A palavra como fratura:

investigações sobre o processo de formação docente em Artes Visuais

 

The word as a fracture:

research on the process of teacher training in Visual Arts

 

Elaine Schmidlin[1]

Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (CEART/UDESC)

Jonathan Belusso2

Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (CEART/UDESC)

 

 

 

Resumo

O texto apresenta os resultados parciais de uma pesquisa que tem como foco a análise de trabalhos de conclusão de curso de estudantes de Licenciatura em Artes Visuais pertencentes a uma universidade pública de Santa Catarina. A pesquisa, vinculada ao projeto intitulado [entre práticas] artísticas e pedagógicas CNPq/UDESC, traz um recorte dos trabalhos realizados por acadêmicos durante o período de 2020 e 2021, contexto particularmente importante, uma vez que faz parte dos primeiros anos da Pandemia de COVID-19. A partir do método da cartografia, a escrita reverbera as modulações sensíveis em torno das escolhas do conteúdo dos trabalhos finais de graduação, os quais refletiram, em sua maioria, as problemáticas sociais, políticas e culturais vivenciadas naquele período, especialmente, no que tange a práticas docentes.

Palavras-chave: Licenciatura em Artes Visuais; Cartografia; Pesquisa; Trabalho de Conclusão de Curso; Pandemia de COVID-19.

 

 

Abstract

This article presents the partial results of a research that aims to analyze the final papers of undergraduate students in Visual Arts, who attend a public university in Santa Catarina, Brazil. The research, linked to the project entitled [between] artistic and pedagogical practices of CNPq/UDESC, presents a selection of the papers carried out by academics during the period from 2020 to 2021. This context is particularly important as it is part of the early years of the COVID-19 Pandemic. Based on the cartography method, the writing reverberates the sensitive modulations around the choices of the content of the final papers of undergraduate students, which reflected, for the most part, the social, political, and cultural problems experienced during that period, especially with regard to teaching practices.

Keywords: Bachelor’s Degree in Visual Arts; Cartography; Research; final papers of undergraduate students; COVID-19 Pandemic.

 

 

Palavra como fratura

Este texto traz alguns resultados da investigação que ocorre desde 2018 baseada nos trabalhos de conclusão de curso (TCCs) de estudantes em formação inicial no curso de Licenciatura em Artes Visuais vinculado à Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). A matriz curricular desse curso de graduação, campo desta pesquisa, foi implementada em 2008 em oito (08) fases e está organizada a partir de dois grupos. O primeiro denomina-se fundamentos pedagógicos e é composto por conteúdos do campo metodológico e da prática de ensino, além da prática como componente curricular presente nas disciplinas pedagógicas e de quatro disciplinas de estágios curriculares supervisionados abarcando toda a Educação Básica. O segundo denomina-se conteúdos específicos e está voltado para disciplinas de práticas artísticas, em suas diversas linguagens, direcionadas aos processos artísticos, tradicional e contemporâneo, e outras que focalizam os diversos períodos e estilos artísticos situados nas disciplinas de história da arte e de estética e crítica da arte, sendo estas oferecidas conjuntamente com o curso de Bacharelado em Artes Visuais da mesma instituição. Também complementa a formação, disciplinas de língua brasileira de sinais (Libras) e arte africana e afrodescendente.

Esta pesquisa, que ora se apresenta, articula-se junto ao projeto intitulado [entre práticas] artísticas e pedagógicas CNPq/UDESC, iniciado em agosto de 2021 e coordenado por um dos autores deste texto em parceria com bolsistas da pesquisa de iniciação científica, que apresentou os resultados de 2018 a 2019 com foco na análise de palavras-chave e temas dos trabalhos finais de graduação junto a seminários realizados na UDESC, e também publicou um artigo em periódico nacional intitulado A palavra nômade em uma pesquisa com a formação docente em Artes Visuais.

