Por um olhar de ave: arte e infância entre linhas amarelo cumbuca amazônica
Through a bird's eye: art and childhood between yellow cumbuca Amazonian lines
Juverlande Nogueira Pinto [1]
Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho, RO, Brasil
Vanderleia de Lourdes Rodrigues Lopes de
Oliveira [2]
Secretaria Municipal de Educação, Rolim de Moura, RO, Brasil
Bianca Santos Chisté [3]
Universidade Federal de Rondônia, Rolim de Moura, RO, Brasil
Resumo
Um emaranhado entre arte produzida por crianças no espaço da educação infantil, docentes em formação e acadêmicos se preparando para a docência, disparam a escrita e expressam um movimento de composição para pensarmos a criança, a arte e a formação. Partimos das inquietações: De que modo as produções de crianças no espaço da educação infantil, na formação docente e na formação acadêmica, nos colocam a pensar a arte como linha que entrelaça, que lança, emaranha, para movimentar outras coisas nesses espaços. Assim, o primeiro bloco apresenta notas folha-borboleta, em uma aula no espaço da educação infantil, crianças encontram a arte como intensidade para inventar o seu mundo. O segundo bloco apresenta notas amarelo cumbuca, movimenta o corpo-formação com professoras de crianças pequenas, a artistar em encontros formativos, conectando arte, docência e crianças. O terceiro bloco apresenta notas verde verão, traz a arte para uma sala de aula, onde se forma pessoas para o exercício da docência com crianças na tentativa de tornar visível o invisível, onde a arte emerge junto à constituição de uma composição de traços, cores e sons. Por quais lentes queremos olhar a arte nesses espaços de vivências, experiências e formações? O que pode artistar, um espaço habitado por crianças, docente e acadêmicas? Esses movimentos nos permitem adentrar espacialidades contagiantes que mobilizam experiências sensíveis de pensamentos para outras formas de estar no mundo, criando outros sentidos e sensações nesses espaços.
Palavras-chave: Infância; Criança; Arte; Formação; Docência.
Abstract
An entanglement between art produced by children in the space of early childhood education, teachers in training and academics preparing for teaching, triggers writing and expresses a movement of composition to think about children, art and education. We start from the concerns: How do children's productions in the space of early childhood education, in teacher training and in academic training, make us think of art as a line that intertwines, that launches, entangles, to move other things in these spaces. Thus, the first block presents butterfly-leaf notes, in a class in the early childhood education space, children find art as an intensity to invent their world. The second block features yellow cumbuca notes, moves the training body with teachers of young children, artists in training meetings, connecting art, teaching and children. The third block presents summer green notes, brings art to a classroom, where people are trained to teach children in an attempt to make the invisible visible, where art emerges together with the constitution of a composition of lines, colors and sounds. Through what lenses do we want to look at art in these spaces of experiences, experiences and training? What can an artist do, a space inhabited by children, teachers and academics? These movements allow us to enter contagious spatialities that mobilize sensitive thought experiences for other ways of being in the world, creating other senses and sensations in these spaces.
Keywords: Childhood; Child; Art; Training; Teaching.
A arte* não quer mais ser vista por pessoas razoáveis:
Ela deseja ser olhada de azul —
Que nem uma criança que você olha de ave.
(Barros, 2010, p. 302)
Esse
ensaio emerge do encontro de três professoras e pesquisadoras que compartilham
o encantamento por um olhar de ave, por infâncias, pela arte em suas
multiplicidades e pela docência que experimenta e se anseia criança.
Inauguramos esse encontro com as palavras do Manoel de Barros que se junta a
nossa busca por uma escrita que se compõe com poesias, imagens, crianças e
fabulações, que nos ajudam a provocar uma arte ainda na infância, uma arte
menina, travessa, traquina, e quem sabe encontrar uma arte ainda em estado
virgem, uma arte com olhar azul, sob a aliança de uma infância que a
experimenta como já não somos capazes. Acreditamos que a arte se produz com a
infância em um estado ainda casto. Ela rabisca, esboça, se movimenta, se atrai
pelas linhas, pelas curvas, pelas cores, pelos corpos, por seus desenhos, suas
referências, mas não se apega às suas demandas enquanto uma disciplina.
