Da problemática da Arte à Educação de hoje: similitudes e distanciamentos[1]

From the issues of Art to today's Education: similarities and distances

 

Victor Junger 1

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Aldo Victorio Filho 2

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

Resumo

O presente artigo procura abordar as similitudes e os distanciamentos entre as áreas de Arte e de Educação como pertencentes a imaginários que, por vezes, se opõe de forma mútua e inconciliável, indício de uma impossibilidade problemática difícil de ser respondida na contemporaneidade e resultante de uma série de equívocos principalmente quanto ao ensino da Arte Contemporânea. Para tanto, procura traçar os processos históricos em que tais áreas são elaboradas com suas incompatibilidades e, enfrentando o registro da Arte Contemporânea, podem eventualmente encontrar possibilidades de diálogo, sendo cruciais a inserção no Ensino da Arte as estratégias artísticas contemporâneas como os hibridismos, os perspectivismos, as destruições e as centralidades destinadas ao texto.

 

Palavras-chave: Educação; Arte; Arte Contemporânea; Ensino da Arte; Imaginário.

 

Abstract

This article aims to address the similarities and distances between the areas of Art and Education as belonging to imaginaries that, at times, oppose each other in a mutual and irreconcilable way, an indication of a problematic impossibility that is difficult to be answered in contemporary times and resulting from a series of mistakes mainly regarding the teaching of Contemporary Art. To this end, it seeks to trace the historical processes in which such areas are elaborated with their incompatibilities and, facing the Contemporary Art registration, they may eventually find possibilities for dialogue, with contemporary artistic strategies such as hybridism, perspectivisms, destructions and centralities destined to the text.

 

Keywords: Education; Contemporary art; Art; Art Teaching; Imaginary.


 

"A pré-história saúda assim a chegada à história daquele que, diante do espetáculo assustador do mundo, percebe a medida da sua fraqueza e inscreve os recursos do seu domínio. Esse domínio não pode ser senão imaginário e o homem assinala-o como a capacidade de instaurar o espaço e o tempo nas trevas originais de uma primeira indistinção"

Marie-josé Mondzain

 

Um problema que assedia a quem investiga e investe na Arte e na Educação.

Há, à vista do firmamento da contemporaneidade, uma tensão pouco denunciada e, contudo, excessivamente ruidosa quando nos voltamos ao ensino da arte, pondo em suspensão os pressupostos que fatalmente vêm aderidos à expressão. Trata-se do alargamento da distância que, entre a Arte e a Educação, tal ensino procura contornar e sem sucesso transpor para situar-se no presente. Nenhum esforço que, no momento atual, pareça fazer transitar as fortunas e os pertences de ambas as áreas, a Arte e a Educação, encontra-se no território estrangeiro, onde cada um, por sua vez, denomina e impera, sem perdas ou resguardado de um completo sentido de alheamento. O estranho resultado de um esforço que, aqui, somente adquire contornos após exaustivas tentativas de adaptação dos haveres ou de manutenção da farsa supostamente bem-sucedida dos seus feitos.

A Arte, no desafio contemporâneo de engajar a obra junto ao público ou, sob um registro violento, de expor excrescências, novidades insuportáveis ou investidas espetaculares como forma de provocá-lo, apropria-se de técnicas e estratégias pedagógicas para pensar o alcance das suas ações e o acesso aos meios de sua crítica e de sua elaboração. Os núcleos educativos vinculados a exposições, galerias e museus, os investimentos relacionais praticados em obras de arte, as estratégias de comunicação e de divulgação do mercado, as publicações de instrução e facilitação de acesso ao público são parte de um investimento que procura os meios de ampliação dos efeitos da Arte, dos seus impactos no curso da vida, contrariamente dispensando do seu comprometimento com a formação humana. Malabarismos, os quais, face ao horizonte conceitual da arte na curta história humana, só se pode compreender na aceitação subalterna e acrítica da necessidade e sentido de tais instituições.

Por outro lado, a Educação, como arena de realizações contemporâneas para o futuro e, supostamente, intimamente atenta ao presente, de respostas políticas e epistemológicas aos desafios da formação humana, recorreria às experiências comuns à Arte para promover novas relações de fruição e criação de mundo e inesperadas articulações junto aos imaginários coletivos. A inclusão nos currículos da área de Arte na Educação Básica, o investimento na ludicidade nas propostas e abordagens pedagógicas, o constante envolvimento em celebrações e ritualidades nos contextos escolares, o reconhecimento da dimensão estética como necessária ao ensino básico ocorrem em consonância com manifestações artísticas amplas e historicamente recorrentes, sem se referenciarem para tanto na problemática da Arte Contemporânea e no limite agudo e sensível da experiência poética.

