Por uma docência em arte pela diferença

For an Art Teaching Through Difference

Por una enseñanza en arte por la diferencia

 

Marilda Oliveira de Oliveira [1]

Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil

Carin Cristina Dahmer [2]

Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil

Cláudia Aparecida dos Santos [3]

Instituto Federal do Paraná, Campus Palmas, PR, Brasil

Francieli Regina Garlet [4]

EMEB Leonel José Vitorino Ribeiro, Indaiatuba, SP, Brasil

Vivien Kelling Cardonetti [5]

Faculdade Antônio Meneghetti, RS, Brasil

 

Resumo

O objetivo deste ensaio é pensar o ensino de arte em espaços educativos formais, como a escola e a universidade. Para levar a termo tal investida, anuncia-se como problemática a seguinte questão: enquanto docentes, de que modo temos criado espaços para encetar uma textualidade e geografia junto ao que habita a multiplicidade viva de uma aula, potencializando a cada vez um corpo-pensamento coletivo que não se sabe antes do encontro? O conceito de ‘docente da diferença’ é, assim, operado neste texto a partir de Sandra Corazza (2013) como uma tentativa em pensar a figura da professora e do professor por outras vias, as quais apostam na criação de um ambiente educacional que afirme a potência da multiplicidade e, consequentemente, da singularidade das e dos estudantes, atentando também para os próprios processos, fragilidades, encantos, encontros e afetos vivenciados em meio a essa complexidade.

Palavras-chave: Ensino de artes visuais; Docente da diferença; Multiplicidade; Singularidade; Filosofias da diferença.

 

Abstract

The aim of this essay is to reflect on the teaching of art in formal educational spaces, such as schools and universities. To achieve this, the following issue is posed as a problem: How have we, as educators, created spaces to initiate a textuality and geography with what inhabits the living multiplicity of a class, thus enhancing a collective thought-body that is not known before the encounter? The concept of ‘educator of difference’ is thus employed in this text, drawing on Sandra Corazza (2013), as an attempt to rethink the figure of the teacher through alternative approaches – approaches that aim to create an educational environment that affirms the power of multiplicity and, in turn, the uniqueness of students, while also being attentive to the processes, vulnerabilities, enchantments, encounters, and affections experienced amidst this complexity.

Keywords: Visual Arts Teaching; Docent of Difference; Multiplicity; Singularity; Philosophies of Difference.

 

Resumen

El objetivo de este ensayo es pensar la enseñanza del arte en espacios educativos formales, como escuelas y universidades. Para llevar a cabo tal embestida, se anuncia como problemática la siguiente pregunta: ¿Cómo hemos operado, como docentes, espacios para iniciar una textualidad y geografía junto a lo que habita la multiplicidad viva de una clase, potenciando cada vez un cuerpo-pensamiento colectivo que no se conoce antes del encuentro? El concepto de ‘docente de la diferencia’ es así operado en este texto basado en Sandra Corazza (2013) como una apuesta por pensar la figura del profesor de otras maneras, maneras que se centren en crear un ambiente educativo que afirme el poder de la multiplicidad y, a su vez, la singularidad de los estudiantes, atendiendo también a sus propios procesos, debilidades, encantos, encuentros y afectos vividos en medio de esta complejidad.

Palabras clave: Enseñanza de artes visuales; Docente de la diferencia; Multiplicidad; Singularidad; Filosofías de la diferencia.

 

A docência que temos experimentado/pensado/apostado no campo das artes visuais, em suas afecções com as filosofias da diferença, assume uma paisagem processual, de regeneração contínua, um estar em obra, em processo de feitura, que não nos permite tomar a docência como acabada, pronta ou constituída por caminhos previsíveis e seguros a trilhar. Trata-se de uma docência como um gesto que se ensaia aos poucos, ao longo de uma vida; como uma prática que se faz no coletivo, junto a um grupo; como um modo de engendrar saberes, em meio à vida.

Apostamos, nesse sentido, em uma docência menor, que se constrói como um gesto minoritário em territórios macro e micropolíticos, buscando fazer corpo com a/o ‘docente da diferença’, aquela/e que “[...] não se identifica, não imita, não estabelece relações formais e molares com algo ou alguém, mas estuda, aprende, ensina, compõe [...]” (Corazza, 2013, p. 119). Uma docência em arte na perspectiva da diferença (Corazza, 2013) entende a professora e o professor como alguém que traduz um conteúdo ao mesmo tempo em que recria o que ensina e, ao ensinar, aprende com as e os estudantes outros modos de fazer docências. Esse movimento tradutório (Corazza, 2013) compreende os conteúdos como algo já criado, mas que só pode ser visto/operado/vivido pela ótica do presente. Assim, os conteúdos não se referem “[...] a sistemas prontos de interpretação; mas desenvolvem experiências, que têm relação com modos de desterritorialização do existente” (Corazza, 2013, p. 213).

Dessa maneira, em nossas experiências educativas, algumas questões se instauram: que elementos são acionados para pensar uma aula de arte, seja ela de artes visuais, teatro, música ou dança? Como elencamos/arranjamos esses elementos que irão compor com a nossa aula? O que injetamos nela como possíveis e o que extraímos dela/criamos com ela, ao final? Como o coletivo envolvido a cada vez potencializa os processos de tradução? Nesses processos tradutórios uma docência da diferença se metamorfoseia na/com/em meio à heterogeneidade dos encontros com seres-coisas-materiais-mundos.