Ao tramar em desvios aos modos maiores de organização, ao ignorar as demandas e dinâmicas rígidas dessa arte escolarizada, didatizada e pedagogizada a infância provoca e despretensiosamente faz nascer dela outra coisa, depurada das práticas colonizadoras, dominantes e adultas, sem batismo, estrangeira e efêmera a tal ponto que escapa das nossas capturas.
Pela convocação da infância, como experiência, como acontecimentos, como resistência, como abertura e como invenção (Kohan, 2007), comparecemos neste texto na tentativa já falha de adquirir um olhar de pássaro e com ele aumentarmos os desacontecimentos. Entre lampejos de imagens e fabulações e notas (como se tivéssemos retirado de um diário de viagem) nos permitimos um deslizar e uma desordem de um modo de produzir pensamento, na busca que o que seja dito tenha a abertura para inaugurar outros deslizes.
Nosso convite é para que sigam um modo de pássaro pregado no olhar, que às vezes nos distrai e nos conecta a uma experimentação poética. Nos lançamos entre nossos registros e devaneios que se encontram (e desencontram) em blocos e notas e imagens e desenhos verbais como quem se encontra com entusiasmo para grafitar uma parede e no transe dessa magia pensamos e experimentamos uma docência como um modo de engendrarmos saberes em meio à vida.
Bloco I - Infância da arte
folha-borboleta
[...] O olho vê, a lembrança revê, e a criança transvê. Isto seja: homem deu a forma. As crianças deformam. É preciso desformar o mundo: Tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde, por exemplo [...].[i] (Barros, 2010, p. 349-350).
[Nota 1] Infância através da arte é um convite a emaranhar por entre folhas, verde, cores, fios e desvios em um exercício de deslocamento de si e do mundo. Lançamos a experimentar com uma composição em movimento de imagens que alinhavam a arte produzida por crianças no âmbito da educação infantil. Arte que nos coloca a pensar sobre o movimento da criança com um pincel, uma caneta, um giz nas mãos a inaugurar arte em devir. Rabiscos, gotas de tintas, imagens, cores, que diz muito das crianças, das infâncias que elas nos apresentam no caminho do quintal escolar, no chão da sala de aula, arte que emergem das pequenas mãozinhas de crianças. Inquietações que provocam nossos olhares a partir do nosso encontro com as crianças em movimento entre cores, arte, invenção, criação, e, e, e... Uma arte por crianças que nos apresentam os despropósitos de nos levarem a um lugar incerto e inseguro. Pensamos aqui a arte por crianças, como aquela que inventa mundos, lugares, cores, formas, traços que são outras coisas, imagens que reverbera um outro modo de estar e ser no mundo, arte como jeito que expressa vida, que pulsa vida, cor, pensamento, invenção…
[Nota 2] Crianças artistando em contato com o mundo sensível e afetivo de traços, cores, texturas, gostos, modos, sabores, gestos, sons... o que nos diz as crianças em seus traços? O que elas querem expressar com suas cores vibrantes, opacas, tremidas? O que podem as crianças produzirem na artistagem do fazer arte no espaço da educação infantil? A arte nos tira do lugar de quem ensina e movimenta a criança a sair do lugar de quem é “ensinada” para inventar-se, a arte convida as crianças a se desterritorializar das paredes da sala de aula para que as experiências inaugurem pensamentos e ́possibilite conhecer o mundo. Exercício do olhar, de construir, inventar, criar, a partir das vivências entre crianças, infância e arte. Um caminhar que possibilita o deslocamento do olhar que se constitui em experiência. Conforme Larrosa (2020, p. 32), “duas pessoas, ainda que enfrentam o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência”. Desse modo, a experiência se dá diante do vivenciar acontecimentos. Podemos dizer que as crianças experimentam o tempo todo, nas vivências cotidianas expressam a vida, como um espaço de experimentação. As crianças percebem o mundo a sua volta de um outro modo, com um toque díspar e peculiar, pois sua astúcia sensível permite inventar o mundo com as sensações que encontram nas experiências físicas, intelectuais e afetivas vivenciadas, para elas, suas criações é a sua pequena e valiosa história, onde um fluxo atravessa.
