Por uma Educação Física antirracista: estratégias de ensino para o conteúdo de danças afro na formação docente
For anti-racist Physical Education: teaching strategies for afro dance content, in teacher training
Rodrigo Lemos Soares[1]
Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, RS, Brasil
Marta Íris Camargo Messias da Silveira[2]
Universidade Federal do Pampa, Rio Grande, RS, Brasil
Paulo Roberto Cardoso da Silveira[3]
Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, RS, Brasil
Resumo
O texto que segue narra uma experiência na formação docente, a partir do componente curricular Introdução à Educação Física (IEF), no momento de ingresso dos discentes no curso em questão. O cenário dos acontecimentos foi definido por rodas de conversas orientadas pela Lei 10.639/03, a qual possibilita pensar uma formação antirracista e suas relações com os campos da Arte, destacam-se aqui: materiais imagéticos, sons, itãns (mitos e lendas) e as danças, propriamente ditas. O objetivo é o de narrar e refletir sobre uma experimentação em danças afro-brasileiras com discentes da turma de IEF, do primeiro semestre do Curso de Educação Física - Licenciatura, no que tange suas compreensões, aproximações e distanciamentos de saberes que envolvem o ensino de elementos das culturas africanas e afro diaspóricas. Esse foco está balizado pelos campos dos Estudos Culturais em Educação e Decolonialistas ancorados em múltiplas linguagens, na intenção de circundar o assunto danças afro e antirracismo por um viés formativo que agenciará modos de ensinar no curso da formação docente. Conclui-se que ao propor desvios do tradicional formato acadêmico de leitura textual (como fonte única ou centralizadora) para produzir estratégias de ensino, possibilita-se uma ampliação acerca de um fazer docente, pois ao propor esse desvio se conseguiu acessar outros campos sensíveis aos discentes em processo formativo, como por exemplo: acessar memórias, ancestralidades e afetividades de cunho familiar, potencializando as aprendizagens desses estudantes.
Palavras-chave: Educação Física; Dança Afro; Práticas Pedagógicas, Antirracismo; Formação Docente.
Abstract
The text that follows narrates an experience in teacher training, based on the Introduction to Physical Education (IEF) curricular component, when students enter the course in question. The scenario of the events was defined by circles of conversations guided by Law 10.639/03, which makes it possible to think about anti-racist training and its relations with the fields of Art. dances, strictly speaking. The objective is to narrate and reflect on an experiment in Afro-Brazilian dances with students from the IEF class, from the first semester of the Physical Education Course - Degree, in terms of their understandings, approaches and distances from knowledge that involves the teaching of elements of African and Afro-diasporic cultures. This focus is guided by the fields of Cultural Studies in Education and Decolonial Studies anchored in multiple languages, with the intention of surrounding the subject of Afro dances and anti-racism through a formative bias that will facilitate teaching methods in the course of teacher training. It is concluded that by proposing deviations from the traditional academic format of textual reading (as a single or centralizing source) to produce teaching strategies, it allows for an expansion of possibilities regarding teaching because, by proposing this deviation, it was possible to access other fields sensitive to students in the formative process, such as: accessing memories, ancestry and family affections, enhancing student learning.
Keywords: Physical Education; Afro Dance; Pedagogical Practices, Anti-Racism; Teacher Training.
Por uma formação docente produzida na experimentação cultural
A formação docente, no caso desse estudo em Educação Física, pressupõe o exercício de distintas corporalidades. No centro dessa constatação colocam-se questões subjetivas que são oriundas das redes culturais que forjam os sujeitos que optam pela licenciatura enquanto curso superior. O contexto dessa escrita alicerça-se geograficamente na região oeste do Rio Grande do Sul (RS), especificamente na fronteira gaúcha. Isso implica dizer que culturalmente são percepções sociais interconectadas e influenciadas por subjetividades multilinguísticas e linguagens que ora se complementam e ora se repelem, variando conforme análises das relações de poder que orientam os sujeitos nascidos ou chegados para viver nessa região.
Ao adentrarem no curso, os discentes se deparam com o primeiro eixo formativo chamado na Instituição de eixo pedagógico comum e, nele, entre outros componentes são apresentados à Introdução à Educação Física (IEF). Enquanto disciplina inicial, a IEF tem como perfil ementário abordar processos introdutórios à compreensão de contextos históricos, epistemológicos e pedagógicos de práticas culturais de movimento, as quais constituem campos de saberes e intervenções da Educação Física. Ao estudarem o arcabouço sócio histórico da área, a proposta é culminar na produção de conteúdos culturais que adentram as escolas por meio desse componente curricular. É sobre essas orientações que a função docente se exerce incitando os discentes a exporem suas concepções de mundo acerca dos conteúdos, investigando como os aprenderam e, ao final do semestre, propondo que eles sinalizem possibilidades de ensino.
