretendia. A especificidade de cristalizar a performance do sintoma na fotografia cria uma imagem da histérica e do seu sintoma, esta, por sua vez, fórmula e é parte da própria histeria.
É assim que, em Foucault, a escola, a clínica, o hospital, o asilo e a prisão são arquiteturas. Não apenas um conglomerado cúbico de pedras, ferros e madeiras, mas o espaço em que se torna algo visível. É o feixe de luz ou de sombra em certos objetos de um tempo. Se vemos a “clínica”, a vemos justamente no nível em que vemos o “doente”. Retomemos a pergunta: como vemos o doente? Vemos o doente na medida em que a clínica nos mostra o doente. Ela nos mostra “o doente” em um e em todos os doentes. A clínica é o lugar de ver o sintoma através do doente, assim como o hospício é o lugar de ver a loucura no louco, a prisão o lugar de ver a delinquência no delinquente e a escola um lugar de ver o civilizado e o moderno no aluno. O inverso é também verdadeiro: só é possível ver o delinquente, o louco, doente e o aluno diante da arquitetura que se constituiu na prisão, no hospício, na clínica e na escola. A loucura é o que se pode ver e dizer do louco; uma forma específica de dizê-lo e vê-lo. Não apenas de um delinquente/louco/doente/aluno singular, mas da singularidade destes: no conglomerado de práticas que fazem emergir uma população. Pressuponho, então, que os elementos visuais constituem parte do saber de uma formação histórica. Lima (2004, p. 61) diria que “toda formação histórica é um caleidoscópio de objetos que surgem e de objetos que desaparecem”. Para analisar as visibilidades é, então, necessário enfronhar-se nas formas de produção das imagens, na maneira como o discurso se configura a partir de um fazer ver e fazer sumir um objeto qualquer.
Foucault passa a compreender que tanto os enunciados quanto os visíveis se organizam de forma a compor, em cada formação histórica, objetos singulares. Mas, se falar e ver constituem-se em dimensões diferentes, passamos a entender, “é preciso que haja uma relação entre essas duas formas não relacionadas” (Deleuze, 2020, p. 6) que necessita, por pressuposto, advir de uma outra dimensão externa e diferente do saber – que Deleuze (idem) chamará de não-estratificado. A noção de regularidade, então, passa a funcionar como o ponto de relação entre as singularidades produzidas em cada formação discursiva, em cada estratificação. Deleuze afirma que, “a regularidade, para Foucault, tem sentido bem preciso: é a curva que une pontos singulares” (Deleuze, 1998a, p. 85). Uma Regle: tanto a regra quanto a régua que avizinha as formações históricas (Deleuze, 1988).
É aqui que, para Deleuze, o saber – que até agora exploramos – ultrapassa a si na direção do poder: “porque o poder é relação, e a relação de poder é estritamente a mesma coisa que uma relação de força [...] [e as] relações das duas formas (forma do visível e forma do enunciado) ultrapassam a si na direção das relações de força elas encarnam” (Deleuze, 2020, p. 7). É nesse sentido que as relações de poder passam, na forma analítica foucaultiana, a ter uma primazia sobre o saber: porque estas não poderiam ser integradas sem aquelas. “Se há primado”, ressalta Deleuze (1998a, p. 89), “é porque as duas formas heterogêneas do saber se constituem por integração, e entram numa relação indireta, por sobre seu interstício ou não-relação, em condições que só pertencem às forças”. É por isso que, aqui, mesmo interessado no elemento visível, não podemos ignorar as dimensões do poder e, portanto, os aspectos genealógicos da pesquisa foucaultiana.
Segundo Castro (2016, p. 184), “fala-se de um período genealógico de Foucault para fazer referência àquelas obras dedicadas à análise das formas de exercício do poder”, nas quais o poder passa a interessar-lhe justamente “como elemento capaz de explicar como se produzem os saberes e como nos construímos na articulação entre ambos” (Veiga-Neto, 2007, p. 56). Implicada, portanto, não na busca da “gênese”, no sentido duro da palavra, de um objeto, mas no processo de lutas e embates entorno da constituição dos objetos do discurso. Se tomamos como referentes pressupostos comuns, devemos entender que a passagem da arqueologia para genealogia não é uma ruptura no pensamento de Foucault – embora ele mesmo tenha dito que esta abria um segundo momento de seus estudos –, mas que estas somam-se no intuito de pensar nas articulações do saber, pelo poder, com vistas às formas de resistência, ou “para analisar o saber em termos de estratégia e táticas de poder” (Castro, 2016, p. 185). Assim, “é porque o discurso, em última análise, remete ao campo de lutas, que a genealogia complementa a arqueologia” (Alves, 2009, p. 28).
