Uma Educação através da Dança: perspectivas antirracistas

An Education through Dance: Anti-racist perspectives

 

Alexsander Barbozza da Silva [1]

Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil

 

Resumo

Este escrito dançante/educativo tem como objetivo propor reflexões acerca de uma educação através da dança que viabilize políticas de enfrentamentos às violências sociais atreladas ao racismo, especificamente as direcionadas ao âmbito escolar. Deste modo, o ensaio traz reflexões recentes que estamos desenvolvendo em diálogo com experiências como estudante e artista/educador. Posto isso, organizamos o referido estudo em duas umbigadas intituladas como: (1) Concepções sócio-filosóficas do Ensino da Dança e as invisibilidades das políticas raciais e (2) Possíveis caminhos para uma Educação através da Dança antirracista. Com a efetivação deste trabalho, constatamos a urgência de elaborarmos práticas de Ensino da Dança fundadas na justiça social, na transgressão do imperialismo branco e das outras violências sociais atreladas a ele. Contudo, seria necessária uma autoavaliação nos processos pedagógicos em Dança, para localizarmos caminhos de enfrentamento e questionamento das lógicas racistas na Educação Básica.

Palavras-chave: Dança/Educação; Ensino da Dança escolar; Práticas em Dança antirracistas.

 

Abstract

This dancing/educational writing aims to propose reflections on education through dance that enables policies to confront social violence linked to racism, specifically those directed at the school scope. Therefore, this essay brings recent reflections that we have been developing in dialogue with experiences as students and artist/educators. With that in mind, we have organized this study into two umbigadas sections titled as: (1) Socio-Philosophical Conceptions of Dance Education and the Invisibility of Racial Policies, and (2) Possible Paths for Anti-Racist Education through Dance. With the completion of this work, we observed the urgency of developing Dance Education practices founded on social justice, on the transgression of white imperialism and other social violence linked to it. However, it would be necessary a self-assessment in pedagogical processes in Dance, to find ways to confront and question racist logics in Basic Education.

Keywords: Dance/Education; School dance teaching; Anti-racists dance practices.


 

A Título de Introdução: Ei seu/sua/sue moço/moça/moçe, tire os chinelos dos pés que vamos enegrecer o chão da escola… 

 

Imagem (1). Registro da 9ª Semana da Consciência Negra no EREM Size - 2021[i].

Fonte: Acervo do autor.

 

As imagens expostas acima fazem parte da 9ª Semana da Consciência Negra que ocorreu em 2021, na Escola de Referência de Ensino Médio Sizenando Silveira (EREM Size), a qual expôs como tema norteador: Fé no Empoderamento. A referida ação pedagógica de afirmação das políticas raciais encontra-se alicerçada na legislação (10.639/2003 e 11.645/2008) e os documentos oficiais da educação nacional e estadual (Base Nacional Comum Curricular e o Currículo de Pernambuco), os quais trazem a obrigatoriedade do ensino das histórias e culturas dos povos indígenas, assim como os de matrizes africanas/afrobrasileiras nas instituições de Educação Básica.[ii]  

Decidimos iniciar a introdução do texto com as vivências desenvolvidas na escola, pois acreditamos que nelas: “[...] há práticas inovadoras de que são autores professores-alunos” (Arroyo, 2014, p. 63). Posto isso, nos recentes escritos que venho desenvolvendo, proponho um destaque ao espaço da Educação Básica, uma vez que o reconheço como um âmbito profícuo e que indica caminhos palatáveis para romper com a lógica hierárquica, a qual centraliza a Universidade (Ensino Superior) como o único espaço legítimo de produzir conhecimento sofisticado. Desse modo, acredito que as ações práticas/teóricas produzidas na escola devem/precisam ganhar evidência e relevância.

De antemão, convém salientar que o EREM Size é uma instituição pública do estado de Pernambuco (Região Nordeste/Brasil), localizado no bairro da Boa Vista (Recife), a qual oferece a educação no formato de tempo integral (45h), contemplando cerca de setecentos discentes, majoritariamente negros/negras/negres[iii], pertencentes à classe trabalhadora e com um percentual significativo de pessoas LGBTQIA+. O corpo docente da instituição encontra-se formada por trinta professores/professoras/professories das diversas áreas do conhecimento, dos quais apenas 20% são docentes negros/negras/negres, entre eles/elas uma mulher cisgênera e uma pessoa não-binária gay, por outro lado, apenas 10% LGBTQIA+.

Por mais simbólico que seja a presença desses/dessas/disses educadores/educadoras/educadories, ainda assim, conseguimos constatar que há uma hegemonia das pessoas brancas, cis-heterenormativas e pertencentes da classe média e alta. Como resultado, estes delineiam o modo organizacional e funcional dessa instituição, de forma que as lutas sociais e antirracistas ganham embate primeiramente na sala dos/das/des docentes e depois se deságuam no cotidiano dos/das/des educandos/educandas/educandes.

Anualmente, o EREM Size desenvolve o evento da Consciência Negra, data a qual tem como anseio proporcionar uma reparação social, que traga visibilidade às políticas raciais e que viabilize a afirmação de práticas antirracistas e de reparação a outras injustiças sociais nos espaços da educação formal. Sua gênese ocorreu em 2012 pela perspectiva visionária da docente historiadora e negra Viviane Araújo, e anualmente o projeto vem ganhando amplitude de acordo com as demandas postas pelos/pelas/peles estudantes da instituição; convém salientar que, nestes últimos anos, estive na coordenação da referida prática pedagógica.

