Experimentações visuais em pesquisas com os povos indígenas Kariri-Xocó e Kiriri do Acré

 

Visual experiments in research with the Kariri-Xocó and Kiriri indigenous peoples of Acré

 

 

Alik Wunder[1]

Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, Brasil.

Rafael Caetano Nascimento 2

Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, Brasil.

Victor Hugo da Silva Iwakami 3

Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, Brasil.

 

 

 

 

Resumo

No serpenteio do rio São Francisco, o movimento fornece impulso às diferenças e migrações. O grupo Sabuká, povo Kariri-Xocó (AL), e a Aldeia Ibiramã Kiriri do Acré (MG), povo Kiriri (BA), organizam-se em fluxos de produções coletivas no encontro com pesquisadores e artistas. Partindo do pressuposto de que o encontro com cosmovisões, literaturas e visualidades demanda o exercício ético de não hierarquizar lógicas, saberes e maneiras de estar no mundo, seguimos apostando nas possibilidades de alianças afetivas. Em meio às pesquisas, perguntas emergem do aerar e sobrevoar entre-mundos: o que podem a cosmologia encantada dos Kiriri e a cosmologia do mundo das plantas dos Kariri-Xocó provocar para composições éticas e estéticas com a vida em pesquisas em educação? Como pensar uma educação pelas imagens indígenas? Vínculos duradouros se constituíram com estes dois povos por meio de ciclos de experimentações em oficinas coletivas com fotografia, desenho, narrativas, cantos e danças. As criações visuais com imagens e palavras, pela jornada peregrina nas florestas dos dissensos e alianças — enquanto potência da diferença — têm instigado a experimentar incorporações mútuas entre sabedorias de plantas, animais, minerais, elementais. Modos que criam fagulhas na germinação narrativa de forma rizomática. Plantas, águas e jiboias, fumaças, ares e sonhos. Um texto plural e atravessado por seres e devires: uma textualidade florestal com os Kariri-Xocó e os Kiriri do Acré. Retomada da vida e das forças a compor pesquisas-experimentações em educação.

Palavras-chave: Imagem; filosofia contemporânea; arte indígena; literatura indígena; pensamento indígena.

 

Abstract

On the meandering São Francisco River, movement gives impetus to differences and migrations. The Sabuká group, Kariri-Xocó people (AL), and Aldeia Ibiramã Kiriri do Acré (MG), Kiriri people (BA), organize themselves into flows of collective productions in meetings with researchers and artists. Based on the assumption that the encounter with cosmovisions, literatures and visualities demands the ethical exercise of not hierarchizing logics, knowledge and ways of being in the world, we continue to bet on the possibilities of affective alliances. In the midst of the research, questions emerge from the flying between worlds: what can the enchanted cosmology of the Kiriri and the cosmology of the plant world of the Kariri-Xocó provoke for ethical and aesthetic compositions with life in educational research? How can we think about education through indigenous images? Long-lasting bonds were formed with these two peoples through cycles of experimentation in collective workshops with photography, drawing, narratives, songs and dances. Visual creations with images and words, through the pilgrim journey in the forests of dissent and alliances - as the power of difference - have instigated experimentation with mutual incorporations between the wisdom of plants, animals, minerals and elementals. Ways that create sparks in narrative germination in a rhizomatic way. Plants, water and boa constrictors, smoke, air and dreams. A plural text criss-crossed with beings, a forest textuality with the Kariri-Xocó and the Kiriri doAcré. A return to life and the forces that make up research and experimentation in education.

Keywords: Image; contemporary philosophy; indigenous art; indigenous education; indigenous thought.

 

 

Introdução

Foto preta e branca da lua

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Imagem 1: Desenho realizado em composição com fotografia e nanquim no encontro com o povo Kariri-Xocó. Autoria própria (autoria suprimida)

 

Como pensar uma educação pelas imagens? Como nos deixar atravessar e transformar pelos modos indígenas de criar imagens? Como as artes indígenas podem alimentar ‘micropolíticas inventivas’ (Rolnik, 2019) na educação e na pesquisa? Essas são constantes inquietações que espreitamos em nosso grupo de pesquisa HumorAquoso, que faz parte do grupo OLHO - Laboratório de Estudos Audiovisuais na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Muitas possibilidades de pensar junto com diferentes visualidades tem gerado processos inventivos e experimentais com a imagem na pesquisa em educação e nas práticas docentes cotidianas. Experimentamos em nossas pesquisas processos inventivos que possibilitem devires-outros, linhas de fuga da captura, do mimetismo e das lógicas representacionais. Buscamos por visualidades dissonantes que habitam o mundo e performam educações para além das instituições escolares e que criem fissuras nelas. Nossas pesquisas são constantes processos de nos emaranhar em zonas nebulosas do entre-mundos, a partir do encontro, em especial com comunidades e coletivos indígenas. Na perspectiva de uma educação e pesquisa repleta de ecologias diversas de imagens, este texto faz-se em várias mãos por traços, fotos, narrativas, fabulações e escritas. Uma escrita a três, que ressoa criações de muitas outras pessoas, escrita que ebule da multiplicidade de imagens do encontro, escrita-multiplicidade. Trazemos aqui pensamentos e criações a partir do encontro de nossas pesquisas com o grupo artístico Sabuká do povo Kariri-Xocó (Alagoas, Brasil), por meio de pesquisas de mestrado e doutorado de (autoria suprimida), e com professores/as e estudantes da Escola Indígena Ibiramã Kiriri do Acré (Minas Gerais, Brasil), por meio da pesquisa de doutorado de (autoria suprimida).  As duas pesquisas orientadas por (autoria suprimida) integram projetos de nosso grupo: o projeto de pesquisa ‘Peles de imagens, peles de papel: educação e vida em criações literárias indígenas’ e projetos de extensão ‘Ciclos de oficinas de criação: entre palavras e imagens e sons com a aldeia Ibiramã Kiriri do Acré’ (PROEC/ Unicamp - 2022) e ‘Toré: encontros com o povo Kariri-Xocó’ (PROEC/Unicamp – 2019). Estes diferentes projetos de pesquisa e extensão deram origem a publicações realizadas em coautoria com as comunidades indígenas, tais como: ‘Mundo das Plantas Kariri-Xocó: ensaios poéticos e visuais’ (Kariri-Xocó; Fabulografias, 2020); ‘Livros dos Saberes Tradicionais do povo Kiriri do Acré’ (Ramos; Pankaru; Wunder, 2021) e ‘Cantos e Encantos de curas e conhecimentos’ (Santos; Nascimento, 2024).