É dessa continuidade, explicitada por Foucault e largamente explorada por seus comentadores, que o termo – amplamente usado nos estudos foucaultianos – que arqueogenealogia emerge. Como abordagem que se favorece de ambos os movimentos metodológicos de Foucault,
A arqueogenealogia se ocupa das condições para apareça um objeto do discurso; das condições históricas para que dele se possa “dizer alguma coisa” ou diferentes coisas; das condições para que um objeto se inscreva em um domínio de parentesco com outros objetos, para que possa ter com eles certas relações de similitude, de vizinhança ou afastamento, de transformação das condições de circulação e apropriação dos discursos – condições que são, efetivamente, numerosas e heterogêneas (Alves, 2009, p. 28)
Quando analisa alguns dos quadros de Manet, por exemplo, Foucault opera de forma interessante (Foucault, 2010). Seu ensaio não se centra nas dimensões técnicas e representacionais utilizadas pelo pintor para tentar buscar um padrão – nem do próprio Manet, como a procura de uma obra, de um ponto de coerência linear; nem do impressionismo, do qual Manet é precursor, tentando delimitar quais são suas contribuições nas obras de outros pintores. Do contrário, Foucault se interessa justamente pelo gesto de interrupção, pela diferença produzida por Manet ao permitir-se utilizar das “propriedades materiais do espaço em que pintava” (Foucault, 2010, p. 261). Foucault, antes de tudo, observa os quadros – os menos icônicos, diga-se de passagem – sem desejar encontrar em seus elementos um sentido. Ele não se pergunta o que os quadros querem dizer, mas como a forma de ver transforma-se a partir destes quadros. Seu argumento é: se a pintura representacional, desde a Renascença, fixava um lugar ideal para entendimento do quadro, através da tentativa de fazer esquecer que esta estava dentro de um enquadramento, a interrupção de Manet era justo valorizar o espaço. De um regime a outro. De um regime visível que supunha uma única forma de enquadramento, para um outro que partia da diversificação de miradas. Eis um modo de Foucault analisar as imagens: através não do que elas mostram ou do que lhes é interior, mas da condição visível que elas pressupõem – do seu exterior constitutivo.
Foucault (2010), então, divide seu argumento ao redor de três rubricas: a forma como Manet tratou o espaço da tela, o problema da iluminação e como fez agir o espectador. Deste ponto, o autor trata das condições de emergência das práticas de Manet sobre sua tela. Ora, Foucault (2000) havia utilizado elementos semelhantes a estes – espaço, luz e espectador – para analisar o quadro Las Meninas, de Velásquez, no livro “As palavras e as coisas”. Ele, principalmente, age através de uma descrição minuciosa dos elementos da pintura, chamando atenção para os personagens presentes, para a incidência diagonal da luz, para a organização espacial do quadro para então, só depois de longamente explorar os artifícios utilizados por Velásquez na composição deste quadro, chegar a um ponto crucial de sua análise: a complexidade das miradas, das formas de olhar, dos eixos de olhar que podem recair na cena do quadro. Há, pelo menos, três “entradas” ou “possibilidades de ver” no quadro de Velásquez, para Foucault (2000): a do modelo pintado (o rei e a rainha), que não são vistos senão através espelho; a do pintor, que vê a cena e a si próprio, através de espelho invisível e que abre a possibilidade de mais uma mirada: a do espectador, que não é visto e que assume esse lugar “por intrusão” (Foucault, 2000, p. 18). A isso ele chama “espetáculo-de-olhares” (idem, p. 17). Novamente, o que importa para a Foucault é a condição de ver; é o sutil processo de fazer ver e de fazer sumir; é a organização não binária entre aquilo que é visível e o que não é. Revisar um quadro por demais visto para nele encontrar não seu sentido profundo, não sua verdade oculta, mas o modo de visualidade que ele instaura.