Nessa perspectiva, o referido evento ocorreu nos dias de 24 a 25 de novembro de 2021, sendo ofertadas gratuitamente para os/as/es discentes oficinas, tais como: danças, músicas, cinema, teatro, a construção de máscaras africanas, tranças e turbantes. As citadas oficinas estavam direcionadas aos fazeres críticos e reflexivos dos anseios das negritudes e sua relação com o mundo, tentando identificar como as questões de raça e de outros marcadores sociais ocorrem nas produções das linguagens e estéticas da Arte. Propicia-se, assim, o enfrentamento às tecnologias de silenciamento que cercam os diferentes conhecimentos artísticos e no espaço educativo. Como também, viabiliza-se às pessoas discentes o contato com as produções artísticas oriundas das culturas negra e periférica de Recife. 

Inclusive, convém salientar que todos/todas/todes os/as/es mediadores/mediadoras/mediadories das oficinas se dispuseram voluntariamente para lecionar as referidas práticas na escola. Todavia, entendemos que é necessário haver um reconhecimento financeiro dessas diversas pessoas que contribuíram para o processo educativo escolar. Logo, seria importante pensar em políticas públicas de fomento à cultura e a arte nos espaços educativos, para que, assim, consigamos mediar vivências artísticas com qualidade. 

Por outro lado, o ato dessas pessoas que mediaram as oficinas apenas reforça a ideia de que a luta contra a estrutura do patriarcado supremacista branco capitalista imperialista[iv]  deve ser coletivo e que as estratégias de enfrentamento às tecnologias de dominação e exploração precisam ser acessadas por todos/todas/todes, quer isto dizer: a democratização das políticas raciais e reparação de outras injustiças sociais. Além disso, também evidencia o compromisso social com a educação, entendendo que a escola na atualidade não pode assumir o lugar de manutenção do status quo, mas deve ser um caminho para transgressão dessa realidade posta, que cerca os/as/es corpos/corpas/corpes e experiências das pessoas negras e sua intersecção com os múltiplos marcadores sociais.  

Um dos nossos interesses com essa ação na escola era propor uma transgressão às narrativas essencialistas no imaginário social brasileiro que se propagam na escola, as quais restringem a imagem da negritude aos processos de escravização, como se não existisse uma realidade para além desse episódio - essas reflexões são aguçadas pela escritora negra bell hooks (2019) em sua obra Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra

Ainda sobre ação da Consciência Negra, ocorreram rodas de conversa com as temáticas: Fé e Negritude, e Empoderamento Negro - nas quais foram convidados/convidadas/convidades es docentes e militantes das pautas negras de Pernambuco, para mediar essas construções coletivas formadas por discursos múltiplos. Reconheço, contudo, que não conseguimos dar conta em especial das especificidades das pessoas LGBTQIA + negras e com deficiência. Por isso acreditamos que seja de extrema importância trazermos destaque à interseccionalidade[v] das pessoas negras nos debates e ações a respeito da negritude, a fim que não se crie uma realidade discursiva que unifique a existência das pessoas negras, como ocorreu historicamente com o Movimento Negro brasileiro.

Dessa maneira, encerramos o evento com um desfile dos/das/des estudantes negros/negras/negres, visto que nosso anseio era colocar em centro as múltiplas belezas e estéticas dos povos de Matrizes Africanas/Afro-brasileiros e Negros, juntamente com a apresentação do grupo percussivo Coco de Água Doce - que aceitou o nosso convite de forma voluntária para se apresentar as pessoas estudantes.

À vista do discorrido, acreditamos que a: “[...] educação é uma questão política para pessoas exploradas e oprimidas” (hooks, 2019, p. 207). Logo, ao nosso entendimento, a escola pública é um lugar profícuo para/na produção de conhecimentos sofisticados e um dos principais meios de mudança e libertação social. Como resultado, é de extrema importância pensarmos em práticas de justiça social atreladas ao antirracismo na escola, já que, antes de mais nada, consiste na valorização dos/das/des corpos/corpas/corpes e suas intersecções com outros marcadores sociais, os quais se fazem presentes nessas instituições de ensino e que de alguma forma são invisibilizados pelas violências sociais atreladas ao racismo.

Ainda assim, precisamos entender que as práticas de transgressão social vinculadas às pautas antirracistas no chão da escola não podem/devem se restringir exclusivamente à data da Consciência Negra. Precisa ocorrer desde a formulação do Plano Político Pedagógico (PPP) das instituições de Educação Básica, seu planejamento anual e, principalmente, nas formações continuadas dos/das/des docentes. Para tanto, hooks (2021, p. 86) nos expõe que: “[...] precisamos de um ativismo antirracista contínuo. Precisamos gerar uma consciência cultural maior sobre a dinâmica do pensamento supremacista branco no cotidiano”. Assim, urge criar espaços para confrontarmos as práticas normalizadoras do racismo e sua articulação com outras violências sociais.

 Essas práticas no EREM Size serviram como estopim para pensar práticas de Ensino da Dança, levando a se questionar: Os/as/es corpos/corpas/corpes negros/negras/negres ganham centralidades nas discussões no Ensino da Dança? As propostas metodológicas para os processos de ensino-aprendizagem em Dança abarcam as subjetividades das pessoas negras e suas intersecções? Além disso, fomentam práticas de transgressões às violências de raça atreladas a outras exclusões sociais? Contribuem para o enfrentamento das tecnologias do imperialismo branco nas instituições de Educação Básica?

Certamente, não conseguiremos responder todas as perguntas com esse escrito, porém elas podem ser usadas como direcionamentos, nos oportunizando encontrar estratégias para romper com as diversas materialidades do racismo e das outras violências conectadas a ele, especialmente no que cerne à Dança e ao seu ensino. Isso porque, em nossa concepção, é imprescindível pensarmos na atualidade em um processo de educação através da Dança que propicie a decolonização das mentes, permitindo a criação de um contexto social saudavél para o autodesenvolvimento dos/das/des corpos/corpas/corpes negros/negras/negres nas aulas de dança.

