Entre (auto)biografia e autoficção: uma experiência narrativa em pesquisa-formação
Between (auto)biography and autofiction: a narrative experience in training research
Rodrigo Honorato Matos[1]
Universidade de Brasília (UnB)
Jéssica de Almeida[2]
Universidade de Brasília (UnB)
Resumo
O artigo apresenta resultados de um estudo que objetivou compreender possibilidades de formas narrativas relacionadas a abordagens (auto)biográficas de formação em música. Assim, questiona-se como um relatório de estágio de licenciatura em música, produzido em forma de uma narrativa parcialmente ficcional, pode ser pensado e trabalhado como uma ferramenta (auto)biográfica de formação musical. Nesse contexto, objetiva situar essa produção à luz da metodologia da pesquisa-formação. Em termos metodológicos, são esboçadas as linhas condutoras da pesquisa-formação a partir de alguns autores referenciais das abordagens (auto)biográficas na Educação, discute-se o conceito de autoficção e suas relações com as narrativas (auto)biográficas e analisa-se a produção do relatório de estágio como uma ferramenta possível de pesquisa-formação. Como resultados, são provocadas reflexões sobre pressupostos e possibilidades de uma narrativa (auto)biográfica no contexto da formação musical, ao serem salientados aspectos característicos da subjetividade de um sujeito-narrador.
Palavras-chave: Formação docente; Estágio Supervisionado; Narrativa (auto)biográfica; Histórias de vida.
Abstract
This article presents the results of a study that aimed to understand the possibilities of narrative forms related to (auto)biographical approaches to music education. Thus, it questions how a music undergraduate internship report, produced in the form of a partially fictional narrative, can be thought of and worked on as an (auto)biographical tool for music education. In this context, it aims to situate this production in light of the research-training methodology. In methodological terms, the guiding lines of the research-training are outlined based on some authors who are references in (auto)biographical approaches in Education, the concept of autofiction and its relations with (auto)biographical narratives are discussed, and the production of the internship report is analyzed as a possible training research tool. As a result, reflections are provoked on the assumptions and possibilities of an (auto)biographical narrative in the context of music education, by highlighting characteristic aspects of the subjectivity of a subject-narrator.
Keywords: Teacher training; Supervised Internship; (Auto)biographical narrative; Life stories.
Introdução
O estudo abordado nesse artigo foi motivado por um anseio em compreender questões relacionadas ao processo de formação em música a partir de uma perspectiva (auto)biográfica. Consistiu, essencialmente, em um exercício de reflexão que pretendeu situar uma produção narrativa pessoal no campo das metodologias de pesquisas (auto)biográficas, tentando compreender possibilidades de intersecção entre narrativas ficcionais e narrativas instrumentalizadas em um processo de Pesquisa-formação.
Segundo Passeggi e Souza (2017, p. 13-14), a Pesquisa-formação, proposta no contexto do “movimento sócio-histórico das histórias de vida em formação”, surgido na década de 1980, diferencia-se da pesquisa tradicional pela valorização de “práticas não-instituídas” e “aprendizagens experienciais”, a partir de metodologias interativas com as quais “a pesquisa passa a fazer parte integrante da formação e não alheia a ela” (Passeggi; Souza, 2017, p. 15). Assim, as pesquisas realizadas sob essa perspectiva, utilizando narrativas (auto)biográficas de professores e alunos como objeto de estudo e método de análise, intentaram permitir que sujeitos-narradores, ao se defrontarem com o processo histórico, político e cultural de suas aprendizagens, pudessem, em um movimento contínuo de descoberta e reflexão, transformar suas experiências em conhecimento sobre suas próprias formações (Ibidem).
As características desse modelo de pesquisa, no qual formas e conteúdos conectados à subjetividade dos sujeitos são, antes de tudo, matéria essencial ao processo de trabalho, parecem propiciar uma abertura apropriada para a exploração de procedimentos de pesquisa não-tradicionais. Nesse sentido, o objetivo do estudo foi explorar a possibilidade de uma narrativa parcialmente ficcional ser considerada uma ferramenta compatível com a pesquisa (auto)biográfica. O ponto de partida para o trabalho foi um relatório produzido para a disciplina final de estágio curricular obrigatório de um curso de licenciatura em música. À época, a orientadora de estágio propôs que os relatórios da disciplina fossem feitos em forma de portfólio (auto)biográfico, no qual o relato e a análise das atividades pudessem ser entrelaçados com uma exposição e reflexão sobre a formação musical e pedagógica de cada discente. Explorei[3], na elaboração desse relatório de estágio, uma abordagem primordialmente lúdica, criando um produto fundado em elementos visuais e narrativos que navegam a fronteira entre o (auto)biográfico e a autoficção. Este produto, ao qual chamei dossiê de estágio, mobilizou uma série de interesses, memórias e afetos que se articulam com elementos da minha formação. A contextualização desse produto em face de reflexões sobre a pesquisa (auto)biográfica em Educação foram os eixos condutores do estudo apresentado neste artigo.
Histórias de Vida e Pesquisa-Formação
As histórias de vida, vistas como um conjunto de práticas nas quais um sujeito incumbe-se de sua própria vida a partir da expressão de suas experiências, podem ser definidas, genericamente, como uma “busca e construção de sentido a partir de fatos temporais pessoais” (Pineau e Le Grand, 2012, p. 15 e p. 21). Nessa empreitada, que, vale notar, pressupõe sempre a imprescindibilidade da alteridade na construção das identidades subjetivas, a história de vida é considerada como uma prática autopoiética, por meio da qual o sujeito produz a si mesmo, contemplando conscientemente um devir (Ibidem).
A compreensão da história de vida como uma construção em aberto, cuja “verdade histórica” é apenas relativa e provável, entrega ao sujeito a possibilidade de ter acesso a uma historicidade que se manifesta na expressão de suas experiências e na construção pessoal de sentido. Assim, a partir de novas possibilidades de ação e reflexão que incentivam seu empoderamento e emancipação, é permitido ao sujeito tomar consciência do que é determinante em sua própria existência e do que lhe é apresentado como perspectiva autopoiética em uma projeção de futuro que se estende à sua frente (Ibidem).
