Memórias para uma educação digital sensível

Memories for sensitive digital education

 

Inara Novaes Macedo [1]

Secretaria de Educação do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil

Rodrigo Hipólito [2]

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil

Fabiana Pedroni [3]

Secretaria de Educação do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil

 

Resumo

Este artigo compara duas experiências educacionais separadas por quinze anos. Na primeira parte do texto, relata-se o desenvolvimento de uma oficina de artes digitais realizada no projeto Caminhando Juntos (CAJUN), no bairro Bela Vista, em Vitória, ES, entre 2008 e 2009. Essa oficina teve como um dos objetivos centrais o fortalecimento de vínculos socioafetivos de crianças e adolescentes, com vistas ao desenvolvimento da autoestima, da identidade e do senso de pertença. Na segunda parte, comentam-se as práticas de ateliê de fotografia para o curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Espírito Santo, no ano de 2023. Através desse processo de rememoração, do uso de conceitos operatórios desenvolvidos durante os processos de ensino-aprendizagem e do comparativo entre essas duas experiências, compreende-se a importância da memória educacional para a formulação de metodologias de trabalho eficientes e sensíveis.

Palavras-chave: Educação digital; Memória educacional; Fotografia; Oficina; Ateliê.

 

Abstract

This article compares two educational experiences separated by fifteen years. In the first part of the text, we report the development of a digital arts workshop held in the Caminhando Juntos Project (CAJUN) in the Bela Vista neighborhood, in Vitória, ES, between 2008 and 2009. One of the central objectives of this workshop was to strengthen the socio-affective bonds of children and adolescents, with a view to developing self-esteem, identity, and a sense of belonging. In the second part, we comment on the photography studio practices for the Cinema and Audiovisual and Advertising course at the Federal University of Espírito Santo, in the year 2023. Through this process of recollection, the use of operational concepts developed during the teaching-learning processes, and the comparison between these two experiences, we understand the importance of educational memory for the formulation of efficient and sensitive work methodologies.

Keywords: Digital education; Educational memory; Photography; Workshop; Studio.


 

Câmera-verbo

Depois de alguns anos como docentes, é quase inevitável que nos perguntemos a respeito do peso de nossas memórias em nossas relações com estudantes e para as escolhas metodológicas de trabalho. Parafraseando Vani Moreira Kenski (1994, p. 26), as perguntas mais relevantes, ao falar de memória educacional, parecem ser sobre o significado dessas experiências passadas para nossas vidas, sobre como nos sentíamos na época e sobre quais influências conseguimos localizar em nossas escolhas pessoais e profissionais. Com essa preocupação, este texto conecta as memórias de duas experiências educacionais separadas por uma década e meia.

Em março de 2008, comecei a ministrar uma oficina de artes digitais no projeto Caminhando Juntos (CAJUN), no bairro de Bela Vista, na capital capixaba. Já após o primeiro mês de conversas introdutórias sobre câmeras digitais, computadores, processadores de texto e imagem e comunicação em rede, a expressão de uma aluna me chamou a atenção e apontou um caminho diverso para a condução daquela experiência. Com muita energia e curiosidade ativa, ela me pedia ‘Câmera eu, tia! Câmera eu!’. A partir dali, compreendi que não deveria seguir qualquer metodologia tradicional. Não bastava saber que se tratava de um ambiente pensado para a educação não formal. Aquelas crianças e adolescentes, muitos em seus primeiros contatos com as, então, novas mídias, exigiriam uma postura de entrosamento, cumplicidade e formação ativa.[i]

Nas primeiras semanas, estávamos, elas e eu, tomados de ansiedade e expectativa pela chegada dos equipamentos. Nosso espaço parecia vazio. Em breve, poderíamos utilizar câmeras e computadores. Enquanto esse acesso direto não se dava, eu as acompanhava em seus passeios e nas demais oficinas oferecidas pelo projeto. Nesses momentos, aproveitei para me apresentar não como professora, mas como alguém que estava disponível para vivenciar situações as mais diversas. Em síntese: conviver.

Depois da chegada dos equipamentos, encarei a necessidade imediata de estabelecer um modo de trabalho. Dado que não havia ementa e plano de ensino pré-determinados para as oficinas oferecidas pelo projeto, cada grupo de crianças e adolescentes integrava uma possibilidade aberta de construção e experimentação dos processos de ensino-aprendizagem. A liberdade de proposições, tanto quanto instigante, é assustadora. Mas, antes que pudesse me sentir intimidada pela responsabilidade de apontar um caminho, compreendi que esse caminho já me havia sido apontado pela expressão ‘câmera eu’. Ao verbalizar sua vontade, a aluna transformou o substantivo em verbo e mesclou o aparelho fotográfico com seu corpo e suas ações.