Olha, olha, esse sou eu.
Onde? cadê você?
Aqui, aqui, bem aqui?
Uai, só estou vendo verde, você pintou tudo de verde?
Não, pintei não. É que estou no meio das plantas. Espia só. (Crianças, 2024).
[Nota 3] A arte produz intensidades, opera
sensações que se fazem no acontecimento, na criação, na invenção de modos
possíveis, de lugares a serem habitados por corpos em movimento. A arte provoca
olhares perceptivos de expressividade, sensibilidade de diferentes modos. Nas
mãos das crianças cores deslumbram olhares atentos, sensações se embaralham,
mudam, desnudam no encontro dos traços que se faz no papel, mãos que vão sendo
guiadas pelos movimentos brincantes das crianças, se transformando em rastros, respiro de infâncias,
vestígios de arte. O tempo fica em suspense, a criança diz: olha é mágica!
Que mágica? É
mágica. Arte-mágica. Movimentos de encontros de
crianças-arte, traços que se deslocam enquanto são atravessadas pelas
experiências vivenciadas que compõem a arte. É mágica que cirandeiam nas mãos
das crianças? Cores, texturas, traços, sons que pulam em um passe do papel para
o chão, para a parede...
Iluminuras que se fazem, se desfazem e
se transformam em outras coisas.
Vídeo mágica-arte https://youtu.be/OC6uQVrxnRc
Arquivo/SEMEC/ RM/2024.
[Nota 4] O que pode um espaço habitado por crianças e arte? O que podem crianças que em meio a rabiscos e riscos e se lançam a observar as miudezas, inventar mundos não habitáveis por meio da arte? Crianças e infâncias problematizam, sacodem a arte no espaço da educação infantil? As crianças fabulam a arte nos espaços que elas produzem? Movimento de crianças e a arte como afeto, como abertura, como “linguagem das sensações, que não tem opinião, que não comunica, mas expressa” (Deleuze; Guattari, 1997, p. 228). Parece que as experimentações atravessadas pela infância no espaço da educação infantil vão constituindo um modo de produção da arte pela arte que se produz, enquanto as crianças em seus afazeres rotineiros experimentam as sensações, os sentidos e os afetos com o que as atravessam como um acontecimento inaugural. Sensações que movem as crianças que operam com arte, sentindo o chão, as cores, texturas tocando a pele, escorrendo pelo corpo, corpo afora, experiência que implica abrir-se ao acontecimento que perpassa os fluxos, os agenciamentos, excedendo todo e qualquer mundo já vivido. Pensar a arte como criação brincante é um modo inventivo para experimentar o exercício do olhar para pensarmos como a infância opera com a arte no espaço da educação infantil. O fazer das crianças com a arte escapa de qualquer codificação do fazer infantil? Para Deleuze (2010, p. 37-38) “A arte escapa da codificação do signo, criadora de signos próprios, imateriais, por que não remetem à memória, não tem explicação”.
[Nota 5] O chão da sala de aula, os espaços
verdes do quintal escolar, convidam as crianças a experimentar… experimentar
outros modos com a arte em uma bricolagem no entre do balancear das folhas, das
abelhas polinizando as flores, do bater de asas das borboletas, do sussurrar do
vento, do colorido no papel que realça o cenário de criação da
artistagem-infância. Esse movimento encontra as crianças atraídas pela arte,
crianças encontrando por si só, caminhos para formar seu mundo. Registros,
cores, marcas, indicam linhas sem ponta, que escorrem, transbordam, adentram fissuras da
inventividade. Traçados, sem forma preexistente, formas que deformam, que
descontinuam, alinhavam, embaralham, cores, natureza, experiência, crianças...