Partimos do pressuposto que o encontro com povos indígenas e suas cosmovisões, literaturas e visualidades, demandam o exercício ético de não hierarquizar lógicas, saberes e maneiras de estar no mundo, de modo que afetos e alianças sejam possíveis. No ano de 2016, Pedro Cesarino entrevistou Ailton Krenak durante a realização do evento ‘Ágora: OcaTaperaTerreiro’, organizado por Bené Fonteles na 32° Bienal. Ailton Krenak discorre sobre encontros, parcerias, diplomacias, movimentos e alianças entre indígenas e não-indígenas. Esta última palavra impulsiona o autor a explorar a dimensão de alianças afetivas, que se estabelece na constituição de territórios de invenção e criação no desabrochar dos afetos. O desabrochar promove a dilatação do espaço-tempo ordinário, desmobilizando territórios estriados, criando brechas e fissuras:

 

Quando você tem uma experiência de dilatação do tempo, começa a pensar em períodos muito mais abertos. É quando o meu pensamento consegue tocar uma ideia que vai além da percepção de um sítio, de um território, de determinado lugar na geografia, e começo a pensar nesse ambiente que nós compartilhamos, que é a Terra, que é um planeta (Krenak; Cesarino, 2016, p.171).

A dilatação do espaço-tempo, compartilhada por Krenak, não se refere apenas às grandezas físicas de marcação do momento e espaço, mas o exercício contínuo de manter viva a narrativa, os saberes e as multiplicidades dos encontros entre humanos e entre os diferentes seres viventes. A experimentação visual que buscamos, por meio de alianças afetivas em pesquisa em educação, se institui mais pelo processo de experimentar e criar do que criar artefatos. Além disso, desejamos fazer ecoar outras visualidades que possam desestabilizar o regime sensível ocidental estabelecido na educação. Temos buscado acompanhar outros processos, tal como a exposição ‘Yanomami, L’Esprit de la Forêt’, em aliança afetiva com artistas não indígenas, que articulou o confronto “com a perspectiva de uma alteridade radical a fim de desestabilizar os quadros de nossa visão e desenraizar os registros de nossa sensibilidade” (Kopenawa; Albert, 2023, p. 63). Nossas pesquisas investem no olhar, no tátil, no sonoro, no paladar, no sensível investigativo em experimentações no/a partir/junto com as diversas cosmopolíticas ou ecologia das práticas (Stengers, 2018) dos povos originários. Peregrinamos no desenho, escrita, colagem, fotografia e audiovisual, de modo que diversas narrativas abram espaços possíveis de encontro. Como experimentações visuais com povos indígenas pode reverberar outras educações ou outras dinâmicas de criação com a imagem? O presente texto se impregna de devires (Deleuze; Guattari, 1997) – devir-jibóia, devir-água, devir-rio, devir-gavião, devir-planta, entre outros, uma escrita atenta e em espreita de rastros deixados por criações visuais que se fazem a partir do encontro com narrativas dos Kariri-Xocó e dos Kiriri do Acré. Traços de desenho e colagens que peregrinam por narrativas indígenas. Como a pesquisa e a experimentação visual com povos indígenas pode movimentar educações outras?

 

Sobrevoo: rastros do encontro Kariri-Xocó

 

Imagem digital fictícia de personagem de desenho animado

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Imagem 2: Desenho realizado em composição com nanquim e tinta de jenipapo no encontro com o povo Kariri-Xocó. Autoria própria (autoria suprimida)

 

Às margens do Rio Opará, também conhecido como São Francisco, em Porto Real do Colégio, Alagoas, reside a maioria dos representantes do povo indígena Kariri-Xocó. A sede da Terra Indígena Kariri-Xocó fica a um quilômetro da praça central da cidade, a aldeia está inserida em contexto urbano e seus moradores e moradoras necessitam de diferentes fluxos de atividades para manter-se economicamente e culturalmente. Diversos grupos partem da aldeia anualmente com a intenção de captar recursos financeiros e fortalecer a cultura material e imaterial do povo Kariri-Xocó. O Sabuká é um destes grupos que, desde 1995, se movimenta por gestos políticos, educativos e artísticos na busca por fortalecer a cultura e instituir narrativas e encontros com parentes indígenas e companheiros/as não indígenas. Destes encontros, emantam possibilidades de alianças entre instituições, estudantes, professores/as, pesquisadores/as e artistas que encontram na troca de conhecimentos entre educação indígena intercultural e educação não-indígena, aldeia e universidade, política e encontros pela arte. Vínculos duradouros que colocam os conhecimentos do povo Kariri-xocó no movimento do pensamento contemporâneo e não como material a ser lapidado e interpretado para o meio acadêmico.