Esse é o procedimento através do qual surgem e podemos reconhecer os conceitos operatórios. Processos de criação e experimentação artísticas envolvem tanto o desenvolvimento de técnicas quanto de ideias, as quais somente podem se realizar em um suporte teórico comunicável e manejável, o conceito. “Cada procedimento instaurador da obra implica a operacionalização de um conceito. Por isso, os nomeamos conceitos operatórios.” (Rey, 2002, p. 130).

Nesse processo de transformação dos objetos em fenômenos experienciáveis, eu poderia me localizar. O diálogo com o campo das artes se deu a partir da vontade da criança e não da minha preconcepção do processo. “Transformar um substantivo em verbo é fazer de um objeto um acontecimento” (Venosa, 2020, p. 65-66). Se a câmera surgia como verbo e era compreendida dentro do universo das ações que podem ser efetivadas pelas crianças e adolescentes, os demais meios e campos das artes deveriam ser mantidos acessíveis e dialeticamente vinculados ao digital. Desse modo, comecei a organizar meu plano de ensino centrado no conceito operatório da câmera-verbo e aberto para o contato multidisciplinar com outros meios das artes, como desenho, pintura, vídeo, fotografia, animação, poesia, etc. Além disso, seria fundamental que esse contato não se desprendesse das experiências concretas dos estudantes, permitisse a geração de memórias afetivas, a construção das identidades e estivesse aberto para o brincar. O desenvolvimento do método de trabalho passou, assim, pela enunciação das palavras-chave, sobre as quais executaríamos as ações: mídia, materialidade, memória, afeto, identidade e lugar.

Ao identificar a câmera-verbo como conceito operatório dos processos criativos-educacionais a serem propostos, compreendi que aquela oficina iria constituir-se como uma prática experimental. Ali, os processos de ensino-aprendizagem seriam concebidos a partir dos fazeres coletivos, da participação ativa dos estudantes, e estariam em constante transformação. Desse modo, a concepção de trabalho estaria próxima do que se espera de um ateliê de arte, no qual supomos que os testes e falhas e o processo é, quase sempre, mais importante do que o produto, ainda que os resultados não devam ser desconsiderados como parte fundamental do impulso de aprendizado criativo. Felizmente, estávamos em uma instituição que previa tais possibilidades de trabalho.

O CAJUN é um projeto voltado para a realização de atividades desenvolvidas no contraturno das escolas municipais de Vitória. Dezesseis anos atrás, as unidades do CAJUN ofereciam oficinas de artes visuais, informática, circo, capoeira, literatura, música, educação física, dança e ginástica (Ferreira; Costa, 2012, p. 259). As estruturas físicas variavam de unidade para unidade e, normalmente, supunha-se o apoio material a partir da aprovação de orçamentos específicos para cada curso, dentro do projeto pedagógico anual. Para aquela disciplina de artes digitais, os recursos permanentes eram constituídos por dez computadores, mesas, cadeiras, um armário de ferro, uma prateleira feita de cesta de feira, cartazes sinalizadores, quatro câmeras fotográficas (uma digital e três analógicas, em estado de conservação mediano), adquiridas por meio de doação, com o auxílio da assessoria técnica de cultura do município. Disponibilizei duas câmeras pessoais (uma analógica e uma digital), de modo que somamos seis câmeras.

 

Imagem 1 – Crianças e adolescentes na sala de artes digitais, 2008.

Fonte: acervo de Inara Novaes.

 

O espaço físico destinado à oficina foi preparado à várias mãos. Utilizamos recursos e objetos alternativos, construídos pelos próprios participantes do projeto. A cada elemento decorativo inserido na sala, como cartazes personalizados ou trabalhos artísticos autorais, estabelecia-se uma relação de pertencimento com o lugar. Supunha-se uma sala atrativa ao olhar, cheia de memórias e significados, um espaço seguro, que despertasse o desejo de estar, mesmo que simples e desprovido de refinamentos (Imagem 1).

Nos primeiros contatos, experimentamos algumas linguagens, sem o compromisso de produzir resultados concretos, facilmente observáveis e mensuráveis. Ao assumir a câmera-verbo, os demais meios deveriam ser considerados do mesmo modo. O contato com o computador, o teclado, a tela, assim como com a tinta e o papel, deveriam estar o mais próximo possível de ações voltadas para o próprio agir. Logo, o objetivo inicial de manusear a câmera seria estar com a câmera e o de gerar imagens na tela seria estar com a tela. Se era possível um ‘câmera eu’, deveria ser possível um ‘tela eu’.