Arqueogenealogia em Didi-Huberman: miradas de uma filosofia da imagem
A forma como Georges Didi-Huberman – um dos principais estudiosos da imagem no tempo presente – interpreta e se apropria das formas arqueológicas e genealógicas de Foucault para a análise das imagens é, para mim, imprescindível nesse ponto. Em “Diante do Tempo: História da arte e anacronismo das imagens”, Georges Didi-Huberman (2019) propõe-se realizar uma arqueologia “dos modelos de tempo, dos valores de uso do tempo na disciplina histórica que elegeu as imagens como seus objetos de estudo” (Didi-Huberman, 2019, p. 19), uma arqueologia da história da arte. Pondo o paradigma representacional sob judice, o autor interroga a epistemologia da história da arte como disciplina. Parte, para isso, de um pan de peinture (pano de pintura), parte inferior da “Madona das Sombras, Circa” realizado por Fra Angelico, por volta do ano 1440, conservado no Convento de São Marcos, em Florença. Seu objeto não é exatamente a imagem, mas justamente a condição visível desta imagem para a história da arte. Ele direciona sua questão para a rarefação de miradas para o conjunto de trabalhos de Fra Angelico, tão bem “documentados”, em detrimento de outro conjunto de obras renascentistas. Em sua investigação, o autor se questiona:
Na história da arte como disciplina, como ‘ordem do discurso’, o que manteve uma tal condição de cegueira, uma tal ‘vontade de não ver’ e de não saber? Quais são as razões epistemológicas de tal denegação – denegação que consiste em saber identificar, na Sacra Conservação, o menor atributo iconográfico e, ao mesmo tempo, não prestar a mínima atenção ao extraordinário fogo de artifício colorido que se estende logo abaixo, sobre três metros de largura e um metro e cinquenta de altura? (Idem, p. 17)
Estabelece, assim, como ponto de partida o anacronismo – dimensão que considera mais antagonizada pelos historiadores clássicos – ao qual se refere como “a regra de ouro”: a tentativa de “‘não projetar’, como se diz, nossas próprias realidades – nossos conceitos, nossos gostos, nossos valores – sobre as realidades do passado, objeto de nossa investigação histórica” (idem, p. 19). Pressupõem, então, os historiadores da arte clássicos, que a chave interpretativa do passado se encontra no mesmo passado que é o passado do objeto. Nesse entendimento, seria a identificação plena da fonte da época – fontes técnicas, estéticas, religiosas etc – que tornariam uma interpretação da arte possível. Didi-Huberman (idem), contracorrente, considera, entretanto, que a “eucronia” – esta suposição da existência de um mesmo tempo linear e homogêneo, para o qual se pode retornar e que difere do tempo em que o pesquisa está – não é capaz de dizer algo sobre seus objetos de investigação – especificamente, no caso de sua pesquisa, os afrescos de Fra Angelico.
O autor verifica isso nas análises históricas de Michael Baxandall, referenciadas nos relatos de Cristóforo Landino, este considerado fonte de primeira ordem por, em 1481, apenas quarenta anos após a pintura, realizar um julgamento sobre os panos de Fra Angelico. Didi-Huberman (idem) chama atenção para o próprio critério de elegibilidade dos relatos de Cristóforo Landino como fonte primária: a hipótese de que ele e Fra Angelico sejam contemporâneos. Demonstra, em contraponto a isso, uma série de diferenças entre os dois, temporais inclusive, que lhe levam a considerar uma cisão anacrônica entre Angelico e Landino. “Landino não foi anacrônico a Fra Angelico somente na diferença de tempo e de cultura”, considera o Didi-Huberman, “mas, o próprio Fra Angelico parece ter sido anacrônico a seus contemporâneos mais imediatos” (idem, p. 21).
Sua posição teórica caminha, portanto, para o entendimento de que o “anacronismo atravessa todas as contemporaneidades. A concordância dos tempos - quase - não existe” (idem, p. 21). Não se trata, para ele, de uma fatalidade do anacronismo, mas do reconhecimento de sua necessidade, visto que compõem internamente os próprios objetos aos quais tentamos atribuir uma história. “O anacronismo seria, assim, numa primeira aproximação, um modo temporal de exprimir a exuberância, a complexidade, a sobredeterminação das imagens” (idem, p. 22). Estar diante da imagem do afresco de Fra Angelico, para Didi-Huberman, é estar diante dos diferenciais de tempo que operam em cada imagem, de objetos de tempo complexos, de tempo impuro. Levando essa tese ao máximo, Didi-Huberman encara que a analítica da imagem precisa trabalhar no tempo diferencial: “momentos de proximidades empáticas, intempestivas e inverificável com os momentos de recuos críticos, escrupulosos e verificadores” (idem, p. 28), o que considera uma pulsão rítmica de método.