arte no
balanço
do vento, movimento criança-arte um movimento experiência. Para Barbieri (2018, p. 245), as
experiências das crianças com a arte “são como notas de uma composição, em que
uma traz a outra, com ritmos e atmosferas diversas, ou como partes de um conto
em que um acontecimento muda tudo o que está por vir [...]”. Experiência-arte
que muda os modos, o jeito, como água que escorre, invade território,
desterritorializa o espaço da educação infantil. O mundo torna-se sensível às
crianças ou as crianças produzem um mundo sensível? Crianças que se deslocam,
se movimentam a experienciar abertas à poética que se faz no encontro infância
e arte. Produções artísticas que possibilitam experiências pelas sensações,
pelos afetos que nos atravessam em um movimento de força, que se emaranham na
intensidade da invenção na caminhada, que se desdobram para ver coisas outras.
As crianças, habitadas pela infância, se lançam a observar os detalhes no
caminho, as miudezas nos encontros, abertas a inventar mundos não habitáveis.
Como nos diz Leite (2011, p. 116), a “infância pela criança nos apresenta um
mundo de reticências, um mundo pontilhado de possibilidades”. Pensamos assim em
mundos possíveis, em infâncias povoando o espaço, crianças habitando a arte e
sendo habitadas por elas em um emaranhado de/com riscos, risos, olhares,
traços…
[Nota 6] A criança-arte borboleteia, sobrevoa,
voa, revoa, transforma, torna, (des)torna, colore o colorido da cor, da arte
arteira. Criança, cria, criançando, brincando, artistando. A arte se fazendo criança,
inventando, criando e experimentando. Um encontro se faz em manhã de sol, vento
fresco, folhas caindo sorrateiramente, borboletas soltas levadas pelo vento,
verde azulados, amarelo orvalho fresco. O bater das asas colorindo o silêncio
que se ouve de longe. Grito de crianças em transe, o espanto da novidade do
novo. Borboletas rodopiantes bailando no espaço como uma bailarina em dia de
apresentação. Asas levadas pelo sopro que ventava um pouco mais forte. Já
estávamos no entre daquele movimento com as crianças, mas não teve como não
aproximar o olhar, nenhum outro ser no mundo teria a ousadia de trombar no invisível como o
ser folha-borboleta verde anil naquela manhã.
De repente uma criançada esbaforida grita:
Ela caiu na tinta!
Meu Deus ela caiu na tinta mesmo.
Ela escorregou, será?
Não ela pousou.
Sim, sim ela pousou, olha ela está pintando os pezinhos.
Agora voou, foi embora.
Não, a borboleta não foi embora, pousou na folha verde.
Pintou a folha de anil. (Crianças, 2024)
Corpos continuam se movimentando, crianças, borboletas, folhas secas cor de mel também se faziam dança... E as crianças? Dança que convida coisas... flores, folhas, borboletas, que já não são, que se movem, cores outras, escorrem entre os dedos que experimenta. Criança ainda artisteia? Folhas verdes de muitos verdes se entrelaçam, formando outras cores, sabores, texturas. Borboletas na sua dança escorrem a vivenciar, a vaguear outros lugares... A aquarela de tintas. E porque não experimentar?
Bloco II - Ressonâncias por entre linhas... criança lança, formação se lança. O que pode o docente por entre linhas-arte?