Nesse processo, identificamos três principais áreas de interesse da turma: desenho digital, fotografia e audiovisual. Para chegar a essas escolhas, consideramos os portfólios de nossas experiências naqueles primeiros meses. Os estudantes salvavam suas produções ao final de cada aula, em pastas compartimentadas e nomeadas. Com o passar do tempo, construímos um banco de dados, ou um acervo de atividades. Além dessa prática, adotamos os diários, onde registrávamos os principais acontecimentos das aulas, o desempenho, as dificuldades ou qualquer demanda socioemocional apresentada pelos estudantes. Embora desafiadora, essa ação mostrou-se um importante instrumento de avaliação, tanto dos educandos quanto das metodologias empregadas na oficina, o que permitiu identificar o cumprimento dos objetivos e as mudanças de rota necessárias.

Nas experiências com o desenho digital, o contato inicial com a tela foi marcante. Ainda que a cultura digital já estivesse presente no cotidiano, em 2008, a intimidade com as ferramentas que permitiam o controle da imagem diferia profundamente da mecânica das atuais telas sensíveis ao toque. O manuseio do mouse e do teclado assemelhava-se a controlar uma caneta imaterial a distância. Acrescente-se a isso o cenário voltado para a chamada inclusão digital, que surgia como o “ethos ético e sociopolítico” de uma época (Silva et al, 2005, p. 29). No Brasil da primeira década do milênio, a inevitabilidade do letramento digital enfrentava o problema da exclusão, decorrente do abismo entre rendas. Já era possível observar que, à mercê das variações do livre mercado e sem políticas públicas que fossem além da transferência de renda, o acesso às novas tecnologias ocorreria de modo a refletir as desigualdades socioeconômicas existentes e conhecidas (Mattos; Chadas, 2008, p. 82). O resultado da ausência de uma preocupação concreta com a vivência das novas tecnologias, menos de uma década depois, resultou não na inclusão, mas na disseminação do digital, de modo a constituir-se como necessidade para o pleno desenvolvimento da cidadania, e no agravamento e maior complexidade da exclusão (Bolzan; Löbler, 2016, p. 131).

Em 2008, o foco daquela oficina de artes digitais estava mais na socialização e na vivência. Antes de concebermos os interesses funcionais (ou funcionalistas) do acesso aos meios digitais, pensávamos a possibilidade do usufruto e da normalização da presença das novas tecnologias. Esse foi o incentivo para que estudantes manuseassem mouse e teclado e gerassem imagens que estivessem vinculadas mais às suas experiências e as suas presenças naquele exercício do que ao cumprimento de quaisquer premissas estéticas. Os resultados passaram pelos rabiscos, o ruído visual, as linhas e formas básicas, os padrões de cores, até o que chamamos de colcha de retalhos, com a colagem coletiva (Imagens 2, 3, 4 e 5).

 

Imagem 2 – ‘Rabiscos’, trabalho elaborado pelos estudantes, 2008.

Fonte: acervo de Inara Novaes.


 

Imagem 3 – Exercícios com linhas – direções e espessuras, 2008.

Fonte: acervo de Inara Novaes.

 

Imagem 4 – Exercício de quadrados e círculos dentro de quadrados elaborados pelos educandos. 2008

Fonte: acervo de Inara Novaes.

 

Imagem 5 – ‘Colcha de retalhos’, resultado coletivo, 2009.

Fonte: acervo de Inara Novaes.

 

Das experiências de contato inicial, passamos para a gravura digital, a montagem e a intervenção, que se mesclava com os exercícios de fotografia. Trocamos o Paint pelo Photoshop e compreendemos parte da grande liberdade de manipulação própria da mídia digital. Do cursor como um lápis desgarrado do nosso universo material, habitante do monitor, passamos, aos poucos, para a ‘tela eu’. Os estudantes inseriam suas imagens, as de seu local, suas paisagens e seu modo de ser na tela. Com a familiaridade de manipulação das imagens, a capacidade de representação extrapolava o figurativo plausível e atingia o expressivo metafórico (Imagem 6).

 

Imagem 6 – Trabalho de montagem elaborado por estudante, a partir da utilização da obra ‘O ovo cósmico’, de Salvador Dalí, 2009.

Fonte: acervo de Inara Novaes.

