Literatura de cordel e educação das relações étnico-raciais: o Estado da Questão a partir de Jarid Arraes

 

Cordel literature and education of ethnic-racial relations: the State of the Question from Jarid Arraes

 

 

Fernando Paixão[1]

Universidade Estadual do Ceará

Arliene Stephanie Menezes Pereira Pinto[2]

Instituto Federal de Educação Tecnológica do Ceará

Ana Cristina Moraes[3]

Universidade Estadual do Ceará

 

 

Resumo

Este objetiva analisar, por meio de um estudo bibliométrico, a literatura de cordel como recurso para a promoção da Educação das Relações Étnico-raciais. O caminho metodológico utilizado foi a revisão de literatura do tipo Estado da Questão (EQ), apontando artigos que investigam a produção literária de Jarid Arraes, mulher negra, escritora, cordelista e poetisa cearense, cujo trabalho é dedicado ao feminismo negro no Brasil. O trabalho da escritora é conhecido por suscitar outros olhares sobre o racismo, a violência e o sexismo, contribuindo significativamente no atendimento da Lei nº 11.645/03 que versa sobre a obrigatoriedade da temática de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena em todo o currículo escolar da Educação Básica. O trabalho evidencia a força da literatura de cordel como um importante recurso educativo, no qual os poetas fazem transitar vários temas sociais, incluindo o racismo. Concluindo que a poética exerce um papel de resistência às muitas formas de opressão e violência.

Palavras-chave: Literatura de Cordel; Educação das Relações Étnico-raciais; Lei nº 11.645/08.

 

 

Abstract

This aims to analyze, through a bibliometric study, cordel literature as a resource for promoting the Education of Ethnic-racial Relations. The methodological path used was a State of the Question (EQ) literature review, pointing out articles that investigate the literary production of Jarid Arraes, a black woman, writer, cordelist and poet from Ceará, whose work is dedicated to black feminism in Brazil. The writer's work is known for raising new perspectives on racism, violence and sexism, contributing significantly to complying with Law No. 11,645/03, which deals with the mandatory subject of Afro-Brazilian and Indigenous History and Culture throughout the curriculum. Basic Education school. The work highlights the strength of cordel literature as an important educational resource, in which poets convey various social themes, including racism. Concluding that poetry plays a role of resistance to many forms of oppression and violence.

Keywords: Cordel Literature; Education of Ethnic-racial Relations; Law No. 11,645/08.

 

 

Introdução

As reflexões sobre as abordagens acerca da temática das relações étnico-raciais e práticas educativas, nos impeliram a somar com esta contribuição, abordando a literatura de cordel como recurso para a promoção da Educação das Relações Étnico-raciais.

De tal modo, entendemos como objetivo da Educação das Relações Étnico-raciais o de:

 

[...] possibilitar o reconhecimento de pessoas negras na cultura brasileira, a partir de seu próprio ponto de vista, promover o conhecimento da população brasileira sobre a história do Brasil com a visão de mundo da população negra, formar os professores para ministrarem disciplinas que contemplem a perspectiva negra na história, cultura e sociabilidade do país. A educação das relações étnico-raciais visa também capacitar os professores como combater e discutir sobre o racismo e seus efeitos (dentro e fora do ambiente escolar), e, finalmente, propiciar a reeducação para relações étnico-raciais plurais e diversas (Negreiros, 2017, p. 83).

 

A escolha por esta temática se justifica pelo motivo de a literatura de cordel como objeto de investigação permitir analisar o que outros pesquisadores, neste campo, trouxeram acerca de assuntos que orbitam na temática das relações étnico-raciais.

Ao longo de mais de cem anos[4] como elemento constitutivo da cultura do povo brasileiro, a literatura de cordel teve o seu papel na formação do imaginário coletivo sobre a população negra no Brasil, disseminando o racismo e preconceito, contribuindo para a produção da invisibilidade, desumanização e apagamento dessa população, por ser essa literatura, fruto de uma época e contexto alicerçados no pensamento colonial (Perdigão, 2023).

Nos últimos anos, porém, a literatura de cordel, tem ocupado o seu lugar nos sistemas de educação, através de publicações do gênero[5], abordando temas relacionados à temática étnico-racial em consonância com a legislação, sobretudo com as Leis nº 10.639/2003 que trata da obrigatoriedade da temática  de História e Cultura Afro-Brasileira nos currículos oficiais de ensino (Brasil, 2003), a qual foi alterada pela Lei nº 11.645/08 com a obrigatoriedade da temática  de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena (Brasil, 2008).

