Docências descafetinadas: movimentos de criação no ensino das artes

Enseñanzas descafetinadas: movimientos de creación en la enseñanza de las artes

 

Marcela Bautista Nuñez [1]

Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil

Cristian Poletti Mossi [2]

Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil

 

Resumo

Este artigo explora o entrelaçamento teórico, filosófico, artístico e experimental de um projeto de doutorado em Educação e Artes que investiga os movimentos e afetos surgidos no fazer investigativo e na docência, sob a ótica das filosofias da diferença. Aliado às obras de Suely Rolnik, Sandra M. Corazza, Gilles Deleuze e Félix Guattari, o cerne deste estudo reside na desconstrução da figura convencional do “ser-docente-pesquisador” para um “estar-docente-pesquisador”, talvez mais fluído e criativo, capaz de criar novos caminhos e experiências educacionais. Para isso, é preciso resistir às forças que cafetinam (Rolnik, 2018) a potência criativa das/dos docentes e pesquisadores em diversos processos, o que acarreta uma despotencialização e um constrangimento, afastando-nos da nossa essência germinativa (Rolnik, 2018). Afirma-se, assim, a necessidade de uma docência-pesquisa da diferença (Corazza, 2009) que questione a si mesma em seu fazer-se e que permita explorar outras possibilidades, com uma atitude paseandeira em seus percursos inventivos.

Palavras-chave: Docência em artes; Pesquisa; Cafetinagem; Pasearse; Criação.

 

Resumen

Este artículo explora el entrelazamiento teórico, filosófico, artístico y experimental de un proyecto de doctorado en Educación y Artes que investiga los movimientos y afectos que surgen en la labor investigativa y docente bajo la óptica de las filosofías de la diferencia. El estudio se alinea con las obras de Suely Rolnik, Sandra M. Corazza y Gilles Deleuze y Félix Guattari. El núcleo del artículo reside en la deconstrucción de la figura convencional del "ser-docente" hacia un "estar-docente" más fluido y creativo, capaz de crear nuevos caminos y experiencias educativas. Para ello, implica resistir las fuerzas que cafetinam (explotan) (Rolnik, 2018) el potencial creativo de los/las docentes en diversos procesos, lo que resulta en una despotenciación y constricción, alejándonos de nuestra esencia germinativa (Rolnik, 2018). Se afirma la necesidad de una docencia-investigación de la diferencia (Corazza, 2009) que se cuestione a sí misma en su propio hacerse y que permita explorar otras posibilidades, con una actitud paseante en sus recorridos inventivos.

Palabras clave: Docencia en artes; Investigación; Cafetinagem; Pasearse; Creación.


 

Este texto é um entrelaçamento entre teoria, vivências e experimentações que deram corpo e fizeram parte da produção de um projeto de doutorado em Educação e Artes. Trata-se de um trajeto investigativo que se dedica a pensar os movimentos da pesquisa e da docência sob as lentes teóricas das filosofias da diferença. Para tanto, estabeleceram-se alianças junto às obras e aos pensamentos de autoras e autores como Suely Rolnik (2016, 2018), Sandra M. Corazza (2009) e Gilles Deleuze (1997, 2022). Com o auxílio dessas autoras e desse autor, percorreram-se os caminhos investigativos, produzindo movimentos que possibilitam novos trajetos, que se compõem junto ao seguinte problema-bússola: como uma pesquisa em remetência pode descafetinar a si e o fazer docente no exercício da educação? São caminhos que ganharam forças ao mesmo tempo em que ganhavam corpo, inventados junto a diversos arranjos em composição e movimento. São intentos contínuos de fazer uma escrita que desvie das forças que estimam a sua captura. São ensaios para lançar-se junto às imagens com o desejo de viver e debutar quantas vezes for necessário, de metamorfosear-se a cada passo, de deixar-se contagiar pelas mais variadas ideias e forças que envolvem os planos moventes da pesquisa e da docência em artes.