Acreditamos que, aqui, os distanciamentos e as similitudes entre ambas as áreas expõem com seu descompasso mais do que incompreensões acerca dos discursos, práticas e experiências que lhes são próprios, manifestando um tensionamento no tempo em que, por vezes, dois imaginários ocidentais operam em discordância e oposição na concretização de suas histórias e na compreensão daquilo que em cada qual seria reconhecível como relevante para a formação humana. O presente artigo procura discorrer sobre tal tensão adensando a compreensão dos imaginários coletivos em que são forjados os anseios, as expectativas e interesses da Arte e da Educação, para em seguida pensar eventuais entrecruzamentos que favoreçam a produção, ao mesmo tempo como criação e ensino, da estética artística ou poética da formação humana.

Dessa forma, acreditamos que o tempo de inscrição da Arte pode oferecer novas reverberações à Educação no futuro porvir que, a despeito da ideia de universalidade, fantasmagoria colonial e branca, permite a um só tempo e de modo singular identificar respostas ocasionais e compatíveis à contemporaneidade.


 

O que pavimenta a projeção de nossa pesquisa e suas considerações

Embora o conjunto de forças mobilizado pela arte se exprima de forma extemporânea, em uma temporalidade feita de deslocamentos, ou constantemente descentrada do momento atual, isso não ocorre sem que, para o lance de ultrapassagem que lhe é próprio, ela deixe de se inscrever no tempo presente. Que a arte se articule a partir da inscrição contemporânea, ou dela se sirva para um momento outro, acrescentaríamos também o enigma do futuro que, sob as materialidades mobilizadas, ou rejeitadas pelo interesse conceitual do artista, remete o olhar do espectador a um específico e derradeiro código de alerta. Aqui, o que nos ocorre ser indispensável e necessário destacar a seu respeito é a permanência da pergunta sobre a obra de arte que, em última instância, ou de antemão, representaria ou transcenderia o tempo no qual ela se dá em emergência. Como forma de prosseguir com a interpelação da arte no tempo, recorremos a muitas obras do passado sequestradas de suas origens e reféns dos cânones institucionalizados pela história da arte, sob a ideia de uma universalidade que, em muitos de seus degraus, e de forma insidiosa, procurou travesti-las sob a ilusão de uma só coerência e pressuposto histórico e estético. Ao lado da sua pretensa universalidade codificada sob a rapina e a pilhagem das populações estrangeiras, em sua maioria racializadas em uma alteridade desqualificadora, encontra-se pactuada a unidade racial (Michaud, 2024) que fundamenta a ideia de comunidade capaz de melhor expressar e compreender o gênio humano, principalmente no que diz respeito ao progresso histórico da cultura na autodeterminação do sujeito de arbítrio e de poder.

Partindo dos processos históricos e artísticos que produziram a sua finalidade no tempo e, com ela, o seu território de culminância, a cena do pensamento europeu, nos interessa aqui problematizar em particular as relações que teria a arte, como campo curricular intestino ao projeto da educação ocidental, com seu continente, o da utópica formação humana. Tal inquietação decorre principalmente do reconhecimento de que os processos responsáveis pela instauração do campo da história da arte, pela legitimação da espoliação das populações racializadas, pela integração das comunidades americanas, africanas e orientais sob a ideia da universalidade, constituem parte da utopia da formação humana que, aqui, desejamos interpelar comprometidos com o presente da Arte e da Educação. Começamos o registro de nossas reflexões, buscando elaborar um dos possíveis panoramas das interrogações centrais à relação entre Arte Contemporânea e o tempo, para então buscar a mesma exposição a respeito da Educação Formal e também o desafio do tempo.

A Educação, tomada como um reflexo das sociedades das quais emerge e se afirma, supostamente sofreria mudanças constantes ao longo do tempo, considerando às mudanças sociais que ocorrem em graus diferenciados de velocidade. Para compreendermos sua forma atual e os seus desafios, entendemos ser uma importante orientação situar as suas mudanças em um panorama histórico, explorando os fatores entre a educação, a arte e o seu contexto sociocultural. Entre todos os fatores que conduzem superficial e profundamente a educação, os fatores econômicos, numa visão aligeirada, a moldariam às demandas do mercado de trabalho, fazendo com que seus currículos, objetivamente ou sub-repticiamente impusessem aos indivíduos as habilidades e conhecimentos em sintonia com as demandas do seu tempo. Os fatores sociais atravessariam a educação com toda sorte das desigualdades sociais e as lutas tanto pelo alcance e desfrute dos direitos civis e igualdade de oportunidades quanto pela manutenção de diferenças sociais e afirmação da exclusão em favorecimento dos grupos hegemônicos.           Já os fatores políticos contribuem com a oscilação de suas estruturas por meio dos sistemas de governo e as ideologias dominantes que imbricados com os demais fatores moldariam os currículos, métodos de ensino e valores afirmados e reiterados ao longo da realização do programa educacional. E finalmente, os fatores culturais atravessam o imaginário e as práticas educacionais por meio das redes de subjetividades, crenças, costumes e tradições de cada segmento social em permanente tensão com os planos sociais, o que, na perspectiva da pesquisa aqui apresentada, se destaca por se configurar como elemento de manutenção e regulação entre a concretude da oficialidade e a as linhas de fuga das práticas cotidianas, o que refletiria em nuances diferenciadas e consequência opostas as influências dos regimes de verdades e crenças sociais nos objetivos e práticas educacionais.