Para exemplificar citamos obras do primeiro autor deste trabalho, as quais são trabalhadas em escolas municipais de vários estados da federação, como Ceará, Pernambuco, Maceió, Bahia, Goiás, Rio Grande do Norte, entre outros:

- Editora IMEPH: Zumbi dos Palmares (Paixão, 2009); Canção dos Povos

Africanos (Paixão, 2010); África: um breve passeio pelas riquezas e grandezas

africanas (Paixão, 2012); e Duas Lendas Indígenas de Amor (Paixão, 2016);

- Editora Conhecimento: Somos Todos Africanos (Paixão, 2014) .Podemos observar no catálogo da editora IMEPH[6], outras publicações do gênero cordel, fato que evidencia a contribuição dessa literatura como recurso para a Educação das Relações Étnico-raciais, tais como: Criação da noite: lenda indígena (Silva, 2010); Um curumim, um pajé e a lenda do Ceará (Rinaré, 2010); Igual e Diferente (Holanda, 2012); Cordéis de Arrepiar: África (Rinaré, 2015); A lenda da Iara (Silva, 2021); A lenda da Vitória-régia (Silva, 2022).

Observamos, portanto, que a literatura de cordel faz parte de uma longa história em que atravessou todo o século XX e duas décadas do século XXI e, por esta razão, poetas que se expressavam em relação aos negros e povos originários, sobretudo em um período anterior a redemocratização do país e da Constituição Federal de 1988, o faziam reproduzindo o racismo e preconceito naturalizados por força da ideologia das classes dominantes, de mentalidade europeizadas e colonialistas.

A sociedade colonial brasileira impôs aos indígenas e negros condições sociais inferiores, mesmo que diferenciadas, e que se mostram até a atualidade. Esse racismo estrutural é emaranhado nas ideias, pensamentos e atitudes da sociedade brasileira e se perpetua na dinâmica das relações (Santiago; Maia; Pereira, 2020).

Atualmente, observamos uma literatura de cordel mais cidadã, que se consolida como mídia informativa, alternativa e contra hegemônica (Perdigão, 2023). Essa perspectiva crítica, decolonial (Santana, 2023) e referenciada em princípios éticos, faz da literatura de cordel uma produção estética potente para possibilitar transformações sócio-políticas e culturais significativas em nossa sociedade.

Nessa perspectiva, portanto, considerando essa evolução do pensamento antirracista, fazemos o seguinte questionamento: de que maneira a literatura de cordel torna-se recurso para a implementação da Educação das Relações Étnico-raciais? Desta forma, este trabalho tem como objetivo analisar a literatura de cordel como recurso para a promoção da Educação das Relações Étnico-raciais; elegemos, para isto, a escritora Jarid Arraes como foco.

A mesma foi escolhida, pois trata-se de uma escritora, poetisa e cordelista, nascida em Juazeiro do Norte-CE, que se encontra neste cenário renovado do mundo do cordel. Filha de Hamurabi Batista e neta de Abraão Batista, ambos cordelistas e xilogravadores. É mulher negra, militante das causas do feminismo negro e vive atualmente em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita para Mulheres. Possui mais de 70 títulos publicados em literatura de cordel, cujo trabalho é dedicado ao feminismo negro no Brasil e conhecido por suscitar outros olhares sobre o racismo, a violência e o sexismo, contribuindo significativamente no atendimento da Lei nº 11.645/03.

A literatura de cordel é patrimônio cultural imaterial, forma de expressão, elemento constitutivo da memória. identidade e cultura do povo brasileiro. É também um importante recurso didático-pedagógico que ultrapassa os temas escolares, mostrando sua capacidade de adequar, de transformar, de submeter qualquer assunto à sua forma poética. E assim, consideramos este trabalho relevante por analisar como este artefato cultural, com sua forma poética composta por versos heptassilábicos que rimam entre si, formando estrofes de seis (sextilha), sete (setilha) ou dez versos (décima) possibilitando a abordagem de vários temas, tem possibilitado também, a temática da Educação das Relações Étnico-raciais.