Seguindo essa concepção, as histórias de vida aparecem sob variadas formas, sejam elas orais, escritas ou instrumentalizadas em outras mídias, como as audiovisuais. Essas formas propõem-se a exprimir um objeto específico: a vida, considerada tanto em seu aspecto singular como, a depender do caso, pluralmente, na expressão de vidas individuais. Ressalte-se que, como dito anteriormente, os fatos de uma história de vida são “pessoais” e, portanto, mesmo que se trate de vidas, no plural, o objeto a ser expresso aparta-se das experiências que envolvem a história de grupos de pessoas, que estão sob o domínio da disciplina da História. Além de seu objeto e de sua mídia, as histórias de vida são também articuladas por outros fatores: (i) seus atores/autores – na relação entre o(s) sujeito(s) que produzem a história de vida e o(s) sujeito(s) cuja(s) vida(s) são objetivadas; (ii) a temporalidade do que é narrado e da narração em si – no vínculo entre a rememoração dos fatos, o recorte temporal e a distância cronológica entre o objeto e o ato de narrar; e (iii) os objetivos perseguidos, quais sejam, comunicar uma ou mais vidas, conhecer seus atores e pôr em marcha um processo autopoiético (Ibidem).
Para Josso (2004, p. 58), o objetivo central da abordagem de Histórias de Vida no contexto da formação é “transformar a vida socioculturalmente programada numa obra inédita a construir, guiada por um aumento de lucidez”. Isso significa, para o sujeito, trilhar intencionalmente um processo de autoconhecimento e de autotransformação que identifica e analisa as experiências-chave de sua trajetória. Para a autora, esse processo-projeto de conhecimento pode ser entendido como um “projeto de si auto-orientado”, no qual o sujeito toma consciência de seu processo formativo e tem autonomia para transformá-lo (Ibidem).
Um dos pressupostos desse projeto é que a tomada de consciência do sujeito sobre sua formação perpassa, em termos temporais, o presente, passado e futuro de sua vida. Requer ao sujeito a compreensão de como foi construído seu processo de formação, de como essa construção o afeta hoje e de como esse conhecimento pode ser utilizado futuramente no planejamento de um curso de vida. Um tal empreendimento requer uma pesquisa orientada pela e para a formação, uma pesquisa que investigue, na rememoração de um percurso e elaboração de uma narrativa, os elementos transformadores da vida, momentos definidores da subjetividade (Ibidem). Pois como bem coloca Dominicé: “(…) não há formação sem modificação, mesmo que muito parcial, de um sistema de referências ou de um modo de funcionamento” (2014, p. 78).
A metodologia de pesquisa-formação em Histórias de Vida, segundo Josso, trata da criação de um projeto no qual conhecimentos sobre a formação de um indivíduo são produzidos a partir da narrativa de suas experiências, em um processo que atribui ao narrador também o papel de sujeito que pesquisa e que produz conhecimentos (Josso, 2004). Podemos dizer, em outras palavras, que o objeto de pesquisa – a formação – é constituído por experiências relacionadas ao processo de aprendizagem, contadas em forma de narrativa por um sujeito-pesquisador que embarca em uma reflexão sobre sua formação.
O elemento básico da pesquisa-formação, para Josso, são as experiências formadoras, que se referem a experiências que simbolizam “atitudes, comportamentos, pensamentos, saber-fazer, sentimentos que caracterizam uma subjetividade e identidades” (Ibidem, p. 47-48). Importante notar que a autora considera necessária uma distinção entre (i) experiências formadoras, (ii) experiências de aquisição de competências e (iii) vivências. O uso coloquial do termo experiência costuma abarcar as três concepções, indiscriminadamente. Mas, para a finalidade da pesquisa-formação, é conveniente distingui-las, pois possuem particularidades relevantes à análise da narrativa.
Para a autora, todas as experiências em si já pressupõem “um certo trabalho reflexivo sobre o que se passou e sobre o que foi observado, percebido e sentido” (Ibidem, p. 48). Nesse sentido, distinguem-se das vivências, momentos vividos pelo sujeito que podem ou não ser objeto de reflexão. Quando o são, tornam-se, então, experiências. E são as experiências que constituem o substrato necessário da formação. Entretanto, ainda que a formação seja imprescindivelmente experiencial, as experiências que a compõem tomam escalas distintas, de acordo com o quão significativa é “a sua incidência nas transformações da nossa subjetividade e das nossas identidades” (Ibidem, p. 48).
Josso propõe, portanto, que toda experiência é transformadora, mas há uma distinção entre o alcance da transformação operada no sujeito. É, em última instância, uma distinção entre a formação experiencial resultada de experiências formadoras, que podem ser qualificadas como transformações profundas da subjetividade/identidade, e a formação experiencial resultada apenas de aquisições de novas competências (Ibidem). Esses modos de formação experiencial são chamados pela autora, respectivamente, de “experiências existenciais” e de “aprendizagem pela experiência”.
Temos, assim, que toda experiência pressupõe a reflexão e a transformação do sujeito. Mas de que forma isso acontece? Como tais experiências são construídas? Josso indica três modalidades de construção, são elas: (i) “ter experiências”; (ii) “fazer experiências; e (iii) “pensar sobre as experiências” (Ibidem, p. 51). A primeira diferença entre essas modalidades se refere ao contexto nos quais são construídas as experiências. As duas primeiras estão situadas em um contexto vivido, de “interações e de transações[4]” efetuadas entre o sujeito consigo mesmo, com outrem e com o mundo, enquanto a última se realiza por intermédio de sua relação com experiências prévias, interpretadas com a mediação de referenciais formalizados, sejam eles artísticos, científicos ou mitológicos (Ibidem).