Dessa maneira, acreditamos que esse texto se configura como uma interpelação para pensarmos juntos/juntas/juntes a respeito dos processos de ensino-aprendizagem em Dança atrelados às políticas raciais. Especialmente, nos espaços de formação inicial de docentes para o ensino dessas linguagens artísticas, para que consigamos encontrar caminhos de autoavaliação pessoal e pedagógica, tendo como alicerce o compromisso social, amor pela justiça e a paixão pela mudança do status quo.

            Sendo assim, organizamos o referido estudo em duas umbigadas[vi] intituladas como: (1) Concepções sócio-filosóficas do Ensino da Dança e as invisibilidades das políticas raciais e (2) Possíveis caminhos para uma Educação através da Dança antirracista. Por fim, apresentaremos as considerações possíveis de se realizar com a efetivação desse escrito.

 

Primeira Umbigada: Concepções sócio-filosóficas do Ensino da Dança e as invisibilidades das políticas raciais

Acima de tudo, acreditamos que seja inviável pensarmos na criação de processos de ensino-aprendizagem em Dança que fomentem ações de transgressão às violências sociais (raça, gênero, classe, sexualidade, religião entre outras) sem realizar uma autorreflexão nas concepções filosóficas que serviram/servem como norteadores para o ensino dessa linguagem artística[vii]. Inclusive, constatando como os/as/es corpos/corpas/corpes negros/negras/negres e suas interseccções são compreendidos nessa dimensão do pensamento.

Acreditamos que, apenas assim, conseguiremos identificar rastros das raízes do racismo e de outras violências sociais nos processos da Dança e seu ensino, o que possibilita, com efeito, elaborar estratégias para impedir sua ramificação e disseminação. Nessa direção, bell hooks (2022, p. 55) nos ensina que devemos: “[...] aproveitar as oportunidades para desafiar a supremacia branca, indo à raiz do problema e partindo de lá”.

Na obra Tensionamentos entre o Ensino da Dança com as teorias dos Movimentos Sociais (Barbozza; Aquino, 2023), os/as/es autores/autoras/autories se dedicam em ampliar as discussões iniciadas pelas docentes Adriana de Farias Gehres (2008) e Ana Paula Abrahamian de Souza (2010) ao nos sinalizarem, didaticamente, que os processos de ensino-aprendizagem em Dança se encontram alicerçados em três correntes filosóficas: Racionalista, Empirista e Interacionista.

Nesse sentido, é importante entendermos que as proposições indicadas pelas autoras acima, Gehres (2008) e Souza (2010), se configuram como uma das possibilidades de compreensão das tendências sócio-filosóficas que alicerçam as práticas de ensino-aprendizagem em Dança. Sobretudo, porque essas concepções se aproximam dos discursos consolidados tanto no âmbito da filosofia da educação, como nas teorias da Arte/Educação brasileira. Dessa forma, reconhecemos que esses tensionamentos podem nos indicar os caminhos que os processos de ensino dessa linguagem artística percorreram até chegarem às instituições de educação formal em nosso país.

De forma singular, Alexsander Barbozza da Silva e Rita Ferreira de Aquino (2023) nos levam a perceber como as questões dos/das/des corpos/corpas/corpes aparecem nessas diversas concepções e como eles/elas/ilus são determinantes para consolidar as práticas de Ensino da Dança - dialogando diretamente com as discussões iniciadas pelas artista-docente Isabel Marques em seus escritos intitulados: Corpo, dança e educação contemporânea (1998); Metodologia para o Ensino de Dança: luxo ou necessidade? (2003), por fim, Notas sobre o corpo e o Ensino da Dança (2011).

No que se refere à perspectiva Racionalista, Gehres (2008) e Souza (2010) nos expõem que se desenvolve na Dança a partir de dois modelos: (1) Tradicional e o (2) Científico. No modelo Tradicional, os processos de Ensino da Dança estariam centralizados na dominação das corpas das mulheres e reservado à educação das elites. Para as autoras, a estrutura científica encontra-se ramificada no processo do Ensino da Dança como Movimento e como Arte; o primeiro estaria relacionado ao viés do aspecto compartimentado e estruturante do movimento, desenvolvido em grande escala na área de Educação Física. Por sua vez, na concepção de Arte, os processos de ensino-aprendizagem em Dança estariam organizados por intermédio: da exceção, da criação e da apreciação (Gehres, 2008).

Nessa perspectiva, os processos de ensino-aprendizagem da Dança estariam centralizados a partir de um prisma tecnicista, em outras palavras, por meio do ensino restrito de códigos pré-estabelecidos. Corroborando tais pensamentos, Marques (1998, p. 72) nos compartilha que: 

 

Esta visão alinha-se à concepção de corpo como instrumento da dança, como meio, "máquina" para a produção artística. O corpo nesta concepção é algo a ser controlado, dominado e aperfeiçoado segundo padrões técnicos que exigem do dançarino uma adaptação e submissão corporal, emocional e mental àquilo que está sendo requerido dele externamente.

 

            Desse modo, essa perspectiva ocorre de modo extremamente latente nas conjunturas atuais, com efeito, precisamos identificar quais elementos viabilizam a sua realização no contexto escolar. Posto que, ela não dialoga com as teorias educacionais tampouco com as proposições contemporâneas dos processos de ensino-aprendizagem da Dança. Imediatamente, devemos nos questionar que tipo de pessoas desejamos formar com esse modelo pedagógico em Dança? E: que efeitos essas práticas têm gerado na escola e em nossa sociedade?