A metodologia utilizada é uma revisão de literatura do tipo Estado da Questão (EQ) em que foram analisados trabalhos que dialogam com o objetivo desta investigação.

Para melhor compreensão leitora, este texto se subdivide nas seguintes seções: Introdução, em que explicitamos a temática explanada, a delimitação, o problema e o  objetivo de pesquisa, assim como sua relevância; Metodologia, em que discorremos acerca do tipo de estudo e a coleta de dados utilizada, e outros aspectos metodológicos; Cordel e Educação das Relações Étnico-raciais em Jarid Arraes, em que discorremos acerca das pesquisas realizadas pelos autores do referencial teórico que analisam a obra da escritora cordelista e Jarid Arraes, onde é evidenciada sua contribuição para a Educação das Relações Étnico-raciais; e Considerações finais, seção em que retomamos o objetivo e compilamos as principais discussões, bem como inferimos as limitações do estudo.

 

Metodologia

Como recurso metodológico, optamos por uma revisão de literatura do tipo Estado da Questão (EQ). Este tipo de revisão de literatura consiste em um levantamento bibliométrico criterioso realizado em bases ou indexadores, que preservam a produção científica, possibilitando os pesquisadores, conhecer uma visão geral de pesquisas e estudos na área em que tem interesse. A partir deste levantamento, permite-se identificar o que já foi pesquisado, as lacunas no conhecimento e elaborar questões de pesquisa inovadoras e pertinentes que consideram a produção já disseminada.

De acordo com Nóbrega-Therrien; Therrien (2011), no Estado da Questão, há uma busca mais seletiva e crítica dos trabalhos científicos, restringindo-se aos estudos e parâmetros que são do interesse do pesquisador e que comparam o material encontrado com a sua proposta de investigação. Desta forma, o EQ possibilita um diálogo entre o pesquisador e a produção científica encontrada, buscando-se articulações, convergências e divergências. Isto permite ao pesquisador ter uma visão geral de estudos que têm relação com sua área de interesse, no caso específico deste trabalho, a literatura de cordel e a Educação das Relações Étnico-raciais.

Diante da pluralidade de abordagens e de olhares diferentes sobre a temática investigada, o EQ dá a conhecer o que já foi produzido sobre o assunto e de que maneira os elementos argumentativos foram mobilizados, considerando as sensibilidades e a criatividade no desenvolvimento dos trabalhos investigativos pregressos. Na concepção de Nóbrega-Therrien e Therrien (2011), o EQ é um aliado do pesquisador, pois o auxilia na elaboração de seu trabalho científico porque articula e apresenta determinadas questões diretamente relacionadas ao tema por ele investigado.

Nesse caminho, em outubro de 2024 foi realizada uma busca no Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), por produtos relacionados ao objeto de estudo. Para isso, foram utilizados os termos “cordel” e “negro” com o operador booleano “and”. A referida plataforma foi escolhida em razão do seu reconhecimento como um dos principais acervos de trabalhos científicos do Brasil, que remete a mais de 45.000 títulos, além de 130 outras bases (Brasil, 2022).

A busca gerou o resultado de uma lista com 20 trabalhos. Para qualificar tal resultado foi necessário a realização de um refinamento, o qual iniciamos com uma leitura preliminar dos títulos e resumos. Desse modo, cinco trabalhos se qualificaram para integrar o estudo. Dentre os principais motivos da eliminação constatamos: recortes temáticos específicos – personagens ou ciclos temáticos que não focavam à dimensão da promoção das relações étnico-raciais. Os cinco trabalhos que se qualificaram para integrar este estudo, no entanto, são artigos que analisam a obra da cordelista “Jarid Arraes”, embora o termo não tenha sido utilizado no campo de busca do Portal de Periódicos.

Devido a esse fenômeno, fruto da metodologia aplicada, este trabalho analisa, portanto, os cinco artigos que têm recorte temático na obra desta cordelista, para entender como a literatura de cordel pode tornar-se recurso para promover a Educação das Relações Étnico-raciais.

Na análise temática do conteúdo integral dos artigos localizados, seguimos as prescrições de Minayo (2014, p. 203), que menciona que a análise de conteúdo, do ponto de vista operacional, “[...] parte de uma literatura do primeiro plano para atingir um nível mais aprofundado: aquele que ultrapassa os significados manifestos”. À vista disso, às técnicas de análise de conteúdo compreendem as análises da expressão, da relação, da temática e da enunciação, sendo que a análise temática “[...] consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação cuja presença, ou frequência, signifiquem alguma coisa para o objetivo analítico visado” (Minayo, 2014, p. 209).