Levando em consideração essas colocações, unimo-nos às/aos docentes pesquisadoras/es artistas que compõem esse dossiê com vistas a conversar sobre os trânsitos que temos encontrado e criado para subverter os modos maiores que regem atualmente a produção de currículos da educação básica no ensino de arte. Além disso, ante tais movimentos, propomo-nos a pensar sobre que desafios temos enfrentado e que espaços de criação temos tramado ‘com’ esses modos maiores de organização, em meio a eles e apesar deles.

Colocamo-nos nessa conversação a partir da problemática que tem movido nossos processos de investigação na docência em artes visuais: enquanto docentes, como temos operado espaços para encetar uma textualidade e geografia junto ao que habita a multiplicidade viva de uma aula, potencializando a cada vez um corpo-pensamento coletivo que não se sabe antes do encontro? Desejamos, assim, nos unir aos textos que compõem esse dossiê, bem como às autoras e aos autores de diversas regiões do Brasil e de outros países, na intenção de gerar conversações capazes de acionar inquietudes que atuem como convites a pensar as práticas pedagógicas, o ensino e a docência, particularmente em contextos educativos do ensino de arte.

 

Uma docência pela diferença em meio aos modos maiores de formação

Nesta seção, buscamos situar o lugar de onde pensamos a docência em arte: desde uma formação e operação menores. Anelice Ribetto (2011), ao torcer conceitualmente o que Deleuze e Guattari (2014) elaboram enquanto língua menor, pensa uma formação que vaza dos preceitos e ideais de uma formação maior e de suas grandes façanhas, ou seja, pensa a formação docente desde “[...] um espaço menor, um espaço de resistência e de desconstrução de um suposto campo maior, o campo da Formação de Professores” (Ribetto, 2011, p. 110). Comungando também com o modo com que Jorge Larrosa pensa a noção de experiência, a autora passa a articular a formação menor como “[...] uma formação que não se sabe antes do encontro” (2011, p. 110), isto é, uma docência que se produz ‘desde a experiência’ – não como experimento, mas como acontecimento.

Pensar a docência desde o menor diz respeito, assim, a pensá-la de modo processual e inacabado, como algo que vai acontecendo em sua experimentação cotidiana, a partir da experiência. Aqui, não entendemos experiência como um mero acúmulo de anos de trabalho ou como “[...] uma prática que desconsidera a teoria em movimento como parte do processo” (Ribetto, 2011, p. 111), mas como a experiência que nos produz ao passo que a experimentamos, ao afirmarmos as forças minoritárias que atravessam as paisagens que nos compõem a cada vez docentes, forças que desviam de um movimento maior de formação docente e de suas unificações e totalizações.

A formação menor concerne à afirmação de um ‘estar juntos’, em uma convivência que nem sempre é harmônica e apartada de conflitos. Em vez disso, encontra, na ambiguidade, na afecção, na contradição e na fricção, a potência do dissenso e a irrupção da diferença, desviando da rota do consenso que visa produzir um comum totalizado. Segundo Silvio Gallo,

 

[...] os processos educativos são múltiplos. nas escolas, estamos no âmbito da multiplicidade. mas, o projeto moderno produziu totalizações, unificações, subjetivações. elas nos embaralham a visão, nos confundem e nos enganam com um projeto único e em modo maior. mas a multiplicidade escapa pelas fendas do projeto maior. os mínimos vazam, brotam aqui e ali. às vezes, são combatidos, são normalizados, são postos de volta aos trilhos do projeto em modo maior. mas também é possível operar processos educativos em modo menor. investir nas diferenças que aí estão, produzir diferenças outras. experimentar alquimias. experimentar misturas. experimentar jeitos próprios. enxergar o mínimo e o efêmero nos processos educativos, fazer zoom neles e dar-lhes destaques [...] e fazer diferenças (Gallo, 2014, p. 30).

 

Apostamos na diferença e nos processos educativos em modo menor, pois “[...] todo mundo é minoritário, potencialmente minoritário, na medida em que se desvia [...] [de um] modelo” (Deleuze, 2010, p. 59). A potência do desvio está em afirmar nossos percursos singulares, sem desconsiderar o que ‘sobra’ e/ou o que é considerado ‘resto’, ‘erro’, ‘pequeneza’ ou ‘fragilidade’ por uma formação maior. Tomamos o desvio como um movimento profícuo para pensar/criar nossos caminhos e entender como chegamos a nos tornar quem somos. Nem sempre conseguimos produzir esses desvios, já que muitas vezes somos capturadas/os; entretanto, interessa-nos pensar sobre como transitamos em meio a processos de formação maiores e menores e sobre como, em meio a esses movimentos, vamos nos produzindo professoras/es.

O conceito de ‘docente da diferença’ é, assim, operado neste texto a partir de Sandra Corazza (2013) como uma aposta em pensar a figura da professora e do professor por outras vias, as quais arriscam-se à criação de um ambiente educacional que afirme a potência da multiplicidade e, por conseguinte, da singularidade das e dos estudantes, atentando também para os próprios processos, fragilidades, encantos, encontros e afetos vivenciados em meio a tal complexidade. Conforme anunciado por Corazza (2013), exercitar a educação como um processo de diferenciação envolve, pelo menos, dois gestos: afirmar a multiplicidade e abrir espaços para as singularidades. A educação, ao ser afirmada como um processo de diferenciação, promove a diferença enquanto acolhe as singularidades, fazendo fugir aos processos maiores que tendem à unificação e à homogeneização. Ou seja, esse fazer fugir implica atentar às forças que estão em jogo a cada vez e que atuam na abertura de espaços que permitem movimentos capazes de arrastar as/os envolvidas/os nesse processo para uma diferenciação sem direção unificada. Implica, portanto, certa escuta ao que, a cada momento, está atuando como esse convite à diferença.