Outra diferença entre as modalidades de construção das experiências diz respeito à prévia intenção do sujeito em construí-las. Quando o sujeito “tem” uma experiência, ela surge sem aviso, não provocada. Por outro lado, quando ele “faz” ou “pensa” uma experiência, há uma busca proposital do sujeito por sua criação. Ainda outra diferenciação reside no ponto de partida, no momento em que o sujeito começa a construir a experiência. As modalidades de “fazer” e “pensar” experiências pressupõem o uso de uma linguagem compartilhada coletivamente para interpretar a experiência, começam “por aquilo que foi anteriormente formalizado, nomeado ou simbolizado”. Já no caso da modalidade de “ter” experiências, a construção simbólica se dará apenas posteriormente ao acontecimento que produz a experiência (Ibidem, p. 52-53).
A multiplicidade de experiências dos sujeitos corresponde ao substrato em potencial de uma Pesquisa-formação. É necessário, entretanto, que o vivido seja expresso para que se constitua em objeto de pesquisa. A fim de trabalhar procedimentos que pudessem impulsionar os objetivos da pesquisa-formação, Pierre Dominicé desenvolveu o método da Biografia Educativa (Dominicé, 2014). Em linhas gerais, a Biografia Educativa é estruturada em sessões regulares nas quais os participantes se dividem em pequenos grupos. Um professor/mediador requisita aos aprendentes a apresentação de uma narrativa de vida, que é realizada oralmente e por escrito por cada participante em seu respectivo grupo. Invariavelmente, o conteúdo da narrativa deve pôr em evidência o processo de aprendizagem dos narradores. Finalmente, os integrantes de cada grupo serão também intérpretes de outras narrativas além da sua própria, com a participação ativa do professor/mediador nesse processo (Dominicé, 2000).
Muito embora meu primeiro contato com os estudos sobre abordagens (auto)biográficas de formação tenha se dado posteriormente à criação do dossiê de estágio, a elaboração da narrativa foi conduzida pretendendo conjugar um relatório de prática docente na escola e experiências da minha história de vida. A subsequente apresentação da tarefa à orientadora e aos demais discentes da disciplina de estágio, permitindo um início de co-interpretação, sugere a intenção de que os relatos produzidos fizessem parte de uma prática essencialmente (auto)biográfica. A retomada do dossiê para o estudo que aqui se apresenta é um esforço de continuação dessa perspectiva e o caminho que será percorrido a partir daqui depende dos elementos contidos em sua narrativa.
(Auto)biografia e Autoficção
O dossiê de estágio se refere a uma produção narrativa (auto)biográfica parcialmente ficcional, apresentada como relatório de estágio da disciplina final de estágio curricular obrigatório do curso de Licenciatura em Música da Universidade de Brasília (UnB). Sua concepção se deu a partir de uma proposta feita pela orientadora do estágio para que os discentes da disciplina incluíssem, em seus relatórios de estágio, relatos (auto)biográficos que pontuassem informações e momentos importantes de suas histórias de vida, em especial, experiências de sua formação que pudessem ser associadas à experiência de estágio realizada no semestre. Os relatos produzidos se mostraram efetivamente frutíferos, mobilizando uma série de aspectos do processo de formação de seus narradores e da construção de suas identidades. Foi possível enxergar, ainda que de relance, alguns indicadores dos interesses, afetos, posicionamentos e saberes em jogo nas histórias de vida dos estagiários que os produziram.
A proposta de articular o relatório de estágio com um relato (auto)biográfico ganha muita coerência quando a vemos sob a luz das abordagens de formação discutidas anteriormente neste trabalho. Por mais que ao longo da disciplina de estágio não tenha havido discussões específicas sobre metodologias que tratem de questões (auto)biográficas, podemos certamente inferir a influência das abordagens de Histórias de Vida em Formação na atividade proposta se consideramos a posição da orientadora de estágio como pesquisadora atuante do Movimento (Auto)biográfico da Educação Musical no Brasil. Por estas mesmas razões, decidi analisar o dossiê de estágio em suas possibilidades de articulação com a metodologia da Pesquisa-formação, mesmo que durante a fase de sua elaboração não estivesse ciente do que essa abordagem implicava.
Em primeiro lugar, preciso dizer que minha intenção inicial em face da proposta era a de produzir um relatório de estágio na linguagem que tipicamente são produzidos os trabalhos escritos na universidade. Entretanto, houve, naquele momento específico de elaboração, um processo de obstrução da minha disposição para dar início à tarefa. As causas desse processo eram obscuras para mim, mas seus efeitos não podiam ser mais claros: à medida em que contemplava a obrigação de escrever o trabalho, a vontade de fazê-lo se esvaia progressivamente, ao ponto de considerar seu abandono por completo. Por sorte, pude encontrar uma oportunidade de inflexão ao rememorar uma fala específica da orientadora sobre a elaboração do relatório e desenrolar o fio que conduziu o processo narrativo. Não saberei relembrar as exatas palavras, mas seu conteúdo incitava os estagiários a usarem dispositivos extratextuais, caso auxiliassem a expressão de experiências ou identidades. Lembro-me, em especial, de sugestões para o uso de cores, notas adesivas (post-it), áudios e vídeos. A rememoração precisa de como se deu o processo entre essa primeira inflexão e a idealização do produto final, entretanto, me escapa. O que posso dizer, com absoluta certeza, é que o horizonte que foi se abrindo nesse processo – a possibilidade de construção da narrativa aos meus moldes, de tal maneira que sua própria forma, tanto quanto seu conteúdo, exprimissem meus interesses e afetos – foi determinante para desencadear a vontade e energia necessárias para concluir a obrigação.