Após a pré-análise, com a leitura flutuante e seleção dos documentos considerando os filtros mencionados, tivemos os resultados especificados no Quadro 1, por autoria e ano de publicação, título, periódico, volume e número.

 

Quadro 1 - Resultado Estado da Questão (EQ) em referência a literatura de cordel e escritora Jarid Arraes

Autoria/ano

Título

Periódico

V

N

Benfatti e Silva (2020)

O feminismo negro na literatura de cordel de Jarid Arraes e em contos de Mirian Alves

Cadernos de Gênero e Diversidade.

06

04

Cabral, Luiz e Silva (2022)

Subversão à tradição da literatura de cordel: um olhar para o protagonismo negro feminino nos cordéis de Jarid Arraes

SCRIPTA

26

56

Alves e Fronza (2021)

Literatura e história: mulheres negras brasileiras nos cordéis de Jarid Arraes

Revista de Literatura, História e Memória

17

29

Pereira (2021)

“Cordel-jornal” e o ativismo negro: os cordéis da poetisa Jarid Arraes

Revista Encantar

03

 

Santana (2023)

As heroínas amefricanas: os cordéis de Jarid Arraes sob análise feminista decolonial

Jangada

10

20

Fonte: Elaboração própria (2024).

 

Em seguida, houve a exploração do material com a leitura cuidadosa de todos os artigos na íntegra, os quais serão discutidos na próxima seção.

 

Cordel e Educação das Relações Étnico-raciais em Jarid Arraes

Conforme os resultados encontrados no EQ, os cinco trabalhos que compõem a base teórica de nossas reflexões, focam na produção da cordelista e mulher negra Jarid Arraes, com destaque na obra Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis (2017), que conta em versos a história de mulheres negras brasileiras que se tornaram protagonistas nas áreas em que atuaram. Com isso, temos primeiramente o texto de autoria de Benfatti e Silva (2020), intitulado O feminismo negro na literatura de cordel de Jarid Arraes e em contos de Mirian Alves, os quais trazem reflexões acerca do feminismo negro no Brasil, a partir da análise de algumas vozes teóricas e do diálogo com as obras literárias de duas escritoras, ativistas e poetisas negras, quais sejam: Jarid Arraes e Mirian Alves. Neste percurso realizado pelas autoras apontam-nos caminhos para outros olhares sobre racismo, violência e sexismo.

Sobre o trabalho educativo da cordelista, Benfatti e Silva (2021) destacam que:

 

Jarid Arraes pratica essa missão de empoderar meninas e mulheres negras por meio dos cordéis, nos quais aborda as temáticas de autodefinição, autoestima e autovalorização, bandeiras defendidas pelo movimento feminista negro. Assim como a música, a literatura é um instrumento de voz potente nas lutas. O cordel tem a especificidade de ser bem mais acessível do que o livro, quando se trata de valor financeiro (Benfatti; Silva, 2021, p. 85-86).

A afirmação das autoras evidencia, tanto a importância do trabalho realizado pela cordelista, como o potencial educativo da linguagem artística por ela utilizada, o cordel, como voz ativa nas lutas pelo empoderamento das mulheres negras.

Subversão à tradição da literatura de cordel: um olhar para o protagonismo negro feminino nos cordéis de Jarid Arraes, é o texto de autoria de Cabral, Luiz e Silva (2022), em que os autores tecem a análise de três cordéis de autoria da cordelista Jarid Arraes, nos quais estão evidentes o protagonismo negro e feminino. A análise demonstra por meio desses cordéis, a subversão que rompe com tradições machistas e racistas, tanto no que se refere à autoria, já que se trata de uma cordelista negra, quanto em relação à temática que situa mulheres negras em posição de protagonismo. Trata-se, portanto, da análise de uma produção literária que aponta para a necessidade de se estabelecer outra lógica e pensamentos outros para as relações de poder predominantes na sociedade brasileira.