 

Na linha do audiovisual, os exercícios de stop motion com papel machê e massa de modelar nos levaram para um estudo mais detalhado da produção de vídeo. A primeira etapa desse estudo consistiu na leitura e reescrita de narrativas. Os alunos escolheram seus livros preferidos, recontaram a história com suas palavras e os demais colegas digitaram o que podiam lembrar da narrativa. Os elementos que escapavam da memória deixavam espaços para serem ocupados pela imaginação. Como resultados, construímos histórias bem diversas do material original.

 

 

 

Imagem 7 – Algumas imagens dos livros digitais elaborados por estudantes, 2008.

Fonte: acervo de Inara Novaes.

 

A segunda etapa foi a criação do roteiro. A partir de um acervo de sons digitais, os estudantes estruturaram personagens e falas, as quais organizamos em um roteiro que pudesse ser relacionado com imagens. A terceira etapa envolveu a gravação das falas, que editamos para mesclá-las aos sons anteriores. A última etapa se deu com a produção e mixagem entre imagens, sons e falas gravadas. Dessa mescla, surgiram nossos primeiros livros digitais (Imagem 7).


 

Imagem 8 – Cenas do filme ‘Imagine só’, produzido pelos estudantes, 2008.

Fonte: acervo de Inara Novaes.

 

Imagem 9 – Processo de captação de imagens dos estudantes e seus respectivos resultados, 2008.

Fonte: acervo de Inara Novaes.

 

Durante as atividades de animação e histórias digitais, os estudantes adquiriram noções de captação de imagens, trilha sonora e criação de roteiro. Entretanto, os primeiros exercícios não possibilitaram que os estudantes atuassem frente às câmeras. Exposto esse desejo, organizamos uma proposta de curta-metragem que envolveu a captação e a edição de imagens de arquivo das ações externas e passeios realizados pelas turmas. Esse trabalho foi de suma importância para a integração, o senso de cooperação e, principalmente, para o fortalecimento da autoestima das crianças, pois, além de envolver toda a equipe do CAJUN (porteiro, instrutores, coordenadores, cozinheiras e estudantes), o curta-metragem (Imagem 8) foi exibido no final de 2008, no Cine Metrópolis, sala de cinema e cineclube localizado no campus da Universidade Federal do Espírito Santo, durante a mostra cultural, para o público de todas as unidades do projeto.

No terceiro eixo de atividades da oficina de artes digitais, partimos do sensorial para a bidimensionalidade do plano fotográfico. Para nos desviarmos das formas viciadas pela presença massiva da fotografia, propusemos o contato com diversas vertentes das produções do meio, entre o corriqueiro e o estranhamento. Junto a esse contato, exercitamos o tato e as memórias afetivas, com uso de vendas e manuseios de objetos. Somente então partimos para o enquadramento do mundo, ainda sem a câmera. Com molduras de papel, praticamos o gesto da escolha e do recorte da realidade. Essa longa introdução resultou em maior consistência do gesto fotográfico.

Sem nos restringirmos às paisagens conhecidas do bairro, as quais não deixamos de explorar, a oficina de fotografia mostrou-se como uma oportunidade para transitar e observar a cidade. Distantes das fronteiras micro do local, os estudantes exerceram a câmera-verbo em um local expandido. Os bairros da cidade abriram-se para suas lentes. Realizamos registros na Vila Rubim, no centro histórico, no galpão das paneleiras de Goiabeiras, na orla de Camburi e na Ilha das Caieiras. Esse itinerário circula a ilha de Vitória e chega à parte continental do município (Imagem 9).

Por algum tempo, pensei nas possíveis consequências individuais daquela oficina para os estudantes. Na Educação, nos acostumamos a sermos atravessados por subsequentes turmas de crianças, adolescentes e jovens. Poucas vezes podemos acompanhar o seu desenvolvimento por vários anos ou décadas. No entanto, as memórias desses diálogos, dúvidas, dificuldades, descobertas e criações, não nos abandonam. Não reencontrei os estudantes daquela oficina, em específico. Mas, o que compreendi, em conjunto com aquelas crianças e adolescentes, permaneceu vivo, em mim, reverberando e se atualizando nas ações futuras.

 

Imagem-vida

Quando falamos de memória educacional, há algumas vertentes que devem ser consideradas. Uma delas é a memória institucional. Nesse caso pensamos na documentação dos processos internos das escolas e em como o cuidado com esse acervo é fundamental para a formação de uma consciência das transformações que não se perca no tempo, seja pela variação dos interesses de pesquisa de cada época ou pelas trocas administrativas.