A metodologia adotada no projeto de pesquisa é a cartografia como uma prática que vai construindo seu percurso não para alcançar metas estabelecidas, mas sim para um caminhar que vai traçando nesse trajeto suas metas, segundo a qual “o trabalho da análise é a um só tempo o de descrever, intervir e criar efeitos-subjetividades” (Passos; Barros, 2012, p. 27). Nos trajetos da pesquisa pelos anos de 2020 e 2021, as metas foram a verificação dos trabalhos de conclusão de curso em torno da análise de palavras, que, em sua fratura, pudesse nos levar a pistas sobre as conexões entre as práticas, tanto artística como pedagógica, presentes nos textos acadêmicos elaborados por quatorze (14) estudantes formados nos anos já mencionados, sendo seis (06) em 2020 e oito (08) em 2021.

Ao escrever este texto, tentamos escutar por meio das palavras impregnadas nos trabalhos finais de graduação, buscando suas fraturas e o que dizem a respeito de uma formação docente em processo inicial, algo como um inesperado encontro com a palavra, com seus silêncios e estranhas pronunciações, que deixam marcas e vacuidades, as quais nos propomos a divagar junto ao que nos diz Larrosa:

 

Escrever, aqui, e pensar não é ordenar as ideias ou dispor as palavras, senão, debruçar-se sobre um poço, tatear as beiradas de um abismo. Tocar temerosa e temerariamente o abismo da linguagem e o abismo do pensamento. E esperar que algo, talvez uma voz que pensa ou um pensamento que fala, responda lá do fundo, desde a escuridão. E escrevê-lo. E pensá-lo. E escrevê-lo (2012, p. 8).

 

Isto é, escrever debruçando-se sobre a linguagem e o pensamento nas escritas dos trabalhos finais de uma graduação que, de certo modo, abre-se ao movimento e às intensidades que atravessam o traçado de uma trajetória em constituição.

 

Fraturas em 2020 e 2021

Estranho modo de escrever que busca escutar as modulações sensíveis em torno do processo de graduação daqueles estudantes formados no contexto da Pandemia de COVID-19, tateando a palavra que irrompe em outros modos de olhar para a formação docente inicial em Artes Visuais. A palavra como fratura nos interessava no sentido de buscar, por entre suas frestas, o que se tornava visível e o que se escondia em sua afirmação ou ausência. Fato é que irrompeu por entre as palavras dos trabalhos finais de graduação, problemáticas sociais, culturais e políticas vividas naquele período, que apresentaram forte influência, tanto direta como indiretamente, na construção dos trabalhos apresentados. De modo geral, no conjunto desses trabalhos, notou-se que houve uma tendência maior para o enfoque de temas e práticas artísticas com menor adensamento da prática pedagógica. Entretanto, o curso prevê, em seu currículo, um eixo pedagógico em disciplinas de práticas e metodologias de ensino e estágios curriculares supervisionados, conforme a determinação das diretrizes nacionais.

Então, pode-se supor que, durante aquele período no Brasil, desde 2019, houve estratégias políticas que provocaram um desencantamento ou uma fratura considerável com a docência como, por exemplo, a existência de uma política de ataque sistemático à educação e ao exercício docente de modo geral, sendo que, de seis (06) trabalhos do ano de 2020, apenas um (01) apresentou a preocupação com a docência, fato problemático para um curso de licenciatura. Ainda, em termos numéricos, no mesmo ano, dois (02) dos seis (06) não apresentaram qualquer preocupação ou enfoque docente, e três (03) trabalhos apresentaram relatos de caso muito passageiros ou tangenciais relacionados à educação ou à atuação docente.

Pode-se dizer, também, que isso é resultante das dificuldades dos estudantes em colocar em palavras suas angústias e desejos em torno da docência vivenciados naquele período. Talvez, a palavra não desse conta de todas essas questões sensíveis a respeito de se tornar professor diante daquele contexto tão desolador. Porém, a construção docente é algo que não se concretiza, pois é apenas um processo que, por conta de circunstâncias especiais, modulou-se, naquele espaço-tempo, em uma negação do exercício docente. Acreditamos, portanto, que a formação docente, por questões que impregnaram o contexto daquela época, contaminaram as escritas dos trabalhos finais.