Por outro lado, a Arte, como resultado histórico dos investimentos praticados pelas sociedades, também exprime as mudanças de seu tempo e as apostas lançadas a partir das promessas aferidas sobre ganhos e eventuais benefícios. Tais investimentos envolvem a capitalização de forças e a mobilização de investimentos coletivos que, como qualquer instituição social, produzem impactos econômicos, sociais, políticos e culturais nas sociedades e, a partir deles, são produzidos na legitimação das suas fronteiras, das produções e das experiências que são autorizadas a fazer e constituir o patrimônio artístico e cultural humano. A articulação dos fatores econômicos, sociais, políticos e culturais impactados pela atribuição de valor da arte decorre assim de um esforço sistemático em mediar os sentidos das materialidades e dos planos formais, dos modos de expressão e dos jogos de discurso sob a abrangência do sujeito universal (Ferreira da Silva, 2019). Ao lado dessa articulação que, em igual medida e sob diferentes territórios, procura operar a equação de valor da arte, está o princípio da pactuação racial que instala a autodeterminação do gênio artístico como referência basilar para o progresso histórico da humanidade. A autodeterminação, enquanto princípio da humanidade, coincide com o processo histórico das sociedades europeias que, ao se constituir como progresso histórico na Cultura e na Arte, é capitalizada sob investimentos sociais amplos e integrada em escala global através de uma infinidade de comunidades que, sob tal condição, constitui as margens de um centro convencionado.

Se a formação humana resultaria da partilha de saberes que beneficiassem o presente das comunidades e o aprimoramento dos meios e recursos para a vida coletiva, podemos entendê-la como acontecimentos simultâneos às primeiras produções de substância esteticamente central, as imagens. Nas sociedades ancestrais, anteriores às arquicivilizações, as ações nessa direção, reconhecíveis como processos de formação humana, hodiernamente educação, teriam sido aparentemente práticas, focadas na sobrevivência e na transmissão de conhecimentos acumulados através da tradição oral e da observação, das experimentações e seus riscos e decorrentes saberes. Evidentemente já dependentes da criação e aplicação de signos, portanto, untadas de valores imaginais. Nos primeiros momentos da perspectiva histórica ocidental, teria se dado no norte da África, no Egito, o surgimento das primeiras instituições de ensino destinadas à formação de elites intelectuais e políticas, coincidentemente, meio a uma civilização cuja centralidade e apelo ao imaginário talvez jamais seja superado por qualquer outro povo.