 

(...) os historiadores da educação têm enfatizado o cuidado em conservar documentos escolares gerados em outros âmbitos que não o administrativo, colocando o problema da preservação de fontes de pesquisa relativas às atividades-fim da escola. Iniciativas nessa direção responderiam aos atuais interesses da pesquisa histórica acerca das relações de ensino-aprendizagem na escola. (Paulilo; Mazza, 2016, p. 210)

 

Noutra vertente, devemos pensar nas condições situacionais do trabalho docente. Nesse caso, o registro de relatórios frios, planilhas, atas de reuniões, planos de ensino e demais documentos fundamentais para o funcionamento e compreensão das transformações institucionais não são suficientes.

 

Uma das principais características da pesquisa sobre a memória e sua influência nas situações de ensino está no fato de que raramente esses estudos podem ser apenas descritivos. Em geral, as investigações ligadas às memórias institucionais ou pessoais são descritivas e concluídas com apresentação dos depoimentos dos que ocuparam importantes papeis na ‘história que precisa ser contada’. Já nos trabalhos sobre os efeitos da memória em situações de ensino, as questões são diferentes. Um dos objetivos fundamentais desses estudos está na reflexão individual ou coletiva sobre as influências deixadas por vivências marcantes do passado na prática pedagógica dos professores. (Kenski, 1994, p. 46)

 

Quinze anos depois daquela oficina, encaro os jovens alunos do curso de cinema e audiovisual da Universidade Federal do Espírito Santo. Percebo a frustração com os primeiros resultados dos exercícios da disciplina de fotografia, realizados com câmeras profissionais. As imagens de estúdio ficam escuras demais, com muito ruído, as cores menos vivas, o foco desajustado, figuras e fundo mesclam-se, o branco estoura em outras partes, os objetos parecem mal enquadrados e as composições simplistas. Nas externas, há pouca estabilidade, sombras duras indesejadas, faltam pontos de alta pregnância, há a desconsideração de elementos de fundo, da organicidade da paisagem e da variação de profundidade de campo (Imagens 10, 11 e 12).

Nada disso faria, obrigatoriamente, que os resultados fossem considerados ruins. Procuro compreender a fonte da frustração e encontro o comparativo com as imagens captadas pelos celulares. As diferenças são nítidas. Com apenas um toque na tela, os alunos satisfazem-se com imagens em alta-definição, foco autoajustado, filtros aplicados antes da exibição, redução de tremores e outras distorções, balanço de branco automático, autoajuste de sensibilidade para as mais sutis mudanças de iluminação e, principalmente, um potente e misterioso processamento de cor. Todos esses processos são executados pelo aparelho sem a necessidade de determinação da pessoa que aperta o botão. Mas, não se trata apenas de conforto e praticidade.

 

Imagem 10 – Fotografia de estudante do curso de Cinema e Audiovisual, UFES, 2023.

Fonte: acervo de Rodrigo Hipólito.


 

Imagem 11 – Fotografia de estudante do curso de Cinema e Audiovisual, UFES, 2023.

Fonte: acervo de Rodrigo Hipólito.

 

Imagem 12 – Fotografia de estudante do curso de Cinema e Audiovisual, UFES, 2023.

Fonte: acervo de Rodrigo Hipólito.

 

Durante as conversas, compreendo que as fotografias captadas com os celulares são tidas, pelos alunos, como melhores do que aquelas captadas pelas câmeras profissionais porque se parecem mais com o que estão habituados a identificarem como elogiável nas redes sociais. Ainda assim, apenas isso, não me parece configurar um problema. Continuo a observar, conversar e ouvir. Parece-me que quanto menos específica, mais padronizada, explicitamente artificial e despida de texturas, impurezas e imperfeições, mais as imagens aparecem como adequadas. A partir dessa percepção, peço que mantenham em uma pasta as dezenas, por vezes, centenas, de fotografias captadas e escolham as que mais lhes agradem para exibirem em sala de aula. Além do padrão já citado, há, também, a predileção por formatos estreitos e muito verticalizados, explicitamente não previstos pelos manuais clássicos de prática fotográfica.

Conversamos sobre a dificuldade de dominar a relação entre tempo de exposição (obturador), sensibilidade (ISO) e abertura (diafragma). Embora compreendamos que é interessante dominar a técnica e ser capaz de controlar esses elementos para construir uma imagem com maior consciência de sua forma, não posso ignorar a balança entre o esforço e a praticidade. Ainda que os celulares possuam diversas limitações, como a impossibilidade, para a maioria dos modelos, de troca de objetivas, muitos permitem o controle manual da sensibilidade, do balanço de branco e do foco. Por isso, decidimos mesclar as experiências de prática com as câmeras profissionais e ensaios com o celular.