Deparando-me com a responsabilidade de produzir um “relatório” (palavra que me remetia imediatamente a um contexto de formalidade e burocracia), propus-me a elaborar um registro lúdico das atividades de estágio na forma de um “dossiê”, ou seja, uma reunião de documentos unitários e ordenados que guardam entre si uma relação orgânica. As características de um tal produto eram-me particularmente sensíveis, pois relacionavam-se sobremaneira com a ocupação diária que produz as condições materiais da minha vida – o ofício no funcionalismo público. A associação mental imediata entre a produção de um “relatório” sobre o estágio e o serviço administrativo que é parte integrante e indissociável do meu trabalho diário fez-me conceber o dossiê como uma imitação de um “processo administrativo”, na qual seriam exacerbados seus aspectos de maior refração cultural, como o linguajar prolixo e o excesso de burocracia. Auxiliaram-me, nessa associação, os contextos universitários e escolar envolvidos na produção do dossiê. A UnB, como instituição federal vinculada à Administração Pública, não está isenta desses processos que, no imaginário popular (nem sempre equivocado), caracterizam o serviço público. A Escola Parque da 307/308 Sul, na qual foi realizado o estágio, além de ser uma escola da rede pública de ensino do Distrito Federal, é também um símbolo de Brasília, capital político-administrativa do país, cidade na qual esses aspectos adquirem contornos mais pungentes. Dessa forma, a contraposição entre as atividades do ensino de Música, residente da morada artística, e as atividades burocráticas inerentes ao contexto universitário e circundantes ao contexto escolar induziram-me a um jogo contrastante entre o frígido e o lúdico, entre a formalidade e a descontração e, em seus limites compartilhados, entre a veracidade e a imaginação.
Da forma como vejo, o dossiê consiste em um produto narrativo unitário, um todo orgânico no qual cada elemento conversa com os demais por meio de linhas norteadoras da minha subjetividade, muito embora constitua-se, também, de várias narrativas que atravessam diferentes recortes temporais e distintas condições de verossimilhança com as experiências efetivamente vividas. Estruturalmente, concorrem narrativas sobre: (i) uma experiência de estágio em aulas de música no ensino fundamental; (ii) experiências de formação musical na perspectiva de uma história de vida; (iii) experiência de reflexão sobre a experiência de estágio, sobre a formação e sobre o educador musical; e (iv) uma experiência com os processos burocráticos típicos da Administração Pública. Ademais, penso que coexiste, por fim, uma narrativa visual que dialoga com o todo.
Com relação aos recortes temporais, entendo que estão delineados três períodos sucessivos: (i) o da história de vida que antecede o estágio; (ii) o da observação e regência do estágio na escola; (iii) o das atividades que sucedem o estágio, divididas entre a interlocução com um pesquisador, na forma de uma entrevista sobre o estágio, e tratativas com a universidade. No que diz respeito às condições de verossimilhança da narrativa, creio que podem ser descritas sob uma ótica tripartite. Um primeiro modelo no qual as experiências narradas se assemelham ao que, de fato, foi vivido. Um segundo no qual as experiências são completamente inventadas. E um último que é o amálgama das duas anteriores, no qual as experiências da narrativa são baseadas em vivências reais, mas alteradas para induzir uma alternativa parcialmente ficcional, mas intimamente atrelada aos fatos concretos da minha história de vida.
O dossiê, como dito anteriormente, foi produzido como substituto a um relatório de estágio curricular obrigatório. A meu ver, o que poderia, hipoteticamente, servir de base para sustentá-lo como tal seria o fio narrativo do dossiê que ilustra (e simula) as experiências com as aulas de música regidas na escola. A condução da narrativa, nesse caso, foi feita a partir de um duplo caminho. Por um lado, registro informações verídicas relativas às minhas observações sobre a escola, as aulas do supervisor de estágio e minhas referências, planejamento e regência. Por outro, crio uma situação fictícia na qual narro a regência de uma atividade sobre intervalos musicais, principalmente por meio de diálogos entre mim e as crianças. Essa atividade, devo dizer, fez parte do meu planejamento de aulas (seria a última atividade do último plano de aula), mas não foi efetivamente executada. A elaboração do dossiê parte de uma sensação de ausência que permaneceu após não ter tido a oportunidade de realizá-la. Dessa forma, a questão geral que guiou a narrativa, no contexto do dossiê, foi: o que aconteceria se eu tivesse regido essa atividade na escola?
Antes que possa ser taxado de inflexível por lamentar um simples desvio de planejamento – uma ocorrência comum e esperada ao se dar uma aula –, defendo-me dizendo que há por trás dessa atividade uma história. Precisamos voltar, para começarmos a conhecê-la, ao estágio anterior ao descrito no dossiê, realizado com estudantes de ensino médio no Instituto Federal de Brasília (IFB). Naquela ocasião, propus um projeto cuja ideia era realizar aulas de música nas quais imagens, textos ou objetos pudessem ser trabalhados como material didático. Para uma das aulas, idealizei e produzi alguns recortes de papelão que, em tese, auxiliariam a visualização de acordes no teclado. Apesar de não terem funcionado como esperava, imaginei que não teria sido o material didático o principal culpado. Na verdade, os estudantes se engajavam mais quando tinham objetos que podiam manipular. Isso era um fator positivo a meu favor, pois eu também me engajava muito mais como professor quando produzia esse tipo de material. Quando, no estágio subsequente, reelaborei os recortes de papelão para a atividade de intervalos, havia um verdadeiro envolvimento e expectativa. Afinal de contas, não apenas gostava do processo de produção do material, mas teria a oportunidade de colocá-lo em prática em duas etapas da educação básica – com faixas etárias bastante distintas – e comparar os resultados. Além de tudo, a atividade seria o fechamento de um projeto que juntava minhas duas formações universitárias: a atual, na Música, e a anterior, nas Artes Plásticas.