Por outro lado, o ano de 2021, apesar de não apresentar uma discrepância tão gritante quanto o ano anterior, acabou não sendo muito diferente: dos oito (08) trabalhos respectivos a esse período, três (03) não têm qualquer relação com a docência ou a educação, debatendo e abordando temas e assuntos bastante específicos aos interesses pessoais e artísticos de seus autores(as), sendo que os demais cinco (05) trabalhos apresentados debruçam-se sobre questões relacionadas à educação, porém, com enfoque pouco consistente. Alguns trabalhos, por vezes, concentravam-se em especificidades da docência e, por outro lado, outros relegavam a educação a um papel secundário ou passageiro.

É possível visualizar, na totalidade da pesquisa, alguns padrões e contradições existentes nos trabalhos finais de licenciatura produzidos tanto em 2020 quanto em 2021. Entre os temas dos trabalhos finais dos referidos anos, citam-se as práticas artísticas ligadas ao desenho em livro infantil, estudo de acervos de artistas brasileiros, arte urbana e arte relacional, produção de identidades em contextos digitais, arte e cuidado, processo formativo artístico, símbolos, cores e mandalas, todas as temáticas com pouca ou nenhuma aproximação ao contexto pedagógico. No entanto, outras temáticas como, por exemplo, a pedagogia queer, no ano de 2020, escritas sobre o corpo de uma professora artista, e perspectivas étnico-raciais no ensino de arte, ambas de 2021, apresentaram temas com aproximações evidentes ao campo docente.

Entretanto, é preciso considerar ainda as condições materiais e contextuais presentes quando os trabalhos foram produzidos e apresentados. A pandemia de COVID-19 foi, em diferentes níveis, um evento histórico e social traumático, afetando de maneira mais aguda, sobretudo, indivíduos em situações de vulnerabilidade social e/ou com sérios riscos de saúde por conta de comorbidades, que agravaram ainda mais a situação de contaminação viral e seus efeitos nocivos. Soma-se a isso o isolamento social que se fez necessário ao combate da doença e à mitigação de seu contágio, em que a falta de socialização acabou por provocar, em inúmeras pessoas, sérias consequências emocionais e psicológicas. Cabe ressaltar, também, que tendências históricas e contradições de diferentes questões sociais acabaram por radicalizar e acelerar os processos de crise dentro do contexto pandêmico.

Por conseguinte, estando os graduandos de 2020 e 2021 inseridos nesse cenário, é mais do que justo tratar as problemáticas diagnosticadas de forma razoável e compreensiva, mantendo assim a firmeza e o rigor necessários. Acerca dos aspectos mais problemáticos presentes nos trabalhos desse recorte é possível sintetizá-los nos seguintes tópicos: pouca preocupação com questões da pedagogia; rejeição de normativas na construção e apresentação do trabalho; maior interesse e foco na prática artística; tendência a assumir uma prática pedagógica focada na aprendizagem; falta de recorte na pesquisa e construção do trabalho; escrita autocentrada e, por vezes, solipsista.

Podemos agrupar esses tópicos em três elementos centrais que se relacionam tanto ao contexto social quanto ao processo formativo dos estudantes, sendo: (1) questões técnicas/formativas ou de orientação no processo de construção e escrita do trabalho; (2) falta de desenvolvimento teórico mais abrangente sobre questões gerais das teorias da arte (estética, filosofia, história etc.) e da pedagogia (ou especificamente relacionadas ao ensino e à aprendizagem); (3) falta de compreensão individual e coletiva como professor(a)/estudante em relação ao seu papel social e político dentro da totalidade da universidade e rede de ensino públicas. Talvez, possamos supor que a formação pode ter sido centrada em uma visão de competências e habilidades a serem adquiridas durante o percurso da graduação, que, de certo modo, impactou na necessidade de perceber a formação como compromisso político e crítico a fim de interferir em processos sociais, fato bastante atacado pela política daquele contexto específico. Dias argumenta que:

 

[...] o conceito de formação repousa sobre o pressuposto de um sujeito que deve ser educado em vista de um fim. Desse modo, a formação assume a noção de “dar forma a”, por meio de duas versões: uma que toma a formação como capacitação impregnada da ideia de competências e habilidades adquiridas. A outra versão se refere à conscientização e ao compromisso político, destacando a ideia de que a consciência crítica possibilita que os educadores possam interferir nos processos sociais, podendo desarranjar a ordem que aí está (2012, p. 27).