Penso na câmera-verbo e considero a mudança para a tela sensível ao toque. O aparelho é parte do corpo e a tela mescla-se com a consciência do mundo. As telas sensíveis ao toque passaram a fazer parte do nosso corpo, de nossa forma de pensar e da nossa consciência mundo. “Com eles construímos (in)conscientemente nossas formas de ser, de estar, de nos mover, não necessariamente em nossa dimensão corporal física. Passamos a constituir corpos com tecnologias e tecnologias com corpos” (Bairral, 2018, p. 81). Na educação digital para as artes, esse é um dos fatores centrais para a atualidade. A experiência com a captação e observação de imagens e a representação do mundo misturam-se em uma imagem-vida. A câmera-corpo guarda centenas, talvez milhares, de fotografias quase idênticas do rosto da pessoa que a manuseia.[ii] Poucas dessas imagens vêm a público, mas nenhuma é apagada. Isso me levou a adotar uma nova perspectiva sobre o fazer fotográfico para as turmas. Ainda que mantenhamos a aquisição de técnicas voltadas para as câmeras tradicionais, o maior desafio não está em uma espécie de competição não-declarada com os celulares e as redes sociais. Além de infrutífera, essa disputa desvia-se da preocupação de fornecer ferramentas para que os estudantes sejam capazes de assumir, minimamente, o controle sobre suas imagens-vida.

Tal controle envolve escolha. Por isso, decidimos exercitar o ato de escolher. Conversamos sobre as limitações dos antigos filmes fotográficos. Antes de apertarmos o botão do obturador, precisávamos estar certos de que aquela imagem merecia ser registrada, do contrário, gastaríamos uma das poucas ‘poses’ nas quais estavam separados os antigos filmes. Sem cairmos no passadismo nostálgico, é certo que há um grande ganho em poder fazer escolhas sem essa pressão. Mas, será que ainda fazemos escolhas, ou tocamos na tela até que o aparelho nos forneça, por seus próprios esforços insondáveis de caixa-preta,[iii] uma imagem que julgamos adequada? Além disso, quais os motivos para não nos desprendermos de todas aquelas imagens que foram consideradas inadequadas?

 

Imagem 13 – Fotografia de estudante do curso de Cinema e Audiovisual, UFES, 2023.

Fonte: acervo de Rodrigo Hipólito.

 

Imagem 14 – Fotografia de estudante do curso de Cinema e Audiovisual, UFES, 2023.

Fonte: acervo de Rodrigo Hipólito.

 

Nossos exercícios seguintes são mais lentos. Ainda que haja o uso dos celulares, a preparação para a captação é muito mais minuciosa. Divididos em grupos, os alunos estipulam funções para a produção. Há quem fique responsável pela iluminação, pela coleta de elementos para o cenário, pela montagem do cenário, maquiagem, modelos, operação da câmera, continuidade, conceituação do ensaio e pós-produção.[iv]

Se comparados com a antiga experiência dos limitados filmes para uso doméstico, o número de cliques ainda seria absurdo. Mas, quando comparado com os primeiros exercícios, as escolhas tornam-se muito mais específicas. A quantidade de imagens nas pastas não apenas diminui, como permite o diálogo sobre as diferenças entre as imagens quando captadas e após o tratamento. Na pós-produção, os alunos também são instigados a fazerem escolhas conscientes sobre a temperatura de cor, o recorte, o foco, o contraste, o brilho e os possíveis usos de plugins para processamento mais pesado. No momento da exibição dos resultados para a turma, os comentários e respostas passam da frustração para a explicação. As imagens são menos padronizadas (Imagens 13, 14 e 15) e cada grupo é capaz de indicar os motivos pelos quais determinaram, em conjunto, que aquela era a melhor composição, o ângulo e o enquadramento mais interessantes, a distância mais razoável, o elemento mais evidente. Surgem fotografias propositalmente mais escuras, “sujas”, desfocadas, fora da regra de três terços, em formatos que escampam dos principais padrões horizontais e verticais. Há identificação com os temas. Há menos imagens descartadas e, em muitos casos, elas puderam ser apagadas sem culpa.


 

Imagem 15 – Fotografia de estudante do curso de Cinema e Audiovisual, UFES, 2023.

Fonte: acervo de Rodrigo Hipólito.