 Abrir espaços para as singularidades, que constitui o segundo gesto, inverte o modo como hoje a educação é, em geral, praticada em seu projeto maior. Nesse caso, seria necessário tomar a educação com mais maleabilidade, de forma que o ensino pudesse se adaptar às necessidades e aos interesses das e dos estudantes, permitindo que cada uma e cada um desenvolva seu próprio caminho educativo e artístico. Em ambas as ações, faz-se necessário alargar as margens do que comumente tem se entendido e operado ‘sobre’ a educação.

Na docência em arte, temos pensado que operar a educação como processo de diferenciação envolve tomar como caminho inevitável a acolhida do que provoca em si mesma/o a deformação dos contornos que lhe foram instituídos, criticando o conceito e a forma, como nos diz Corazza (2008), ou, ainda, “amputando” as estratificações de si para fazer crescer “seu próprio potencial de variação contínua” (Corazza, 2008, p. 91). Desviar da unificação de si e da tentativa de totalizar, permite-nos enquanto docentes de arte, abrir espaços para instigar processos de diferenciação, o que significa dizer que, em vez de impor regras rígidas que tendem à uniformização, podemos instituir, junto ao grupo com o qual atuamos, um ambiente capaz de propiciar a experimentação e a criação. Isso envolve buscar subsídios para que, junto às e aos estudantes, possamos explorar e pôr em conversação ideias e abordagens, colocando-nos também em experimentação/criação/problematização nesse processo, a fim de forjar um espaço onde a conversação e a criação ganhem fôlego e coragem.

Executar tais artifícios e operar dispositivos de desterritorialização figuram na educação como formas de resistência, de criação de outros modos de vida. Entretanto, sabemos que as duas linhas são inseparáveis – a linha de desterritorialização, onde se abandonam e se desfazem mundos e modos; e a de territorialização, onde se criam e instauram outros. Por esse jogo de inflexões, de destituição e de criação frente aos modos maiores, podemos conceber também um modo menor de operação do currículo, engendrando caminhos singulares ao recortar, sobrepor e dar outras formas e contornos de ação.

Munidas/os de ferramentas que tantas e tantos antes de nós nos ajudaram a forjar e de tantas outras que estamos ainda a criar, perguntamos: o que fazer ‘com’ o currículo que temos em mãos? O que podemos criar ‘com’ ele? Podemos cavar buracos e expandi-lo pelas conversações? Esses questionamentos nos fazem vislumbrar algumas proposições na direção de um currículo flexível e permeável, tanto na formação de professoras/es em âmbito universitário quanto na educação básica; um currículo que abrace uma multiplicidade de perspectivas para pensar a pluralidade de experiências (estilos, técnicas, abordagens teórico/práticas, etc.), já que promover a experiência é encorajar as e os estudantes a desenvolverem suas próprias perspectivas e estilos, respeitando e valorizando a singularidade e animando seu desejo e sua curiosidade.

Todavia, não sejamos ingênuas/os: sabemos que implementar tal perspectiva de currículo e de ‘docente da diferença’ nas nossas disciplinas, sejam escolares ou acadêmicas, não é algo simples, pois certamente haverá resistência por parte de estruturas educacionais tradicionais que valorizam a uniformidade, a padronização e a praticidade da norma que regra e pune aquelas/es que não se enquadram. Assim, ao vasculhar suas linhas e colunas, intentamos reconhecer/encontrar/criar novas passagens.

 

Entre asperezas e possibilidades de re-existência

As linhas que se inscrevem neste texto, que pensa a arte, a educação e a docência como meios de viar a criação de novos e infinitos mundos, atentam-se às complexas tecituras e aos arranjos que nos trazem até aqui. E, não nos referimos a isso de forma ingênua ou de modo a tornar edulcorados os complexos processos educacionais e formativos em que se constituem os sujeitos; na contramão, perspectivamos a potência criadora que se erige desse encontro, convidando a rever os modos de pensar/fazer a educação e o ensino de arte.

Os desafios com os quais temos lidado elencam algumas asperezas no campo educativo e histórico das artes. De modo a tratar de um tato sutil, entre o que acontece durante uma aula ou uma pesquisa, diante daquilo que é capaz de bloquear ou então de produzir recuos e/ou criações, entendemos que essas asperezas que emergem e se evidenciam em um encontro com as e os estudantes podem se apresentar como uma pausa na docência. Nessa pausa, que vai requerer um direcionamento do nosso olhar, podemos seguir conforme nosso planejamento, previamente estabelecido, ou, então, podemos atentar para o que nela nos convida a um percurso diferente. Uma docência pela diferença pode emergir nessas escolhas cotidianas, quando rearranjamos e/ou esburacamos as estruturas da educação que herdamos de outros tempos e espaços, em uma tradução que a faz viver de outros modos no presente.

Os modos maiores, as estruturas e as heranças que compõem a docência em arte se sustentam de diversas formas. Historicamente, o ensino de arte se constituiu por avanços e retrocessos, seja na organização curricular, no tempo escolar estabelecido para a disciplina ou na concepção da função exercida pela/o docente de arte, que muitas vezes necessita atuar nas áreas de artes visuais, teatro, música e dança.

Atentamos, assim, para as asperezas que tendem a enrijecer o ensino de arte, no que diz respeito ao seu percurso de consolidação e aos desafios que enfrenta enquanto disciplina, bem como auscultamos, desde dentro dessas asperezas, as suas inquietudes e possibilidades de desvios e diferenças. De maneira afirmativa, buscamos tatear o que podemos fazer ou como podemos lidar com as asperezas que temos encontrado pelo caminho.