 

Na questão técnica/formativa relacionada à construção e apresentação dos trabalhos, observamos que, em geral, todos os TCCs de 2020 demonstraram não seguir as diretrizes da ABNT de forma adequada (formatação textual, palavras-chave, resumo, dados, referências etc.), embora a instituição ofereça as normas da ABNT aos estudantes de modo geral. Alguns dos trabalhos, mesmo com certos problemas, apresentaram-se melhor de acordo com as normativas, embora fossem uma minoria, pois, se colocados como exceção, acabam confirmando a regra. Há trabalhos extremamente problemáticos que, sem entrar em pormenores da autoria, considerando-se preservar a identidade dos graduandos, encontram-se entre os que apresentam os maiores problemas: resumos poéticos em vez de escritas de forma clara e objetiva; falta de palavras-chave que dificultam a pesquisa e o acesso posterior; falta de dados básicos sobre o trabalho como banca examinadora, indicação de autoria na capa do trabalho etc.

Para além de uma análise imediata sobre os problemas apresentados, é preciso refletir e perguntar-se, por exemplo, sobre de que forma isso pode estar relacionado a possíveis questões formativas e institucionais da própria universidade envolvendo o currículo do curso de Licenciatura em Artes Visuais, em que se pode supor haver pouco espaço para o desenvolvimento de questões técnicas dos acadêmicos, e/ou que tenha sido insuficiente, talvez, a orientação docente que os graduandos tiveram no processo de elaboração de seus trabalhos. Devido à proporção das problemáticas constatadas, são perguntas pertinentes e importantes a serem debatidas, uma vez que, em 2020, ocorreu a interrupção das aulas por conta da pandemia, as quais só foram retomadas de modo remoto em 2021. Nesse tempo, as orientações dos trabalhos finais também ocorriam de modo on-line, fato que por si só já explica alguns questionamentos relativos a esse tópico.

Na sequência dos tópicos levantados, salvo algumas exceções, fica evidente nos trabalhos analisados uma falta de compreensão ou desenvolvimento acerca de determinadas questões teóricas e práticas sobre o ensino em Artes (e da arte em suas especificidades). A pedagogia, especificamente, e as noções de ensino e aprendizagem expostas nos trabalhos carecem de definições coerentes e embasadas, o que acaba por prejudicar a prática pedagógica e as proposições elaboradas e apresentadas, consolidando-se metodologias pouco efetivas em suas atuações e incoerentes em relação prática/teórica. Isso se confirma com o pouco desenvolvimento teórico quanto a esses temas, aparecendo nas produções de forma passageira ou sincrética, pois, quando colocado em uma prática social, apresentam-se insuficientes diante das contradições enfrentadas, sobressaindo-se, portanto, a prática artística e o discurso poético, mas sem conseguir articular a pedagogia aos objetivos docentes estipulados de forma concreta.

Sem a intenção de privatizar esses problemas e questões expostas, é possível problematizar fundamentalmente como a formação docente oferecida no curso de Licenciatura em Artes Visuais envolve-se diretamente nesse sentido, em que mesmo os estudantes, tendo disciplinas voltadas ao ensino e à aprendizagem e ao desenvolvimento de conhecimentos necessários para a atuação docente, acessando uma diversidade de linhas teóricas e práticas dos professores da instituição relacionadas à arte e educação, mostram-se de modo geral mais alinhados, em termos pedagógicos e educacionais, no que concerne a uma prática pedagógica ligada à adaptabilidade e resolução de problemas de forma autônoma, imediata e cotidiana. Esse fato demonstra uma formação insuficiente sobre questões relacionadas à construção de conhecimentos em arte no âmbito educacional e escolar, expressando um enfoque na aprendizagem, em que o processo educativo centra-se no estudante e suas experiências. Mesmo que alguns dos trabalhos finais demonstrassem uma preocupação acerca do processo educativo de modo crítico, acabaram em suas proposições e atuações rendendo-se a tendências pedagógicas do aprender a aprender, com metodologias ativas voltadas ao desenvolvimento de habilidades e competências.