Entre 2014 e 2019, foi desenvolvido o projeto ‘Toré, encontros com o povo Kariri-Xocó’, financiado pelo programa de extensão da Unicamp e coordenado por (autoria suprimida). Durante esses anos foram promovidos encontros de experimentação que envolviam a fotografia, desenho, cerâmica e compartilhamento de narrativas (Narita, 2016; Narita; Wunder, 2018; Oliveira; Wunder, 2017; Wunder, 2019), um conjunto de práticas de encontro e criação coletiva em movimentos que se faziam entre professores/as, estudantes, artistas e integrantes do grupo Sabuká.

Tim Ingold é antropólogo e professor da Universidade de Aberdeen, e nos provoca um olhar outro sobre a pesquisa com povos indígenas. Seus movimentos de escrita buscam a possibilidade de reafirmação da diferença no encontro com narrativas e conhecimentos. No livro ‘Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição’ (2015), desenhos e traços nos permitem refletir sobre a peregrinação e transporte - e nos lançam no movimento com essas duas palavras em experimentações com povos indígenas. Transporte é constituído por rotas que iniciam de um ponto de partida A até um ponto de chegada B pré-definido. É verdade que muitas rotas são possíveis, mas ainda se moldam a partir de um itinerário que visa chegar de A para B. A peregrinação é o conjunto de movimentos sem destino pré-definido: o próprio processo de movimentar-se que lhe constitui. A pesquisa na qual nos entrelaçamos não é exatamente – ou somente – o narrar, mas também a sensação que se dá na experimentação do traço desenhado, fotografado, escrito ou performado. De modo que artefatos e produções surjam desse processo, entretanto não são objetivos constituídos de processos artísticos com decalque, operam pelas forças, intensidades e trajetos. Das intensidades do encontro com o grupo Sabuká, foi criado o livro ‘Mundo das Plantas Kariri-Xocó; ensaios poéticos e visuais’ (Kariri-xocó; Fabulografias, 2020), uma obra de experimentação imagética e de ensaios poéticos. Uma obra coletiva realizada partir de imagens e narrativas orais entre o grupo Sabuká Kariri-Xocó e o coletivo Fabulografias, formado por pesquisadoras e estudantes do grupo de pesquisa HumorAquoso. Cantos e danças e narrativas da cumplicidade do povo Kariri-Xocó com o mundo vegetal são compartilhados nesta obra. Justamente por buscar o encontro com a diferença, não hierarquização dos saberes e uma experiência de criação de narrativas não cristalizadas no tempo, o livro se emaranha no fluxo vital da vida (Ingold, 2012) e o mantém em um processo infindável de transmutação. Poderíamos pensar nesta publicação a partir da ideia de livro vivo, como nos convida a pensar o pajé Agostinho Iki Muru do povo Huni Kuin:

 

O livro vivo não é para acabar nunca. E por que livro vivo? Porque a natureza está viva, e as ervas que se transformaram estão vivas, e os pesquisadores estão vivos e os autores deste livro estão vivos, e tiveram a experiência de fazer essa documentação. O livro vivo também é o parque onde mora nosso povo ancestral, que são as famílias de ervas que se transformaram (Ika Muru, 2012, p. 07).

 

Desenho de uma pessoa

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

Imagem 3: Criação de Pawana Crodi Kariri-Xocó sobre foto de Marli Wunder (Sabuká Kariri-Xocó & Fabulografias, 2021, p. 47). Disponivel em: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/livros-principal/o-mundo-das-plantas-kariri-xoco/

 

“É a arte e a imaginação dando forma a nossa realidade” (Kariri-xocó; Fabulografias, 2021, p. 8). Esta frase faz parte do início da trilha das experimentações do livro. Pawanã Crody Kariri-Xocó, cacique-pajé do grupo Sabuká, deixa-nos uma dimensão muito importante da experimentação artística que se pauta na não hierarquização dos saberes e reconhecimento das diferenças nesse processo. Nos mobilizamos em pesquisas que, no processo de experimentação do sensível, rompam formas e vaze afetos, potências em que a educação pela imagem se mostre uma demarcação política, estética, diversa, fabulatória, criativa, igualitária e imaginativa. O propósito não é uma descrição da diferença, ou tradução, mas a associação livre e selvagem das imagens nos movimentos do pensamento presente. Bruce Albert, ao comentar o transe xamânico yanomami, como um processo de fazer advir ao mundo sensível-visível os seres-imagens primordiais, aponta a não-mimesis e a não-representação como parte da diplomacia entre-mundos, mas sim a transdução (Kopenawa; Albert, 2023). Transdução tem muitos significados, é um conceito rizomático e interdisciplinar, mas quando pensamos o “tornar-se-imagem” ou a criação visual com povos indígenas, advém um interessante processo biológico: transdução bacteriana. Esse processo é conhecido por ser um dos meios de reprodução assexuada que permite bactérias adquirirem variabilidade genética. No mundo micro, a morte de bactérias pode deixar rastros, fragmentos de material genético no ambiente, de modo que outras bactérias podem absorvê-los por meio de vírus, chamado bacteriófago. A aliança de bactérias e vírus permite um tornar-se outro no encontro com rastros de outras. Sentimos que a criação visual dos processos de pesquisa que nos propomos e residências artísticas com comunidades indígenas, atua pelo movimento de transdução e não tradução. As imagens, visualidades e experimentações deixam rastros de afetamentos, rastros de multiplicidades e diferenças que se colocam no jogo de incorporação mútua e afetiva do outro (humano ou outras formas de vida). Nesse movimento de reprodução do pensamento, vamos nos constituindo por visualidades outras que não residem em territórios estriados, mas no entre-mundos que constantemente advém do invisível ao visível, do ruido ao audível, do mundo inanimado ao mundo animado… linhas de fuga ao mundo sensível.