Por sua vez, as premissas Empirista no Ensino da Dança têm sua gênese na Dança Moderna Europeia, em especial com as proposições da dançarina norte-americana Isadora Duncan (1877-1927) e as pesquisas de Rudolf Laban (1879-1958), juntamente com as mudanças educacionais empreendidas pelos pensamentos do filósofo John Dewey (Gehres, 2008; Souza, 2010). Acerca da compreensão de corpo/corpa/corpe nessa estrutura filosófica, a docente Marques (1998, p. 73) salienta-nos:

 

Acima de tudo, Duncan prezava a liberdade e seu corpo/dança era uma maneira não somente de manifestar sua crença, mas principalmente de viver este princípio. Com Duncan, perpetua-se o discurso de que "dança é vida", relacionando-a intimamente à natureza. O corpo, assim, como "parte da natureza" é também a expressão "natural e espontânea" do Homem, a manifestação de sua "essência.

 

            Os pensamentos de Duncan criam uma categoria de corpo universal, de modo que nos leva a crer que todas as pessoas assumem o mesmo estado de presença na cena social, quer isto dizer, como se os/as/es corpos/corpas/corpes fossem identificados/as/es pela ótica humanística falaciosa de que “todos somos iguais”[2]. Inegavelmente, essa percepção invisibiliza as relações de poder que ocorrem no processo da diferenciação[viii] e nega a realidade violenta que sofrem os/as/es corpos/corpas/corpes divergentes na sociedade normativa em que vivemos. Isso se apresenta, essencialmente, quando refletimos acerca das tecnologias de exclusão e silenciamento que cercam essas pessoas dentro das lógicas da sociedade punitiva, como nos leva refletir o filósofo Michel Foucault na obra A Sociedade Punitiva (2015). 

            Diante disso, os processos de ensino-aprendizagem dessa linguagem artística, assentados no empirismo, encontravam-se centrados no/na/ne estudante, suas emoções e expressão, por via dos estímulos sensoriais, improvisação e seus elementos - juntamente - com o uso de objetos do cotidiano (Marques, 1999; Barbozza; Damasceno, 2022). Além disso, precisamos entender que essas práticas dançantes/educativas foram determinantes para a projeção do Ensino da Dança em âmbito escolar brasileiro, defendendo o discurso que esse conhecimento artístico era de extrema relevância para construção de pessoas conscientes de seus/suas/sues corpos/corpas/corpes, sensíveis e que se expressam por meio da Dança.

            À vista disso, acreditamos que em grande medida as proposições desse conhecimento artístico para sala de aula, encontram-se alicerçadas em perspectivas modernas e ocidentais. No texto O Ensino da Dança Empirista no Brasil (Barbozza; Damasceno, 2022), constata-se que essa perspectiva empirista se propaga em nosso país a partir da década de 1940, especialmente na Região do Sudeste (com a difusão hegemônica dos estudos de Laban e de Helenita Sá Earp), enquanto posteriormente se deságua nas outras regiões do território brasileiro.

Todavia, essas premissas se efetivam deslocadas do nosso contexto histórico e social (de uma nação colonizada). Imediatamente, parece-nos que os/as/es artistas-docentes da época não se propuseram em reconhecer quais pessoas são reconhecidas/lidas como corpos/corpas/corpes em nossa sociedade e, principalmente, em projetar esses conhecimentos para as realidades e produções dos/das/des negros/negras/negres em nosso país. Em virtude disso, predominantemente, o anseio era inserir nas escolas brasileiras o Ensino da Dança Moderna europeia[ix].

Nessa perspectiva, Marques (2011, p. 32) nos auxilia a entender que a tendência empirista estaria fomentando a criação de corpos conchas:

 

Não raro nem intencional, mas é possível perceber que nossa atuação docente na área de dança tem historicamente forjado novas conchas para que nossos alunos se escondam, se isolem, se esqueçam de suas realidades; realidades essas que paradoxalmente vivem em seus corpos e estão necessariamente presentes nas aulas de dança. Frequentemente nos esquecemos de que os mesmos corpos que colocam as mãos na barra, que rolam no chão, que batem os pés e que rodopiam também têm fome, choram, namoram, viajam, brincam, sorriem – com frequência não assumimos que os corpos de nossos alunos são corpos sociais e não conchas a serem moldadas, colecionadas e admiradas.

 

As concepções apontadas citadas acima, em primeiro caso, não reconhecem os/as/es corpos/corpas/corpes como instrumento da Dança, como ocorre nas tendências racionalistas. Por outro lado, na segunda concepção, empirista, ele/elas/ilus são entendidos numa perspectiva biologizante, hegemônica, abrindo margens para invisibilização dos marcadores sociais que, por assim dizer, não são reconhecidos historicamentes como tais, a saber: as pessoas com deficiência,as mulheres negras, as indígenas, as pessoas LGBTQIA+, as travestis e as pertencentes da classe trabalhadora e excluídas[x]

Nenhuma dessas práticas pedagógicas em Dança abre espaços para refletir sobre a existência de corpos/corpas/corpes negros/negras/negres e nem suas questões por viverem em uma sociedade consolidada pelas raízes do racismo e de outras exclusões sociais. Assim, identificamos que as concepções responsáveis pela projeção do Ensino da Dança na escola se encontravam distantes das políticas raciais, confirmando o que Grada Kilomba (2019) nos pontua em seu livro Memórias de Plantação: episódios do racismo cotidiano, que uma das estratégias do racismo é invisibilizar o que já existe; em outras palavras, as existências dos/das/des corpos/corpas/corpes negros/negras/negres no Ensino da Dança, especialmente as direcionadas à educação formal.

Como resultado, precisamos ficar atentos/antentas/atentes, posto que essas tendências racionalistas/empiristas ocorrem de modo extremamente atuante no cotidiano escolar. Assim, seria necessário nos questionarmos se politicamente vamos usar as práticas educativas em Dança para manutenção ou transgressão do status quo. Isso tendo em vista que os processos pedagógicos em Dança não são neutros, eles estão acarretados de significados e símbolos que elaboram a realidade social. Assim sendo, como docentes dessa linguagem artística, precisamos decidir se seremos a favor da manutenção do racismo e de outras violências sociais, ou se nossa prática pedagógica em Dança será direcionada ao enfrentamento e questionamento das injustiças sociais.