Se acompanharmos as linhas gerais que caracterizaram a educação no ocidente, perceberemos que no Medievo a educação, então sob o domínio da Igreja Católica, seria como os demais domínios cercados pela dimensão estética. Porém, no período do ressurgimento do interesse pela cultura clássica e pelo humanismo, o dito Renascimento, a valorização da razão, do indivíduo e do conhecimento científico indiciam o afastamento complexo e sombrio entre a Educação, ora refém de uma metanarrativa que sustentaria dicotomias, maniqueísmos e hierarquias de valores humanos, valores produzidos à duras penas durante a longa trajetória humana que não se deu exclusivamente na Europa. Contudo, o patrimônio sem fronteiras, no qual as artes não seriam discernidas da ciência, é vilipendiado na medida em que apenas algumas partes daquele todo interessaram ao projeto ocidental em gestão. Consequentemente, saberes e valores são dispersados entre o esquecimento, a destruição e a desvalorização radical. Na dita Idade Moderna haveria certa expansão da educação formal, com a criação de escolas e de universidades públicas, a ciência e a tecnologia seriam afirmadas como áreas de saber qualificado acima das demais. Decorrente desse antigo projeto em progressivo desenvolvimento, na “Idade Contemporânea” a educação se tornaria objeto do discurso que a afirma como direito universal e acessível a todos. A partir de então novas pedagogias e tecnologias educacionais seriam criadas em função de determinados fins, de muitas formas alheias aos princípios da utopia íntima da Educação como formação cidadã, ou seja, política. A globalização e as redes planetárias de informação sofisticaram, excluíram, modularam e conduziram desafios e oportunidades para o que seria a formação humana já distanciada da mítica partilha de saberes em função dos coletivos. Tal como a Arte, como instituição, a educação passa a ser tensionada mais do que posta em diálogo com as realidades de seu tempo. Alguns termos passam a circular com efetivação questionável e irregular, inclusão e equidade, significando a suposta garantia de acesso à educação de qualidade para todos, independentemente de classe social, gênero, raça ou etnia. Assim como se apostou em uma pretensa qualidade da Educação que decorreria da melhora dos resultados de aprendizagem e do desenvolvimento de habilidades fundamentalmente necessárias ao século XXI, como por exemplo, o pensamento crítico, a criatividade, a colaboração social e a resolução dos problemas deste tempo. Aliado a esses postulados estaria o uso das Tecnologias, como propósito que atravessaria a educação contemporânea tendo como objetivo integrar as tecnologias digitais de forma eficaz e crítica aos processos de ensino-aprendizagem. Todos esses termos se refletiriam nas redes agenciais da arte contemporânea, contudo, na formação do profissional da educação os esquemas e conduções curriculares preveriam a valorização e o investimento na formação inicial e continuada de professores, de modo a lhes proporcionar meios, recursos técnicos e teóricos necessários para lidar com os desafios da escola contemporânea na qual as artes, reduzidas a um campo pedagógico infantilizado, não significariam ou nem de longe remeteriam ao seu complexo campo. A questão aqui seria quando e em que condições se confundem e se imiscuem a arte como marca da humanidade e a educação como substrato fundante da permanência humana.

Certamente, os imaginários comprometidos com a Educação consistem em um processo histórico e dinâmico que antes de se moldarem às necessidades e desafios de cada época, sofrem as pressões dos interesses dos grupos dominantes, se um dia ela, livre do peso institucional, flutuou leve mais eficaz entre os grupos sociais, hoje tais formas de se dar sequer seriam aventadas na rigidez do constructo institucional em vigor. Tal como a Arte, entendida como resultado na necessidade intrínseca de produção do acontecimento estético cuja origem antecede a palavra, a Educação e seu tempo histórico exige esforços maiores ao seu entendimento do que os necessários às soluções de seus problemas, geralmente decorrentes do desenho do projeto que lhe reduz e territorializa. O postulado reiterado da Educação é a construção de um futuro mais justo, equitativo e próspero para todos, que se daria por meio da razão, por sua vez, projetada na modernidade, razão que efetivaria a análise crítica do passado e da reflexão sobre os desafios do presente, postulado que parece emergir do descarte de qualquer suspeição sobre os muitos regimes de certezas que consolidam o conceito de educação contemporânea.

Incrementando o panorama conceitual a respeito da Arte no âmbito da comparação proposta com a Educação, projetamos as primeiras considerações no espaçotempo (Alves, 2008) interrogando se a compreensão da Arte poderia ser reduzida à territorialidade conceitual ocidental moderna e se nesta ou para além desta, retrataria, como um dos aspectos centrais da aludida trama conceitual, a um momento histórico específico ou atemporal. Em que condições dialogaria com o passado, campo de disputa das memórias e sob permanente peso das tensões políticas, não diferente de um presente e dos riscos do futuro? A resposta a tal interrogação dependerá da perscrutação dos pontos e aspectos em que a arte ultrapassaria, assim como a formação humana originária de um passado inventado nas paredes de cavernas escuras, às convenções do seu tempo e dos demais tempos sob as tensões partidárias de mundos diferentes e até opostos.