No planejamento da IEF, devido ao amplo espectro de possibilidades, foram estabelecidos recortes conceituais e formativos, dos quais considerou-se as aprendizagens que sinalizam como determinados conteúdos passam a ser balizados pela Educação Física, nos espaços formais e não formais de ensino. Dentre eles estão: jogos e brincadeiras, lutas, ginásticas, esportes e as danças e/ou atividades rítmico-expressivas (esse último termo aparece em alguns projetos pedagógicos de cursos de ensino superior, seja para suprimir relações possíveis entre Dança e Educação Física ou para reiterar diálogos que vão ao encontro a possibilidade do segundo curso trabalhar com os saberes do primeiro). No caso desse texto, além de abordar o conteúdo danças foi adicionado a ele o ensino da Lei 10.639 (Brasil, 2003).
A questão que orienta essa escrita, centra-se em saber como se percebem em relação ao ensino de danças, os discentes do primeiro semestre do curso de Educação Física licenciatura da Universidade [...][i]? Para tanto, esse escrito assume O objetivo é o de narrar e refletir sobre uma experimentação em danças afro-brasileiras com discentes da turma de IEF, do primeiro semestre do Curso de Educação Física - Licenciatura, no que tange suas compreensões, aproximações e distanciamentos de saberes que envolvem o ensino de elementos das culturas africanas e afro diaspóricas. A sistematização dos processos de experimentação fez uso de reportagens, itãns (mitos e lendas), rezas e sons de atabaques com distintos significados, no intuito de instigar múltiplas linguagens e, a partir delas propor criações cênico-coreográficas.
O recorte temporal é de cinco semanas, decorridas no mês de abril de 2024, compreendidas entre o dia primeiro ao dia vinte e nove, sendo o primeiro encontro para explanação inicial da abordagem pedagógico-conceitual [1ª semana], a partir do qual foi produzido um debate gerador de situações de abordagem temática. Foram discutidos temas que envolviam o racismo e o empoderamento. As aulas contaram com contação de histórias sobre as mitologias dos orixás (Prandi, 2001) [2ª semana], itãns (Soares 2021 e 2018) [3ª semana], movimentações e significados (Ferreira Júnior, 2011) [4ª semana]. Ao final, os discentes apresentaram seus processos criativos e realizamos uma roda de conversas no intuito de abordar temas transversais presentes nas narrativas expressadas/contadas, ensinadas e dançadas por eles [5ª semana].
As delimitações metodológicas mencionados acima partem da premissa que se compreende a docência como processo gradual e coletivo de interlocução de saberes sobre os quais são elencados elementos ético-estéticos para entrar na ordem discursiva de um planejamento e, também, na cena prática da aula (Corazza, 2013). Diante disso, o docente em exercício precisará atentar às suas opções metodológicas e recorte epistemológico (tanto de conteúdos, quanto de exemplos) para compreender seu lugar nas relações de poder e, a partir disso, definir os arranjos da aula para torná-la possível e com equidade, garantindo o acesso de todos. Por fim, necessita estar ciente dos objetivos a serem atingidos em cada atividade desenvolvida no microterritório da sala de aula e se os mesmos contemplam as diversidades de estudantes.
Por um caminho pedagógico-metodológico que situe uma formação
O primeiro encontro [Aula inicial – 1º de abril] foi orientado por uma conversa sobre os lugares de fala (Ribeiro, 2017) momento no qual foi realizado um exercício acerca das categorias de análise desse conceito. A proposta foi de que os discentes compreendessem que todos possuem seus locais de origem, pontos de partida que compreendem à docência e seus saberes balizados por questões culturais e que, por isso, podem ser transformados, colocados em xeque e, assim ficarem expostos a muitos devires (Corazza, 2017). Ao final dos diálogos, produzidos na primeira aula, foram elencadas possíveis razões que tendem a invisibilizar, dificultar e, também, possibilitar que as Leis nº 10.639/03, nº 12.711/12, nº 12.288/10 e a Resolução nº 1/2004 sejam abertas ao amplo debate para que suas compreensões sejam basilares, a fim de garantir que os ensinos e aprendizagens sobre história e cultura Afro-brasileiras sejam contempladas nas práticas pedagógicas e currículos.