 

Desenho de um animal

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Imagem 4: Desenho realizado em composição com fotografia e nanquim no encontro com o povo Kariri-Xocó. Autoria própria (autoria suprimida)

 

O livro ‘Mundo das Plantas Kariri-Xocó’ segue vivo e germinando. De certo modo, sementes do ‘estar no mundo’ Kariri-Xocó têm germinado em diferentes solos. Entre 2020 e 2022, desenvolvemos mais um processo de pesquisa-experimentação, dessa vez voltada aos processos inventivos entre escrita, desenho e conhecimentos kariri-xocó (autoria suprimida, 2022). Não é novidade que esse tempo demandou outras formas possíveis de experimentações coletivas, todo processo se embrenhou pela solidão acompanhada (Deleuze; Guattari, 1997). O grupo Sabuká, representado pelo Pawanã Crody Kariri-Xocó, nos provocou em retomar aquela dimensão da arte e imaginação que dá potência à realidade, anos de parceria são rastros da vida vivida e compartilhada, de modo que essa pesquisa se deu pela fabulação na zona de vizinhança (Deleuze; Guattari, 1997) entre o pesquisador e os integrantes do grupo Sabuká. Plântulas enraizaram traços e rabiscos, retomaram peles de floresta (Kopenawa; Albert, 2015) no constante geotropismo e heliotropismo, serpenteiam fissuras da experimentação e ficção por meio de narrativas em história em quadrinhos.

Imagem em preto e branco de capacete

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Imagem 5: Desenho realizado em composição com nanquim no encontro com o povo Kariri-Xocó. Autoria própria (autoria suprimida)

 

Há dois movimentos conceituais, vias de processo de pesquisa, que foram apresentados na diferença com os Kariri-Xocó e que germinaram na constância de traçar e fabular experimentações visuais. A retomada foi oferecida como uma palavra disparadora para pensar a pesquisa. Provocou a pensar e vivenciar a pesquisa como retomada de gestos criativos, linguagens, conceitos e performances de um corpo-pesquisador aberto às forças ancestrais, humanas e não-humanas. Um intenso processo de reanimar, redesenhar, reescrever, reencontrar e re-conceituar a pesquisa. Uma via que não se propõe apenas em voltar a ocupar territórios saqueados, mas também retomar constantemente a existência e afetos que potencializam a pesquisa; ou até mesmo, recuperar a capacidade de encantar-se ou assombrar-se por ela.

A jiboia (Boa constrictor) se encontra na multiplicidade da pintura da jiboia, geralmente feita no braço ou antebraço pelos indígenas do povo Kariri-xocó. O braço-jiboia rasteja ao quintal, onde se embrenha entre o folhiço. Camufla-se. A língua acaricia o ar, captando tudo que se disponibiliza a ela. Por meio deste sentido, múltiplas entradas de múltiplas saídas são possíveis. Suja, mergulhada na lama e folha, segue serpenteando pelo próprio processo de busca e pesquisa. Pesquisa peregrina. Pesquisa jiboia. Experimentação do grafismo junto com e a partir dos traços Kariri-Xocó:

 

Não se dá na representação de seres não-humanos, mas sim pelo tracejar das linhas e contornos que os diferenciam, uma performance que enaltece a diferença como potência do encontro e não como embate - quase antagônico ao ideal de contraste da sociedade ocidental que determina a separação entre a animalidade e a humanidade; natureza e cultura. São enigmáticas imagens que ofuscam a perspectiva da representação, apesar de representarem visualidades. Foi na experimentação do grafismo, deslocando-o entre a representação e não-representação, que sua estética do contraste protestou por retomadas de encontros que enaltecem o respeito à diferença… (autoria suprimida; Kariri-Xocó, 2024, p.19).

 

O grafismo-da-jiboia realizou uma constrição e a retomada desfibrila a potência imaginativa e criativa da experimentação, enquanto investigação. A pesquisa e a docência passaram a performar processos abertos e disponíveis aos movimentos que lhe aparecem. A segunda é o processo de seguir o fluxo, boiar em mar aberto e seguir as correntes marítimas, passivamente. Já a primeira, concentra-se em experimentar múltiplas sensações que se apresentam, independente da origem teórica ou não. A jiboia se abre aos sabores e estímulos e, em uma experiência sinestésica, processa aquilo em uma ebulição de afetos, deixa ser afetada e afeta. Assim, há algo que cintila uma peregrinação entre criações visuais com povos indígenas já existentes e a chama de outras que estão por vir.