Trata-se de caminhos traçados e esboçados ao mesmo tempo em que se produz a investigação, cujos trânsitos acontecem por meio do pasearse investigativo, método que possibilita a criação e o adentramento em tais trajetos. Essa noção é operada como um método investigativo que tem como potência a produção de problemas e a criação de caminhos para transitar pela investigação, pela escrita e pelos modos de deixar-se afetar pelas experiências e experimentações. Trata-se de uma atitude investigativa que opera em si mesma um produzir-se, acolhendo as nuances e intensidades dos processos. Desse modo, podemos performar como paseandeiros e paseandeiras pela pesquisa, produzindo torções entre filosofia, artes e educação.

A docência em artes e a pesquisa não são caminhos solitários; eles estão intimamente em contínua composição com outros corpos, imagens e conversas, mostrando-se, assim, em um movimento constante, concomitante à vida. Aprendemos com as pessoas, com os relatos de experiências, escambos, leituras, filmes e imagens; aprendemos em grupos, em movimentos que denominamos na investigação como remetências. São trocas de distintas ordens, afetos compartilhados que, sem uma espera a priori, constituem uma aposta no mistério do que pode vir a ser – uma maneira outra de relacionar-se com o tempo e conjugar nossos pensamentos e nossas problematizações junto ao gesto da escrita.

Penamos ao fazer como o outro, ao repetir e ao nos privar de inventar docências outras e modos de estar pesquisador/a e habitar o mundo. Afirmamo-nos em nossas diferenças quando estamos disponíveis à criação de outros modos de habitar a docência e a pesquisa. Porém, tal movimentação não acontece de antemão ou sem esforço, pois, por diversas vezes, “[...] nossas forças de invenção, de criação, são canalizadas no sentido do que é esperado de nós, ou melhor, do que pensamos ser necessário para termos acesso aos mundos desejados. Passamos a desejar o que esperam e estimulam que desejemos!” (Valentim, 2022, p. 38).

Contaminados por esse pensamento, aliamo-nos a conceitos e a autoras e autores para compor nosso plano de pensamento. Interessamo-nos em como se dão os movimentos de resistência às forças que nos incitam e seduzem a seguir padrões a priori de criação, docência e pesquisa, que nos afastam de nossa potência criativa – isto é, que nos afastam da vida, nos subjetivando a acatar desejos de outros e posturas outras frente à vida e nos afastando de nossa “essência germinativa” (Rolnik, 2018, p. 32).

Como afirma Sandra Mara Corazza, ao capturar provisoriamente por meio da escrita o seu sentido, esse(a) docente da diferença, que se lança a explorar as relações entre a vida, a pesquisa, a docência e as artes,

 

[...] se torna diferente do que é, o docente da diferença atravessa os limiares do sujeito em que se tornou, das formas que adquiriu, das funções que executa. Entretanto, não se identifica, não imita, não estabelece relações formais e molares com algo ou alguém, mas estuda, aprende, ensina, compõe, canta, lê, apenas com o objetivo de desencadear devires (Corazza, 2009, p. 92).

 

Trata-se de desaprender a “ser-docente” e lançar-se a “estar docente”, operando e criando movimentos de deslocamento dessa primeira identidade, revestida por concisas representações e uma forma endurecida, que traz consigo marcas, vozes e discursos generalistas. Busca-se, portanto, a fuga das imagens-pensamento do que seria “de fato” “ser” docente, “ser” pesquisador/a e até mesmo ser Artista, com “A” maiúsculo. Esses papéis acabam por nos invadir com certezas e problemas prontos, colocando em risco o desfrute de nossa potência inventiva vívida e comprimindo-nos em identidades repetitivas e generalistas, que nos privam da experimentação ao utilizarem dispositivos de juízo e moralidade, as quais nos põem em dúvida contínua sobre nós mesmos/as e nossas potencialidades. Em outras palavras, constrangem nossa potência (Deleuze, 2002) e produzem maus encontros que nos despotencializam.