            Na tentativa de criar novos paradigmas, os quais ultrapassassem as tendências racionalistas e empiristas, surge o Interacionismo no Ensino da Dança, propondo uma ampliação dos estudos Labanianos (Gehres, 2008; Barbozza; Aquino, 2022).  Para Souza (2010), essa tendência filosófica surge atrelada aos estudos pós-modernos: o fim das metanarrativas, oposição ao universalismo, a valorização da diferença cultural e a denúncia das microfísicas do poder. Além disso, também apresenta a docente Isabel Marques como umas das grandes expoentes em difundir esses pensamentos no território brasileiro, ao friccionar os pressupostos de Laban com o do educador Paulo Freire, momentos depois articulando com a Abordagem Triangular (desenvolvida por Ana Mae Barbosa).

            Ao longo da história, as contribuições de Isabel Marques nos direcionaram a caminhos, acerca do Ensino da Dança, nunca vistos até o presente momento. Ela desloca as propostas de ensino-aprendizagem em Dança que anteriormente encontravam-se centralizadas nas técnicas/repertórios em dança (tradicional), posteriormente, nas expressões e sentimentos pessoais (empirismo), para uma perspectiva social (interacionismo). Como resultado, ela desenvolve o Caleidoscópio do Ensino da Dança, formado por três tripés relacionais, a saber: Arte/Dança (fazer, apreciar e contextualizar), Ensino (eu, o meio e o outro) e a Sociedade (vivida, percebida e imaginada) (Marques, 2010).

 Sucintamente, ela nos leva a entender como os processos de ensino-aprendizagem dessa linguagem artística podem contribuir para formação social, em outras palavras, a preparação de pessoas que se posicionam de forma crítica e atuante perante os episódios problemáticos de nossa sociedade. Nesta perspectiva, Marques (2012) nos indica que desenvolve suas proposições metodológicas para o Ensino da Dança alicerçada na concepção de corpo social. Em outras palavras, os/as/es corpos/corpas/corpes como projetos de comunidades, construídos socialmente, os quais são forjados, influenciados e contaminados (conscientemente ou não) pelas formas de estar e as diversas maneiras de se relacionar com o mundo. Diante disso, ela nos complementa:

 

Família, amigos, escolas, igrejas, grupos de dança (etc.) são comunidades que constroem em nossos corpos modelos de gênero, idade, etnia, religião, orientação sexual, classe social, entre outros. As múltiplas comunidades entrelaçadas que corporeificamos não somente projetam modelos (vislumbram construções futuras), mas, sobretudo, imprimem em nossos corpos formas de comportamento, atitudes, pensamentos, sensações e afetos – imprimem modos de ser e de estar em sociedade (Marques, 2011, p. 33).

 

Esses pensamentos de Marques (2011, 2012) são determinantes para rompermos com as concepções de corpo (universal) nas perspectivas modernas. Logo, a autora coloca em evidência a necessidade de percebermos as questões referentes aos marcadores sociais que compõem/determinam as existências das pessoas, isto é, seus/suas/sues corpos/corpas/corpes. Posto isso, é interessante entendermos especialmente como esses diversos marcadores modificam as realidades e dinâmicas em sala de aula, especialmente, os direcionados a raça e suas intersecções (sexualidade, gênero, classe social, religião, deficiência entre outras). 

Apesar de toda contribuição da docente Isabel Marques, suas premissas não nos indicam caminhos de como pensar processos pedagógicos que nos levem a questionar as lógicas interligadas do patriarcado supremacista branco capitalista imperialista cisgênero e capacitista. Nem tão pouco reflete acerca das questões dos/das/des corpos/corpas/corpes negros/negras/negres em seus pressupostos metodológicos para o Ensino da Dança. Com efeito, parece-nos que as políticas raciais atreladas ao enfrentamento de outras violências sociais ocupam um lugar de marginalidade em suas proposições no Ensino da Dança.

De fato, Marques (2011, 2012) reconhece a existência dos marcadores sociais referentes a raça e como esses marcadores estruturam oas/as/es corpos/corpas/corpes das pessoas em nossa sociedade. Porém, hooks (2019) nos sinaliza que: “Nomear e identificar o problema simplesmente não resolve o problema; nomear é apenas um estágio no processo de transformação” (p. 155). Perante isso, precisamos entender quais realidades e dinâmicas os/as/es corpos/corpas/corpes das pessoas negras constroem nas aulas de dança. Portanto, apenas reconhecer a existência dessas pessoas não garante um espaço profícuo para o questionamento da violência de raça e valorização das negritudes.

Abaixo, iremos expor algumas reflexões investigativas para construção de uma educação através da Dança articulada com as políticas raciais e com o anseio de criar espaços dançantes/educativos antirracistas.

 

Segunda Umbigada: Possíveis caminhos para uma Educação através da Dança antirracista

Como pontuamos acima, nesta umbigada iremos desenhar algumas problematizações críticas referentes ao Ensino das Danças de Matrizes Africanas, Afro-brasileiras e Negras na escola. Especificamente, trazendo para o debate as produções intelectuais da docente Marilza de Oliveira da Silva (2018a, 2018b), para que consigamos vislumbrar caminhos possíveis para radicalização da consciência nas questões referentes aos processos de ensino-aprendizagem em Dança, neste caso as Danças Negras na escola.

Ao nosso entendimento, uma das questões determinantes para efetivação do Ensino das Danças Negras na escola é pensarmos em práticas que retirem os/as/es corpos/corpas/corpes negros/negras/negres dos espaços de invisibilização e exclusão, colocando-os/colocando-as/colocando-es em locais de centralidade nas dinâmicas e construção de conhecimento da referida instituição. Isso dialoga com o que hooks (2019, p. 151) nos propõe pensar: “Estudantes negros precisam ser reconhecidos e celebrados pelos professores negros”. Trazendo suas existências e experiências para a produção de conhecimento em sala de aula, neste caso nos processos de ensino-aprendizagem em Dança.