A atividade planejada com os recortes de papelão tinha para mim uma história e um significado. Seus componentes estão enraizados nas circunstâncias específicas da minha vida. Não a enunciar, da forma que seja, deixaria meu relato de experiências do estágio incompleto. Talvez tenha sido esse pensamento, ou sensação, que me impeliu a realizá-la, ainda que sua “realidade” esteja apenas no campo da imaginação. O que posso dizer, de todo modo, é que minha narrativa fictícia está atravessada por experiências vividas. Elas subsidiam, informam, conduzem. A ficção, neste caso, é o veículo de uma verdade interior e de experiências que exigem ser expressas. São dois mundos intrinsicamente ligados, que coexistem em temporalidades e condições de verdade distintas. A intenção da narrativa, aqui, é a de conectar esses mundos, não substituir um por outro. A veracidade dos fatos, informações ou situações não é o que está em jogo na narração, mas sim o sentido que dela podemos extrair. Se considerarmos, em caráter hipotético, que o dossiê é uma narrativa produzida dentro de uma Biografia Educativa, poderíamos argumentar, como o faz Dominicé, que “tudo o que adultos digam ou escrevam em suas narrativas têm significado. O próprio fato de que o dizem ou escrevem é significativo” (Dominicé, 2000, p. 132 – tradução livre). A maneira como expresso minhas experiências não é, enfim, um receptáculo opaco ou translúcido através do qual as vejo. A forma e o conteúdo são inseparáveis. Dito de outra forma:
Se a história de vida é uma prática autopoiética, ela não pode ser excessivamente heterodeterminada. Encontrar a forma de expressão é indissociável do conteúdo a ser expresso. E a prática deve, em geral, anteceder seu conhecimento e até mesmo sua nomeação. Como acontece com a prosa, muitos fazem histórias de vida sem saber (Pineau e Legrand, 2012, p. 21).
É possível, entretanto, que tenha usado um pouco da autoridade desses autores para validar o dossiê como uma prática (auto)biográfica legítima de formação. O sentido de suas palavras pode ter menos a ver com uma ficção jocosa sobre experiências de estágio do que com questões epistemológicas mais profundas. Apesar disso, arrisco dizer que quando há uma relação significativa entre uma experiência vivida e uma narrativa ficcional é possível que surjam oportunidades para a reflexão sobre a história de vida que as conecta. Se for assim tão simples, não há de se negar uma eventual utilidade do dossiê como ferramenta (auto)biográfica de formação. De todo modo, é preciso supor que uma narrativa (auto)biográfica possua um estatuto próprio, que delimita suas fronteiras e possibilidades.
Entre Pactos
Em meados dos anos 1970, Philippe Lejeune publica “O Pacto Autobiográfico”, no qual define as condições de uma autobiografia: “Narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade” (Lejeune, 2008, p. 14). Assim, diz, é preciso preencher condições de forma da linguagem (narrativa; em prosa), de assunto (vida individual; história de uma personalidade), de situação do autor (identidade autor-narrador) e de posição do autor (identidade narrador-personagem principal; perspectiva retrospectiva). Segundo ele, tais condições podem ser apenas parcialmente preenchidas, com exceção da “relação de identidade entre o autor, o narrador, e o personagem” (Ibidem, p. 15). Essa relação de identidade se refere ao que Lejeune chama de pacto autobiográfico, única condição inescapável de uma autobiografia. É, em essência, um contrato assumido pelo autor, que atesta a seus leitores a relação autor-narrador-personagem, seja de modo patente ou apenas implicitamente. Existe, portanto, a necessidade de que se estabeleça uma relação de identidade indubitável entre a marca que designa o autor – seu nome – e a pessoa real a que ele se refere e que pode ser responsabilizada socialmente pela enunciação. Lejeune alerta que o pacto autobiográfico não se abala por questões que não infrinjam essa relação de identidade nele pressuposta, como, por exemplo, os pseudônimos ou as vozes da narrativa. A admissão do pseudônimo se dá pois este “não é exatamente um nome falso, mas um nome de pena, um segundo nome” (Ibidem, p. 24). Em geral, um pseudônimo é tão autêntico como um nome próprio, desde que não se confunda com um nome atribuído a um personagem da narrativa que não tenha uma existência “real”. Nesse caso, tratar-se-ia de um romance autobiográfico – texto literário cujo conteúdo consiste na autobiografia de um personagem fictício. Quanto às vozes da narrativa, estas não são exatamente determinantes para o estabelecimento do pacto, pois é fundamental distinguir entre a identidade e a pessoa gramatical. Ainda que raros os casos, é perfeitamente possível construir uma autobiografia narrando-a em segunda ou terceira pessoa. Para Lejeune, a autobiografia é limitada também por um outro pacto, o pacto referencial. Nesse contrato adicional, o autor se propõe a construir na narrativa uma imagem da realidade extratextual que seja o mais semelhante possível com o os fatos vividos e que, em tese, possa ser passível de verificação. É esse pacto que distingue textos referenciais como a autobiografia, a biografia, o discurso científico ou o discurso histórico de toda forma de ficção.
Os dois pactos, o autobiográfico e o referencial, possuem uma natureza geralmente coextensiva entre si e são, para Lejeune, indispensáveis na construção de uma narrativa autobiográfica. Em oposição simétrica estaria o pacto romanesco, no qual estão invertidas as condições, sendo necessária a não-identidade entre autor-narrador-personagem e, conjuntamente, que seja atestada a ficcionalidade da narrativa. Lejeune rejeita, então, a possibilidade de conciliação entre a autobiografia e um nome fictício, assim como entre o romance e o estabelecimento da identidade “nome do autor = personagem”. Considera, não obstante, que certas condutas podem intencionalmente romper os pactos, ainda que ocorram de forma inabitual. A assunção ilegítima do nome do autor por outra pessoa consistiria, assim, em um rompimento do pacto autobiográfico. De outro lado, caso o autor honre o pacto biográfico, mas construa uma narrativa inventada para se passar como autobiografia, seriam rompidos tanto o pacto referencial quanto o pacto romanesco (Ibidem). No primeiro caso, há uma patente e fraudulenta apropriação de identidade. No segundo, entretanto, os contornos são mais nebulosos.