Parafraseando Suely Rolnik (2018), trata-se de discursos e marcas que, por vezes, nos habitam e produzem linhas que nos levam a uma “cafetinagem” do estar docente, pesquisador/a e/ou artista. Segundo a autora,

 

Se a base da economia capitalista é a exploração da força de trabalho e da cooperação intrínseca à produção para delas extrair mais-valia, tal operação –  que podemos chamar de ‘cafetinagem’ para lhe dar um nome que diga mais precisamente a frequência de vibração de seus efeitos em nossos corpos – foi mudando de figura com as transfigurações do regime ao longo dos cinco séculos que nos separam de sua origem. Em sua nova versão é da própria vida que o capital se apropria; mais precisamente, de sua potência de criação e transformação na emergência mesma de seu impulso – ou seja, sua essência germinativa –, bem como da cooperação da qual tal potência depende para que se efetue em sua singularidade. A força vital de criação e cooperação é assim canalizada pelo regime para que construa um mundo segundo seus desígnios. Em outras palavras, em sua nova versão é a própria pulsão de criação individual e coletiva de novas formas de existência, suas funções, seus códigos, e suas representações que o capital explora, fazendo dela seu motor (Rolnik, 2018, p. 32-33).

 

Ao estarmos imersos/as em processos capazes de evitar que percebamos sensivelmente os signos (Deleuze, 2022) que efetivamente nos atraem e nos mobilizam a criar novas formas de existência e que, por vezes, nos capturam para cafetinar nossa potência de vida, desvinculamo-nos de nossa força germinativa, dos devires e encontros junto a outras/os que nos impulsionam à criação. Da mesma maneira, fazem com que nos desvinculemos de outros modos de estar docente, pesquisar, ler, escrever, estudar, pensar junto às possibilidades de criar docências e pesquisas, aprender de forma colaborativa, em composição.

 

Estar docente, caminhos contíguos, campos de guerra

Ao compor a escrita deste artigo, emergiram indagações em forma de problemas-bússola que nos desafiam a pensar sobre os movimentos que criamos na docência em artes e nas nossas investigações, operando conceitos e criando alianças com autores e autoras, para assim produzir corpos-força suficientemente fortes para nos desterritorializarmos de terras inférteis que canalizam nossa potência germinativa. Necessitamos de intentos de criar outros mundos para nosso fazer docente em artes e, consequentemente, em nossas pesquisas, dando a conhecer e desviando de “[...] um pensamento obediente, incapaz de embarcar no devir e criar [...]. Em outras palavras, como lidar com um pensamento que está a serviço da conservação”? (Rolnik, 2016, p. 64). É preciso desertar, movimentar-se!

Em diversos momentos em nossa formação em Licenciatura em Artes Visuais, deparamo-nos com discursos que ecoam pelos corredores das instituições, relatos de colegas ou conversas em grupos que delatam situações em que professores e professoras de artes são continuamente delegadas/os a realizar atividades voltadas à decoração em datas comemorativas ou colocadas/os em segundo plano frente a outras disciplinas. Esse tipo de relato paira sobre nossa formação e nosso fazer docente como um fantasma que, de certo modo, nos prepara para inventarmos maneiras de insurgir ante a essas forças. Trata-se de um transitar contínuo ao qual ora aderimos, ora renunciamos, movimentos que ocorrem em “[...] duas superfícies que coexistem, e nelas se escrevem duas histórias contíguas, uma maior e uma menor; uma em maior e outra em menor” (Deleuze, 2011, p. 35).

A esse respeito, citamos alguns documentos, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que exclui e estrangula diversos campos do conhecimento, a exemplo do que acontece com a área das Artes e suas denominadas “competências”, indo ao encontro da noção de cafetinagem no âmbito desta pesquisa. Isso nos remete aos escritos de Luciana Loponte, que assim se refere:

 

Penso na possibilidade de uma formação docente que vá bem mais além da busca insana por “competências” ou pela figura cristalizada da “professora competente” ou até mesmo de uma “professora pesquisadora”. Ainda estão lá na escola professoras subjetivadas pelo conhecimento de manual, pelas imagens e discursos estereotipados dos livros didáticos. Elas ainda esperam com ansiedade por receitas de “salvação” para suas práticas pedagógicas, que alguns especialistas iluminados lhes mostrem o caminho da entrada da caverna e de toda a verdade para a docência. Elas ainda acreditam que ensinam “verdades” e que devem ensinar que todos os telhados das casas são vermelhos, as árvores são verdes e que jamais os gatos podem ser azuis (2003, p. 77- 78).