Portanto, é fulcral entendermos que as práticas pedagógicas em dança são ações no mundo, envolvidas por aspectos políticos estruturados pelas relações de poder e constituídos como um campo de disputa (esses embates ocorrem desde a organização da sala, a escolha dos conteúdos das aulas, os saberes em Dança selecionados para o currículo formal e a formação de docentes para o ensino desta linguagem artística). Por consequência, entende-se que os processos de Ensino da Dança não são neutros, como foi sendo construído historicamente em território brasileiro, atrelados a uma perspectiva romantizada e salvadora.

De certa maneira, acreditamos que não é recente o interesse de diversas pessoas docentes em propor práticas de Ensino da Dança aliadas às políticas raciais, vislumbrando caminhos de investigação de transgressão às violências sociais atreladas ao racismo, antecedendo muitas vezes à inserção deste conhecimento nos documentos oficiais de educação. Como podemos citar as obras: Da Tradição Africana Brasileira a uma Proposta Pluricultural de Dança-Arte-Educação (Santos, 1996) e Dança-Educação e o preconceito racial no âmbito escolar: possíveis contribuições (Santos, 2001).

Deste modo, podemos afirmar que as práticas destas pessoas se configuram como um longo processo histórico de resistência e de uma ligação ancestral, aliadas às pautas das identidades raciais negras, em outras palavras, às múltiplas maneiras de exercer a negritude com os/as/es corpos/corpas/corpes em diálogo aos espaços educacionais. Todavia, esses estudos devem ser revisados por pessoas intelectuais negras na atualidade, a fim de que consigamos identificar as ramificações do racismo e de outras violências sociais nos espaços educacionais. Como também, a fim de elaborar em coletividade e colaboratividade práticas pedagógicas em dança alicerçada no antirracismo e no enfrentamento às injustiças sociais.

Na verdade, podemos até afirmar que na atualidade as Danças Negras já se fazem “presentes” nas escolas, porque os/as/es corpos/corpas/corpes que transitam nas comunidades vivenciam as produções de movimento dessas danças também ocupam a educação formal - especialmente se levarmos em conta o quantitativo de pessoas negras nas escolas públicas brasileiras. No que se refere a Pernambuco, no Resumo Técnico do Estado de Pernambuco: Censo Escolar da Educação Básica 2021[xi], conseguimos constatar a presença de mais de 60% de estudantes negros/negras/negres espalhados pelas escolas públicas do estado.

Uma prática que pode nos ajudar a entender esse fenômeno, especificamente em  Recife, é a presença latente do brega funk[xii] nos corredores da escola, nas salas de aulas, no refeitório, nas filas da merenda e nos espaços externos gravando vídeos no Tik Tok. Agora resta-nos questionar: este conhecimento se torna visível na escola? Os processos de ensino-aprendizagem em dança ocorrem de forma consciente, consistente e de qualidade? Possibilita às pessoas estudantes o letramento racial, a consciência de classe, o combate à intolerância religiosa? Esse conhecimento dançante interpela as pessoas estudantes a se posicionarem de forma crítica perante os cânones hegemonicamente brancos na Educação Básica brasileira?

Contudo, optamos em debater a temática aqui investigada a partir das produções da docente negra Marilza de Oliveira da Silva, a qual tem influenciado um dos grandes lócus de produção da área, que é a Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (ED/UFBA), especialmente por via de suas obras: Danças Indígenas e Afrobrasileiras (Silva, 2018a) e Dança como Mediação Educacional para Diversidade e Ações Afirmativas II (Silva, 2018b).

As referidas obras são materiais de apoio de dois componentes os quais Marilza de Oliveira desenvolveu para o curso de Licenciatura em Dança (EAD) na ED - UFBA. Dado o interesse da discussão deste estudo, traremos um foco para a segunda obra. Ela encontra-se organizada em três unidades, uma relacionada às questões indígenas, a segunda às pessoas afrodescendentes, a terceira às políticas de ações afirmativas e seu diálogo com a formação inicial de docentes em Dança. 

De forma bastante contundente, a autora apresenta um apanhado geo-histórico acerca dos povos indígenas e dos afrodescendentes e de suas múltiplas perspectivas identitárias/raciais. Como também, salienta o desenvolvimento social e as produções culturais de nossos povos, tendo como pano de fundo as violências ocorridas pelo processo violento da colonização e de seus desdobramentos até os dias atuais.

Didaticamente, Silva (2018b) expõe uma discussão teórica acerca do racismo, das políticas raciais no Brasil e dos diversos conceitos atrelados à temática. Paralelamente, destaca como esse pensamento se encontra interligado às tecnologias neoliberalistas. Além disso, nos ensina de forma crucial como as ações afirmativas, desenvolvidas em solo brasileiro, servem como meio de enfrentamento às desigualdades sociais que cercam os/as/es corpos/corpas/corpes das pessoas negras e indígenas.

            No final da obra, ao refletir acerca dessas questões de raça na escola e na formação docente em dança, a professora Silva (2018b, p.48) nos indica que:

 

Enquanto educadores da área de dança, temos a responsabilidade de refletir sobre o nosso fazer artístico-educativo, não nos acomodando às práticas das instituições educacionais que, na maioria das vezes não reconhecem o nosso papel frente à realidade dos estudantes, inclusive aqueles que sofrem o racismo e preconceito por parte dos colegas e até de determinados professores.

 

            Conforme acima, a autora nos interpela ao posicionamento crítico e de responsabilidade perante ao nosso fazer dançante/educativo, de maneira que não nos acomodemos com as violências ocorridas no âmbito escolar. Por mais refinado que seja as reflexões da autora, em nenhum momento ela se preocupa em nos conduzir a um pensamento de como as violências de raça, que, de acordo com a mesma, delineiam o âmbito social e as instituições de Educação Básica, materializam-se nos processos pedagógicos em Dança.