Devido ao contexto pandêmico já citado, é necessário questionar-se também de que forma a conjuntura presente naquele momento histórico associa-se a essas problemáticas envolvidas, em como o isolamento social e as aulas em formato remoto (o distanciamento físico dos espaços educacionais e da prática social) contribuíram para o avanço dessas perspectivas educacionais e formativas, tanto no espaço universitário quanto no escolar. Registra-se ainda que, desde 2019, houve nas universidades, mesmo antes da pandemia, a intenção de aderir ao sistema híbrido de ensino envolvendo as metodologias ativas, fato que deflagrou muito do que observamos nas leituras dos trabalhos finais. Ressalta-se que, na pandemia, observou-se a desigualdade em torno do acesso à tecnologia por parte da maioria dos estudantes em formação, resultante dos desequilíbrios sociais vivenciados no contexto brasileiro.

Por fim, tratando do último tópico, chegamos à questão da compreensão, individual ou coletiva, de como o estudante/docente em formação posiciona-se em relação ao seu papel social ético/político envolvendo os espaços públicos educacionais. Faz-se importante trazer à tona esta questão por conta de vários dos trabalhos terem um caráter despreocupado e desinteressado acerca da educação de modo geral, como também sobre sua própria proposição ou posicionamento nesse sentido. Um exemplo claro disso pode ser visto nos trabalhos de conclusão de curso do ano de 2020, nos quais, com exceção de apenas um (01) dos seis (06) TCCs, apresenta-se maior preocupação sobre essas questões, posicionando-se de maneira consciente e propositiva. Todos os demais trabalhos têm um enfoque pessoal com discurso de teor bastante intimista; alguns até mesmo assumindo uma postura individualista, em que seus trabalhos voltam-se mais a uma realização pessoal de experiência individual do que a um trabalho de conclusão de curso situado numa graduação de licenciatura em universidade pública. Por causa do grau e da proporção envolvidos nessa questão, é preciso problematizar o que leva os estudantes universitários a rejeitar qualquer compromisso social com o espaço público da universidade, levando a uma falta de retorno não só com a instituição pública como estudante, bem como a falta de socialização dos saberes produzidos na consolidação do trabalho de conclusão de curso, como também em relação à sua própria área de atuação como docente que, em muitos casos, é totalmente negligenciada.

Entretanto, embora seja importante o item mencionado acima, também entendemos que o processo de formação não pode ser reduzido à aquisição de conhecimentos técnico-científicos e à transmissão de conteúdo, que reduzem o conhecimento a um objeto e/ou produto a ser consumido, ou mesmo que venha a solucionar problemas, mas a uma questão ética, estética e política, que deve expressar escolhas, estilos e modos diversos de um(a) professor(a) que não se fecha em uma formação que, pretensamente, pretenda dar forma a um modelo. Como diz Pereira:

 

Vir a ser professor é vir a ser algo que não se vinha sendo, é diferir de si mesmo. E, no caso de ser uma diferença, não é a recorrência a um mesmo, a um modelo ou padrão. Por isso a professoralidade não é, a meu ver, uma identidade: ela é uma diferença produzida no sujeito (2013, p. 35).

 

Sendo uma diferença, não há por que assumi-la em uma única forma, mas compreendê-la em suas variáveis sensíveis e infinitas, que transcorrem por uma multiplicidade de fatores, entre eles, o contexto histórico-social vivenciado naquele momento.