Didi-Huberman considera, a partir disso, que a história das imagens “é uma história de objetos impuros, complexos, sobredeterminados. Portanto, é uma história dos objetos policrônicos, de objetos heterocrônicos ou anacrônicos” (idem, p. 28), que corresponde a um saber sobreinterpretativo. Uma epistemologia do anacronismo, a qual defende, não existe sem a “arqueologia discursiva”, visto que só pode existir numa revisitação crítica à própria história da arte e, de pronto, questionando toda uma cadeia de censuras e de impensados. Retoma, assim, Michel Foucault: “Saber, mesmo na ordem histórica, não significa ‘resgatar’ e, sobretudo, não ‘nos resgatar’. A história será ‘efetiva’ na medida em que introduzir o descontínuo em nosso próprio ser… Porque o saber não é feito para compreender, ele é feito para decidir” (Foucault, 1971, p. 147-148 apud Didi-Huberman, 2019, p. 30). Se tomarmos, portanto, o gesto de Didi-Huberman, passamos a considerar que tanto as imagens são formuladas em dispositivos anacrônicos – as contradições internas de seu próprio tempo – como que o estudo das imagens deve partir de seu elemento anacrônico como potência palimpsestica de sobreposição das imagens com os diferentes tempos marcados nelas. Estar diante de uma imagem é, inelutavelmente, estar diante do tempo e a formulação dessa história só pode dar-se contrapelo.
A relação da imagem com o tempo, em Didi-Huberman, nos dá a ver, sobretudo, uma certa articulação da imagem com o real. Em “Quando as imagens tocam o real” (2012), ele remonta a mesma frase que emprega em outros trabalhos, quase sua suma: “assim como não há forma sem formação, não há imagem sem imaginação” (Didi-Huberman, 2012, p. 208), ou, como diz em “Falenas”, “não há imagem sem imaginação, forma sem formação, Bild sem Bildung” (Didi-Huberman, 2015, p. 15). Ora, Didi-Huberman, só pode afirmar isso – e, ainda assim, acreditar que as imagens “tocam o real” – na medida que compreende que a imaginação não se opõe ao real e que, ao mesmo tempo, constitui o processo pelo qual uma imagem se torna tal qual ela é, ou torna-se visível. Em “Atlas ou o Gaio Saber Inquieto” (2018), considera que a “imaginação, por mais desconcertante que seja, não tem nada a ver com uma fantasia pessoal ou gratuita. Ao contrário, é um conhecimento transversal que ela nos oferece, por sua potência intrínseca… que consiste em descobrir laços que a observação direta e incapaz de discernir” (Didi-Huberman, 2018, p. 20). O gozo da imaginação é sua entrega ao múltiplo. Ela “aceita o múltiplo e o reconduz constantemente para nele detectar novas ‘relações íntimas e secretas’, novas ‘correspondências e analogias’, que serão elas mesmas inesgotáveis” (idem, p. 20), isso que chama de inesgotável.
A noção de Deleuze sobre o imaginário é particularmente importante, nesse ponto. Seu foco principal, nos livros “Imagem-Movimento” (1983) e “Imagem-Tempo” (2005), é nos os regimes de imagem na transição do cinema antes e depois da 2ª Guerra Mundial, demonstrando que eles possuem relações intrínsecas com as formas de pensamento de uma certa formação história, que ora se apresenta nas imagens, ora nas funções e ora nos conceitos, portanto nos signos. No entanto, na busca por reafirmar tal tese, Deleuze (2005) tece as relações entre imagem e imaginário. Definindo-o a partir dos pressupostos Bergsonianos, entende que o imaginário está, justamente, no entrecruzamento de dois pares: real-irreal, verdadeiro-falso. Para ele, o real é “o encadeamento prolongado dos atuais [aquilo que se atualizou, que não é mais virtual]; o irreal é a aparição brusca e descontínua à consciência, é um virtual enquanto se atualiza” (Deleuze, 2008, p. 84). Posto que o binômio real-irreal, embora sempre distinto internamente, nem sempre é discernível, o binômio verdadeiro-falso é acionado: sendo o falso, justamente, o momento em que o real e o irreal são indiscerníveis. No entanto, quando há o falso, quando real e irreal estão suspensos, o verdadeiro torna-se impossível de decidir: “o falso não é um erro ou uma confusão, mas a potência que torna o verdadeiro indecidível” (idem, p. 84).