Sendo assim, acreditamos que seria importante entendermos quais modelos de colonialismos têm influenciado as práticas pedagógicas em Dança. Imediatamente, seria necessária uma autoavaliação dos modos como vêm ocorrendo os processos de ensino-aprendizagem em Dança. Principalmente ao se questionar se essas práticas têm sido usadas como meio de enfrentamento ou para manutenção das violências sociais atreladas ao racismo.

Ainda assim, a autora não apresenta interesse em nos indicar caminhos de como as Danças Indígenas e Afro-brasileiras podem ser usadas como meio para problematizar as estruturas educacionais, os currículos e as tecnologias do imperialismo branco que cercam o âmbito escolar. Isso porque, de acordo com hooks (2017, p.113), “[...] o racismo, o sexismo e o elitismo de classe moldam a estrutura das salas de aula, predeterminado uma realidade vivida de confronto entre os de dentro e os de fora que muitas vezes já está instalada antes mesmo de qualquer discussão começar”.

Outrossim, é fundamental pensarmos como o ensino dessas danças podem viabilizar a formação de pessoas e a criação de um espaço educativo alicerçado na justiça social e na reparação de suas exclusões. Nesse sentido, atuando de maneira que os/as/es discentes sejam convocados ao posicionamento e comprometimento das políticas raciais, para que, assim, consigamos transgredir as lógicas violentas e perversas do racismo e de outras exclusões sociais ocorridas na escola. Como efeito, alcança-se as famílias e os demais espaços sociais, por intermédio das próprias pessoas estudantes.   

Ainda assim, Silva (2018b, p. 48) acredita que o ensino ocorrerá com qualidade se os/as/es educadores/as/eis abordarem em suas práticas:

 

“[...] temas que reflitam a realidade local, com a inclusão de temas relacionados às manifestações culturais e mitos de matriz indígena e africana, como estratégia para dirimir a discriminação e preconceito, presentes nesses espaços”.

 

            Ao nosso entendimento, a restrita inclusão se constitui como uma lógica, descontextualizada e perversa, de inserir sem mudar a estrutura, sem criar condições palatáveis para as pessoas que estão sendo incluídas começarem a ser reconhecidas no mesmo local que as normalizadas. Isso se evidencia porque existe uma linha de dependência entre a inclusão e exclusão, apenas se pode incluir o que já foi, ou está no processo de exclusão.

Deste modo, as palavras de Silva (2018b), em determinado momento, nos leva a crer que a inserção das Danças Indígenas e Afro-brasileiras no cotidiano escolar tornaria esse espaço um ambiente menos racista e violento. Sem sombras de dúvidas, reconhecemos a significância dessas danças para mudança das lógicas impostas pelas tecnologias do imperialismo branco. Mas, a inclusão por si só não causa a mudança, ela precisa estar aliada a outros dispositivos que problematizem os discursos da diferença de raça e que viabilizem a transgressão das lógicas imposta pelo racismo e outras exclusões sociais.

Posto isso, além de nos preocuparmos estritamente com a “inserção” de conhecimentos que muitas vezes já estão inseridos na escola, devemos identificar e refletir: primeiramente, o que se tem de conhecimento negro na escola e que algum modo não ganham visibilidades por causa do racismo e sua articulação a outras violências sociais? Segundo, como o ensino dessas danças deve ocorrer, para que ao chegarem nos espaços de educação formal não sejam moldadas a uma perspectiva engendrada, descontextualizada e restrita exclusivamente aos movimentos pré-estabelecidos? Como propõe as perspectivas racionalistas do Ensino da Dança (exposta na primeira umbigada).

Indiscutivelmente, reconhecemos que as Danças Indígenas e Afro-brasileiras são fontes de conhecimentos históricos, socioculturais e políticos que se constituem nos/nas/nes corpos/corpas/corpes. Portanto, para que esse saber seja alargado/ampliado, nos levando a modificar a sala de aula e a escola, precisamos nos questionar a respeito dos processos de ensino dessas danças, a fim de que não se torne apenas uma vivência simplista no “Dia do Índio” e na Consciência Negra, dentro de uma lógica educacional colonialista ocidental moderna. Posto isso, precisamos urgentemente encontrar modelos de ensino-aprendizagem em dança que questionem e ultrapassem as lógicas modernas impostas em nossa realidade educacional.


 

Considerações (nunca) finais

Como apontamos em diversos momentos durante o texto, trazemos como objetivo propor reflexões acerca de uma educação através da dança que viabilize políticas de enfrentamentos às violências sociais atreladas ao racismo, especificamente as direcionadas ao âmbito escolar. Com isso, foi possível identificar que as concepções sócio-filosóficas, aceitas hegemonicamente nos debates dos processos de ensino-aprendizagem em Dança, encontram-se distantes das políticas de racialidade. Como consequência, cria-se uma realidade que apenas reconhece a existência dos marcadores sociais de raça, ao passo que os mesmos não são usados como fatores importantes para elaboração de proposições que nos levem a questionar as raízes coloniais presentes nas práticas de Ensino da Dança.