 

Entendemos que tais manuais e documentos tenham por primazia uma mínima organização e um modus operandi a ser esperado pelas/os docentes. Contudo, compreendemos os emaranhados complexos que compõem tal organização, a qual indica a manutenção e repetição de toda uma maquinaria capitalística de desejos, consumo e exaustão frente à produtividade massiva exigida das/os docentes e pesquisadoras/es. Esse processo se entranha em nossos mais íntimos hábitos e modos de pensar e viver. Todavia, mesmo quando estamos contíguos ou imersos nesses modus operandi, “[...] quando nos encontramos diante das repetições mais mecânicas, mais estereotipadas, fora de nós, não cessamos de extrair delas pequenas diferenças, variantes e modificações” (Deleuze, 2009, p.14).

 

Imagem 1 – Intervenção com citação realizada digitalmente pela primeira autora do texto sobre a obra do artista Erwin Wurm, Theory of hope, que convida o público à interação por meio de instruções desenhadas.

Fonte: arquivo da pesquisa que originou este texto.

 

Podemos experimentar e criar pequenos cálculos para que acabem se instalando em meio aos platôs e à cremalheira de toda a maquinaria que se movimenta, alimentada pela nossa potência de vida. Jorge Larrosa, em seu texto O ensaio e a escrita acadêmica (2010), escreve sobre uma crescente organização no âmbito acadêmico que se dá

 

[...] sob o modelo de trabalho [...]. Discute-se a forma de avaliação do trabalho universitário, a forma de incrementar a produtividade ou competitividade de professores e alunos, [...] o que fazer para que as pessoas trabalhem mais, como tornar mais rentável o que se faz, como responder melhor as demandas do Capital e do Estado (isso que agora se chama de “demanda social”) (Larrosa, 2010, p. 110).

 

Ao compreender a localização das docências e pesquisas que fazem morada nesse território onde “[...] o exercício do pensamento é chamado de trabalho” (Larrosa, 2010, p. 109), podemos nos atrever a pensar em pequenas brechas ou pedrinhas aderidas à graxa que desliza em toda essa maquinaria. Contudo, a pesquisa e a ciência no Brasil sofrem com o adoecimento de suas/seus pesquisadoras/es ocasionado pelo alto nível de cobrança por produtividade, bem como com o assédio moral e o esgotamento mental. Esse é um sintoma presente em pesquisadoras/es de diferentes partes do mundo e do Brasil, como mencionado no artigo “O quanto vale a dor? Estudo sobre a saúde mental de estudantes de pós-graduação no Brasil” (2018)[i].

Diante disso, os desafios para “[...] insurgir-se nesse terreno implicam que se diagnostique o modo de subjetivação vigente e o regime de inconsciente que lhe é próprio” (Rolnik, 2018, p. 35). Em um primeiro momento, pode parecer que esse movimento seja de repetição (escrever, pesquisar, estar docente), mas ele não nos leva ao mesmo lugar, pois, tanto de forma solitária quanto coletiva,

 

[...] exige um trabalho de investigação que só pode ser feito no campo da própria experiência subjetiva. Há de se buscar vias de acesso à potência da criação em nós mesmos: a nascente do movimento pulsional que move as ações do desejo em seus distintos destinos. Um trabalho de experimentação sobre si que demanda uma atenção constante (Rolnik, 2018 p. 37).

 

Trata-se de um trabalho de investigação que exige de nós esforços que incluem não atropelar o nosso próprio tempo, algo que pode acontecer quando estamos sob a pressão de inúmeras demandas, como prazos, horários e formalidades. Quando nos encontramos sob pressão, tendemos a atropelar nossos desejos e nosso tempo de criação e, como consequência, nos despotencializamos e frustramos ante nossa própria produção, seja artística, docente ou investigativa.