Das Artes Contemporâneas ao Ensino da Arte

Mesmo sob o risco de serem eclipsadas pelas produções de valor estético como as imagens, os esforços comprometidos na formação humana também fizeram ecoar seus ganhos e suas conquistas através do jogo fugaz da criação poética e no anseio gratuito do incremento simbólico. As inscrições realizadas sobre as paredes das cavernas ou as formas sulcadas na superfície das rochas não teriam relação imediata com as práticas de sobrevivências e com o provimento das necessidades vitais senão, entre outros aspectos que nos são ainda incompreensíveis, a necessidade de praticá-los pela urgência mesma da sua efetivação. Assim tal força de mobilização do traço de valor estético não foi estranha à história de outras populações humanas, milhares de anos adiante, como é possível principalmente identificar nas primeiras incursões orientais, como o Império Egípcio e, no período clássico do hemisfério norte ocidental, com as sociedades gregas e romanas, onde, no primeiro, o traço cumpriu a estabilidade sacramentar da transmissão da cosmologia religiosa, enquanto nas últimas procurou atender à precisão e à economia calculada das formas ao lado dos remanescentes excessivos e desequilibrados da embriaguez popular. Contrariamente ao controle excessivo ou à compleição embriagada, há no Medievo uma preocupação com a produção indiscriminada do traço estético institucional e dos seus desdobramentos desgovernados sob a expiação da carne, que, no Renascimento, será sucedido pela individualização dos corpos e pela metrificação dos espaços como ocorre com a particularização dos traços da figura humana e o desenvolvimento da perspectiva no plano pictórico. Aqui, o processo histórico da Arte ocidental é retomado sob outros contornos e comprometido com uma narrativa de progresso em que o tempo sucessivo e totalizado da humanidade representa a finalidade do gênio na autodeterminação de si e conhecimento do mundo. A Idade Moderna consolida assim seu interesse pelo traço contemporaneizado e governado por uma história que sucede suas relações com os regimes anteriores de Arte e conduz constantemente a ultrapassagem das suas conquistas, sob a destruição, o esquecimento e a sobrecodificação inarticulada do traço do presente, universalizando-se em uma ideia geral de Arte. No século XX, as vanguardas e as neovanguardas artísticas europeias viriam intensificar o processo de engajamento com o tempo, fragmentando-se em resposta crítica às condições em que a Arte institucionalizada impunha ao desenvolvimento do traço da experiência poética. Dos cismas que se abrem na história recente da humanidade, a Arte Contemporânea impõe novos desafios e algumas conquistas que, reféns do imaginário moderno da arte, resultam ainda em respostas contundentes e significativas a eles, principalmente quando, na relação com o público, pensado em seus distanciamentos e similitudes com a Educação. Afuniladas, a Arte e a Educação, nas concepções ocidentais eurorreferenciadas, enfim, sob o peso do olhar e da tradução branca.

A despeito da intensa diferença dos processos, recursos, suportes, linguagens e técnicas empregadas, as obras contemporâneas têm em comum abarcarem relações estéticas que remetem à complexidade do mundo que as fazem emergir nos mais diversos espaços de produção, sejam ateliers convencionais, imaginários ou virtuais. O tempo como elemento base é um recurso incorporado à obra quando seu sentido se assenta nas tensões geradas pela fuga e pelo aprisionamento da materialidade, bem como nos impasses enfrentados no espaço e no discurso da arte que, pela ordem histórica da sua produção, ainda são percebidos sob o risco da sobrecodificação pela autodeterminação do sujeito. O tempo, como elemento de base, seria incorporado nas criações artísticas quando o sentido dessas dependesse justamente da passagem do tempo. Observando certas obras nos daríamos conta que seus autores manipulam o modo sob o qual vivemos e experimentamos a inexorável passagem do tempo. Os modos de experienciar a passagem e manipulação do tempo na cotidianidade, portanto, são também um dos modos de sua aplicação no limite da materialidade e da tecnologia artísticas que, pela citação ou rasura de elementos formais, materiais e simbólicos, estabelece no espaço um plano de exercício da expressão. Ao lado da aplicação das materialidades e tecnologias artísticas, encontram-se, como outro recurso frequente, as apropriações que evidenciam a desconstrução da condição de propriedade privada de imagens, imaginários, patrimoniação cultural e da economia do conhecimento, necessária à emancipação momentânea dos planos de expressão e à interrupção parcial dos estigmas das relações de poder.

Aliada aos pontos elencados a respeito dos investimentos praticados na cena contemporânea da arte, a corporeidade ganha aqui centralidade ao plasmar tanto a performance da presença inexorável do artista in gesto quanto a performance criada no labor e no percurso de produção do objeto. Na medida em que a sua própria modalidade já convencional e instituída na arte inclui processos fugidios na materialidade da obra de arte, a Performance soma-se ao hibridismo dos investimentos enunciativos, ao perspectivismo na modulação do olhar, à destruição dos registros expressivos e ao assentamento da obra sobre o texto.