Ainda assim, observa-se que o debate para as questões raciais no Ensino da Dança encontram-se direcionados, em grande medida, para a inserção dos conhecimentos de Matrizes Africanas, Afro-brasileiras e Negras no âmbito escolar. De certo modo, opera numa lógica que inviabiliza os conhecimentos dançantes já trazidos pelas pessoas negras estudantes, os quais carregam em seus/suas/sues corpos/corpas/corpes saberes dançantes históricos e culturais das comunidades, e que precisam ser evidenciados nas salas de aula, na escola e nas práticas pedagógicas em Dança. Por isso, acreditamos que seria necessário mudar as lógicas de narrativas referentes a temática, pois entendemos que os saberes negros já estão nas escolas, sobretudo as públicas. No entanto, eles são tornados invisíveis pelas perspectivas do racismo atreladas a outras violências sociais. 
            Outro ponto interessante para reflexão seria nos questionarmos acerca dos modos como os processos das Danças Negras ocorrem na escola, para que não sejam engendradas as perspectivas modernas, restritas a código de movimentos pré-estabelecidos. Vislumbra-se, assim, que o ensino não ocorra exclusivamente por meio de coreografias na Consciência Negra, sem propor uma contextualização acerca de sua importância para o letramento racial e questionamento das perspectivas brancas que centram a educação formal.

Diante disso, compreendemos que o melhor caminho para uma educação em dança, aliada a perspectivas antirracistas, se constrói numa lógica alicerçada na autoavaliação. Sobretudo, um viés que questione se as raízes do racismo moldam de algum modo nossas condutas em sala de aula e os processos pedagógicos em Dança. Assim, conseguiremos trilhar caminhos de processos de ensino-aprendizagem em Dança alicerçados numa perspectiva múltipla de valorização dos/das/des corpos/corpas/corpes negros/negras/negres e de enfrentamento as injustiças sociais atreladas ao racismo.

 

REFERÊNCIAS

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Notas



[1] Artiste-docente da Dança, Doutrande e Mestre em Dança pelo Programa de Pós-graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia (PPGDanca/UFBA), Especialiste em Arte-Educação pela Faculdade Venda Nova do Imigrante (FAVENI) e Licenciade em Dança pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). tenho me dedicado à pesquisas sobre a Histórias dos processos de ensino-aprendizagem em Dança para âmbito escolar brasileiro, Currículo e Formação inicial de docentes em Dança. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1264-2241. E-mail: abarbozza@outlook.com

[2] Esse discurso é problematizado pelo teórico indigina Ailton Krenak (2020) em sua obra Ideias para o fim do mundo.



[i] As imagens foram registradas pelo trabalho voluntário do fotógrafo Gabriel Lessa.

[ii] Durante o todo o texto iremos alterar entre a 1ª pessoa do singular e do plural, visto que as algumas reflexões serão conduzidas por meio de minhas experiências pessoais como estudante e artista/docente. Esta última, por sua vez, nunca ocorre de forma individual e sempre no campo da coletividade.

[iii] Neste escrito evito o uso do masculino genérico como posicionamento político, afirmando na linguagem marcadores de gênero comprometidos com a diversidade. Por isso, ao longo do texto serão adotados, separados pelo sinal de barra (/), variações no masculino, feminino e gênero neutro – este último identificado com a letra “e”, incluindo neologismos.

[iv] Para a crítica cultural bell hooks (2022), o patriarcado supremacista imperialista branco capitalista imperialista se configura na articulação de dominação causada pelo sistema racista, de gênero e classicista. Na atualidade temos ampliado esse conceito para o patriarcado supremacista branco capitalista imperialista cisgênero e capacitista, com o anseio de perceberr como essas estruturas de violências pontuada por hooks se interliga as questões das normas do binarismo de gênero e a perspectiva de exclusão que cercam as pessoas com deficiência.

[v] Esse termo foi cunhado pela ativista negra Kimberlé Williams Crenshaw em 1986. Porém, vem ganhando notoriedade em território brasileiro, por via da obra Interseccionalidade da pensadora negra Carla Akotirene (2020).

[vi] É possível encontrar a umbigada em várias dança afro-brasileiras, contudo, traremos referência ao movimento produzido no coco de roda. Logo, esse passo de dança é executado tendo como base na marcação rítmica da batida dos pés no chão, de modo que ocorra uma aproximação entre os umbigos das pessoas que estejam dançando. Não necessariamente é preciso encostar (Faye; Barbozza, 2024). 

[vii] Essas concepções se aproximam dos discursos consolidados no âmbito da filosofia da educação brasileira. De certa forma, reconhecemos que esses tensionamentos podem nos indicar os caminhos que os processos de ensino dessa linguagem artística percorreram até chegarem às instituições de educação formal em nosso país. Outrossim, consideramos que as tendências apontadas por Gehres (2008) e Souza (2010) são uma das possibilidades para compreender os processos de ensino-aprendizagem em Dança, na perspectiva de suas reformulações históricas.

[viii] No livro Identidade e Diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais, o professor Tomaz Tadeu da Silva (2000), nos explica que  a diferenciação é o processo fulcral pelo qual a identidade e a diferença são construídas, de modo, que se encontra organizado a partir das seguintes etapas: a exclusão, a demarcação da fronteira, a classificação e a normalização.

[ix] Esse fato ficou evidente na década de 1980, com a Mostra Estudantil de Dança Moderna do Município do Rio de Janeiro. Para um maior aprofundamento da temática ler História do Ensino da Dança escolar do Rio de Janeiro: Mostra Estudantil de Dança - 1982 (Barbozza; Aquino, 2023).

[x] Para Jessé Souza (2018) a classe dos excluídos se localiza inferior a dos operários, pois ocupam um lugar de invisibilizados e desprezados.

[xi] Disponível em: <https://download.inep.gov.br/publicacoes/institucionais/estatisticas_e_indicadores/2021/resumo_tecnico_do_estado_de_pernambuco_censo_escolar_da_educacao_basica_2021.pdf>. Acesso: 23 de mar. 2024.

[xii] O brega funk é um movimento cultural das comunidades negras de Recife (dança, música e estética visual), configurando-se pela junção do eletrobrega e o funk carioca. Recentemente, esta produção vem ganhando notoriedade cultural no estado pernambucano, causando grandes embates legislativos e afirmação deste conhecimento enquanto saber da atualidade negro.