Deleuze (2002, p. 25), ao compor com os escritos de Espinosa, nos recorda de que

 

[...] recolhemos apenas os efeitos dessas composições e decomposições: sentimos alegria quando um corpo se encontra com o nosso e se compõe, quando uma ideia se encontra com a nossa alma e com ela se compõe; inversamente, sentimos tristeza, quando um corpo ou uma ideia ameaçam nossa própria coerência.

 

Atualizações ocorrem de diferentes formas em uma investigação que reconhece sua própria produção de planos imanentes, onde questões acerca dos caminhos trilhados na pesquisa em educação se fazem presentes e se atualizam a todo momento, problematizando a docência, o fazer docente e os modos de produção da própria pesquisa. Suely Rolnik retoma pontos importantes acerca do modo de produção capitalista no qual estamos imersos, afirmando que

 

[...] a fonte da qual o regime extrai sua força não é mais apenas econômica, mas também intrínseca e indissociavelmente cultural e subjetiva – para não dizer ontológica –, o que lhe confere um poder perverso mais amplo, mais sutil e mais difícil de combater (Rolnik, 2018, p. 33).

 

Imagem 2 – Fotografia realizada pela primeira autora deste artigo ao ingressar em uma exposição artística no Museu de Arte Contemporânea de Seoul.

Fonte: arquivo da pesquisa que originou este texto.

 

Ao desviar de pensamentos determinantes do social, perguntamo-nos como estar à espreita do que nos acontece, observando e problematizando as diversas experiências que vivenciamos ao sermos discentes, docentes e pesquisadoras/es. Na educação, não necessariamente precisamos estar atuando em uma escola para acessar alguns dos efeitos que cafetinam a nossa potência, já que eles se encontram no âmbito macro da sociedade e, consequentemente, em nossos mais íntimos hábitos diários. A imagem acima nos levou a refletir sobre essas afirmações que tomamos como verdade, comandos que nos guiam como manuais de como devemos sentir, pensar, viver e experienciar a arte, o amor, a vida e a docência. Ao nos referirmos à educação, mencionamos o tempo-espaço que abrange desde os Anos Iniciais até a Pós-Graduação, pois habitamos e transitamos de diferentes maneiras por esses espaços. Um dos movimentos que mencionamos ao pensar na cafetinagem nesses ambientes de generalidade pode se ancorar no que Carvalho e Gallo denominam de arena, ou seja, em

 

[...] forças conflitantes se digladiam; o condutor precisa “dobrar a vontade” do conduzido, precisa amansá-lo, transformar a ave de rapina em animal doméstico, como afirmou Nietzsche (1998, p. 33) em Genealogia da Moral. O conduzido, por sua vez, precisa deixar-se conduzir, ainda que resista em alguns momentos; precisa encontrar vantagens ou justificativas em deixar-se conduzir (Carvalho; Gallo, 2010, p. 293).

 

Ao nos colocarmos como paseadoras/es por esses territórios, surgem questionamentos: o que pede passagem em meio a essas forças que nos cafetinam? Que expressões cafetinadoras do fazer docente e da pesquisa se manifestam nesses processos? Acreditamos que cada uma/um de nós vivenciará, ao longo da vida, momentos em que será necessário ceder sem questionar ou hesitar. Precisamos considerar e aprender o “jogo de cintura”, que também faz parte da nossa formação e do nosso trabalho docente. Trata-se de um transitar contínuo pela fita de Möbius ou pela imagem resultante da obra Caminhando (1964), de Lygia Clark: ora cedemos, ora combatemos, mas sempre resistimos – seja pela arte, pelo fazer docente ou pela pesquisa.

Em nossa área, podemos considerar essas forças que pedem passagem por meio do fazer artístico, das relações que criamos com nossas escritas e com as imagens que produzimos e de como estas nos convidam a experimentar diferentes estados de nós mesmas/os. As imagens que acompanham esta escrita fazem parte dos processos que nos convidam a um olhar menos obediente, inspirando movimentos descafetinadores. São imagens que nos conectam a outros mundos, pessoas e escritas, desafiando-nos a pensá-las como algo que, para além de simplesmente ilustrar o texto, coloca-nos à espreita dos nossos sentidos e abre caminhos para outras conexões e relações.