Justo por estar no entrecruzamento entre o verdadeiro e o falso, o imaginário é uma noção complicada para Deleuze (idem). Ele instaura um fenômeno cristalino, no qual existem trocas entre uma “imagem-virtual e uma imagem-atual, o virtual tornando-se atual e vice-versa; e também há uma troca entre o límpido e o opaco, o opaco tornando-se límpido e inversamente” (idem, p. 85). Dessa forma, é o próprio imaginário esse conjunto de trocas que lhe qualificam como uma imagem-cristal, na qual o próprio tempo dar-se-ia a ver, como potência do significável, nunca ultrapassando-se em direção a um significante (idem); o que a torna uma condição. Embora Deleuze considere o imaginário um conceito pouco produtivo em si para suas análises dos regimes imagéticos – pois o que lhe importava era justo a operação prática do cinema disseminar cristais de tempo – tal conceito nos interessa nesse ponto como o solo no qual a imagem se constrói e reconstrói.
Nesse sentido, compreendo que a noção de imaginário de Deleuze articula-se bem com a de imaginação em Didi-Huberman. Sendo a imaginação o processo pelo qual uma imagem constitui-se tal qual ela é, um signo e ao mesmo tempo um conjunto de relações, é o imaginário o plano em que se dão essas potenciais articulações. Não posso posicionar, portanto, o imaginário como um conjunto fixo de relações imagéticas, do contrário, entendo que é ele que constitui o campo de proveniência onde a imaginação – o processo de construção de uma imagem – pode dar-se. As imagens, nesse sentido, são constituídas de outras imagens. Relações entre visíveis são articuladas em processos de semelhança e dessemelhança, de construção e reconstrução, que visam fixar, sempre provisoriamente, uma forma imagética – seja ela material ou não.
“‘Ler o que nunca foi escrito’: a imaginação é primeiro - antropologicamente – o que nos torna capazes de lançar uma ponte entre realidades, as mais longínquas e as mais heterogêneas”, defende Didi-Huberman (2018, p. 29). Dessa forma, Didi-Huberman associa, inseparavelmente, a imaginação ao conhecimento. “Para saber é preciso imaginar-se”, é o que primeiro defende em sua cruzada contra o inimaginável no livro “Imagens Apesar de Tudo” (Didi-Huberman, 2020, p. 11). Analisando, por exemplo, um conjunto de quatro fotografias realizadas clandestinamente por membros do Sonderkommando[3], retiradas em agosto de 1944, em Auschwitz, o autor as considera como quatro “refutações arrancadas a um mundo que os nazistas queriam ofuscar; ou seja, deixar sem palavras nem imagens” (idem, p. 35). Atos de resistência daqueles sujeitos, postos em posições subalternas, contra o esquecimento que os assolava. O estatuto do inimaginável – a própria ideia de que não poderíamos, como observadores e analistas, imaginar o horror, produzir um intercruzamento entre os tempos para, de alguma forma, supor o algo nestas imagens opacas e contingentes – não é uma possibilidade para Didi-Huberman. É preciso, inclusive, lutar contra o inimaginável como categoria que consolida o passado sobre si próprio e totaliza o “todo” dos acontecimentos em um “fato”. Preciso relembrar, aqui, que o motivo pelo qual Foucault transiciona de uma “arqueologia” para uma “genealogia” é político: é a necessidade de mostrar que a contingência na qual os discursos emergem nos ajudam a reconhecer que – tanto o passado como nosso presente – foram de uma forma tal e poderiam ser diferentes; papel que, aparentemente, Didi-Huberman passa a atribuir a imagem e a imaginação.
Didi-Huberman Pondera, no entanto, que o trabalho de observação e análise destas fotografias exige de nós um duplo movimento: “é necessário, sobre as imagens, cerrar o ponto de vista, nada omitir da substância imageante, mesmo que seja para se interrogar sobre a função formal de uma zona em que ‘não se vê nada’” (idem, p. 65) e, ao mesmo tempo, “abrir o ponto de vista até restituir às imagens o elemento antropológico que as põe em jogo” (idem, p. 65). Nesse sentido, as quatro fotografias do Sonderkommando apresentam, de uma só vez, um gesto de imaginar apesar de tudo: “manter a imagem do mundo exterior e, para tal, arrancar ao inferno uma atividade de conhecimento, uma espécie, ainda assim, de curiosidade” (idem, p. 69), seja a partir de seu estatuto visível ou invisível, da própria natureza lacunar da imagem.