O hibridismo ocorre como livre associação, imbricação ou amálgama de referências, materiais, mídias tradicionais ou inventadas assegurando o destaque ou predomínio do processo na realização da produção poética. A exploração de tais processos a partir de diferentes linguagens e materiais tem como efeito o deslocamento das posições instituídas tanto do sujeito artista quanto do sujeito espectador, dificultando a manutenção do princípio de autodeterminação pela saturação e pela acumulação de referências díspares. Por outro lado, o perspectivismo impõe deslocamentos que podem oferecer consistência à investigação da obra que, com sua localização intencionalmente estabilizada ou sua projeção anamórfica, sublinha processos de trabalho com o tempo e o espaço nos quais se situa o acontecimento da própria obra. O perspectivismo pode, dessa maneira, desempenhar um papel significativo na maneira como o espectador contempla a obra, levando ao deslocamento de suas principais referências e a reconhecer seus efeitos por outras vias a partir de novas interpelações e traduções do mundo.

Já a destruição, aspecto frequente em muitas produções contemporâneas, ocorre quando a proposta do artista inclui a desfazimento parcial ou total do objeto base para que essas intervenções permaneçam visíveis ou perceptíveis no produto, bem como a performance ou ato de intervenção destrutiva configure o registro/obra decorrente de todo o processo. A supressão ou desfazimento material da obra tem como efeito lançar o espectador a uma região de esvaziamento simbólico que, como todo ato de interrupção abrupta e violenta, pode confrontá-lo com a possibilidade ilimitada e, contudo, momentânea, de um excesso de significados. Finalmente, sem finalizar todas as possibilidades que envolvem a produção artística contemporânea, destacamos o texto quando narrativas textuais são agregadas às obras desempenhando múltiplos papéis, da forma visual à participação sígnica da composição, indo para além da ideia do texto concebido unicamente para a leitura convencional. O sentido incorporado pelo viés do texto agrega outro patamar à obra, numa profundidade que não seria alcançada sem a sua participação.

Apropriação, tempo, performance, hibridismo, perspectiva, destruição e texto seriam aspectos que intensificados e imbricados na produção artística contemporânea, podem ser observados como risco e hipótese nos planos que emulam a educação atual, assumidos nos processos e políticas públicas ou não lá se encontram nos cotidianos das relações entre os protagonistas das escolas. Das salas e aulas de arte, sob a singeleza ou ingenuidade de seus currículos praticados, a apropriação de saberes oriundos fora do panorama de aceitabilidade curricular, povoam corpos, gestos e o imaginário que os ativa; o tempo, dobrado, fragmentado, manipulado e ressignificado impõe seus efeitos na perenidade das aulas para além dos dias contabilizados nos planejamentos e demais convicções pedagógicas. A performance por sua vez, efetiva o que no plano da visibilidade controlada escapa. Faz a dobradura do tempo via a presença dos corpos em ação e dos sentimentos e sensações entrincheiradas frente ao moralismo trôpego, mas, vigente nos espaços escolares.

Considerando a Educação sob os mesmos aspectos que consideramos a Arte, o perspectivismo seria o meio pelo qual teóricos e investigadores evitariam elucidar seus enigmas ou mesmo o risco de confrontar a educação como um desafio insolúvel via seus instrumentos ideológicos, técnicos e políticos, na medida em que por mais que se inclua na pesquisa as condições e os condicionantes contextuais que a envolvem, ainda se mantém sua remissão conceitual à lógica indiscutível da ontologia escolar, de sua cena e de seus personagens. Como um teatro sustentado por pressupostos metafísicos, portanto, fora da alçada de qualquer investigação que ouse o risco da idiossincrasia científica. Um teatro que se encontra em tantos espaços e tempos atuais oco de sentido, com personagens vazios diante de uma plateia em autocriação, em autoformação escapando de toda sorte de intervenções convencionais. A escola, denominação abstrata diante de sua impossível universalização e das suas multiplicidades de formas de práticas, sujeitos e acontecimentos, não seria aqui reduzida à vacuidade que sua institucionalização a tem minorizado há séculos. Antes, a tomamos em suas travessias pelos séculos e suas consolidações como redes multidimensionais de práticas e performances criadas ao sabor da rebeldia de seus cotidianos, ou seja, desdobramentos poéticos livres sob a arrogância cega das políticas públicas e epistemológicas que as desejam fixar e estabilizar em categorias blindadas.

A Educação, assim como a Arte Contemporânea, se rende e se evidencia face à destruição dos suportes físicos e conceituais que a tem erigido. Tentando disfarçar a surpresa e a inabilidade diante da revolução tecnológica vivenciada pelo planeta nas últimas décadas. A Educação escapa a profusão de estudos e entendimentos que não admitem finalizações ou rupturas em sua existência, apostando ainda na fórmula convencional de seu acontecimento escolar. Se a Arte se sobrepõe ao seu sistema e sobrevive fora e dentro dele, a formação humana como propósito educativo, se dá surpreendentemente, mas, nem tanto, a despeito das regulações do sistema educacional e desconstrói monumentos pedagógicos e estratégias didáticas. E de seus escombros, estudantes e professores emergem em novas lógicas na poética de seus encontros. Aqui, a arte ainda assediada pela filtragem do que é palatável ao moralismo curricular, emerge nos corpos e identidades fugidias que dançam sobre as ruínas da clausura educacional e partem destas novas criações poéticas mesmo que clandestinas e limitadas aos encontros furtivos dos estudantes e alguns professores.