 

Aerar escritas: rastros do encontro Kiriri do Acré

 

Também às margens do Rio São Francisco está o povo Kiriri, desde a região oeste da Bahia. No ano de 2017, da aldeia Kiriri localizada no município de Muquém do São Francisco (BA) partem algumas famílias em direção a uma terra localizada no bairro Rio Verde em Caldas (MG). Este processo migratório foi impulsionado por questões climáticas e alterações ambientais devido à transposição e construção de barragens ao longo do Rio São Francisco. Tais fatores os levaram a uma busca por terras com melhores condições para dar continuidade aos seus modos de vida. Assim, foi às margens do Rio Verde em Caldas (MG) que algumas famílias deste povo ganharam um novo nome e lugar: Kiriri do Rio Verde, em português, ou então, Kiriri do Acré na língua tupi-guarani. Tempos depois, com o reconhecimento legal da terra enquanto uma Terra Indígena, chegou o nome completo: Aldeia Ibiramã Kiriri do Acré, a terra da fartura. 

A Aldeia Ibiramã Kiriri do Acré já estabelece relações de parceria em projetos de pesquisas e extensão com a Faculdade de Educação da Unicamp desde 2019. No ano de 2022, a escola da Aldeia Ibiramã se tornou uma escola indígena independente, passando por um processo de autonomização e construção do currículo diferenciado. Foi neste momento que o projeto de extensão ‘Ciclos de oficinas de criação: entre palavras e imagens e sons com a aldeia Ibiramã Kiriri do Acré’ ganhou um sentido maior junto à comunidade, pois pode trabalhar para a produção de um segundo livro para a escola da aldeia. O projeto de extensão que se desdobrou na produção coletiva do livro foi a possibilidade de vivenciar um espaço de experimentação aberto aos saberes Kiriri do Acré. Uma pergunta se apresentava: o que pode a cosmologia encantada dos Kiriri provocar para composições éticas e estéticas com a vida numa pesquisa em educação?

Há algum tempo, uma certa força-água passou a atravessar e movimentar desejos de pesquisa. Às vezes dava maresia. Dizem uns que é marujada, mas pode ser chamada também de força-rio. A pesquisa vai nos possibilitando conhecer e aprender devagar. Plantas ajudam nos processos: cajueiros e cupuaçus alegram as passagens. Mamoeiros, vitalidade pujante. Urucuns cantam a força das avós e Espadas de Santa Bárbara abrem caminhos para quando de morada da paz. Lágrimas de Nossa Senhora carregam o fogo que protege e sonham na gente mundos que cruzam e convivem. Arruda abre a magia floresteira encantada. Boldos, tapetes onde nos deitamos para sonhar. Encantamentos de beira, de folha.

 

Padrão do plano de fundo

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Imagem 6: montagem a partir de fotografia das oficinas de criação com imagens na Aldeia Ibiramã Kiriri do Acré (MG). Autoria própria (Autoria Suprimida)

 

Trazemos aqui rastros de uma pesquisa, em boa medida, imageada entre águas, cantos, plantas e povos indígenas. A escolha pelo uso do verbo imagear, presente na obra de Denise Ferreira da Silva (2019), vem para pensar como os seres podem produzir imagens uns nos e com os outros num mundo implicado, ao invés da lógica ocidental de um mundo ordenado que separa os organismos em unidades. Pesquisa-se num mundo implicado com Yanomamis e Kiriris, Guaranis e Baniwas, num percurso que levou à escrita coletiva de saberes Kiriri do Acré durante a confecção do livro ‘Cantos e encantos de curas e de conhecimentos Kiriri do Acré’ (Santos; Nascimento, 2024).

Uma experiência de escrita que cruza mundos e ativa imagens-floresta que não se veem com olhos abertos de ver. Chovem no sonho e arranham as paredes do mundo colonial anunciado imagens-força-floresta que surgem desde o encontro com o outro na partilha da palavra, na vivência de um tempo, num chão de aldeia. É preciso ciência para começar a ver, ensinam os Kiriri do Acré. E começar a ver é desver um mundo. Mistério de chão, que abre. Um encontro palavra-tempo que racha o tecido moderno da memória para reflorestar as beiras da vida que se cria junto.

Os Kiriri do Acré lançam desafios para se fazer e pensar uma pesquisa junto a eles. Em cada oficina de desenho e colagem do projeto de extensão e durante as escritas conjuntas do livro, nos apresentam um chão a ser pisado, cantado e dançado, inventado. No curso da pesquisa, nos desafiam a afinar uma escuta-chão, uma escuta-folha, uma escuta-ar. Escuta ancestral: o que pode uma escrita soprada, movimentada e cruzada com encantados numa terra indígena?

Uma encantaria Kiriri do Acré chega aos poucos ao longo do processo de cantar, contar e escrever a respeito de saberes de cantos, de rios e de jurema – e aqui pedimos licença para trazer alguns nomes daqueles e daquelas que se assentam e fazem morada nas páginas do livro: Chefe das Matas, Mãe D’Água, Mestre Cobra Coral, Cacique Dono da Mata, Martim Pescador, Baboremeira, Cabôco Índio, Cabôco de Pena, Pena Branca, Pena Verde, Chaminé, Boi Tapuia, Cabôca Paulinha, Jurema, Jupira e Jandira. Pajé Ajuanã, que trabalhou ativamente na produção do livro, diz que são cabôcos e cabôcas soprando, ao pé do ouvido, cantos, palavras e histórias a se escrever. Uma escrita que vem pelo ar contando histórias de um povo que canta para contar e conta para de novo cantar. Cantam com araras, acauãs e passarinhos, cantam porque não se conta sem o canto. O Pajé diz: “O passarinho canta, as araras cantam e nós cantamos também [...]. Aprendemos com os passarinhos e com as araras a cantar” (Santos; Nascimento, 2024, p.43).