As autoras Cabral, Luiz e Silva (2022, p. 156), apresentam Jarid Arraes como “escritora, cordelista e poeta brasileira, que, mesmo inserida em uma tradição tão patriarcal e heteronormativa, conquistou seu espaço na Literatura de Cordel”. De acordo com as autoras, Jarid corrobora, diante desse cenário, para a construção de um novo imaginário em que as mulheres negras não sejam a representação de submissão, mas uma representatividade protagonista e de luta.

Sobre os fins didáticos da obra da cordelista cearense, as autoras afirmam que seus cordéis “podem trazer impactos positivos para estudantes negras que, infelizmente, ainda têm pouca representatividade (principalmente de forma positiva) na mídia, nos livros didáticos e no cânone literário” (Cabral, Luiz e Silva, 2022, p. 156).

Alves e Fronza (2021) são autores do trabalho Literatura e história: mulheres negras brasileiras nos cordéis de Jarid Arraes. Neste trabalho os mesmos destacam mulheres negras apresentadas como heroínas na obra Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis (2017) de Jarid Arraes, revisando aspectos relacionados à condição da mulher escravizada no Brasil. A análise da obra possibilita concluir que a mulher negra instruída acerca de sua ancestralidade tem suas possibilidades de emancipação e empoderamento aumentadas, apesar das desigualdades de gênero e raça que persistem.

Para os autores Alves e Fronza (2021), a obra de Jarid Arraes vai na contramão da história do Brasil produzida pelos grupos dominantes que invisibilizaram os negros, principalmente as mulheres, como sujeitos históricos:

 

Apresentar o protagonismo das mulheres tematizadas nessa obra resgata histórias de vida que são inspiradoras e podem favorecer um olhar mais crítico à própria história do país, além de servirem como estratégia de empoderamento e consciência crítica a muitas mulheres que, de uma forma ou outra, ainda são subjugadas, seja pelo homem, pela pobreza, pela violência nas ruas ou pela ausência de emprego e moradia (Alves; Fronza, 2021, p. 129).

Nesta afirmação, fica evidente a função da literatura de cordel, na obra de Jarid, para inspirar histórias de vidas de mulheres que são subjugadas por várias instâncias da sociedade.

Na obra, a cordelista, diferentemente da literatura de cordel tradicional, apresenta as mulheres negras como heroínas que são representações das e para as mulheres negras. As 15 mulheres negras que tem suas trajetórias contempladas na coleção de cordéis de Jarid Arraes são: Antonieta de Barros, Aqualtunue, Carolina Maria de Jesus, Dandara, Esperança Garcia, Eva Maria do Bonsucesso, Laudelina de Campos, Luísa Mahin, Maria Filipa, Maria Firmina dos Reis, Mariana Crioula, Na Agontimé, Tereza de Benguela, Tia Ciata e Zacimba Gaba (Alves; Fronza, 2021).

As contribuições teóricas e a análise do conteúdo desta obra, ilustram, segundo Alves e Fronza (2021), a necessidade de se discutir, nos ambientes escolares, a nova historiografia da escravidão, para se ter o reconhecimento da população negra escravizada como sujeitos partícipes da história do país, e agentes que lutaram, com expedientes diversos, por sua liberdade.

As autoras afirmam ainda que:

 

As mulheres personagens protagonistas da obra de Jarid Arraes são personagens de ficção que também se fazem históricas, concretas e complexas cujas dores ainda repercutem no corpo de cada mulher negra, vítima de tantas formas de violência e opressão, desassistida nos seus direitos e ignorada na sua condição de descendente de mulheres bravas e lutadoras. Por isso, a escritura de Arraes, aqui entendida como arte que opera contra a subalternidade, pode ser lida e ouvida também como uma “nova astúcia” para deixar bem evidentes no presente os atos praticados no passado, os quais devem inspirar outras mulheres a se tornaram líderes e heroínas da própria condição (Alvez; Fronza, 2021, p. 150).

Vemos, nesta afirmação, o importante legado de história de luta dessas mulheres negras que hoje inspiram tantas outras mulheres que ainda sofrem tantas formas de opressão e violências. Ser negra e mulher no Brasil, segundo Alves e Fronza (2021), é uma situação bem mais difícil que a dos homens negros, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo oprimem ainda mais essas mulheres.