Intuímos que, entre as estruturas que nutrem a formação e a atuação docente, há espaço para que o ensino de arte possa ser um “[...] pátio aberto aos encontros entre dessemelhantes, que não pretendem fundir-se numa família de iguais”, para que se possa arranjar a educação com arte como “[...] um aglomerado vazado, de cômodos articulados, de entradas e saídas múltiplas. Uma matéria viva, compartilhando experiências com quem nela circule” (Sequeira, 2010, p. 35). E que, em sua estrutura, outros cômodos e espaços façam composição com a edificação da sala de aula, a fim de que possamos auscultar, desde dentro, suas angústias e sua leveza, criando e aprendendo entre seus muros.

Talvez possamos alargar a inquietude e nos demorarmos um pouco mais naquilo que nos coloca em uma região de não saber, sem nos apressar em encontrar respostas, mas forjando novas perguntas, junto de outras/os docentes, pesquisadoras/es e artistas que têm feito também essa travessia, cada uma/um em sua experimentação singular. Queremos engendrar perguntas e efetuar ações que possam manter a ‘ferida aberta’. Como afirmam João Fiadeiro e Fernanda Eugénio (2012), o encontro é uma ferida aberta, e apostar em um gesto de “[...] suspender o regime da urgência, criando as condições para uma abertura desarmada e responsável à emergência” (Fiadeiro; Eugénio, 2012, p. 67), pode ser uma ação possível para não paralisarmos em meio ao lamento nem nos desresponsabilizarmos com o dar de ombros de um ‘é assim mesmo’ ou ‘sempre foi assim’.

Diante disso, podemos pensar: o que pede passagem e o que podemos em meio às inquietudes que emergem junto das asperezas que encontramos pelos caminhos da docência em arte? Ante as asperezas-heranças que grudam em nosso corpo, enrijecendo nossos movimentos singulares, e ante as asperezas-leis que buscam contornar e estancar os fluxos, o que ainda podemos? Essas perguntas têm nos convidado a afirmar a pausa que as asperezas solicitam, como um outro movimento possível, para “[...] reparar no que se tem, fazer com o que se tem. E, acolher o que emerge como acontecimento” (Fiadeiro; Eugénio, 2012, p. 67).

Não se trata, assim, de negar os caminhos que foram se produzindo até aqui nem de encontrar culpadas/os ou de reforçar o lamento, mas de nos entendermos como parte desse acontecimento. Tal movimento nos coloca em uma posição de envolvimento, de responsabilidade e de implicação no aqui e agora, de forja de outros possíveis ‘com’ o que temos em mãos. Trata-se, nesse sentido, de “[...] reencontrar, naquela matéria simples e quotidiana em relação à qual aprendemos a nos insensibilizar, [...] toda uma multiplicidade de vias contingentes para abrir uma brecha. Uma brecha para a re-existência” (Fiadeiro; Eugénio, 2012, p. 67). Tendo isso em vista, mais um questionamento passa a ser lançado: como nosso campo pode re-existir[i] diante das asperezas e dos encontros, em nossos espaços micro de criação e experimentação?

 

Macropolíticas e modos maiores em operação

No intuito de situar o terreno macro das legislações e dos parâmetros do ensino de arte sob ou em meio ao qual nos movemos, em nossos movimentos micro, seja na escola ou na universidade, valem algumas demarcações. Esta seção se destina, portanto, a dizer dos processos, dos avanços, das conquistas, das inquietudes e dos retrocessos com os quais as asperezas do caminho têm nos convocado a lidar. A intenção aqui é abraçar forças que possam movimentar caminhares ‘com’.

A docência em arte não percorreu um caminho fácil, e sua história foi marcada por conquistas e retrocessos, mas, principalmente, pela necessidade de vigília, pois, em inúmeras ocasiões, a disciplina de arte esteve sob ameaça de ser retirada do currículo escolar. Vamos retomar, brevemente, essa caminhada…

O ensino de arte aparece pela primeira vez na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei n.º 4.024/1961, quando se sugere sua inclusão, de forma ‘não obrigatória’, no ensino primário. O artigo 26, parágrafo único, desse documento determinava que “Os sistemas de ensino [primários] poderão estender a sua duração, ampliando, nos dois últimos anos, os conhecimentos do aluno e iniciando-o em técnicas de artes aplicadas, adequadas ao sexo e à idade”. Vejam que o ensino de arte nasce, nesse período, alinhado ao desenvolvimento de técnicas e manualidades, como uma forma de lazer.

Dez anos mais tarde, o ensino de arte se tornou ‘obrigatório’ na legislação brasileira, por meio da LDB instituída pela Lei n.º 5692/1971, que, em seu artigo sétimo, definiu: “Será obrigatória a inclusão de [...] Educação Artística [...] nos currículos plenos dos estabelecimentos de 1º e 2º graus”. A LDB nomeou a área de arte como educação artística e determinou o ensino de artes plásticas, das artes cênicas e da música como ‘atividade educativa’ e não como uma disciplina. Desse modo, a Lei n.º 5692/1971 também teve forte impacto em nossa recente história e deixou marcas indeléveis, que ainda são perceptíveis no cenário educacional brasileiro.

Concernente à formação de professoras/es, em 1973 são aprovados o Parecer CFE n.º 1.284/73 e a Resolução CFE n.º 23/73, atos normativos que regulamentam o curso de Licenciatura em Educação Artística, definindo que “A licenciatura de 1º grau, de curta duração, proporcionará a habilitação geral de Educação Artística, e a licenciatura plena, além dessa habilitação geral, conduzirá a habilitação específica em Artes Plásticas, Artes Cênicas, Música e Desenho”. Ao longo de aproximadamente três décadas, os cursos superiores de Educação Artística formaram diversas/os professoras/es para atender à educação básica, tanto nos cursos de licenciatura curta quanto nos cursos de licenciatura plena, consolidando o que conhecemos como o ‘ensino polivalente’ das artes, ou seja, um professor que ministra aulas nas quatro linguagens da arte.