Enquanto cantam e contam, escutamos e escrevemos. Assim vamos nos entrelaçando. Enredamos com suas palavras, histórias e saberes. Tramamos algo outro entre a gente. De volta para casa passamos dias lendo e relendo os escritos para escutar do texto uma voz que diga algo por si. Trata-se de não colocar palavras na boca do texto, e sim de escutar dele uma voz, uma voz de sopro encantado, um sopro das avós e avôs que vivem por aí à beira-rio, à beira-folha ou na dobra de um vento. Voltamos para aldeia e lemos as escritas da semana. Palavras mudam, outras chegam, novos cantos, novos contos. Buscamos encontrar o som de um texto que ecoe o trançar de vidas Kiriri do Acré.

 

Desenho de um homem

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Imagem 7: colagem para as oficinas de criação com imagens na Aldeia Ibiramã Kiriri do Acré (MG). Autoria própria (Autoria suprimida).

 

Com o povo Kiriri do Acré aprendemos que fazer pesquisa e ciência é cultivar laços e afetos. É estabelecer conexão com seres, espaços e tempos, é aos poucos ir tecendo relações, amizades e confianças. Fazia parte das visitas na aldeia acontecimentos singulares: brincar uma tarde toda com as crianças, jogar ping-pong com estudantes e professores/as, tomar café na varanda com Alzira[2] e escutar seus sonhos numa noite na biblioteca. Sonhos que traziam, por exemplo, a responsabilidade de se cumprir o compromisso com a Roda de São Gonçalo: “eu, como sonho, já sei. Por isso, preciso ensinar”[3]. Aprender como o sonho está presente no modo de coletivizar um povo e construir seus processos de aprendizagem. Escutar também seus relatos de mordida de cobra, de cura com as ervas, de conversa com a morte e de fé em seus encantados. “A fé nasce do coração e se mantém no pensamento. Tem que manter o coração bom pra manter a fé”[4]. Alzira é uma dessas tantas avós do mundo, seus remédios curam com o mistério cósmico que carrega sua fala encantada.

Fazer pesquisa em educação junto com uma comunidade indígena a compor fotografias, desenhos, colagens e um livro é colocar o corpo com o mundo e ativar a possibilidade de inventar vida com outras vidas, de abrir as asas e descobrir araras que voam junto. Ali, experimentamos uma escrita que nos colocou no movimento de experimentar um dizer que é também um viver. A palavra não se separou do chão e nem da trajetória de vida deste povo. Não se fez sem o canto, sem o riso, sem o corpo. Dizer para que saberes chegassem em um livro, era também trazer seus modos de viver que não se separam da vida na aldeia. Um livro que acontece como aldeia, tecido de palavra gregária carregada de muitos. Talvez isso aproxime o fazer pesquisa em educação com um povo indígena de um fazer literário ou da literatura mesma. Mas, afinal, “o que é literatura?” pergunta Carola Saavedra (2021, p.42). A partir de uma relação da literatura com povos indígenas, ela responde:

Costumamos associá-la a palavra escrita como se fosse a única possibilidade. Gosto de imaginar que literatura é toda linguagem metafórica, toda linguagem simbólica: nosso corpo, uma árvore, um sonho, todo gesto de interpretação a partir deles é literatura. Um corpo que dança é literatura, a adivinhação do formato de uma nuvem. O filho que cresce no útero pode ser literatura. A voz que já não sai da garganta de um homem, uma planta que perdeu as flores, um rio, um vulcão (Saavedra, 2021, p.42).

Quando a autora se aproxima de questionar o que vem a ser uma literatura especificamente indígena, faz isso trazendo uma fala de Ailton Krenak: “Eu acredito que há uma literatura que emerge de cada cosmovisão”. E segue: “Ela (a literatura indígena) não tem uma caligrafia, ela tem uma coreografia, ela dança” (Saavedra, 2021, p.42). Saavedra segue dizendo e apostando numa literatura que incorpora a oralidade, a fala dos ancestrais, o saber da própria cultura; um saber que passa pela dança, pelos sonhos. Por isso mesmo, uma literatura que não está presa ao livro, à sua tradição, mas que dialoga com o corpo, com os outros seres que povoam e fazem a terra. Uma literatura que se escreve de um modo menos fincado no “eu”.

 

Planta com folhas verdes

Descrição gerada automaticamente

Imagem 8: experimentação fotográfica a partir dos encontros com o povo Kiriri do Acré (MG). Autoria própria (Autoria suprimida).

 

Essa experiência de uma escrita trançada com palavras sopradas por encantados nos espaços escolares da aldeia Kiriri do Acré é pensada na pesquisa enquanto uma escrita-ar. Escrita-ar porque palavras se inscrevem nos corpos com um sopro encantado ancestral. Escrita-ar porque cruza os tempos e corpos de quem fala e escreve. Escrita-ar são saberes inscritos nas folhas de plantas que os Kiriri do Acré sabem ler, mas que também se fazem inscrever, por instantes, nas folhas de papel. Folhas como lugar de encontro é vida que brilha, memória que irrompe, corpo que vibra. Inscrever na folha a palavra que vibra uma vida: escritar. Escritar como verbo de um escrever atravessado, implicado, menos agarrado a si mesmo e que permite aludir ao transitório. Escritar como ação do escrever que cruza os seres e produz uma textualidade que permite um entrelaçamento polifônico das vidas. Cruzar que faz do escrever um escritar, uma contra-imagem da escrita que representa e finda o mundo para lançar a escrita numa criação de mundos inacabados a conviver, onde fulgura o passageiro, a invenção incessante, a abertura para textos e texturas que virão, a vida que emerge, insiste e diz bem ali onde o sujeito se apaga. Escritar na pesquisa em educação como modo de criar frestas para uma vida que deseja. Desse modo, perguntamos: que mundos abrimos com nossas pesquisas? Que vidas elas colocam para com-viver?