Desde muito cedo, fomos ensinadas/os a entender as imagens como subordinadas ao texto, como se houvesse uma hierarquia entre essas formas de expressão. No entanto, tais manifestações não devem ser equiparadas em suas potencialidades. Imagens, em suas diferentes modalidades, não precisam ser decifradas; elas têm seus próprios dinamismos. Basta estarmos atentos às relações e aos sentidos que podemos experimentar com elas nos mais variados contextos.

As imagens podem atuar como disparadoras de nossas próprias subjetividades e fazeres docentes, sejam as que produzimos em nossos processos, sejam as que encontramos ao acaso. Para isso, basta o exercício de um olhar menos cafetinado, que não busca significados, representações ou narrativas predefinidas. Nesses exercícios de criação de escritas, imagens, performances e expressões artísticas, somos desafiadas/os e incitadas/os a criar desvios e novos sentidos para o nosso próprio fazer docente. Assim, as possibilidades que elas nos lançam podem

 

[...] denotar colocar em ação uma docência que se posiciona como alguém que (com e a partir da arte, por exemplo) cria rotas, percursos, trânsitos, espaços e condições para que encontros repletos de potência, para inumeráveis e impensáveis invenções, sejam possíveis. Não há controle sobre o que será criado, nem mesmo há certeza de que algo se produza, porque o foco está mais nos processos erráticos e nos múltiplos desdobramentos que eles possibilitam do que em um produto – ou uma aprendizagem – final (Mossi, 2020, p. 05).

 

É importante destacar que essa falta de controle também implica um tempo de criação próprio, que não obedece aos prazos das instituições. Por mais que tentemos forçar, o tempo da escrita, o tempo da criação artística e o tempo em que nos afetamos por uma leitura não seguem a lógica de Chronos.


 

Pasearse investigativo e educação maior, criando desvios

Para transitar e habitar provisoriamente esses planos compostos por nossas ideias e vivências, o método investigativo pasearse nos acompanha, conjugando-se como um processo vivo de conexões e alianças.

 

O pasearse se desenvolve em ações associativas entre corpos, cooperação e andejares pelas fronteiras móveis, desenhando porvires em contínuo deslocamento. Abre caminhos para a potência da experimentação do agenciamento ao mesmo tempo que permite problematizar e produzir aquilo que diz respeito à vida (Nunez, 2020, p.13).

 

É um método investigativo que possibilita transitar, habitar e abandonar múltiplos espaços de pesquisa em fricção com diversas materialidades, como imagens e escritas. Esse método foi elaborado a partir de um roubo, um desvio frente a um verbo de imanência elencado por Espinosa em seu “Compêndio de Gramática da Língua Hebraica” e citado por Giorgio Agamben (2000, p.186): trata-se de uma causa imanente, de um “visitar a si mesmo”, em que agente e paciente estão constituídos como uma espécie de indistinção. Estar a pasearse é, portanto, uma causa em si. São encontros que proporcionam o tempo necessário para que tomem diversas formas e intensidades, enquanto escrita, arte e filosofia são experimentadas.

Que docências podemos inventar ao nos assumirmos como paseadores? Uma docência que opera em movimento contínuo, traçando planos com o caos, em seu acontecer, em suas composições... O que podemos produzir em meio a discursos de uma educação majoritária, que cultiva e reproduz modos identitários de “ser” docente e pesquisador/a, cafetinando nossos potenciais germinativos?

Silvio Gallo define a educação majoritária como “[...] aquela instituída e que quer instituir-se, fazer-se presente, fazer-se acontecer. A educação maior é a dos grandes mapas e projetos” (2002, p. 179). É um corpo-identidade que transita e se encaixa nos espaços institucionalizados, em conformidade com as competências e habilidades exigidas na nossa formação escolar e em nossas vidas.