A partir do final dos anos 80, inicia-se uma grande mobilização nacional das/os professoras/es de arte em torno da definição da natureza epistemológica do conhecimento em arte. Em 1987, foi criada a Federação de Arte Educadores do Brasil (FAEB), com vistas a lutar pela existência e pela qualificação do ensino de arte no país. No Rio Grande do Sul, na mesma década, foi criada a Associação Gaúcha de Arte Educadores (AGA), que, de modo similar, buscou fortalecer o ensino de arte como um campo de conhecimento epistemológico, mas também metodológico.

Desde então, ampliaram-se, gradualmente, por meio de pesquisas em congressos e encontros nos diversos campos da arte, as críticas à polivalência e ao esvaziamento da prática pedagógica em educação artística. Evidenciam-se a necessidade de recuperar os conhecimentos específicos de cada área artística e a inadequação da denominação ‘educação artística’ – que deveria ser substituída por ‘ensino de arte’, ou melhor, por ensino das artes visuais, da dança, da música e do teatro.

Todos esses movimentos políticos reverberam na década de 90, após a promulgação da Constituição em 1988. Iniciaram-se as discussões sobre a nova LDB – Lei n.º 9.394 –, homologada em 1996, que revoga as disposições anteriores e assegura à disciplina de arte a condição de ‘área de conhecimento no currículo escolar’, reconhecendo a sua importância na formação e no desenvolvimento integral de crianças, jovens e adultos. O ensino de arte passa a ser ‘obrigatório como disciplina’ na educação básica, conforme dispõe o parágrafo segundo do artigo 26 da nova LDB: “O ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”.

Em 1997, são lançados pelo governo federal os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que se configuram como documentos orientadores para a prática pedagógica. Os PCN de arte, referentes aos anos iniciais e anos finais do ensino fundamental, reforçam a especificidade das quatro áreas de conhecimento – artes visuais (mais abrangentes que as artes plásticas), música, teatro e dança (demarcada em sua especificidade) – no currículo das escolas com vistas à formação artística e estética das e dos estudantes (Zordan, 2016).

Os PCN trouxeram perspectivas mais claras com informações acerca das quatro áreas de conhecimento que deveriam compor o ensino da arte nas escolas. A definição mais precisa dessas áreas artísticas é inserida na LDB, primeiramente pela Lei n.º 11.769/2008, que faz referência à obrigatoriedade do ensino de música na educação básica, e, posteriormente, pela Lei n.º 13.278/2016, que inclui as artes visuais, a dança, a música e o teatro nos currículos dos diversos níveis da Educação Básica. Esta altera a LDB de 1996, estabelecendo o prazo de cinco anos para que os sistemas de ensino promovam a formação de professoras/es para implantar esses componentes curriculares na educação infantil, no ensino fundamental e no ensino médio.

É importante destacar que a supressão do termo ‘educação artística’ na LDB de 1996 e em documentos posteriores não levou à extinção da prática polivalente nos sistemas educacionais brasileiros. Tal realidade permanece atualmente em diversos sistemas de educação, que mantêm uma/um professora/professor de arte como responsável por todas as áreas artísticas.

Na contramão dos avanços da legislação atual, que determina a obrigatoriedade das quatro áreas artísticas no currículo da educação básica, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), implementada em 2017 por meio de normativa federal, reforça novamente a ‘institucionalização da polivalência’ no ensino da arte ao afirmar que “[...] cada uma das quatro linguagens artísticas do componente curricular constitui uma unidade temática” (Brasil, 2017, p. 197), descaracterizando a especificidade de cada área de conhecimento no currículo escolar. A simplificação e o esvaziamento dos sentidos do ensino de arte, neste caso, se ligam a um mecanismo que alcança toda a esfera educacional – a desqualificação do processo educativo escolar.

Questões relacionadas à diversidade cultural têm ganhado potência a partir da década de 1980, problematizando a forte presença, muitas vezes impositiva, de uma cultura majoritária na educação. No território do ensino de arte, ainda podemos perceber resquícios de uma visão eurocêntrica, cujos padrões culturais e artísticos hegemônicos permeiam a maioria das imagens de arte que são levadas às escolas. Outro fator preocupante é a abordagem muitas vezes folclorizada e estereotipada de culturas que escapam a um padrão ocidental, europeu. Vivemos no Brasil um cenário multicultural onde os diferentes grupos étnico-raciais não têm usufruído dos mesmos direitos e do mesmo reconhecimento. A evidência de uma diversidade cultural ainda não foi suficiente para diluir padrões hegemônicos que se impõem e se infiltram nas microações cotidianas, invisibilizando as matrizes culturais produtoras da nossa sociedade.

Em termos legais, podemos citar duas conquistas que percorreram trajetórias e contextos diferentes, envolvendo esforços de duas vertentes de luta: o Movimento Negro e o Movimento Indígena. Em um primeiro momento, é sancionada a Lei Federal n.º 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira no âmbito dos sistemas de ensino da educação nacional. Cinco anos depois, a Lei n.º 11.645/2008 passa a incluir também o estudo da história e cultura indígena como obrigatório:

 

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.

§ 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras (Brasil, Lei 11.645/08).