A inclusão de uma ficcionalidade intencional na autobiografia pode ser amparada por uma concepção que entende o romance como mais verdadeiro que a autobiografia, justamente porque não está restrito às limitações de uma exatidão anedódica e, portanto, pode revelar o que está subjacente, íntimo e profundo. Assim, constrói-se um pacto autobiográfico com “fantasmas reveladores de um indivíduo”, um pacto fantasmático (Ibidem, p. 43). Lejeune rejeita tais termos, pois não compreende que há mais verdade em um ou outro tipo de narrativa. Trata-se de modos distintos e complementares por meio dos quais se projetam aspectos de uma subjetividade, compartilhando um espaço no qual estão inscritos, um “espaço biográfico”. Vale dizer que, quanto à questão de exatidão factual, Lejeune entende que o grau de semelhança da narrativa com a realidade vivida não é o que determina as condições autobiográficas ou romanescas. É plenamente viável que uma obra de ficção narre a vida de um personagem fictício de forma a assemelhar-se com a vida do autor, tanto quanto uma autobiografia divirja excessivamente da vida real que pretende narrar. Para Lejeune, o cerne da problemática se resume às relações contratuais que precisam ser estabelecidas entre o autor e o leitor. Se o romance é ou não mais verdadeiro que a autobiografia, ou se esta última é ou não mais exata, é de pouca importância. O que interessa, no fim, é que um autor legítimo, ao substituir sua história real por uma inventada, impede que a narrativa possa ser compreendida como autobiografia.
Na década seguinte, Lejeune revisita sua definição de autobiografia e reconhece a necessidade de rever as condições excessivamente normativas que a fundamentam. Nesta releitura, Lejeune esclarece que a autobiografia pode pertencer tanto a um sistema referencial quanto a um sistema literário, “no qual a escrita não tem pretensões à transparência, mas pode perfeitamente imitar, mobilizar as crenças do primeiro sistema” (Ibidem, p. 57). Assim, o que antes era interdito por conta de sua definição tornou-se possível com a aceitação de uma coexistência entre os dois sistemas. Lejeune admite que o aparecimento dessa nova forma de ver a autobiografia foi inspirada pela obra de “autoficção” Fils (1977), de Serge Doubrovsky, que, propositadamente, perturbou a fronteira entre a autobiografia e o romance autobiográfico literário. A essência contratualista de sua visão anterior teria prejudicado sua compreensão sobre a importância do conteúdo, da técnica e do estilo da narrativa. Assim, requer que a definição seja vista não como uma imposição de limites, mas como um ponto de partida que centraliza as expressões mais recorrentes da autobiografia (Ibidem).
Os argumentos de Lejeune não estiveram isentos de polêmicas no campo literário e, segundo Faedrich (2022), devem ser vistos à luz do contexto em que se inserem. Seu trabalho foi, nos anos 1970, pioneiro em um gênero desprestigiado, focalizando na figura do autor quando as correntes mais vigorosas do pensamento literário propunham que a autonomia do texto tinha precedência sobre a autoria, ou mesmo a dissolvia por completo. O próprio Doubrovsky, que havia cunhado o termo autoficção, compartilhava da ideia de que a instabilidade inerente ao sujeito impossibilitava uma reconstituição narrativa que construísse uma imagem de um todo íntegro e singular. A autoficção acabou sendo associada às correntes do pós-estruturalismo e utilizado como antagônico a uma racionalidade cartesiana de sujeito (da qual Lejeune é acusado), chegando ao ponto de negação da própria possiblidade de autobiografia como tradicionalmente concebida.
Por outro lado, o surgimento da guinada subjetiva nos anos 1970 e 1980 serviu de contraponto à anunciada “morte do sujeito” e permitiu que o resgate da experiência individual pudesse dar fôlego às práticas autobiográficas (Ibidem). De todo modo, o que se institui é que os pactos autobiográfico e romanesco não dão conta dos processos que envolvem a autoficção. Há, agora, o estabelecimento de outros pactos, no qual verdade e ficção não mais se opõem ou contradizem, mas mesclam-se em uma ambiguidade performática. Faedrich, traçando um panorama histórico e analisando as contribuições teóricas no debate sobre a autoficção, propõe uma conceitualização atualizada:
(…) a autoficção é a prática literária – em especial, contemporânea – de ficcionalizar a si mesmo e de mergulho introspectivo. O autor estabelece um pacto ambíguo com o leitor e elimina – deliberadamente – a linha divisória entre fato/ficção, verdade/mentira, real/imaginário, vida/obra. O modo composicional da autoficção é caracterizado pela fragmentação. Isto é, o autor não pretende (e talvez não creia ser possível) abranger linearmente a história total de sua vida; porque na autoficção o movimento é da obra para a vida, não da vida para a obra, caso da autobiografia. Essa inversão abre espaço para um texto com linguagem criadora mais livre. A narrativa é em tempo presente, e, como no estilo lírico, marcada por recordações. O autor rememora fatos e emoções passadas que marcam seu presente e precisam ser compartilhadas por meio da escrita metaficcional. A identidade onomástica entre autor, narrador e protagonista é explícita ou implícita, desde que o autor intencionalmente crie um jogo de contradições. Nesse jogo, a indecidibilidade é a marca da autoficção (Ibidem, p. 90).
Considerando a visão de Faedrich, não tenho dúvidas de que o dossiê é, antes de tudo, uma narrativa de autoficção. O que falta saber, porém, é se nesta condição pode constituir-se em uma narrativa (auto)biográfica em um processo (auto)biográfico de formação. Em primeiro lugar, o debate entre autobiografia e autoficção é travado no campo da literatura. Suas fronteiras ou intersecções são demarcadas a partir dessa ótica específica, ainda que possam abranger outros campos. Os objetivos das narrativas produzidas nesse campo não são os mesmos das narrativas (auto)biográficas de formação. A circunscrição de uma narrativa como autobiográfica ou autoficcional na literatura remete à sua condição de produto artístico. Por outro lado, a narrativa de uma história de vida, para o contexto da formação, é um instrumento que conduz um processo autopoiético e que, portanto, tem por característica principal sua instrumentalidade, ou seja, ser útil para os fins a que se destina.