O texto e a Educação, se não em sua totalidade, são inseparáveis do que o primeiro a faz inaugurar e manter. O texto a institui e restaura, adentrando os espaços nos quais a escrita não é materializada, mesmo sem suporte físico, inunde o ar, a memória e o futuro, para além dos livros e materiais didáticos. Assim o texto criado por meio das imagens visuais e sonoras cresce célere e copioso e acessa subjetividades e as compõe. Nos processos convencionais da educação, o texto se confunde com seus cenários e performances e perderam seu tônus formativo ao longo do tempo e hoje enfrentam transformações inusitadas ao serem incluídos na realização da formação humana. Se no tempo de suas criações os modos de produção textual adequaram sinais, signos e suportes, hoje na obra complexa da autocriação individual e coletiva, o texto ainda mantém sua utilidade e sentido, contudo em outras textualidades, envolto em narrativas que amalgamam passado, presente e futuro. Quebram tempos, alicerçam destruições, hibridiza performances sígnicas e poéticas e favorece a atualização da compreensão da formação humana na criação de perspectiva aderente à reconsideração de sua temporalidade e acontecimento.

 

Considerações Finais

Ainda hoje, ao pesquisarmos os currículos oficiais do Ensino da Arte na Educação Formal face aos currículos praticados, constatamos oscilação constante. Ainda que predominem certas crenças metodológicas assimiladas fora de questionamentos, as artes contemporâneas passam ao largo de iniciativas eficazes. O que se passa no complexo universo das produções e exposições de arte desses tempos de agora não vencem a barreira posta pelas referências, tão exaustivas quanto superficialmente abordadas, de obras emblemáticas da arte moderna, se tanto. Contudo, práticas avançadas ocorrem com maior incidência nas classes conduzidas por professores recém-formados. Nessas turmas as novas gerações de professores de arte aportam procedimentos e performances, planejadamente ou não, que denotam semelhanças com a produção artística contemporânea, na medida em que parecem abertos ao questionamento das certezas estéticas coloniais e abertos à criação de práticas que envolvem suas turmas por meio da experiência e identificação estética. Não estaria aí algo central à produção contemporânea quando hibridiza belezas e sensações e desconstrói padrões e postulados rigorosos?

Portanto, premissas que reduzem a relação com a arte por meio de contextualizações rasas, na medida em que contextualizar a Arte Contemporânea exige uma multiplicidade de fontes raramente alcançáveis e muito menos facilmente partilhadas com crianças e adolescente, fruição, incontornavelmente aligeirada, devido à duração das aulas e a competição desleal com as mídias virtuais e seu assédio de permanente sedução  por meio das artimanhas de códigos e cultura visual raramente familiares aos professores. E, finalmente, a produção poética de intensidade limitada à capacidade docente de superar os dois obstáculos descritos e estimular suficientemente seus alunos para a experiência complexa e amalgamada entre o entendimento do acontecimento artístico na dimensão global, o desafio da experiência estética, por sua vez, inseparável da própria produção poética. Assim, a compreensão da vida como eivada de acontecimentos estéticos, simbólicos, imaginais que tensionam e fortalecem as redes subjetivas e as esferas do imaginário, bem como, o posicionamento crítico diante da capitalização do gosto, da Arte e dos muitos conceitos de beleza, parece ser cada vez mais necessária. De modo a Arte afirmar sentidos pertinentes à formação humana, por sua vez, compromissada com a sobrevivência coletiva para a qual as imagens da humanidade em permanente e volumosa produção sugerem ser a chave de leitura para a permanência de algum jogo de futuro.

Aqui, o hibridismo, o perspectivismo, a destruição e o texto surgem como possibilidade de diálogo entre a Arte Contemporânea e o Ensino da Arte que, no espaço institucional da Arte, investidos na compreensão das experiências poéticas, constituem estratégias artísticas eficazes ou acidentais de modulação do tempo e abertura de espaço para o imaginário da coletividade na formação humana. Para as instituições de ensino que, com o alargamento das experiências de compreensão humana, assumem o desafio contemporâneo de conquista do presente e elaboração do futuro, tais estratégias podem significar o manejo do tempo pela ação artificiosa e imaginativa da materialidade que envolve necessariamente uma abordagem artística, um ato poético de sistemática interpelação em prol de outras formas de presença e de ocupação dos mundos porvir. Nesse caso, como procuramos indicar ao longo do artigo, a performance mobiliza parte das estratégias contemporâneas de modulação temporal tendo como materialidade crucial e insuperável o corpo na sua relação com a coletividade.