 

Compreender que a relação desses jovens com a imagem está conectada à ligação direta entre o aparelho de captação e exibição (celular) e seus corpos, ou seja, seus mecanismos básicos de interação, foi fundamental para exercitar o poder de escolha. O desejo de ser fotografado e de fotografar, expresso no ‘câmera eu’, dissolveu-se no cotidiano. Hoje, não é exagero afirmar que as personalidades, visões de mundo, percepções da própria imagem e consciência da presença do outro são não apenas afetadas, mas construídas em conjunto com o contato com as mídias digitais e a internet. Se a tela é parte do corpo, as imagens que nela habitam, existem em nós. Ainda que essa presença constante de tecnologias e imagens digitais integradas aos nossos modos de viver pareça muito recente, não posso deixar de considerar que a expressão ‘câmera eu’, quinze anos atrás, também refletia um desejo de descoberta de novas formas de se relacionar com a produção de imagem.

 

Conclusão

Nos quinze anos entre a oficina de artes digitais desenvolvida no CAJUN de Bela Vista e a disciplina de fotografia ministrada para estudantes do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Espírito Santo, houve um salto quantitativo e qualitativo no acesso aos meios digitais. A apresentação e a contraposição das memórias da educação digital com o contexto atual nos permitem considerar quais elementos do processo de ensino-aprendizagem, relevantes para a construção das metodologias de trabalho, requisitaram mudanças e quais frutificaram desenvolvimentos efetivos.

Em meu tempo como educadora, compreendi o formato de oficina como um dos mais interessantes, pois parte dos objetivos envolve a imersão não apenas em técnicas e práticas funcionais, mas na dimensão dos fazeres como conhecimentos que adensam nossas identidades. Esse adensamento pode ser incentivado ao agregarmos às práticas o estabelecimento de vínculos pessoais e permitirmos a geração de memórias afetivas. No CAJUN, a informação, a técnica e a prática estavam atreladas à convivência, desse modo, a metodologia de trabalho pressupunha o aprendizado como um processo de socialização, tanto na direção dos estudantes quanto de professoras e oficineiras. Além disso, é justo salientar a familiaridade do espaço local para as crianças, a quantidade de estudantes por turma e as possibilidades de circulação pela cidade. Embora em âmbito distinto, é possível observar similaridades entre a experiência das oficinais e a prática de ateliê, através da qual são desenvolvidas as disciplinas teórico-práticas do curso de Cinema e Audiovisual.

No CAJUN, como mencionado, oferece-se uma variedade de oficinas e cursos. No caso especifico do ensino das artes, assim como pode ser percebido na maioria das Ongs, há menos rigidez e maior abertura para o estabelecimento de metodologias dialéticas de trabalho, as quais auxiliam na contemplação de contextos variáveis (Carvalho, 2008, p.137). Essa perspectiva considera, além da prática e da socialização, a necessidade de avaliações subjetivas, e não somente pela comprovação formal de aquisição de competências e habilidades funcionais, como ocorre na escola. Ainda que muitas escolas prezem por escapar da restrição de parâmetros avaliativos, a cobrança por números positivos é uma realidade aplicada por muitas secretarias de educação.

Embora se trate da educação formal, as disciplinas de ateliê em graduações permitem que docentes e alunos desenvolvam um diálogo que resulta em mudança de rota. Com a observação sensível das reações dos estudantes, de seus desejos, frustações e formação pessoal, é possível fazer negociações que enriquecem os processos de ensino-aprendizagem e de avaliação.

É dessas negociações que surgiram os conceitos operatórios utilizados em cada uma das experiências. A câmera-verbo permitiu operar os diálogos entre o desejo de ser alvo da câmera e tomá-la para si. Esses dois movimentos eram necessários para o desenvolvimento de uma maior fluidez e intimidade com os equipamentos. Tal intimidade, por sua vez, permitiu a consciência de poder recortar partes de seu mundo e levar esses recortes para a tela, como foi o caso da produção do curta-metragem. Dentro do mesmo processo e em sentido oposto, a câmera-verbo levou à liberdade de estar na imagem fotográfica e construir as representações de si e dos outros. A presença dessas representações e dessa intimidade, com o passar dos anos, expandiu-se e aprofundou-se ao ponto de os aparelhos não serem mais apenas requisitados. O conceito de câmera-verbo deu lugar à imagem-vida, dado que os aparelhos e as telas fazem parte de nosso corpo. Falar em imagem-vida, abriu a porta para que docente e discentes pudessem escapar da resistência aos novos tipos de vivência, desencadeados pela presença constante das imagens digitais em nossa formação, e exercitássemos as escolhas, tanto de composições como de quais imagens apagar. O uso do conceito imagem-vida permitiu operar ações sobre nossas relações com os aparelhos e a profusão de imagens digitais, ao compreender que são parte do nosso corpo e de nossa consciência, logo, fazem parte de nossos impulsos, mas também podem obedecer a determinações conscientes.