Penso que a utilidade dos aspectos autobiográficos de uma narrativa (pertencentes a um sistema referencial) parece clara a esta altura. De forma que resta ponderar se há utilidade em uma narrativa de autoficção. Retomando a metodologia de Pesquisa-formação como um projeto no qual são criadas condições para um sujeito tomar consciência de seu processo de formação por meio da reflexão sobre suas experiências, podemos inferir que a ficcionalidade de uma narrativa seria inútil ou prejudicial caso obstruísse o acesso ao componente básico desse processo – a experiência. Podemos construir, assim, uma hipótese de que, estando em posse de suas experiências formadoras, não haveria impeditivo (que seja gerado especificamente pela autoficção) para que o sujeito possa iniciar a reflexão e a tomada de consciência.
Partindo desse ponto, julgo pertinente me preocupar com duas questões: (i) Em razão de um objetivo estético, foram omitidas experiências reais que poderiam constar na narrativa do dossiê? Em caso positivo, essa ausência seria uma obstrução? (ii) Poderíamos, a partir de experiências inventadas, acessar experiências reais?
Há, certamente, omissão no dossiê. Considerei várias experiências significativas que não entraram no produto final. Algumas cheguei até a escrever, mas foram sendo cortadas à medida em que eu via um conjunto orgânico se formando. Fiz, portanto, escolhas deliberadas que pudessem criar uma lógica pessoal na organização da narrativa e suprimi intencionalmente experiências tão ou mais significativas em minha formação. Podemos argumentar que é impossível abordar todo o processo de formação de um sujeito em uma narrativa. A tarefa é tão hercúlea em razão da complexidade e enormidade de uma vida, que o processo (auto)biográfico é, inexoravelmente, uma interpretação parcial. Todo o processo é feito a partir de fragmentos, recortes (Dominicé, 2000). Mas uma omissão deliberada não seria uma afronta aos objetivos do processo? É possível. Dominicé diz, no entanto, que é apenas pelas palavras escolhidas pelo sujeito, pelo que ele decide ou não descrever e compartilhar sobre seu processo de formação, que é forjada a compreensão de uma biografia. Além disso, a expressão de uma experiência significativa na narrativa só pode se dar se o sujeito toma consciência de que ela é, de fato, significativa (Ibidem). Assim, meu processo de seleção de experiências significativas teve que passar, necessariamente, pelo processo de compreensão e qualificação de cada experiência que tenha sido cogitada para integrar o dossiê. Portanto, não considero que tenha havido qualquer tipo de empecilho no acesso às experiências nesse caso, dada a necessidade de análise de cada uma delas, selecionadas ou omitidas, para determinar sua pertinência. E quanto à segunda questão? Reporto-me novamente a Dominicé, quando diz que as narrativas cujo estilo de escrita demonstra uma expressão profunda da subjetividade do autor são aquelas que parecem ser mais significativas (Ibidem). Ou posso ainda recorrer a Delory-Momberger, que entende a narrativa de uma história de vida como “a história que o narrador, no momento em que a enuncia, toma por verdadeira e na qual se constrói como sujeito (individual e social) no ato de sua enunciação” (Delory-Momberger, 2014, p. 95). Ou, ainda:
(…) não é tanto a história reconstruída da vida que interessa em si, mas o sentimento de congruência experimentado entre o projeto de si e o passado recomposto, a impressão de autenticidade que essa história tem para mim no aqui-e-agora em que eu a enuncio. Ela é a história que me atribuo e na qual me reconheço, aquela que me convém e à qual convenho (Ibidem, p. 64).
Considero que as escolhas que fiz se traduzem em uma expressão de minha identidade mais reveladora do que se apenas estivesse relacionando memórias em um relato (estaria firmando, aqui, um pacto fantasmático?). Creio que isso se dê porque experiências inventadas não surgem no vácuo, mas mediadas pela subjetividade de quem as enuncia. O ato de performá-las é alimentado por experiências vividas entranhadas em nossa mente, seja em um lúcido resgate ou por uma submersão às regiões mais inacessíveis do inconsciente. Se este é o caso, julgo possível dizer que a fabulação de experiências também pode instrumentalizar o acesso ao que foi vivido e, desta maneira, apoiar um processo (auto)biográfico de formação.
Há, por fim, uma questão aguda que se faz presente. É de se presumir que o licenciando em Música se preocupe, em algum momento, com questões de seu campo específico. O caminho até aqui percorrido pode, entretanto, dar a impressão de que a Música está escanteada em meio a abordagens da área da Educação e não propriamente da Educação Musical. A questão é bastante pertinente, mas, espero, de simples solução. Como na passagem de uma Biografia Educativa para uma Biografia Músico-Educativa, a tomada de consciência almejada se especifica em um campo delimitado da formação – “as representações e os significados produzidos pela música nos processos formativos dos indivíduos” (Almeida e Teixeira, 2023, p. 12). É, assim, nas experiências peculiares que temos, fazemos ou pensamos a Música que encontraremos a especificidade de uma abordagem (auto)biográfica essencialmente musical.
Considerações
O estudo aqui abordado buscou entender como um relatório de estágio supervisionado em música, produzido em forma de uma narrativa parcialmente ficcional, poderia, de alguma forma, ser pensado e trabalhado como uma ferramenta (auto)biográfica de formação musical. A reflexão sobre a possibilidade de sua utilização em um processo de formação específico, tendo por norte a metodologia da Pesquisa-formação, tomou forma de uma pesquisa exploratória, recrutando perspectivas de campos distintos para amparar a instrumentalização de um produto artístico em uma pesquisa (auto)biográfica.
Foi preciso, assim, identificar se o produto cumpriria, em alguma medida, o papel de uma narrativa (auto)biográfica em uma Pesquisa-formação. Supondo que a tomada de consciência e a autonomização de um sujeito sobre seu processo formativo pressupõem a assunção de seu status como sujeito-narrador-pesquisador e a consequente análise crítica de suas experiências formadoras, a narrativa (auto)biográfica investiria-se, neste caso, da função de rememorar, selecionar e expressar tais experiências. Desta forma, poder-se-ia arguir que a utilidade de um determinado instrumento narrativo na Pesquisa-formação residiria em sua permissibilidade de acesso às experiências.