Entendemos que, com as estratégias artísticas contemporâneas, o Ensino da Arte pode se beneficiar no sentido de uma elaboração do conhecimento acerca da experiência poética, de uma investigação do sensível acerca da construção do espaço, de uma mobilização do sujeito na formação de si e dos outros, sendo atravessados e desdobrados sob outras formas de relação na presença do mundo, no testemunho do olhar e na elocução junto às comunidades. Os hibridismos, os perspectivismos, as destruições e os textos no espaço escolar são, dessa maneira, operações estratégicas também de abertura dos currículos, dos espaços e das linguagens institucionais, das suas matrizes de conhecimento e das experiências que, em um sentido poético, para além dos estereótipos comuns aos currículos institucionalizados, possibilitam estudantes e professores o manejo das suas referências, dos seus léxicos e das suas materialidades na relação com as problemáticas contemporâneas.

Diante da impossibilidade de uma resposta conclusiva à problemática que encerra sob a diferença radical os dois imaginários coletivos, a Arte e a Educação, o ensino da arte ocorre de exercer a impossível tarefa do trânsito entre ambas pela ficcionalização dos possíveis, momentâneos e frágeis como são os jogos infantis, da relação entre alunos e professores com a linguagem em sua própria formação. Ainda o faz na impossibilidade do trânsito entre tais imaginários o tempo da repetição que, nos encontros cotidianos da sala de aula, coincide com a constatação do tempo presente na renovação coletiva da linguagem que adquire contornos poéticos, porque atravessada pelos desconhecimentos e pelas compreensões constitutivas de sua comunidade, bem como pelas urgências e pelas necessidades de recriação da materialidade entorno da qual professores e estudantes reconhecem pertencer ao mundo.

Dessa maneira, acreditamos que o ensino da Arte nos aproximaria da ideia de uma poética na formação humana e na estética artística, ela mesma de ordem excêntrica estranha àquilo que é instituído e categorizado como verdade, que, ao arriscar ser praticado na escola, faz da formação um gesto coletivo de abertura sem controle e possibilidade de condução ao reconhecimento de si mesmo e dos seus pares no contemporâneo.

 

REFERÊNCIAS

ALVES, Nilda. Tecer Conhecimento em Rede. In: ALVES, Nilda; GARCIA, Regina Leite (org.). O Sentido da Escola. 5a Ed., Petrópolis: DP et Alli, 2008, p. 91 - 99.

 

FERREIRA da SILVA, Denise. A Dívida Impagável. São Paulo: Casa do Povo, 2019.

 

MICHAUD, Éric. As Invasões Bárbaras: uma genealogia da história da arte. São Paulo: Editora WFM Matins Fontes, 2024.

 

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[1] Licenciado em Artes Visuais pelo Instituto de Artes/UERJ. Doutor pelo Proped/UERJ, bolsista CAPES, linha Redes Educativas e Cotidianos Escolares. Foi servidor da Educação Básica pela Fundação Municipal de Educação de Niterói. Integra o Grupo de Pesquisa Estudos Culturais em Educação, Saúde e Arte: Linha de Pesquisa Juventude Líquida: estética/educação/acontecimento; a Unidade de Desenvolvimento Tecnológico: Laboratório de Ensino da Arte (Instituto de Artes da UERJ). Professor Adjunto pelo Departamento de Ensino de Arte e Cultura Popular, do Instituto de Artes da /UERJ. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3658-2861. E-mail: victorjunger@gmail.com

2 Graduado em Gravura pela Escola de Belas Artes UFRJ e Licenciado em Educação Artística. Mestre e Doutor em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Professor visitante da Facultad de Belles Arts da Universitat de Barcelona 2017/2018. Professor Associado; Coordenador do curso de Licenciatura em Artes Visuais; Docente do Programa de pós-graduação em Artes - PPGARTES e do Programa de pós-graduação em Educação - PROPED, ambos da UERJ. Líder do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais em Educação, Saúde e Arte: Linha de Pesquisa Juventude Líquida: estética/educação/acontecimento; Coordenador da Unidade de Desenvolvimento Tecnológico: Laboratório de Ensino da Arte (Instituto de Artes da UERJ) e do Projeto Saúde e Arte (Unidade de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto- UERJ). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7132-8615. E-mail: avictorio@gmail.com