Trabalhar com as crianças no CAJUN foi uma experiência que marcou minhas escolhas na Educação e relaciona-se diretamente com a maleabilidade para perceber os modos como novas gerações, em contextos diversos, estabelecem visões de mundo e práticas expressivas com novas mídias, como foi o caso das turmas de Cinema e Audiovisual. A prática da educação envolve a formulação de metodologias de trabalho variáveis. Não podemos esquecer que formular metodologias é fazer escolhas sobre os caminhos que desejamos percorrer coletivamente.

 

REFERÊNCIAS

BAIRRAL, Marcelo Almeida. Dimensões a considerar na pesquisa com dispositivos móveis. Estudos Avançados, v. 32, n. 94, p. 81–95, set. 2018. DOI: https://doi.org/10.1590/s0103-40142018.3294.0007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/5Y9WqF98GXrtxDCjsMhLWRJ. Acesso em: 16 jul. 2024.

 

BOLZAN, Larissa Medianeira; LÖBLER, Mauri Leodir. Socialização e afetividade no processo de inclusão digital: um estudo etnográfico. Organizações & Sociedade, v. 23, n. 76, p. 130–149, jan. 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/1984-9230767. Disponível em: https://www.scielo.br/j/osoc/a/4sz8hyCmRKGJxw4KwCjwByz/#. Acesso em: 10 jul. 2024.

 

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Notas



[1]Artista multilinguagem, com experiência abrangente nas áreas de Artes Visuais, Música, Cultura e Educação. Possui mestrado em Artes pela Universidade Federal do Espírito Santo, graduação em Artes Plásticas e Visuais pela mesma instituição, pós-graduação em Arte, Educação e Tecnologias Contemporâneas (UNB) e Qualificação Profissional em Dança Contemporânea (FAFI). Orcid: https://orcid.org/0009-0001-8232-8928. E-mail: inaranovaes@gmail.com

[2]Doutorando em Arte e Cultura pelo Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGA-UFES) com bolsa Fapes, mestre em Teoria e História da Arte (PPGA-UFES) e Bacharel em Artes Plásticas pela mesma instituição; Professor do Departamento de Teoria da Arte e Música (DTAM-UFES, 2015-2020), do Departamento de Comunicação Social (DEPCOM-UFES, 2023-) dos cursos de Pedagogia e Psicologia da Faculdade Europeia de Vitória (FAEV, 2015-2023). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6812-5713. E-mail: objetoquadrado@gmail.com

[3]Doutora em Artes pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (IA-UNESP), mestra em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professora pela Secretaria de Educação do Espírito Santo. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2272-431X. E-mail: nuvemtrincada@gmail.com



[i] O relato detalhado dessa oficina foi apresentado, primeiramente, em “Câmera eu: oficina de artes digitais do projeto Caminhando Juntos de Bela Vista - Um relato de experiência” (Novaes, 2017a). Já os elementos do plano de ensino e os resultados foram publicados como capítulo no livro “Sentidos e significações de uma educação em Artes Visuais em tempos contraditórios” (Novaes, 2017b, pp. 435-440).

[ii] Embora careçamos de estudos estatísticos sobre selfies no Brasil, se tomarmos como parâmetro os números estrangeiros, observamos grande variedade entre cortes etários e de gênero (Mir; Mushtaq; Mushtaq, 2021). A variedade também pode ser observada nas análises que identificam, nessa prática, o comportamento narcísico (Ciquini, 2020) ou uma pluralidade de sentidos (Silva; Kupermann, 2021).

[iii] Pensamos, aqui, no sentido de caixa-preta usado por Vilém Flusser (2002), quando pensa a câmera fotográfica como um aparelho que funciona independente de nossa consciência sobre o seu funcionamento. O produto da deliberação humana sobre as opções do aparelho seriam “imagens técnicas”, diferentes das imagens tradicionais (Hipólito; Pedroni, 2020, p. 66).

[iv] O termo pós-produção pode surgir em diversos contexto e, em cada área, possui significados similares, porém específicos. No caso da fotografia, o termo remonta aos processos posteriores à captação da imagem negativos. A revelação, retoques, ampliação, montagens, fusões e impressões, muitas vezes, ficavam a cargo de outros profissionais, que não os fotógrafos. Essas mudanças poderiam ser consideradas como melhoramentos da fotografia ou como parte do processo criativo (Hacking, 2012, p. 530). A partir dos anos 1980, com a tecnologia digital, fotógrafos passaram a considerar a edição da imagem já nas decisões de captação. Hoje, consideramos como pós-produção todos os processos de manipulação da imagem através de programas que permitem modificar cores, contraste, saturação, apagar e inserir formas, etc.