Ao direcionar os produtos da primeira aula (1º de abril), associando-os ao conteúdo das danças afro-brasileiras, foi considerado que os povos africanos e seus descendentes crioulos e mestiços influenciaram em profundidade a formação cultural do Brasil (Sodré, 2015). Desse modo, entendeu-se que seria pouco provável que tenhamos aspectos sociais que não sejam afetados pela inteligência africana e afro-brasileira (Gomes, 2017). Compreendeu-se que existem as marcas das distintas manifestações das culturas africanas nos comportamentos, religiosidade, música, dança, alimentação e língua (Gomes, 2017) que forjam nossas presenças e costumes.
Assumiu-se então uma ciência de que as negritudes nos permeiam, além disso, que apesar da repressão que sofreram, as suas manifestações culturais mais cotidianas, como por exemplo: o samba, revira, capoeira, entrudo e lundu negros (Sodré, 2015 e 2013) permaneceram vivos e são reiterados na contemporaneidade. Nesse sentido, como foco para o encaminhamento do encontro posterior [Mitologia do Orixás – 1ª semana] o coletivo considerou importante abordar os conceitos de racismo e empoderamento, por vieses dançados. Os conceitos assumiram a base da criação cênica e os saberes dialogados precisavam se fazer presentes nas células coreográficas. Para tanto, a premissa partiu de uma noção de equidade, a qual contesta os acessos e impossibilidades de ascensão às ordens discursivas de conteúdos afro referenciados.
“Racismo é coisa de gente branca” – abrangendo saberes pedagógicos
O título inicial da subseção é uma das narrativas apresentadas pelos estudantes e orientou a formação de uma amálgama de palavras disparadoras de movimentos que orientou a aula de contação de histórias sobre as mitologias dos orixás (Prandi, 2001) [2ª semana]. Dentre elas surgiram: violências (abusos, assédios, estupros), corpos negros, força, ódio, rancor, lutas, branquitude, colonização, favela e marginalização. Após a explanação das compreensões e relações das palavras acima com a noção de racismo, os estudantes foram convidados a criarem movimentações que expressassem cada uma delas e, depois, precisariam compor uma cena coreográfica sobre os diálogos produzidos remetendo a essas palavras. Assumiu-se racismo como algo que se constitui em um mecanismo fundamental de poder utilizado historicamente para separar e dominar classes, raças, povos e etnias. Seu desenvolvimento moderno se deu com a colonização, com o genocídio colonizador. Segundo Foucault (2002) o racismo é:
[...] o meio de introduzir […] um corte entre o que deve viver e o que deve morrer”. “No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação das raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros. […] o racismo faz justamente funcionar, faz atuar essa relação de tipo guerreiro − ‘se você quer viver, é preciso que o outro morra’ − de uma maneira que é inteiramente nova e que, precisamente, é compatível com o exercício do biopoder (Foucault, 2002, pp. 304 – 305).
Para o autor, “[...] a especificidade do racismo moderno, o que faz sua especificidade, não está ligada a mentalidades, a ideologias, a mentiras do poder. Está ligada à técnica do poder, à tecnologia do poder [...]” (Foucault, 2002, p. 309), isto é, ao biopoder enquanto um poder (estatal) de regulamentação que se exerce sobre populações e consiste em “[...] fazer viver e deixar morrer” (Foucault, 2002, p. 211). Trata-se de uma forma de gestão estatal sobre territórios e populações, que dispensa os tradicionais discursos e práticas de integração à sociedade nacional pela via da cidadania (da educação, do trabalho e dos direitos) por entender que essas populações são desnecessárias ao atual desenvolvimento do capitalismo. Este contexto foi produzido “[...] como um convite para pensarmos a memória em outros ambientes, nos quais também se inscrevem, se grafam e se postulam a voz e o corpo, desenhados nos âmbitos das performances da oralidade e das práticas rituais [...]” (Martins, 2020, p. 94). Era preciso expressar o racismo, garantindo que o mesmo não fosse algo ficcional, antes disso, que ele ardesse na pele e não fugisse do que ele significa cotidianamente: diferentes formas de desumanização dos negros.