Pereira (2021) apresenta em seu trabalho “Cordel-jornal” e o ativismo negro: os cordéis da poetisa Jarid Arraes, como a poetisa mobiliza, através da literatura de cordel, um ativismo negro feminista. A partir de uma visão panorâmica da arte de Jarid Arraes, o cordel, conclui que os escritos da cordelista buscam dar visibilidade aos marcadores sociais da diferença, particularmente a confluência entre gênero e raça, apontando para o protagonismo das mulheres negras “esquecidas” pela historiografia brasileira. 

Pereira (2021), assevera que é na esteira da educação que se insere muitos dos versos da Jarid Arraes, e que sua obra se torna um recurso para a efetivação da Lei nº 11.645/08, sobre a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena.

Em As heroínas amefricanas: os cordéis de Jarid Arraes sob análise feminista decolonial, Santana (2023) faz uma análise dos cordéis da coleção Heroínas Negras Brasileiras, de Jarid Arraes, enquanto produções literárias feministas e decoloniais, considerando e destacando sua relevância política na formação identitária e histórico-cultural da população brasileira, bem como quanto à promoção da Educação das Relações Étnico-raciais.

Vale também destacar que, na percepção de Santana (2023), os cordéis da coleção Heroínas Negras Brasileiras são produções literárias feministas e decoloniais, considerando sua relevância política na formação da história, identidade e cultura da população brasileira. Segundo esta autora, os cordéis da referida coleção, “são produções literárias amefricanas, porque abordam e colocam em evidência as biografias de mulheres negras, veiculando representações positivas, fundamentalmente distintas dos estereótipos utilizados na literatura de cordel tradicional” (Santana, 2023, p. 131).

Dá-se também o destaque da arte presente na literatura de cordel como veículo que faz transitar as histórias de vida dessas mulheres negras. Benfatti e Siva (2021, p. 83) asseveram que “a arte desde sempre tem sido espaço de resistência e de voz às diversas causas que, de alguma forma, destoam do que preconiza o modelo patriarcal hegemônico”. De acordo com as autoras, a literatura exerce papel fundamental de resistência, e esteve sempre atuante na história do movimento feminista, por meio das publicações das mulheres que lutam pelos seus direitos e buscam a arte como forma de expressão.

Hoje, uma dessas formas de expressão do povo brasileiro é a literatura de cordel, que, por muito tempo não foi incluída entre os gêneros literários, devido ao seu caráter popular e sua origem na oralidade. Reconhecida, desde 2018, como patrimônio cultural imaterial brasileiro, o cordel é foco de um crescente interesse acadêmico, principalmente por sua forma poética e seu potencial didático pedagógico.

De acordo com Benfatti e Silva (2021), a partir do século XXI, as temáticas trazidas pelo cordel, vão substituindo o clima jocoso e machista por temas de reflexões sobre questões sociais como preconceito, racismo e política. É neste cenário, conforme relatam Cabral, Luiz e Silva (2022), que Jarid Arraes dedicou-se a dar visibilidade a mulheres negras, as quais o grande público desconhece, mas que são mulheres protagonistas no desenvolvimento da sociedade brasileira. Já sobre a coleção de cordéis de Jarid, as autoras afirmam que “por se tratar de pequenas biografias escritas em forma de literatura de cordel, a cultura e a identidade afro-brasileira tornam-se objetos de estudo acessível, lúdico e com valoração estética” (Cabral, Luiz e Silva, 2022, p. 156).

Para Santana (2023), ao escolher o uso do suporte cordel, a cordelista Jarid Arraes, rompe com elementos tradicionais do campo da literatura de cordel, com ampliação temática de combate ao racismo, aos estigmas e aos preconceitos. Assim, a cordelista “incorpora conteúdos políticos e influências culturais contemporâneos à estética do cordel, tornando-os uma produção que realiza a tradução e a mediação de conteúdos do feminismo negro e da História do Negro no Brasil” (Santana, 2023, p.123).

Desta forma, a literatura de cordel, a exemplo da obra de Jarid Arraes, mostra-se como um mecanismo capaz de promover a Educação da Relações Étnico-raciais, sobretudo com o protagonismo feminino negro que rompe a tradição branca, heteronormativa e patriarcal. Indubitavelmente, essa literatura se torna um subsídio para o processo de descolonização do imaginário, devolvendo a mulher negra, até então invisibilizada, sua voz e seu protagonismo na história.