 

Fraturas outras

Portanto, a pesquisa, além de tratar de questões de materialidades emergentes e imediatas relacionadas à graduação de Licenciatura em Artes Visuais, tanto no caráter prático quanto político, estimula também a pensar como as ausências e faltas constatadas podem reverter-se em potencialidades inventivas, levando a pensar quais caminhos são possíveis de serem tomados no intuito de subverter as problemáticas apontadas na pesquisa. Entre elas, como pensar a formação como criação de percursos em meio à diversidade de forças presentes neste contexto? Como, durante a formação, podemos provocar encontros entre a prática artística e pedagógica?

Respostas ainda não encontradas, pois não buscamos a verdade de métodos, mas tentamos escutar as diferenças que passam nas entrelinhas dos trabalhos finais dos graduandos. O que verificamos entre 2020 e 2021 foram forças reativas e reacionárias presentes naqueles contextos, as quais obstruíram devires em torno do pensamento docente. Talvez, necessitamos desformar o instituído e buscar nas forças micropolíticas dos trabalhos finais em suas questões menores como, por exemplo, naqueles em que a prática artística, embora intimista em sua colocação, propusesse uma prática pedagógica em um tempo de espera de dias melhores ainda por vir, ou quando se insurgir contra as normas da ABNT pode nos dar a dimensão do quanto estamos nos distanciando de uma formação que potencialize a criação em todos os seus aspectos.

A arte, mais do que outra área, relaciona-se com o imprevisível, com o acontecimento, e talvez a dureza do pedagógico precise realmente ser desformada de seu território estriado pelas linhas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e suas diretrizes nacionais, as quais engessam as políticas públicas formativas. O acontecimento, para Deleuze, é algo que nos aponta alguma coisa no que acontece, pois “o acontecimento não é o que acontece (acidente), ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera” (2003, p. 152); por isso, é o que deve ser compreendido.

Talvez seja necessário compreender que os trabalhos, em suas fraturas, expõem a complexidade dessa formação e intensificam o desejo de uma ruptura com modos tradicionais de uma docência. Negligenciar a docência pode confirmar a tentativa de outros olhares sobre a mesma, em que a arte, como resistência, contamine o pedagógico desarticulando os discursos instituídos. Portanto, uma pesquisa com a formação docente envolve outros vetores que a compõem. Dias argumenta o seguinte:

 

Com efeito, a pesquisa-intervenção afirma seu caráter desarticulador dos discursos instituídos, inclusive os produzidos como científicos, substituindo a fórmula “conhecer para transformar” por “transformar para conhecer”. Nesse contexto, o tema da invenção na formação de professores, longe de ser um problema institucional, envolve vetores sociais, históricos, políticos, filosóficos, psicológicos, artísticos e culturais que compõem sua produção. Tal tema é analisado no atravessamento entre educação, filosofia, psicologia e arte, buscando pensar a formação de professores como uma experiência complexa (2012, p. 30).

 

Com efeito, algo também escapa nos textos dos trabalhos finais que deixam à mostra uma formação que, talvez, priorize a competência técnica pedagógica e o compromisso político aliados à produção de um ideal docente inalcançável diante de todas as mazelas da escola pública brasileira. Esse modo de pensar a formação a coloca em condição de solucionar todos os problemas, enfatizando e naturalizando a questão do desempenho do(a) professor(a), algo que se pode problematizar até mesmo na análise empreendida por esta pesquisa. Embora a análise dos dados aqui presentes seja relevante para a estruturação dos trabalhos finais de graduação, eles também apontam para uma formação correlata às práticas históricas que as objetivam. Como afirma Dias,

 

Em cada época, o conjunto de práticas forja um singular em que se acredita reconhecer o que se chama de educação, formação, ciência etc. A formação como prática histórica, é material e produz mundos relacionados a outras práticas. As pesquisas referidas habitam o território da escola e da universidade e estão atentas aos atravessamentos entre os múltiplos aspectos e os diferentes usos dessas duas versões de formação (2012, p. 29).