[Nota 1]
[Nota 2] Cores. Flores. Cumbucas. Aromas. Texturas. Corpos desejantes. Cheiros-cores. Cores-cheiros. A linha acontece, atravessa. Linhas cortantes. Linhas-máquinas. O que podem os corpos-professoras em movimentos inventivos? Não há um plano nos encontros, mas o desejo de se pôr a caminhar por entre linhas afetadas por cores, cheiros, invenção... ou seria a produção de modos de vida professora-arte? “Indivíduos ou grupos, somos atravessados por linhas, meridianos, geodésicas, trópicos, fusos, que não seguem o mesmo ritmo e não têm a mesma natureza. São linhas que nos compõem.” (Deleuze; Guattari, 1996, p. 76). Que linhas atravessam os corpos-professoras em encontros-formação-arte? O que move as linhas? Que linhas? Quem lança as linhas? A criança, como seu modo próprio de habitar o mundo, e de o operar com ele, lança a trama. A trama se entranha, se estranha, se lança a novas conexões capturando o corpo-professora-formadora. As linhas, a trama seguem envolvendo novas conexões com o verde amora, corpo-professora, amarelo cumbuca, texturas e cheiros. A professora formadora se vê inebriada, atravessada, pousa a mão sobre a pele devir-árvore-rochedo. Um encontro com uma árvore em devir? A mão percorre as fissuras da pele, o olhar se aproxima, as cores se misturam, a textura toma o corpo. Que encontros acontecem e atravessam um corpo-formação?
[Nota 3]
Estou atravessando um período de árvore.
O chão tem gula de meu olho por motivo que meu
olho tem escórias de árvore (Barros, 2010, p.322)
O olho-formadora tem gula. O que o olho-formadora procura? Estaria o olhar da formadora a percorrer entre as fissuras de uma árvore amazônica em busca do que não se sabe, ou seria a devir-árvore rochedo provocando outros devires? Um corpo-formação que já opera e é operado antes mesmo do encontro formativo? Um encontro com a arte nas fissuras da árvore-paredão-rochoso, nos cheiros verde pedra, no movimento da água com seus encontros infindamente? Talvez seja uma formação da diferença querendo se fazer, subjetivada das flores, das sementes, da pele de árvore, da terra, dos cheiros, do abraço do vento.
Assim
O
Vento
Rodopia
Ouço Manoel de Barros gritar de longe ...Bernardo é quase árvore! O silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe...Estaria Bernardo subjetivado pela árvore? Ou seria Bernardo devir-árvore? O corpo formação deseja ser coisa outra, se artistar de modo outro. Que subjetivações? Que modos outros de artistar? As linhas seguem a trama e se fazem linhas outras, elas já são outras. A criança continua a lançar. Um lançar que ganha intensidades, novas conexões. Um engendramento que ganha velocidade. Uma árvore outra. A pedra com cheiro de verde. Bernardo que já é árvore.
[Nota 4] O vento faz seus rodopios, emaranha as linhas. As linhas tramam. “A variação contínua tem apenas linhas ascéticas, um pouco de erva e água pura.” (Deleuze; Guattari, 1995, p. 35). Uma linha-formação se fazendo e ao fazer-se cria novas conexões. Que atravessamentos produz uma linha-formação? Que intensidades operam? Uma linha-formação com cheiro amazônico, o que pode? Uma linha-formação, um corpo-formação que habita um espaço amazônico com cheiro de lodo, cheiro amarelo. Artistar a docência atravessa e conecta linhas desejantes de encontros com corpos-professoras de crianças pequenas. A criança joga a linha. Lança a trama. Encontro formativo que deseja outrar, criar, inventar, criançar, infanciar, artistar, assim desterritorializa, cria linhas, “há, nesse caso, como que verbos no infinitivo, linhas de devir, linhas que correm entre domínios, e saltam de um domínio a outro, interreinos.” (Deleuze; Parnet, 1998, p. 55). Ecos e artistagem de formação com cheiro de verde pedra amazônica.
[Nota 5] O que pode uma artistagem docente com
crianças pequenas? O que pode um encontro formativo-artistar? Um encontro
formativo em movimento com arte, com o ofício de professora, vida de
professora, em engendramentos com as artes visuais, na desterritorialização com
cortes das linhas. Corpos-professoras atravessados pelas linhas. Emaranhados de
linhas-arte. “Quase num movimento caleidoscópio [...] metamorfoseando-se em
sujeito e objeto em fluxos e intensidades.” (Dias; Rodrigues, 2019 p. 108). Um
movimento com fluxos e intensidades em encontro formativo amazônico. Um
encontro amazônico. Um corpo-docente com ressonâncias amazônicas. A criança
lança a trama, a amazônia emaranha, desloca com cheiro verde pedra.