Assim, a utilização do cordel em sala de aula, nos vários níveis e etapas da educação, torna-se um importante recurso didático pedagógico para a promoção da Educação das Relações Étnico-raciais, uma vez que essa literatura, na sua forma poética, possibilita a abordagem da temática proporcionando o acesso à leitura, habilidade essencial à escolarização e à vida social, de forma lúdica e prazerosa, facilitando a compreensão dos alunos, promovendo o debate e aproximando-os do cotidiano no qual estão inseridos. Além disso, o educador ainda pode utilizar a literatura de cordel explorando seus recursos artísticos culturais como a musicalidade, a teatralidade, a sonoridade e demais possibilidades facilitadoras da construção do conhecimento.

 

Considerações finais

A literatura de cordel, patrimônio cultural imaterial do povo brasileiro, é, indubitavelmente, um importante recurso didático-pedagógico que transmite em sua forma poética, temas concernentes a quaisquer áreas do conhecimento.

Com o objetivo de analisar a literatura de cordel como recurso para a Educação das Relações Étnico-raciais, este trabalho investigativo, em seu caminho metodológico, analisou cinco trabalhos, os quais encontram-se com a poética feminista e antirracista da cordelista Jarid Arraes, que, entre outros escritos, nos presenteou com a obra Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis (2017).

Em consonância com esta base teórica, concluímos, portanto, que a literatura de cordel, nos últimos anos, tem demonstrado significativa evolução na abordagem de temas sociais, sobretudo quando os temas são relacionados às mulheres e às pessoas negras, uma vez que os poetas e as poetisas cordelistas, em seus contextos históricos, reproduziam uma mentalidade europeizada e colonialista em seus trabalhos poéticos. Hoje, portanto, já podemos observar uma literatura de cordel mais educativa, ética e cidadã.

O trabalho educativo, militante, feminista e antirracista da cordelista Jarid Arraes evidencia essa adequação da mentalidade dos poetas e poetisas cordelistas com as novas demandas sociais e educativas, estabelecendo outra lógica, sobretudo no que concerne ao tema das relações étnico-raciais.

A poesia e o cordel, na obra da cordelista Jarid Arraes, além de seu caráter denunciatório, empodera e incentiva outras mulheres a soltarem a voz e se firmarem na luta pela dignidade e contra a violência sofrida pelo racismo.

No âmbito escolar, é esse gênero da literatura que pode trazer impactos positivos para estudantes negros e negras, uma vez que essa positividade é pouco presente na mídia, nos livros didáticos e no cânone literário. Por esta razão, o trabalho da cordelista vai na contramão da História do Brasil, porque dá visibilidade aos negros como sujeitos históricos, principalmente às mulheres que são subjugadas por várias instâncias da sociedade.

E assim, a literatura de cordel, patrimônio cultural imaterial, é uma forma de expressão utilizada em escolas e universidades em vários estados do Brasil, e mostra-se com um importante artefato para a Educação das Relações Étnico-raciais, sobretudo com o protagonismo feminino negro que rompe a tradição branca, heteronormativa e patriarcal.

 

REFERÊNCIAS

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2024.

 

 

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[1] Mestre em Educação (Universidade Estadual do Ceará). Especialista em Arte-Educação e Cultura Popular (Faculdade de Tecnologia Darcy Ribeiro). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6669-7283. E-mail: Fernando.paixao@aluno.uece.br.

[2] Doutora em  Educação  pela  Universidade  Estadual  do Ceará (UECE). Mestra em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3042-538X. E-mail: stephanie_ce@hotmail.com.

[3] Pós-doutora em Educação (Universidade Federal do Ceará – UFC). Doutora em Educação

(Universidade Estadual de Campinas-SP – UNICAMP). Mestra em Educação (UFC). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8650-8272. E-mail: anakrismoraes@hotmail.com.

[4] De acordo com Terra (1983), a literatura de cordel tem início em 1893, quando o poeta Leandro Gomes de Barros passa a publicar seus folhetos impressos. A partir de então, outros poetas também passam a publicar seus folhetos: Francisco das Chagas Batista, em 1902 e João Martins de Athayde, em 1908.

[5] A literatura de cordel publicada por várias editoras do Brasil, apresenta-se em novo suporte. Diferente dos tradicionais folhetos, as publicações são feitas em forma de livros ilustrados, com visual bastante atrativo para o público escolar.

[6] Disponível em: https://portal.imeph.com.br/.