 

Ainda hoje, em que o preconceito e determinados estereótipos culturais permeiam nosso cotidiano, as Leis n.º 10.639/2003 e n.º 11.645/2008 instituem importantes vias para pensarmos como problematizar a partir de conteúdos que nos são inerentes, os estereótipos, e conteúdos racistas e preconceituosos veiculados por manifestações visuais e discursivas que permeiam nosso cotidiano. Precisamos lembrar que materiais pedagógicos e curriculares, muitas vezes, também podem veicular tais discursos.

Subsidiado pela perspectiva da cultura visual, o campo das artes visuais passou a trazer diferentes visualidades para problematizar em sala de aula, colocando distintas perspectivas para conversar, de modo a perceber como passamos a ser produzidos por essas visualidades cotidianas e que efeitos elas tiveram/têm em nossas vidas. As visualidades contribuem, junto aos discursos, para a produção e para a desconstrução de estereótipos e preconceitos, lembrando que o invisível, isto é, aquilo que não está à disposição do olhar, também colabora para a constituição das concepções de mundos.

Outra questão que surge ante a implementação das referidas leis é a seguinte: como não unificar o que é também diverso? O termo ‘indígena’, por exemplo, abarca uma infinidade de singularidades (povos, línguas, costumes e modos de vida). Ao atentarmos à diversidade étnica que existe entre os povos indígenas (correlatas às origens, às tradições, à língua, às memórias e aos costumes), podemos vislumbrar inúmeras especificidades que não podem ser menosprezadas ou reduzidas sob o olhar dedutivo (do maior para o menor, ou seja, de uma premissa geral em direção à outra singular). Portanto, como fazer ressoar em nossas aulas essas vozes, colocando-nos na posição de aprender com elas?

As leis são resultantes de muitas lutas, mas as lutas não acabam quando uma lei é sancionada. Uma lei, por si só, não garante mudanças nem a qualitativa abordagem de um problema. Para isso, são necessárias também ações que potencializem sua aplicação, de modo que as/os envolvidas/os nas experimentações cotidianas possam estar abertas/os e atentas/os às urgências que elas vão suscitando (e produzindo). Apesar das conquistas legais obtidas pelo nosso campo nas últimas décadas, ainda nos deparamos com um quadro controverso quanto a sua efetivação.

Com esse breve histórico, podemos observar que a luta por uma formação consistente em arte não é recente. E, ainda que haja mudanças significativas na legislação, essas mudanças não têm se efetivado ou têm gerado movimentos controversos nas experiências educativas. Por isso, mencionamos que habitar o campo da docência em arte é como pisar em um campo minado: há sempre a ameaça de uma granada pronta a ser acionada.

Em uma história mais recente, vemos na BNCC as especificidades dos conhecimentos das áreas artísticas das artes visuais, da dança, da música e do teatro reduzidas a ‘unidades temáticas’. O mesmo desrespeito em relação ao componente curricular de arte ocorre na BNCC do ensino médio, que dilui a arte na área de Linguagens e suas Tecnologias como uma forma de “[...] consolidar e ampliar as aprendizagens previstas na BNCC de ensino fundamental nos componentes Língua Portuguesa, Arte, Educação Física e Língua Inglesa” (Brasil, 2018, p. 473). O texto define as áreas artísticas, corporais e verbais como objeto de seus diferentes componentes (arte, educação física, língua inglesa e língua portuguesa).

Outra situação recorrente que induz à ideia de polivalência é o fato de o material didático que chega às escolas reunir os quatro componentes curriculares – artes visuais, dança, música e teatro – em um único livro, sugerindo que a/o docente que é formada/o em uma só área específica tenha de trabalhar todos esses conteúdos. A polivalência reverbera também nos editais para concursos públicos, em que uma prova única contém temas das quatro áreas artísticas ou, muitas vezes, prioriza temáticas das artes visuais, mas exige do profissional contratado o trabalho com as quatro áreas de conhecimento: artes visuais, dança, música e teatro.

Essas práticas vão na contramão do texto legal que institui um avanço importante contra o ensino polivalente da arte: a Lei n.º 13.278/16, a qual definiu que a formação de uma/um professora/professor de arte deve se dar em uma das quatro áreas da arte – artes visuais, dança, música ou teatro. O que está posto com essa lei é a compreensão de que, para dar aula de arte com a qualidade almejada na educação básica, a/o professora/professor precisa ter conhecimento e vivência aprofundada nas práticas da arte, como criador, espectador e teórico. Considerando a carga horária dos cursos de licenciatura, é inviável que uma mesma pessoa reúna vivências em áreas tão distintas.

Diferentes leis, movimentos, pensadoras/es e eventos atravessaram o longo percurso do ensino da arte no Brasil e no mundo. Em alguns casos, os rastros deixados foram tão marcantes que acabaram produzindo vincos profundos no ambiente educativo. Contudo, vale pontuar que a escola e a universidade podem ser espaços afirmadores da multiplicidade, importantes na garantia do direito de acesso a distintas formas de conhecer, para além das hegemônicas. É na escola e na universidade, desde dentro de sua multiplicidade, que podemos aprender sobre a potência criadora do dissenso, produzindo fissuras nas totalizações e unificações desse projeto maior (Gallo, 2014), mas isso só ocorre se tivermos espaços fecundos para tal.

É desde o interior das estruturas que os níveis macro das legislações têm se forjado, viabilizando a problematização desses caminhos e criando outros. Ao habitarmos o ‘entre’ que se aloja em meio às legislações, aos parâmetros, às diretrizes e às experiências cotidianas na escola e na universidade, podemos estar atentas/os aos encaixes e desencaixes e ao que se produz (assim como ao que é possível produzir) em meio a eles. Por isso, faz-se necessário estarmos atentas/os às asperezas e ao que nos separa de nossa capacidade de criação, de maneira que possamos, a cada vez que nos depararmos com algo que atue nesse sentido, subverter essas forças, fazendo com que elas se afetem e abram perfurações no cano, “brechas para a re-existência” (Fiadeiro; Eugénio, 2012), pelas quais podemos produzir caminhos outros que potencializem a expansão.