Pode uma cor já não saber que cor é?
Um manjericão outrar.
A flor amarela que captura o olhar de quem
percorre um sinuoso caminho amazônico,
foi ela mesma capturada por outra cor,
por outros aromas, por outras texturas...
as linhas atravessam por toda parte... se emaranham...escorrem.
As conexões ganham velocidade. O corpo-docente experimenta as sensações ao “perceber-se em miração, deriva para olhar, conhecer seu próprio modo de estar, em paisagem aberta, olhando o que não foi visto.” (Barbieri, 2018, p. 248). Um modo de estar e ser docente da diferença que em sua travessia com a arte visual, arte com cheiro e tom amazônico, provoca deslocamentos. “Nesse sentido, o docente carrega sempre, em si, alguma forma de indeterminação originária e possui uma pura potencialidade de atualização.” (Corazza, 2012, p. 98). Corpo-docente em devir, que em suas experimentações cria linhas amazônicas com arte e criança.
Bloco III - E-ducando o olhar: arte, infância, criança, eu, você, nós ... emaranham-se…
[Nota 1] A fim de percorrer um olho, desde seu nascer até seu fechar, teremos que aprender como ele recebe os raios do sol e como ele anoitece com a lua. Teremos que saber como ele reage às cores verdes no verão e ao amarelo terroso no outono. Como ele acolhe à chuva, o alarme dos peritos, as folhas avermelhadas do cajueiro e a castanheira em floração. Teremos que encostar os olhos no escuro para ter vaga-lumes. Teremos que produzir em nós piscadelas para as miudezas. Para percorrer um olho temos que exercitar a distorção em modo árvore e boto e vento e uirapuru e…Teremos que aprender a marcar com nosso piscar o chão do mundo. E teremos que aprender por final a arte de ser invadidas ao mesmo tempo pela cobra de prata que se desenrola na sombra e urra na baía e pela força das árvores que se lançam à vida em muitos tons.
[Nota 2] O que vemos quando observamos o que
emergem do chão? Como escapar de dizer que algo evapora do chão? Como fugir
desse olho que busca a identificação pelos olhos, pela imagem que o olhar
produz? Com que olhos desejo ver? Como desidentificar a arte? Arte brota ou
rizomanseia? É arte um estado, um afeto, uma sensação? Há uma melodia na arte
que se espalha pela grama? Se me coloco na escuta da arte, o que ouço? Posso
escutar seu sorriso de uma ponta à outra quando formigas cobertas por folhagens
transitam apressadamente? Há um aroma na arte disperso na estrada sem rumo e
sem fim? Que cheiros ela produz? Seu perfume pode ser mapeado pela vastidão de
um odor que se entrelaça em alianças? Se a arte tivesse ossos, como os pés,
poderiam baralhar-se a sentar por momentos, entrelaçando-se na pouca terra?
Teria a arte um espírito no outono? É rabisco das folhas trazidas pelo vento norte?
Está a arte encostada nas gotas de água que se estende até tocar um corpo ao
abandono? A arte dormindo é um corpo abandonado em modos de lonjura? É a arte
usada para ler um labirinto à espera de uma vida pela sua passagem? Esconde-se
deitada sobre um corpo ao longo das margens, um esconderijo? Mais brilhante que
fogo, mais frenética que formigas, mais saborosa que bolo
mesclado, ela explode como se houvesse de ir buscar ou levar algo ao (in)
visível mundo. Ela tintila na fragrância de alecrim e barro, numa mistura de
fim de tarde e de tilintares de gomas no alcaçuz da sombra incerta de um
passante. Arte desagrilhoada para pequenas conversas acerca da necessidade de
continuar a viver uma vida entrelaçada, ousada e muito louca!