 

Todavia, conforme Dias, podemos pensar a formação pela perspectiva inventiva, em que a formação não se reduz à aquisição de conhecimentos técnico-científicos e à transmissão de conteúdos objetivando mudança comportamental, mas uma formação aberta à potencialidade da criação docente em modos de subjetivação ética, estética e política. Nesses termos, o que vaza nas escritas dos trabalhos são desejos de, talvez, desaprender o instituído, interromper automatismos de ensinar e aprender, para deslocar o que se entende como formação. Nas práticas artísticas, encontram-se os desvios para uma docência inventiva, ainda latente nas escritas dos trabalhos, mas que indicam um processo de intenção de uma invenção de si que percorre os graduandos. Sobre essa questão, Dias comenta que é impossível definir a formação como um repertório de histórias pedagógicas, “com uma essência comum a todas as instituições de ensino, porque a formação [...], não é outra coisa que o movimento infinito de se questionar a si”.

A ideia seria deslocar a formação para um lugar em movimento contínuo que, nas escritas dos graduandos, aparecem como frestas abertas a problemáticas do contexto vivenciado naquele momento em uma escrita que se volta para si. Como argumenta Costa:

 

Escrever é, então, instaurar um pensar consigo mesmo na produção textual, em que a “certeza e a dúvida” sobre o que sou e o que me subjetiva podem funcionar como lampejos, na expressão de Benjamin (1994), no quase infinito movimento de captura e criação de nós mesmos (2019, p. 113).

 

Algo importante, uma vez que revelam os modos como nos afetamos e somos afetados no contexto formativo, trazendo as marcas subjetivas desta formação. Essas se dão no terreno do subjetivo e do poético que é percebido nos trabalhos, trazendo inúmeras perguntas com necessidade de debate e aprofundamento: Como se expressam, nas diferentes produções, questões de ordem docente e proposições poéticas individuais? Como estabelecer uma conversa entre o ato artístico e poético com as demandas educacionais? De que maneira é possível desenvolver um trabalho que seja ao mesmo tempo individual e coletivo? Isto é, intimista, mas que se efetive socialmente? Como organizar inquietações pessoais num projeto propositivo em educação? Como abarcar gestos poéticos em contextos intrinsecamente contraditórios em que a materialidade se impõe às nossas intenções? Estas são algumas das indagações surgidas na pesquisa e que se apresentam como tópicos, ainda, a serem abordados e considerados oportunamente.

 

 

REFERÊNCIAS

 

COSTA, Eduardo Antonio de Pontes. A escrita em atos de pesquisa. In: DIAS, Rosimeri de Oliveira; RODRIGUES, Hediana de Barros Conde (orgs.). Escritas de si: escutas, cartas e formação inventiva de professores entre universidade e escola básica. Rio de Janeiro: Lamparina, 2019.

DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2003.

DIAS, Rosimeri de Oliveira. Deslocamentos na formação de professores: aprendizagem de adultos, experiência e políticas cognitivas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2011.

DIAS, Rosimeri de Oliveira (org.). Formação inventiva de professores. Rio de Janeiro: Lamparina, 2012.

LARROSA, Jorge. Prólogo. In: SKLIAR, Carlos. Experiências com a palavra: notas sobre linguagem e diferença. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2012. p. 7-9.

PASSOS, Eduardo; BARROS, Regina Benevides de. A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da. Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2012.

PEREIRA, Marcos Villela. Estética da professoralidade: um estudo crítico sobre a formação do professor. Santa Maria: Editora UFSM, 2013.

SCHMIDLIN, Elaine; ROSSINSKI, Flávia; LEYSER, Vivian Ellwanger. A palavra nômade em uma pesquisa com a formação docente em Artes Visuais. Revista Apotheke, Florianópolis, v. 8, n. 2, p. 083-097, 2022. Disponível em: https://periodicos.udesc.br/index.php/apotheke/article/view/22300. Acesso em: 03 nov. 2024.



[1] Professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina Brasil (2024).Orcid: https://orcid.org//0000-0002-7478-1781. E-mail: s.elaine@gmail.com

2 Graduando em Licenciatura em Artes Visuais na Universidade do Estado de Santa Catarina Brasil (2024). Orcid: https://orcid.org/0009-0006-1552-6373. E-mail: belussojonathan@gmail.com