Diante da total desumanização que o holocausto nazista produziu em Aschwitz, o gesto corajoso dos membros do sonderkommando - que fizeram o registro precário de quatro fotografias e as delegaram, como ato de resistência, para um grupo de judeus que tentariam uma fuga – abriu-lhes, mesmo que provisoriamente, para Didi-Huberman, a possibilidade de um exercício para manter-se humano, assim como para “manter uma imagem de si, quer dizer, salvaguardar o seu eu no sentido psíquico e social do termo” (idem, p. 69). É por isso que tornar tal cenário “inimaginável” é um vilipêndio para Didi-Huberman, uma atitude de autopreservação – nossa, como analistas – que não foi possível para aqueles que criaram os rastros precários desse inferno. Longe de serem inúteis – mesmo que, para alguns historiadores da arte, as imagens do Sonderkommando não acrescentem nada novo sobre o holocausto dos judeus – para Didi-Huberman tais imagens nos são preciosas e exigentes, pois exigem de nós o esforço arqueológico de quem deseja remexer na sua “frágil temporalidade” (idem, p. 75). Ele retoma de Benjamin, por fim, que
a imagem autêntica do passado, aparece somente num lampejo. Imagem que não surge senão para se eclipsar sempre no instante seguinte. A verdade imóvel que não faz mais do que ficar à espera do investigador não corresponde de modo algum a esse conceito de verdade em matéria de história (Benjamin, s/d, p. 341 apud Didi-Huberman, 2020, p. 75).
Na segunda parte do mesmo livro, no entanto, Didi-Huberman nos oferece a revisitação e resposta a duas críticas feitas às suas análises, por Gerard Wajcman e por Élisabeth Pagnoux[4]. Acusando-o de incorrer em “superinterpretação”, “erros de pensamento”, “raciocínio fatal”, “lógica funesta”, os autores defendem certa perversão (no sentido freudiano), “fetichização religiosa” e “denegação fetichista”, que levariam Didi-Huberman a “expor e a adorar, [as imagens] como relíquias do falo em falta, sapatos, meias ou cuecas” (Wajcman, 2001, p. 50 apud Didi-Huberman, 2020, p. 80 - 81). Acreditam, assim, que Didi-Huberman haveria negado os fatos e as teses sobre o extermínio judeu em Auschwitz diante de imagens incompletas, resultado de sua elevação da imagem à relíquia. Fazendo uma “pirueta intelectual” e com uma “aparente cientificidade”, Didi-Huberman teria insistido na “imprecisão narrativa que confunde tempos, impõe sentidos, inventa um conteúdo [e] se obstina em preencher o nada, em vez de o afrontar” (Pagnoux, 2001, p. 87 apud Didi-Huberman, 2020, p. 83). Dessa forma, ele teria usurpado o estatuto da testemunha e negado à distância, “gozado com o horror” (idem, p. 84).
A primeira resposta que Didi-Huberman (idem) dá a tais críticas está intimamente ligada aos binômios imagem-fato / imagem-fetiche. Um dos objetos de críticas dos autores, em primeira instância, é a dimensão fragmentária ínfima de real, que estaria representado nas fotos de agosto de 1944, da qual Didi-Huberman teria se valido de tal forma que suas análises dariam a ver imagens onde nada se pode ver, que não construíram uma “imagem-fato”. O próprio interesse de Didi-Huberman seria dado por uma adoração tola e por uma falta de rigor intelectual, que transformariam as fotografias analisadas em uma “imagem-fetiche”. Do ponto de vista contrário, Didi-Huberman entende que a eleição desse corpus se dá, sobretudo, pela singularidade que impõe, capaz de “perturbar e, portanto, de reconfigurar, a relação que o historiador das imagens mantém habitualmente com os seus objetos de estudo” (idem, p. 87). Não se trata de um objeto novo ou recente, é necessário ressaltar. Mas, uma outra disposição dessas fotos, dos relatos que elas envolvem e das teorias que a elas Didi-Huberman sobrepõe. Dessa maneira, de alguma forma, é o gesto de recolocação, de deslocamento, dessas imagens, baseado na crença de sua potência para dizer algo sobre o nosso tempo, que estabelece o próprio campo de problematizações sobre elas e sua “relevância”.