Na sociedade brasileira do século XIX, havia um ambiente favorável ao preconceito racial, dificultando enormemente a integração dos negros. De fato, no Brasil republicano, predominava o ideal de uma sociedade civilizada, que tinha como modelo a cultura europeia, onde não havia a participação senão da raça branca (Sodré, 2013). Esse ideal, portanto, contribuía para a existência de um sentimento contrário aos negros, pardos, mestiços ou crioulos, que se manifestava de várias formas: pela repressão às suas atividades culturais, pela restrição de acesso a certas profissões, a logradouros públicos, à moradia em áreas de brancos, à participação política, e muitas outras formas de rejeição aos negros.
Neste sentido, torna-se importante citar a análise de Florestan Fernandes, onde o “Homem de Cor” no Brasil tem sua inserção na “Sociedade de Classes” obstaculizada, após a Lei Áurea, pela negação do acesso à terra[4], acesso à educação (proibição de frequentar a escola), além da consequente condenação aos postos de trabalho com menores remunerações e muitas vezes eventuais (Fernandes, 2008). Esta subalternização de cidadãos negros e negras, ao mesmo tempo, que legitimada pelo racismo, contribui para reforçar o sentimento de inferiorização do povo negro.
A subalternização é um processo que alia a expropriação econômica, a dominação política e a exclusão cultural (Martins, 1989). Na América latina este processo tem um componente fundamental da racialidade, o qual faz da população negra e dos povos originários serem considerados menos capazes e com valores depreciativos diante da lógica do pensamento ocidental (Quijano, 2005). Para este autor, a raça é uma categoria mental criada na modernidade para clivagem entre os diferentes povos, buscando-se legitimar o processo de colonização europeu marcado pela dominação violenta e a pilhagem.
Diante deste contexto, insurgem-se coletivos de homens e mulheres negros, constituindo-se a luta contra o preconceito e em defesa dos direitos civis e políticos da população afro-brasileira. Surgiram jornais, como A Voz da Raça, O Clarim da Alvorada, clubes sociais negros e, em especial, a Frente Negra Brasileira, a qual foi criada em 1931 e fechada em 1937 pelo Estado Novo (Gomes, 2017).
Durante o período da revolução de 1930, os próprios núcleos de cultura negra se movimentaram para ganhar espaço. A criação das escolas de samba no final dos anos vinte já representara um passo importante nessa direção. Elas, que durante a República Velha foram sistematicamente afastadas de participação do desfile oficial do carnaval carioca, dominado pelas grandes sociedades carnavalescas, terminaram sendo plenamente aceitas posteriormente. No rastro do samba, a capoeira e as religiões afro-brasileiras também ganharam terreno. Antes considerada atividade de marginais, a capoeira seria alçada a autêntico esporte nacional, para o que muito contribuiu a atuação do baiano Mestre Bimba, criador da chamada capoeira regional. Tal como os sambistas alojaram o samba em "escolas", Bimba abrigaria a capoeira em "academias" (Sodré, 1998).
Compreende-se então que o racismo é estrutural, ele faz parte da construção educativa desde a infância brasileira e, por isso, precisa ser desconstruído por pessoas com visões mais dinâmicas sobre a constituição do país, sem que emitam juízo de valor ou afirmem que as contribuições dos brancos no Brasil são mais significativas que as contribuições de negros e indígenas.
Corroboramos com Cida Bento (2022), a qual compreende que há existência de um pacto narcísico, onde as organizações constroem narrativas sobre si próprias sem considerar as pluralidades da população as quais se relacionam, ainda que utilizem seus serviços e consumam seus produtos. Nesta perspectiva, segundo a autora, as instituições públicas, privadas e da sociedade civil definem, regulamentam e transmitem um modo de funcionamento que torna homogêneo e uniforme não só processos, ferramentas e sistema de valores, mas também o perfil de seus empregados e lideranças, majoritariamente masculino e branco, tornando invizibilizada a presença e contribuições negras. A este fenômeno ela denomina “[...] de branquitude e sua perpetuação no tempo se deve a um pacto de cumplicidade não verbalizado por pessoas brancas que visa manter seus privilégios; este fenômeno coloca em evidencia a urgência de incidir na relação de dominação de raça e gênero que ocorre nas organizações cercadas de silêncio [...]” (Bento, 2022, p.16).