Dentre as práticas rituais Kiriri do Acré está a ‘Ciência’, um ritual fechado ao povo da aldeia, mas que esteve presente no livro na forma de relatos e cantos. Como são falantes do português, entende-se que utilizar a palavra ciência para denominar este ritual é um modo de requisitarem sua etnicidade frente a uma sociedade que deslegitima seus saberes. Geram, por contraste, uma distinção da ciência moderna ocidental (Nascimento, 2005). É por essa ciência que a cosmopolítica Kiriri do Acré aflora, pois ali solicitam permissões e negociam com outros seres (humanos, não-humanos, outros-que-humanos) presentes no domínio onde vivem. Sua ciência gera, portanto, modos de educar para uma relação de conexão com os seres com quem compartilham o espaço. É no educar-se junto a esses seres que podem a habitar a mata onde vivem. Portanto, os Kiriri do Acré não fazem ciência sem floresta, não separam natureza e cultura, não se vive separado do mundo. No terreiro da aldeia Kiriri, a ciência é encantada e dança, canta, brinca e lembra.

A ciência Kiriri do Acré traz intrinsecamente uma ética de composição de vida com os seres. Assim, é na escrita do livro, que marca nossa relação, que os Kiriri do Acré convidam a pensar e experimentar texturas para um texto vivo. Uma textura que dê vida, entranhada e emaranhada, com outros seres. Os Kiriri do Acré não estão na linearidade das coisas, eles implodem a linha histórica para manter vivo um modo narrativo que faça circular presente, passado e futuro na composição e atualização de uma realidade. Narrar ganha essa dimensão de manter vivo o vivo da vida. Um vivo que costura, tece enquanto acontece.

Para seguir pensando nas vozes que animam o escrever de uma pesquisa que se entrelaça entre educação, imagens, palavras e comunidades indígenas, seguimos também com o que diz Carola Saavedra (2021, p.20):

 

Há tempos penso nas possibilidades da escrita, de uma literatura deslocada do sujeito, onde tudo tem voz: o rio, a chuva, a floresta, o trovão e até as capivaras. Uma escrita mais próxima do sonho, do transe, da alucinação, do que (ainda) não sabemos que sabemos. Não um livro que escrevemos, mas um livro que nos escreve.

Com as palavras de Saavedra (2021) e das pesquisas de Maria Inês de Almeida (2009) com experiências literárias em terras indígenas, perguntamos: quantos suportes textuais se apresentam – e podem ainda se apresentar – numa aldeia, num corpo, no encontro? Desejamos, assim, que essa fala Kiriri ecoe como modo de afinar escutas sensíveis as vidas que nos rodeiam: “Se a biblioteca fosse uma árvore, seria onde a gente ia se reunir e se expressar para contar nossos acontecimentos. Isso na visão da mata” (Santos; Nascimento, p.78). Na visão da mata, escutar as plantas e compor com imagens e palavras visões de magia floresteira ancestral.

 

Uma imagem contendo réptil, animal, pessoa, em pé

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Imagem 9: experimentação fotográfica a partir dos encontros com o povo Kiriri do Acré (MG). Autoria própria (Autoria suprimida).

 

Pouso: brisas do afeto


           
Impregnados de devires, atentos e à espreita em experimentar traços com rastros dos encontros, deixamos o sobrevoo para uma rasante no entre-mundos das multiplicidades e afetos. A dimensão de encontrar nos seres não-humanos forças e potências para composições com a vida, é uma educação que os Kiriri do Acré e Kariri-Xocó instauram com seus modos de estar no mundo. A criação visual com imagens e palavras pela jornada peregrina nas florestas dos dissensos e alianças - enquanto potência da diferença - tem instigado a experimentar incorporações mútuas entre sabedorias de plantas, animais, minerais, elementais. Modos que criam fagulhas na germinação narrativa de forma rizomática.

Densas fumaças brancas, dançarinas, serpenteiam no ar e acompanham itinerâncias do traço e da palavra, anunciando inspirações e expirações de encantados nebulosos, opacos: fumaças do mistério mediadas pelo pawí. O pawí é um cachimbo Kariri-Xocó, instrumento sagrado responsável por facilitar a comunicação entre-mundos. Sua materialidade é fruto do processo de doação da árvore Angico como forma de ceder sua comunicação natural no processo de tornar-se outro no encontro com rastros de outros: “É como fumar dentro da árvore” (Kariri-Xocó; Fabulografias, 2021, p. 40). Entretanto, a comunicação só é possível se os elementos ar, terra, fogo e água interagirem no fluxo de demandas e trocas: a terra aconselha pela generosidade e resiliência, o fogo pela renovação e ambiguidade, a água aconselha sobre fluidez e amorfia, por fim, o ar em seu desvelo e violência. Sobre o ar, tivemos a oportunidade de percorrer traços da fabulação para compartilhar suas intenções e movimentos dentro da cultura Kariri-Xocó. Em uma conversa, Kaony Tinga Kariri-Xocó diz: “Quando ele [o ar] lhe dá uma topada é para acordar, não é uma coisa para te machucar. Nunca pra lhe tirar a vida, sempre para lhe orientar. Quando como a garça que circula para poder pousar.” (IWAKAMI, 2022, p.56).