Essa educação maior escreve sobre os mundos e dos mundos de uma maneira insistente, ligada a uma lógica representacional, cognitiva e dogmática. São caminhos que, romantizados e idealizados, muitas vezes afastam de uma “satisfação consigo mesmo” (Espinosa, 2008, p. 123) – uma satisfação interna, talvez um modo de nos sentirmos suficientes e realizadas/os, sem a necessidade constante de afirmação por reconhecimento ou de cessão a ideais amarrados aos nossos calcanhares.

Arriscamos afirmar que é possível subverter e insurgir por intermédio da criação, desviando das forças que cafetinam nossa potência de pensamento. Isso pode ser feito ao experimentar por meio da criação de imagens e escritas desligadas de dogmas generalizantes sobre sua produção e conceituação. Trata-se de encarar os processos como intentos de apreender as forças presentes em nosso corpo – movimento que nos desafia a produzir sentido nas experiências, considerando nossas marcas e singularidades e extraindo as forças que habitam esses processos.

É possível ensaiar escritas pela experimentação, que atravessam a fronteira do medo e exploram o possível, compostas junto a imagens, sem se limitar a diferenças excludentes ou aprisionamentos. São imagens e escritas que demandam outro tempo para sua criação, pois estão em uma dimensão distinta daquela do trabalho e da produtividade que orquestra a maquinaria da educação, rígida e fundamentada majoritariamente na razão.

Trata-se de imagens e escritas como acontecimento[ii], capazes de romper com a ordem dos movimentos automáticos e deterministas que se apropriam da vida. Segundo Deleuze (2012, p. 09), “[...] a verdadeira liberdade está no poder de decisão, de constituição dos próprios problemas [...] Mas colocar o problema não é simplesmente descobrir, mas é inventar. A descoberta incide sobre o que já existe [...] A invenção dá o ser ao que não era, podendo nunca ter vindo”. É a formulação dos problemas que movimentam o pensamento, a invenção e a escrita a cada encontro com marcas, conversas, ideias, imagens e vivências, sempre movimentando a um lugar por vir, que faz existência ao mesmo tempo em que é criado e experimentado. Pensar e, portanto, fazer a docência por esse viés podem nos proporcionar encontros potencializadores.

É uma prática docente que pode ser concebida como experimentação, como gagueira (Deleuze, 1997), como vivência estética, atenta às intensidades que nos atravessam, que nos tiram do lugar comum, que nos provocam a pensar, forçando-nos a criar linguagens outras, atentar aos fragmentos, às brechas e aos resíduos de discursos totalizantes e “[...] extrair daí gritos, clamores, alturas, durações, timbres, acentos, intensidades” (Deleuze; Guattari, 2011, p.53). Nos esforçamos a pensar essa docência, indissociável da pesquisa, como uma abertura para novas possibilidades, permitindo a problematização das circunstâncias e forças que influenciam nossas decisões e nossos desejos, como uma crítica a como acontecem esses processos e uma autocrítica no contexto da formação docente, do fazer docente e do fazer pesquisa. Isso nos leva a investir em espaços de experimentação do pensamento, visando a uma perspectiva diferente sobre aspectos que antes pareciam totalmente estabelecidos e conformados no ofício de ministrar aulas.

 

Como varrer a figuração docente e fazer surgir dela outras formas de naturezas diferentes, que intervenham no que é costumeiro e a façam transbordar em outras direções? Esta figuração docente é entendida aqui como o que estamos acostumados a ver, ouvir, fazer, pensar com relação à docência, ou seja, estratos junto aos quais vamos endurecendo-nos, fixando-nos, acomodando-nos, discursos e práticas que vamos repetindo sem problematizar, sempre da mesma maneira (Garlet, 2015, p. 184).

 

Apostamos em uma prática de docência e de pesquisa que permita estarmos estrangeiros a nós mesmas/os e a toda identidade que quer se estabelecer, estando abertas/os aos encontros com as mais diversas imagens que podemos achar em nossas trajetórias. Algumas dessas imagens irão potencializar nossa existência, outras nem tanto, e outras ainda irão lançar faíscas em nosso pensamento e em nossos fazeres cotidianos.