Wajcman, por sua vez, pensa que a singularidade dessas imagens não ensina nada que já não fosse sabido, visto que não apresentam o “todo” do real do Shoah[5], não constituía uma “imagem-toda” da realidade objetiva e do fato histórico. Didi-Huberman, contraponto, compreende que o próprio “real” “não existe senão manifestando-se sob a forma de pedaços, resquícios, objetos parciais” (idem, p. 90). Ademais, seu interesse direciona-se especificamente sobre a natureza lacunar das imagens, posto que considera ingenuidade acreditar que o ato filosófico se “reconhece pelo seu coeficiente de ‘absoluto’ ou de ‘radicalidade’” (idem, p. 90). Por isso mesmo, emprega a fórmula “apesar de tudo” e não imagens de tudo: porque apesar do inferno em que vivia, alguém preocupou-se do gesto de captura de um real, mesmo que de forma precária, e fez disso uma resistência. Havia algo para ver, refirma Didi-Huberman, “havia algo para ver, para ouvir, para sentir, e para deduzir daquilo que víamos ou daquilo que não víamos (os comboios que ininterruptamente chegavam cheios e voltavam a partir vazios)” (idem, p. 93).
Para os críticos de Didi-Huberman, as quatro fotografias de agosto de 1944 seriam, justamente, imagens “sem imaginação”. Essa alcunha advém, especificamente, da noção de imagem como um documento e este como veículo de uma verdade histórica passível de plena interpretação: “as quatro fotografias de Auschwitz afiguram-se ‘sem imaginação’ na medida em que apenas veiculam… uma informação documental limitada, seca, sem valor de testemunho, de emoção ou de memória” (idem, p. 162). Didi-Huberman, por sua vez, considera que “se é verdade que o objeto não está na imagem (o que Wajcman acha que eu acho), também há que reconhecer que o objeto é visado pela imagem” (idem, p. 164). Nesse sentido, defende que a imagem é “um ato” e que é necessário, por consequência, olhar para elas como atos e não como um receptáculo de informações mais ou menos completas.
A resposta de Didi-Huberman remonta a noção de “arquivo” pela qual ele procede. Para ele, o arquivo não é um simplesmente um repositório, do contrário, “é constantemente uma falta - e até, por vezes, a impotência de não saber o que fazer dele” (idem, p. 144). O arquivo como elemento nunca inteiramente abarcável, dada sua “singularidade provisoriamente inqualificável que o investigador vai tentar remendar no tecido de tudo aquilo que já sabe, para produzir, se possível, uma história repensada do acontecimento em questão” (idem, p. 144). Por isso o arquivo não pode ser entendido como reflexo puro do acontecimento. Antes, deve ser sempre “elaborado mediante recortes incessantes, mediante uma montagem cruzada com outros arquivos” (idem, p. 145).
Essa forma de pensar o arquivo responde, de alguma forma, à questão sobre o tipo de conhecimento que a imagem pode dar lugar (Didi-Huberman, 2012). As imagens, assim como as palavras são consideradas por Didi-Huberman como “parte do que os pobres mortais inventam para registrar seus tremores (de desejo e de temor) e suas próprias consumações” (idem, p. 210). Ele considera que cada um dos arquivos constituem uma memória sempre ameaçada pelo esquecimento. Nesse sentido, “cada vez que depomos nosso olhar sobre uma imagem, deveríamos pensar nas condições que impediram sua destruição, sua desaparição” (idem, p. 210). O arquivo, assim, é a própria lacuna, frequentemente, resultados de censuras, de destruições, de agressões, de autos de fé. Por isso, para Didi-Huberman, “o arquivo é cinza, não só pelo tempo que passa, como pelas cinzas de tudo aquilo que o rodeava e que ardeu” (idem, p. 211). Diante de imenso e rizomático arquivo, formulado por imagens com diferenças radicais entre si, o trabalho do analista das imagens parte do entendimento dessas lacunas e intervalos como potência. Significa, precisamente, “arriscar-se a pôr, uns junto a outros, traços de coisas sobreviventes, necessariamente heterogêneas e anacrônicas, posto que vêm de lugares separados e de tempos desunidos por lacuna” (idem, p. 211).
Considerações Finais
Podemos perceber que, para o próprio Foucault, o elemento visível é um ponto fulcral de análise arqueológica e genealógica, sendo ele parte das condições de estabelecimento das formações históricas, dos discursos. Por sua vez, apropriação que Deleuze e, principalmente, Didi-Huberman fazem de tais pressupostos, nos fornecem elementos teórico-metodológicos importantes para as pesquisas com as imagens no campo da educação – noção de anacronismo, imagem, de imaginário e imaginação, arquivo... –, subsidiando os procedimentos analíticos para o trato qualitativo da imagem.