A questão que se coloca, então, é: a autoficção pode ser instrumental neste acesso? Um relato intencionalmente não verídico poderia ser uma forma de extração de experiências formadoras e, portanto, dar início a um processo de Pesquisa-formação? A posterior redação de uma nova narrativa (auto)biográfica, voltada especificamente à experiência de elaboração do dossiê e às experiências que foram por ele mobilizadas, compeliram-me a acreditar positivamente.
A reflexão sobre o dossiê a partir de uma abordagem (auto)biográfica de formação me permitiu enxergá-lo sob uma nova luz. Contrapô-lo à minha história de vida foi essencial para compreender como a construção ficcional ali presente está visceralmente unida às experiências, de fato, vividas. Na Pesquisa-formação, a narração de experiências formadoras é fundamental e indispensável à análise. Mas haveriam parâmetros estritos relacionados à forma que a narrativa toma? Tratando-se da autoficção, se considerarmos que as experiências são expressas de acordo com as particularidades e circunstâncias de cada sujeito, quaisquer experiências, verídicas ou inventadas, são fundamentalmente mediadas pela subjetividade do narrador.
A retomada do dossiê me permitiu entender que a forma de expressão narrativa está ligada à minha história de vida e à maneira como me percebo e atuo no mundo. Sua instrumentalidade em um processo de Pesquisa-formação é, a meu ver, plenamente plausível, tendo em vista que a forma como acessei e expressei minhas experiências contém indicativos da minha subjetividade e do meu processo de formação, que podem ser elementos relevantes em um projeto de tomada de consciência e autonomização.
Por fim, acredito que a utilização da autoficção no relatório de estágio foi uma ferramenta que me conduziu a uma reflexão de contornos particulares, os quais, possivelmente, seriam diferentes caso a forma de expressão das experiências fosse outra. O acesso ao conteúdo experiencial foi constantemente induzido pela narrativa, sendo a forma de expressão importante catalisador de memórias específicas. Certamente, também, interrompendo outras. Em outras palavras, pode ser pertinente que a consideração sobre a forma e o conteúdo das narrativas (auto)biográficas leve em conta que os processos de formação podem ser iluminados em diferentes matizes, a depender da forma em que são expressos. Se uma forma específica de expressão de experiências auxilia o processo (auto)biográfico, por que não a usar? Não poderiam, por exemplo, narrativas ficcionais, imagéticas ou musicais serem úteis como ferramentas (auto)biográficas?
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Jéssica de; TEIXEIRA, Ziliane. Movimento (Auto)Biográfico da Educação Musical no Brasil: avanços e perspectivas. Revista da FUNDARTE. Montenegro, v.57, n. 57, p. 1-21, 2023. Disponível em: https://seer.fundarte.rs.gov.br/index.php/RevistadaFundarte/article/view/1270/1425. Acesso em: 27 jan. 2025.
DELORY-MOMBERGER, Christine. Biografia e educação: figuras do indivíduo-projeto. Tradução de Maria da Conceição Passeggi, João Gomes da Silva Neto e Luís Passeggi. 2ª edição. Natal: EDUFRN, 2014.
DOMINICÉ, Pierre. Learning from our lives: using educational biographies with adults. San Francisco: Jossey-Bass Inc., 2000.
DOMINICÉ, Pierre. A biografia educativa: instrumento de investigação para a educação de adultos. In: NÓVOA, Antônio; FINGER, Mathias (Org.). O método (auto)biográfico e a formação. 2ª edição. Natal: EDUFRN, 2014, p. 133-141.
FAEDRICH, Anna. Teorias da autoficção [recurso eletrônico]. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2021.
JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. Tradução de José Claudino e Júlia Ferreira; adaptação à edição brasileira Maria Vianna. São Paulo: Cortez, 2004.
JOSSO, Marie-Christine. Caminhar para si. Tradução de Albino Pozzer. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
PASSEGGI, Maria da Conceição; SOUZA, Elizeu Clementino de. O Movimento (Auto)Biográfico no Brasil: esboço de suas configurações no contexto educacional. Investigación Cualitativa, 2(1), p. 6-26, 2017.
PINEAU, Gaston; LE GRAND, Jean-Louis. As histórias de vida. Tradução de Carlos Eduardo Galvão Braga e Maria da Conceição Passeggi. Natal: EDUFRN, 2012.
[1] Bacharel em Artes Plásticas pela Universidade de Brasília. Licenciado em Música pela Universidade de Brasília. Atualmente integra o Grupo de Estudos e Pesquisas (Auto)biográficas em Educação Musical (GEPAEM), no Departamento de Música da Universidade de Brasília. Orcid: https://orcid.org/0009-0000-8397-0894. E-mail: rodrigohonoratomatos@gmail.com.
[2] Professora do Curso de Licenciatura em Música e dos Cursos de Mestrado e Doutorado do Programa de Pós-graduação em Música da Universidade de Brasília (UnB). Doutora e Mestre em Educação (Linha de Pesquisa Educação e Artes) pela Universidade Federal de Santa Maria. É líder do Grupo de Estudos e Pesquisas (Auto)Biográficas em Educação Musical (GEPAEM) e compõe o Movimento (Auto)Biográfico da Educação Musical no Brasil. Atua como Coordenadora Institucional do Pibid na UnB e integra a diretoria da Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0752-120X. E-mail: jessica.almeida@unb.br.
[3] Concebido enquanto estudo (auto)biográfico, o texto será escrito na primeira pessoa do singular, embora seja assinado por dois autores. A segunda autora foi responsável pelas interlocuções à narrativa de si, do primeiro autor, e o orientou na realização da pesquisa e, posteriormente, escrita do artigo.
[4] A transação “denota uma intencionalidade” que ao mesmo tempo modela e é modelada pelas circunstâncias da vida (Josso, 2004, p. 43).