[Nota 3]
O estranhamento[ii]
do homem enquanto ser natureza ao adentrar em ambiente natural: uma
floresta densa, sem internet, celular, mapa e lanterna. A sensação é de estar
em casa ou habitar um espaço que não lhe pertence? Estranhamento, ruídos,
despertencimento. Como o corpo compõe com o ambiente? O que pode um corpo? O
que pode arte no e pelo corpo? “A arte luta com o Caos, mas para torná-lo
sensível”[iii].
Com quantos nós se faz um laço? Com quantos traços se faz
um rastro? Com quantos paus se faz um barco? Como fazer manivela para pegar no
sono? Como fazer um apanhador de amanhecer? Umas e outras coisas a gente
aprende na infância[iv].
Inventar é aumentar o real em um tom[v]
O que encontramos quando
olhamos para o chão? O chão cheio de poros, fermentado de raízes, galhos secos,
gravetos frescos, penas de pássaros, folhas e pedras nos atraem. O chão pari a
árvore. No chão ouvimos as origens da terra. No chão passam galhos de pau
movido a borboletas. Os galhos apoderados de cantos, até o chão se enraíza de
seu corpo. Os galhos são empassarados de sol e o sol gosta de entardecer entre
os galhos. Neste trabalho gravetos, galhos e linhas expressam vida, se
engravidam. E desprendem. Despencam. Estalam Carregam ventos. Criam barulhos
enormes. Vazam por eles. Cavam e recavam novos espaços. E desandam
adoidados…assim uma instalação se compõem com
folhas
gravetos
linhas
fitas
galhos...
[Nota 4] Como a arte emerge junto à
constituição de um território sala de aula? Uma sala de aula onde se forma
pessoas para o exercício da docência com crianças. O que pode um pensamento,
que tem como ponto de partida uma imagem dogmática, produzir a partir de uma
problemática? Caminhar por outros territórios munidas de instrumentos que
aumentam o nosso olho. Passear, vagar, observar, calar, sentir, capturar. O que
está diante de nossos olhos, mas comumente, não vemos? Tornar visível o
invisível. Uma sala de aula se compõe com corpos, água, luz calor, ar, grama,
chão, céu, ritmos, velocidades e pensamentos em um exercício de bricolar com
imagens capturadas e cores e papel. Transpor limites para extrair deles
movimentos inventivos de imagens ainda por vir. A arte emerge junto à
constituição de um território, composição estética que é “um jorro de traços,
de cores e de sons, inseparáveis na medida em que se tornam expressivos” (Deleuze
e Guattari,
1992, p. 283).
[Nota 5] Que invenções acontecem numa sala de aula de arte para formar pessoas para o exercício da docência com crianças? Que formações são inventadas tomando a arte como disparadora de pensares? Escutamos assim: não gosto de arte! Não sei desenhar! Nunca viajei pelo meu corpo! Enfrentamentos de medos, de crenças, de modos vinculados a poderes e saberes. Enfrentamentos dando a pensar os modos de operar e inventando tantos outros modos de operar e viver. Corpos mexidos, deformados, abalados, provocados vão se apresentando. Passeiam e arriscam caminhos e trajetos distanciando-se das amarras constituídas por uma disciplina escolar. Trilhas na invenção de si, na invenção de pensamento, na invenção de tornarem-se professoras de crianças, professoras de crianças, por vir, no enfrentamento da disciplinarização da arte. Encontro de corpos, entre corpos, com corpos. Corpos: árvore, solo, ave, Barros, som, dança, criança, poesia, infância, água, barriga, cotovelo, perna, ritmo, eu, você, linhas, traços, cores e Multiplicidade. Composição que se faz com o fora, com as forças exteriores à própria arte. Movimento, fluxos que rasgam, como a força de um grito, para que a brisa de uma noite de março, as intensidades, passem por meio deles. A arte pedindo passagem para criar seres de sensações, blocos de afectos que, para além da fronteira imposta pelo tempo, lugar e espaço, segue produzindo seres sensíveis ao mundo e a vida em um canto amazônico.