Trata-se de experimentar práticas em multiplicidade para criar novas abordagens na docência e no fazer investigativo, “[...] exercitar experimentações, que produzam condições de possibilidade para criar novas consistências de pensamento” (Corazza, 2011, p. 143). Isso também se aplica às nossas criações sobre as experiências na docência e na pesquisa, pois, enquanto pensamos e problematizamos, paseamos na própria criação, que pode ser uma escrita coletiva de várias vozes – permeada por experimentações –, uma escrita em diálogo, já que somos contagiadas/os por diferentes ideias, autores/as e artistas. Temos, assim, um processo de invenção que se constitui como uma vivência coletiva, ou seja, como eventos que realmente nos transformam e deixam marcas nas subjetividades que nos compõem.


 

Considerações finais

Diante dos caminhos trilhados e das problematizações apresentadas nesta escrita, reafirmamos a necessidade de uma docência-pesquisa da diferença (Corazza, 2009), que questiona a si mesma em seu próprio fazer-se e que permite explorar outras possibilidades, com uma atitude paseandeira em seus percursos inventivos, onde encontramos o que um dia fomos e avistamos o que desejamos experimentar em nossos processos de criação. Escrever este artigo sobre algumas das linhas presentes no projeto de pesquisa de doutorado é como uma linha que se desenrola a partir de ideias, conceitos, escritas e imagens, uma linha que tomou novas formas, transformando-se com o tempo e atualizando marcas e vivências. É uma maneira de compartilhar, ao mesmo tempo em que se manifesta como um ensino em constante movimento e autoquestionamento, atento às possibilidades que possam surgir nesse processo, com arte, com educação e com filosofia.

Quando conseguimos romper algumas das estruturas que existem em nós (em diversos aspectos), estabelecemos diálogos com diferentes pensadoras/es, colegas, ideias e escritas. Acessamos territórios ainda desconhecidos e criamos fissuras pelas quais extraímos forças e desenvolvemos possibilidades para outro pensamento que possa nos levar a movimentos descafetinadores das nossas formas costumeiras de pensar, escrever, ensinar e pesquisar, fazendo apostas em “[...] empreender movimentos de desterritorialização dos portos seguros e confiáveis do já-dito e já-escrito” (Batista, 2019, p. 82).

É um lançar-se e experimentar outros modos de nós mesmas/os, sempre à espreita do que pode acontecer. Assim, despertamos em nós potências de vida e forças para não ceder às formas condensadas tanto de existência quanto de docência e pesquisa.

 

REFERÊNCIAS

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Acesso em: 20 jun. 2024.

 

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DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997.

 

DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 2. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Claudia Leão. Editora 34, 2011.

 

GARLET, Francieli Regina. Pesquisar andarilho: pensar a docência desde outros lugares. In: OLIVEIRA, Marilda Oliveira de. (Org.) Arte, Educação e Cultura. 2 ed. rev. e ampl. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2015. p. 183-198.

 

GALLO, Silvio. Em torno de uma educação menor. Educação & Realidade. Pag. 169 –178. Jul/dez, 2002.

 

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Notas



[1] Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), na Linha de Pesquisa 4 - Educação e Artes (LP4) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7192-1921. E-mail: marcelachemy@gmail.com

[2] Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), atua junto ao Departamento de Ensino e Currículo e ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu) na linha de pesquisa Arte, Linguagem e Currículo. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3523-4152. E-mail: cristianmossi@gmail.com



[i] Publicado na Polis, Revista Latino-Americana, por Everton Garcia da Costa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Brasil, e Letícia Nebel, da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), Pelotas, Brasil.

[ii] O acontecimento sustenta-se em dois níveis no pensamento de Deleuze: condição sob a qual o pensamento pensa (encontro com um fora que força a pensar, corte do caos por um plano de imanência); e objetidades especiais do pensamento (o plano é povoado apenas por acontecimentos ou devires, e cada conceito é a construção de um acontecimento sobre o plano). E, se não há a maneira de pensar que não seja igualmente maneira de realizar uma experiência, de pensar o que há, a filosofia não assume sua condição acontecimental (Zourabitchvilli, 2009, p. 17-18).