Considera-se então que é preciso produzir uma Educação Física para/ pela/ na diversidade, que ela seja vivenciada e experimentada onde ela se processa, por meio de grupos culturais. “A dança afro-brasileira, nesse sentido, surge como dispositivo contra o racismo, da exclusão, da invisibilidade; negadores da identidade negra e indígena. Ela é atitude política!” (Silva, 2019, p. 83).
Em Godard (1995) o gesto (pré-movimento) está implicado na condição pré-concebidas dos sujeitos dançantes, somente após um estudo imersivo que será possível o movimento crítico dançado. Isso não significa dizer que o gesto não seja carregado de concepções estruturadas e/ou organizadas socialmente. Para esse autor, “[...] a cultura, a história do dançarino, a sua maneira de perceber uma situação, de interpretar, vai induzir uma musicalidade postural que acompanha ou despista os gestos intencionais executados [...]” (Godard, 1995, p. 13). Contudo, ele sinaliza que é necessário no ensino da dança estudar as raízes do pré-movimento, isto é, compreender como um dançante entende seu corpo centrado na “[...] atitude em relação ao peso, à gravidade, que existe antes mesmo de se iniciar o movimento” (idem, p. 13). Isso significa dizer que nossos gestos, também, são colonizados e cerceados por diferentes mecanismos de poder (Soares, 2018) e, desse modo,
[...] nossa maior tentação é de nos contentarmos em classificar as danças por épocas históricas, por origens geográficas, por categorias sociais, por escolhas musicais, pela estética do figurino, da cenografia, ou ainda pela forma dos diferentes segmentos corporais colocados em ação. Todos esses parâmetros descrevem muito bem o limite externo ao campo da dança, mas pouco se aproximam das riquezas da dinâmica interna do gesto, que a ele dão sentido [...] (Godard, 1995, p. 12).
Assim, ‘Afrorreferenciadamente’, pensam-se, os processos de aprendizagens por meio dos corpos inteiros e não com o cérebro, apenas, tendo a primazia do pensamento em detrimento das outras partes do corpo. Com isso, colocou-se os corpos na categoria de “território sagrado” (Santos, 1996). Para tanto, foram debatidas pedagogias que se pautem no resgate das ancestralidades a fim de produzir pontes de conexão para potencializar positivamente a autoestima de sujeitos negros, a partir de suas territorialidades em África. A ancestralidade, por sua vez, é capaz de provocar a libertação de amarras psíquicas para que as subjetividades, fragmentadas pelas vivências racistas, sejam construídas de forma saudável. “Até que os leões tenham suas histórias, os contos de caça glorificarão sempre o caçador”. Este provérbio africano, aponta para o fato de vivermos em tempo de contarmos todas as histórias, de vivenciá-las por meio da oralização e experimentação dos corpos, pelas inteligências corpóreas (Soares, 2008).
[...] a construção de uma noção e visão pedagógicas que se projeta muito além dos processos de ensino e de transmissão de saber, uma pedagogia concebida como política cultural, envolvendo não apenas os espaços educativos formais, mas também as organizações dos movimentos sociais. Decolonizar na educação é construir outras pedagogias além da hegemônica (Oliveira, 2018, p. 101).
Fala-se então, de corpos vividos no presente, a partir de princípios ancestrais africanos, onde eles sejam considerados territórios sagrados, ocupados pelo espírito e onde ambos rompem tempo e espaço, devendo ser tratados com respeito ritualizado (Soares, 2008). Tratam-se então de ‘corpos-resistência’ que se expressam de várias formas mergulhados nas experiências para produzir sentido e significado, não falando mais do corpo, mas fazê-lo narrar de muitas formas, por linguagens distintas (Santos, 1996). Nessa direção, parece fundamental resgatar histórias africanas, porque se trata de tesouros preservados pela oralidade e que são reificadas no cotidiano de diversas formas, ainda que de modos inconscientes, por nossos corpos escapando do perigo da história única da qual fala Adiche (2009). Desse modo, faz-se necessário pensar no empoderamento.
Empoderamento pelas performatividades dançadas: possibilidades
A noção de empoderamento adveio dos diálogos acerca das mitologias dos orixás (Prandi, 2001) e acrescida de entendimentos sobre os itãns (Soares 2021 e 2018) [3ª semana], que são fundamentais nas culturas africanas, pois, permitem realizar leituras sobre as performatividades (Soares, 2018) presentes neles. A compreensão inicial é de que os itãns detém processos culturais e históricos dos povos de diferentes regiões de África e, mais especificamente de quais povos iorubás (Keto, Ijexá, Cabinda, Nagô, Bantos, entre outras) se está falando. A partir deles é possível saber as estruturas organizacionais de cada nação, isso porque, cada itãn apresenta, detalhadamente, sujeitos, comportamentos, questões ético-comportamentais, alguns, inclusive, tratam junto a isso dos elementos alimentares e tecnológicos do referido período histórico. Todos eles perpassam caracteres corporais, arquétipos das corporalidades os quais possibilitam, até hoje, distintas leituras sobre os movimentos que são transcritos em dança.