Embora, aqui, esteja priorizando os pressupostos teórico-metodológicos e as ferramentas analíticas que os estudos pós-estruturalistas nos fornecem para o trato com as imagens, é necessário reiterar que a demanda por estratégias metodológicas para análise das imagens é ampla, compartilhada por diversos campos de estudos e linhas teóricas, visto que a precedência discursiva da imagem frente ao texto escrito, aparentemente, tornou-se uma marca de nosso tempo.
O que os estudos dos autores aqui abordados nos fornece, entretanto, é a possibilidade de entender a imagem imersa nas relações de poder, marcada por processos de disputas, interdições e permissões, idas e vindas. A imagem, assim, não é entendida como uma materialidade fixa - como o congelamento de um momento/sentimento/ação/realidade - mas como um conjunto de atravessamentos, que aciona outras imagens, textos, discursos, práticas… para constituir um “eu” dos sujeitos que a veem e que são visíveis nela. Ela é, portanto, uma tecnologia subjetivante, disparador de uma série de práticas formativas, engendrantes, constituidoras. Ao mesmo tempo, ela é (ou pode ser) um produto dessa subjetividade que ajuda a produzir/formar/engendrar/constituir.
Dessa forma, é desejável que mais estudos em educação tomem as imagens como corpus. Que o façam, entretanto, levando em consideração as implicações relacionais entre as imagens e as subjetividades visuais nelas/por elas implicadas.
Referências
ALVES, Karina Mirian. Formação discursiva da plenitude em Educação: uma arqueogenealogia das novas sensibilidades ecopedagógicas. 2009. 270p. Tese (Educação) – Universidade Federal de Pernambuco (CE).
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2007.
CASTRO, Edgardo. Vocabulário Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.
DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 2012.
DELEUZE, Gilles. Foucault: as formações históricas. São Paulo: n-1 editora, 2017.
DELEUZE, Gilles. Foucault: o poder. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2020.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. Pós: Belo-Horizonte, v. 2, n. 4, p. 204 - 209, 2012.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte. São Paulo: Editora 34, 2013.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A invenção da histeria: Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015a
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do Tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015b.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A semelhança informe: ou o gaio saber visual segundo Georges Bataille. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015c.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Falenas: Ensaios sobre a aparição. Lisboa: KKYM, 2015d.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontar, Romantagem (do tempo). Belo Horizonte: Chão de Feira, 2016. Tradução de: Milene Migliano.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontagens do Tempo Sofrido. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas, ou, O gaio saber inquieto. Belo Horizonte: UFMG, 2018b.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. São Paulo: Editora 34, 2020.
FARDO, Marcelo Luís. A gamificação aplicada em ambientes de aprendizagem. Novas Tecnologias em Educação, vol. 11, n. 1, 2013. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/renote/article/view/41629/26409
FISCHER, Rosa Maria. Foucault e a análise do discurso em Educação. Cadernos de Pesquisa, n. 144, vol. 1, 2001, p. 197-223.
FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
FOUCAULT, Michel. Isso não é um cachimbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
FOUCAULT, Michel. Sobre a genealogia da ética: uma revisão do trabalho. In: DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 253-256.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2000
FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade, Política (Ditos e Escrito vol. V). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008a.
FOUCAULT, Michel. A pintura de Manet. Visualidades, v.8 n.2 p. 259-285, jul-dez 2010.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso: aula inauguralno College de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 2013
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro , Paz e Terra: 1967
VALENTE, José Armando. Blended learning e as mudanças no Ensino Superior: a proposta da sala de aula invertida. Educar em Revista: n. 4, 2014, p. 79 – 97
VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
[1] O presente trabalho é parte dos desdobramentos, discussões e resultados tecidos na tese de doutorado do autor.
[2] Doutorado em Educação. Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0652-238X, Email: thiago.antunes.2094@gmail.com
[3] “O comando especial de detidos que geriam com suas próprias mãos o extermínio em massa” (Didi-Huberman, 2020, p. 11), constituído pelos próprios judeus presos em Auschwitz, responsáveis pela operacionalização da câmara de gás, da incineração dos corpos e da abertura e fechamento das valas, que ocupavam um lugar reservado e com contato reduzido aos demais presos, ciclicamente substituídos e mortos. A ideia dos nazistas era manter segredo sobre as operações do sonderkommando e mesmo de sua existência para o público em geral.
[4] Wajcman, Gérard. De la croynance photographique. Le Temps Modernes, 2001, p. 47-83; Pagnoux, Élisabeth. Reporter photographe à Auschwitz. Le Temps Modernes, 2001, p. 84-108
[5] Holocausto - a matança dos judeus em si.