A partir do breve recuo histórico realizado, bem como dos estudos apresentados, vemos que o ensino de arte sustentado por tal racionalidade se organiza a partir de um conjunto de elementos que têm na reprodução seu principal componente. Aprendemos e, por conseguinte, ensinamos de modo fracionado, hierarquizado, dedutivo e mimético para assim formar o humano necessário ao modelo social e econômico vigente (Deligny, 2018).

De fato, a educação delineia os limites do humano, esculpindo-o pelas minúcias de seu tempo. As sociedades construíram seus modos pedagógicos como meios de estabelecer determinados arranjos pela sua forma de pensar a educação enquanto reprodução. Assim, a educação e o ensino constantemente necessitam retornar ao debate para que se criem possibilidades outras para/com a educação. Conforme discutido, em cada momento histórico, há uma estrutura composta de saberes e poderes abrigando a possibilidade de que estes sejam reforçados, mas também de que sejam desconstruídos.

Nossa aposta com este texto, como comentamos desde o início, é integrar as filosofias da diferença na docência em arte, como um posicionamento inventivo que pode modificar a forma como a arte é ensinada e praticada em ambientes educativos, sejam estes escolas ou universidades. As filosofias da diferença, promovidas por pensadores como Nietzsche, Deleuze, Guattari, Foucault, Corazza e Gallo, oferecem uma perspectiva que aposta na multiplicidade e na singularidade.

Integrar as filosofias da diferença na docência em arte pode não só enriquecer a experiência educacional das e dos estudantes, como também fomentar um ambiente mais acolhedor e inovador. É um convite para ver a arte e o ensino de arte através de uma lente que valoriza a multiplicidade, a experimentação e a criação alquímica.

Talvez, o devir-alquimia de Corazza (2013) possa alcançar o que desejamos expressar:

 

Este devir liberta o docente do peso das normas, das obrigações do comportamento social, do sujeito pessoal, de tudo que o estrutura fixamente. Sua natureza (aberta por um vazio, quando a linguagem falta) movimenta-se como um dinamismo e potência, dos quais ele é expressão imanente. Ocupa, assim, um lugar alquímico de criação. Lugar operado pelo impessoal, onde coisas e palavras se trocam. Lugar, nem exterior nem interior, abandonado tanto pela subjetividade como pela objetividade. Lugar, no qual o acontecimento incorporal eclode, abre a região do sentido, opõe-se à incerteza das determinações do verdadeiro e do falso, do bem e do mal. E, assim, de banal, vulgar, lamurioso, o docente, com seus devires, converte-se em índice da mais alta potência: a evidência da singularidade não perecível e insubstituível de uma vida de docência (Corazza, 2013, p.137-138).

 

Pensar a docência como um processo permanente de descobertas, rupturas, apropriações e destituições, em um jogo complexo consigo e com o outro que lhe rodeia, configura ação necessária para uma educação comprometida com a possibilidade de criação de fluxos de pensamento, que afiançam processos sustentados não por repousos, mas por devires. Para isso, é preciso sair da estrutura, abandonar o modo habitual de ser docente e se forçar a ver além da pregnância da forma e da norma, rompendo com as forças que nos aprisionam e nos tornam cativas/os de modos de pensar que não afirmam a vida em sua plenitude. Seria necessário cultivar a liberdade e espreitar pelos vãos do estranhamento aquilo que nos alcança e atravessa, ou seja, desalojar nossos modos mais seguros e a partir dos quais pensamos, organizamos e operamos metodologias e estratégias de ensino.

Trata-se de estranhar como meio de movimentar o exercício de nossas docências, para então provocar luminescências criadoras em meio à educação e à arte. Essa liberdade docente cultivada, com seus devires, é que se converterá, de acordo com Corazza (2013), em ‘índice da mais alta potência’, capaz de movimentar nosso fazer cotidiano em sala de aula.

 

Como modo de irmos concluindo

Como forma de nos encaminharmos para a finalização desta escrita, mas não das inquietudes que nos atravessam, podemos dizer que a perspectiva das filosofias da diferença tem nos convocado a pensar a docência em arte de um modo mais afirmativo de suas potências diante das asperezas que temos encontrado pelo caminho. Queremos pensar no que podemos ‘com’ isso que nos chega e ‘com’ o que temos em mãos.  

Com Deleuze (2006), temos abordado a diferença como potência, cuja tentativa de tematização de uma docência criadora estabelece novas regras a serem inventadas. De um lado, vislumbram-se um horizonte em que se alargam as experiências docentes e seus agires; de outro, se intensifica o imperativo compromisso ético ante essa potência expansiva, exigindo diferenciar o pensamento e a tradução da incorporação dos conteúdos com os quais as/os professoras/es travam contato diuturnamente.

Dispor à docência e àquelas/es que a ela se encaminham o desejo de operar uma aula pelo que ela pode, por incansáveis tentativas, constitui “um fenômeno singular”, que, para Deligny (2018, p.153), “[...] está mais próximo da obra de arte e do que de qualquer outra coisa”, pois, “[...] para quem pretende criar, é realmente indispensável afastar-se de fazer como” e aproximar-se de um repertório que anime o pensamento. Logo, trata-se de levar a/o docente a se sentir convocada/o a aprender e ensinar em meio a essas tentativas.