Plantas, águas e jiboias, fumaças, ares e sonhos. Um texto plural e atravessado por seres, por “devires que ramificam modos outros de estar no mundo, outras formas de pensar e criar” (IWAKAMI, 2022, p.56): uma textualidade florestal com Kariri-Xocó e Kiriri do Acré. Pesquisas que tateiam modos de encontrar e criar em alianças afetivas, sempre inesperadas, dilatadas no tempo. Gestos que desejam que as palavras e imagens indígenas transmutem nossos pensamentos e modos de estar no mundo. São movimentos de retomada da arte, da vida e das forças a compor pesquisas em educação. Aqui pousamos.

 

REFERÊNCIAS:

 

ALMEIDA, Maria Inês de. Desocidentada: experiência literária em terra indígena. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, 147 p.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia (Vol. 4). São Paulo: Ed. 34, 1997.

SILVA, Denise Ferreira da. A dívida impagável. Casa do povo, São Paulo, 2019. Disponível em: https://acervo.casadopovo.org.br/?interface=busca&busca=denise+ferreira+da+silva

IKA MURU, Agostinho; QUINET, Alexandre. Una Isî Kayawa – O livro da cura Huni Kuin do Povo Huni Kuin do Rio Jordão. Rio de Janeiro: Dante Editora, 2017, 260 p.

INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, v. 18, n. 37, 2012, p. 25-44.

INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015.

IWAKAMI, Victor Hugo da Silva. Bocuyá mará: processos inventivos entre desenho, escrita por meio dos saberes Kariri-Xocó. 2022. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Faculdade de Educação, 2022. Disponível em https://hdl.handle.net/20.500.12733/7508

IWAKAMI, Victor Hugo da Silva; KARIRI-XOCÓ, Sabuká. O grafismo-contraste do povo Kariri-Xocó: Partilha de um mundo das diferenças. ClimaCom – Territórios e povos indígenas, ano 11, n. 26, 2024. Disponível em https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/o-grafismo-contraste/

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. O espírito da floresta. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.

KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

KRENAK, Ailton; CESARINO, Pedro. As alianças afetivas. In Incerteza viva: dias de estudo. Fundação Bienal de São Paulo, 2016, p.169-184. Disponível em https://issuu.com/bienal/docs/32bsp_reader_web

NARITA, Karina Miki. Encontros com o povo Kariri-Xocó: Imagens, narrativas, olhares e sutilezas. 2016. Trabalho de conclusão de curso em Pedagogia - Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 2016.

NARITA, Karina Miki; WUNDER, Alik. Arte, política e ritual do povo Kariri-Xocó: Fotografias e narrativas de encontros com escolas. Rebento, n. 9, 2018, p. 232-253.

NASCIMENTO, Marco Tromboni de Souza. Toré Kiriri: o sagrado e o étnico na reorganização coletiva de um povo. In GRÜNEWALD, Rodrigo de Azeredo. (Org.). Toré: regime encantado do índio do nordeste. Recife: Fundaj, Editora Massanaga, 2005, p.39-70.

OLIVEIRA, Ana Carolina da Silva; WUNDER, Alik. Memórias, saberes e percepções das árvores do povo indígena Kariri Xocó. Anais do 25º Congresso de Iniciação Científica da Unicamp. Galoá, 2017. Disponível em https://proceedings.science/unicamp-pibic/pibic2017/papers/memorias--saberes-e-percepcoesdas-arvores-do-povo-indigena-kariri-xoco

RAMOS, Carliusa Francisca; PANKARU, Roseni Ramos; WUNDER, Alik. (Orgs). Livros dos Saberes Tradicionais do povo Kiriri do Acré. Uk’a Edições, São Paulo, vol.1., 2021, 112p.

RAMOS, Carliusa Francisca; PANKARU, Roseni Ramos; WUNDER, Alik. (Orgs). Livro dos Saberes Tradicionais do povo Kiriri do Acré – Atividades didáticas. Uk’a Edições, São Paulo, vol.2., 2021,

ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1, 2019, 208p.

SAAVEDRA, Carola. O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim. Belo Horizonte: Relicário, 2021, 216p.

KARIRI-XOCÓ, Sabuká; FABULOGRAFIAS. Mundo das plantas Kariri-Xocó: Ensaios poéticos e imagéticos. Campinas: Editor BCCL Unicamp, 2020.

SANTOS, Agenilton Ramos; NASCIMENTO, Rafael Caetano do. (orgs). Cantos e Encantos de curas e de conhecimentos Kiriri do Acré. Caldas, MG: UK’A Editorial, 2024, 108p.

STENGERS, Isabelle. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 69, 2018, p. 442-464. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p442-464

WUNDER, Alik. Superfícies de encontro com o povo indígena Kariri-Xocó: Imagens e o devir-planta. Linha Mestra, v. 13, n. 38, 2019, p. 23-34. https://doi.org/10.34112/1980-9026a2019n38p23-34

 



[1] Professora livre docente na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, Orcid:https://orcid.org/0000-0003-2336-7000, email: alik.wunder@gmail.com

2 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas, orcid: https://orcid.org/ 0000-0002-2248-9092. email: racanascimento@gmail.com

3 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas, orcid: https://orcid.org/ 0000-0002-9909-5243. email: victoriwakami@gmail.com

 

 

[2] Anciã da Aldeia Ibiramã Kiriri do Acré

[3] Registro do caderno de campo do pesquisador.

[4] Registro do caderno de campo do pesquisador.