[***]
A arte movimentada pela criança, que se lança as experimentações outras, que se aventura pelas texturas, que escorre pelas cores, o que pode? Que ressonâncias provocam? Uma linha-arte trama, se emaranha. Uma linha lançada não no acaso, mas no modo desacaso pelo modo infanciar da criança e seu olho inventivo, sensível, olho de trasnver o mundo, que afeta, atravessa um corpo-formação, um corpo-docente que se tornam máquinas desejantes, ou até mesmo professoras em devir em movimentos de desterritorialização.
O que pode uma docência metamorfoseando? Que deslocamentos encontros de formação com cheiros amazônicos, com árvores em devir provocam? Um emaranhado de linhas que não param de produzir conexões heterogêneas, conexões desejantes de habitar outros territórios para artistar, produz uma política sensível do olho, do corpo-experiência.
Galhos. Amarelo cumbuca. Chão vermelho.
Folhas. Sons de pássaros. Mágica-arte. Um território amazônico habitado por
corpo docente que se lança em linhas desejantes. Um corpo docente que quer
outrar, sentir o cheiro da pedra e assim como a criança, enxergar um cavalo
verde... ou seria um corpo docente da diferença com a criança, com a arte, com
infância? Um corpo docente da diferença que habita a Amazônia e que movimentada
por ela e pela criança se engendra com arte-máquina desejante. A criança lança
a linha, a trama se entranha, cria multiplicidades...o verde capivara acontece.
ENCONTROS
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DELEUZE, G. Proust e os signos. Rio de Janeiro; Forense Universitária, 2010.
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Notas
[1] Juverlande Nogueira Pinto, Doutoranda em Educação Escolar no Programa de Pós-graduação em Educação Escolar - Mestrado e Doutorado Profissional (PPGEEProf), pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Mestra em Educação Matemática pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR (2022). Especialista em Ensino Lúdico (2018). Especialista em Educação Infantil - práticas de sala de aula (2019). Graduada em Pedagogia pela Faculdade Panamericana de Ji-Paraná (2013). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7362-1885. E-mail: juverlandepinto@gmail.com
[2] Mestra em Ensino de Ciências da Natureza (PGECN), pela Universidade Federal de Rondônia, Campus de Rolim de Moura – UNIR (2022). Especialista em Administração, Orientação e Gestão Escolar; Gestão Pública e Gestão de Pessoas e Educação Escolar e Inclusiva. Graduação em Pedagogia pela Universidade do Tocantins (2008); Administração pela Universidade Norte do Paraná (2009) e Letras pelo Centro Universitário Fael (2024). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8935-6326. E-mail: leiaeduc.infantil@gmail.com
[3] Bianca Santos Chisté, Universidade Federal de Rondônia, Campus Rolim de Moura. Pós-Doutora em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista - Rio Claro. Doutora em Educação Matemática pelo PGEM/UNESP/Rio Claro (2015). Mestra em Ciências da Linguagem (2009) pela Universidade Federal de Rondônia. Possui Especialização em Alfabetização (2004) e Graduação em Pedagogia (2001). Realizou estágio de pós-doutotramento no PGEM/UNESP/Rio Claro (2019). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1962-0256. E-mail: bianca@unir.br
[i] A palavra em destaque foi substituída para adequar ao contexto.
[ii] Performance realizada por acadêmicos do VII período de Pedagogia, da Universidade Federal de Rondônia, Campus Rolim de Moura, em um encontro da disciplina Fundamentos e Prática do Ensino de Artes.
[iii] DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é filosofia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2000. p. 263.
[iv] Instalação do Portal Infância, organizada por acadêmicos do VII período de Pedagogia, da Universidade Federal de Rondônia, Campus Rolim de Moura, durante encontros da disciplina Fundamentos e Prática do Ensino de Artes.
[v] Instalação “Inventar é aumentar o real em um tom” organizada por acadêmicas do VII período de Pedagogia, da Universidade Federal de Rondônia, Campus Rolim de Moura, durante encontros da disciplina Fundamentos e Prática do Ensino de Artes.