Ora, no que tange a nós, sabemos que professoras/es pesquisadoras/es em educação são constantemente perquiridas/os a escrever sobre os modos de agir e de pensar em educação, o que vai movimentando e expandindo, a cada vez, a teia que compõe nosso campo. Entretanto, torna-se problemático quando uma textualidade se coloca como a única possível ou quando se prescrevem fórmulas e métodos como constituintes de um único modelo possível, tomado como verdade absoluta. Assim, ao se estabelecer um único modo (de agir) prévio, vemos estancados os fluxos intempestivos por meio dos quais se instituem as forças criadoras.

De fato, há sempre uma estrutura que indica um caminho e diz o que fazer, mas, dentro dela, há também a possibilidade de criação de outras formas que escapam a esse formato sugerido. Intuímos que algo distinto de fazer como na educação é o que se dá no contágio com as filosofias da diferença. Aliás, entendemos como oportuno situarmos que cada uma de nós, autoras deste artigo, atua em uma instituição/paisagem distinta – nos cursos de artes visuais e de pedagogia e na educação básica – e que nesses lugares temos atentado para as possíveis composições e torções nos modos habituais ou únicos de fazer educação e arte.

Também temos experienciado e nos aliançado às tentativas que desejam mudanças na educação (e especificamente no ensino das artes visuais) ao longo desses últimos anos – não tendo o desejo, neste caso, relação com qualquer ideia espontaneísta, como esclarece Guattari. O desejo pode, “[...] como toda máquina que se preze, se paralizar, se bloquear”, “[...] ele corre o risco de entrar em processos de implosão, de autodestruição” (Guattari, Rolnik, 1996, p. 240). Portanto, a questão volta-se para o reconhecimento de como se efetivam em educação “a economia do desejo” e os usos das máquinas desejantes que atuam na geração daquilo que ainda não se cristalizou.

Neste texto, entendemos a docência em arte como uma multiplicidade em movimento que é atravessada por encaixes e desencaixes entre teorias e práticas e como o que é possível forjar ‘com’ e em meio a isso.  Entendemos a docência em arte como algo que é produzido e que também escapa ao que se produz a cada vez em meio aos discursos e às visibilidades originadas em diferentes territórios, movimentos, leis, produções acadêmicas, artísticas e escolares... Entendemos a docência em arte como uma rede sem fim em constante tear, à espreita de capturas e conexões imprevistas e diversas que possam arrastá-la para outras direções.

Que a docência em arte possa seguir resistindo, re-existindo e produzindo, desde dentro de documentos, legislações, parâmetros, escritos, ações e encontros, espaços nos quais possamos fazer passar rajadas de vento criadoras, que façam o sistema vazar de seu funcionamento, operando modos menores de relação com o ensino de arte. Se não há como fugirmos do que nos propõe o atual documento que rege a produção de currículos no Brasil, a BNCC, ao menos podemos fazer fugir algo aqui ou acolá por meio de nossas atuações... O que podemos no encontro com a BNCC? Quem sabe, a partir de nossas aulas e nossos encontros, possamos fazer tremer a ‘base’, produzir vitalidades micro que inventem/traduzam o ‘nacional’ não como totalidade, mas como campo de forças articuladas a cada vez... Quem sabe, nossas aulas e nossos encontros possam produzir respiros no ‘comum’ totalizador ao abrir espaços para as singularidades e os dissensos – e, talvez, assim, ‘curricular’ possa se dar como ação, como verbo a ser operado nas aventuras singulares de cada estar juntos em educação. Tudo isso deve acontecer sem perder de vista nossas lutas para afirmar e reafirmar a cada vez, e quantas vezes forem necessárias, os nossos espaços, como área de conhecimento, problematização e criação.

 

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei nº 13.278, de 2 de maio de 2016. Altera o § 6o do artigo 26 da Lei no 9.394/96, referente ao ensino da arte. Diário Oficial da União, Brasília, 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13278.htm. Acesso em: 21 ago. 2024.

 

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BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB): Lei 9.394/96. Brasília, DF: Diário Oficial da União, Ano CXXXIV, n. 248, de 23/12/96, p. 27.833-27.841, 1996.

 

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Acesso em: 20 de ago. 2024.

 

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Notas



[1] Marilda Oliveira de Oliveira é Professora Titular do Departamento de Metodologia do Ensino, professora permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil. Editora Chefe da Revista Digital do LAV. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5092-8806. Email: marilda.oliveira@ufsm.br

[2] Carin Cristina Dahmer é doutora em Educação (2021) pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil. Editora de seção da Revista Digital do LAV. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1265-6432. Email: carindahmer@gmail.com

[3] Cláudia Aparecida dos Santos é doutora em Educação (2020) pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil. Professora do Instituto Federal do Paraná, Campus Palmas (IFPR). Editora de seção da Revista Digital do LAV. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3525-9517. Email: claudia.santos@ifpr.edu.br

[4] Francieli Regina Garlet é doutora em Educação (2018) pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil. Professora EMEB Leonel José Vitorino Ribeiro, Indaiatuba, SP. Editora de seção da Revista Digital do LAV. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6401-5429. Email: garletfran@gmail.com

[5] Vivien Kelling Cardonetti é doutora em Educação (2014) pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil. Professora do Curso de Pedagogia da Faculdade Antônio Meneghetti (AMF) e Professora Externa do Curso de Pedagogia – Modalidade EAD, UFSM. Editora de seção da Revista Digital do LAV. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3087-8995. Email: vicardonetti@gmail.com

 



[i] O termo “re-existir” é pensado aqui a partir dos autores João Fiadeiro e Fernanda Eugénio (2012, p. 64) como um “[...] empenho na manutenção e na propagação da abertura e do dissenso; recusa à concordância desejavelmente conclusiva do diálogo”.