Ogum ocupa, na mitologia dos iorubás, a função do herói civilizador e senhor das tecnologias. Foi ele, por exemplo, que ensinou o segredo do ferro aos demais orixás e mostrou a Oxaguiã como fazer a enxada, a foice, a pá, o enxadão, o ancinho, o rastelo e o arado. Desta maneira permitiu que o cultivo em larga escala do inhame salvasse da fome o povo de Ejigbô. Em agradecimento ao ferreiro, Oxaguiã passou a usar em seu axó funfun [a roupa imaculadamente branca da corte de Obatalá] um laço azul - a cor de Ogum (Simas, 2019, p. 41).
A partir dos entendimentos compartilhados, se empoderar é se reconhecer enquanto sujeito social, político, autor da sua própria história e capaz de lutar por direitos que não são só seus, mas também de um grupo. Empoderamento é singular e é plural. Singular no sentido de que é um processo individual e pode ocorrer pelas mais diferentes motivações. Plural porque por meio dele aprendemos que a luta é coletiva, em prol das irmãs e irmãos. Se empoderar é perceber a dimensão política que está representada, entender o quanto se é discriminado pelo fenótipo, passar a buscar mais conhecimento para enfrentar alguns fenômenos sociais e lutar juntos pelo combate ao racismo e demais tipos de discriminação (Ribeiro, 2017).
É defender os seus iguais que estão em situação de opressão, combater e denunciar o racismo (além das redes), é inspirar e mostrar que as nossas características físicas não devem ser uma limitação para chegar onde queremos e que podemos sim ocupar qualquer espaço. É perceber e enaltecer as belezas que existem na diversidade das nossas peles, tipos de cabelo e formas do corpo. Logo, empoderamento, sob essa perspectiva, significa o comprometimento com a luta pela equidade e, por isso não pode ser algo auto centrado dentro de uma visão liberal, ou ser somente a transferência de poder, é além, significa ter consciência dos problemas que nos aflige e criar mecanismos de combatê-los (Ribeiro, 2017).
Significa uma ação coletiva desenvolvida pelos indivíduos quando participam de espaços privilegiados de decisões, de consciência dos direitos sociais. Essa consciência ultrapassa a tomada de iniciativa individual de conhecimento e superação de uma realidade em que se encontra. É uma nova concepção de poder que busca, de fato, resultados democráticos e coletivos. É promover uma mudança numa sociedade dominada pelos homens e fornecer outras possibilidades de existência e comunidade. É enfrentar a naturalização das relações de poder desiguais entre homens e mulheres, lutando por um olhar que vise a igualdade e o confronto com os privilégios que essas relações destinam aos homens. A busca pelos direitos das mulheres à autonomia por suas escolhas, por seus corpos e sexualidades (Ribeiro, 2017). E, todos esses elementos são amalgamados nos corpos em movimento-comunicação entre o sagrado e o terreno.
O Corpo Dança Afroancestral, conceito para identificar alguns elementos inerentes à dança negra ancestral, extremamente diversa e sempre reatualizada, mas sempre perpassada de espiritualidade, alegria e potência divina, tornando-se um dos maiores elos de sobrevivência, resistência e expansão da cultura negra no mundo (Petit, 2015, p.26).
Pelo exposto os discentes propuseram uma noção de corpo-presença, na qual buscaram elementos culturais que reiteram as presenças e pertenças negras, tendo as mídias digitais como referência. Nesse momento os artefatos culturais destacados foram: personagens (novelas, filmes, séries, das histórias de livros, anônimos e famosos), animações, artistas de música (nacional e internacional), de modo que os corpos assumiram o foco dos diálogos na intenção de compreendermos possibilidades de ler corporalidades, ao longo dos tempos (processos históricos da vida humana) e em lugares distintos. O corpo-presença, ao final das conversas foi entendido como aquele que: intermediado por subjetividades, em momentos distintos, é lido como produto potente resultante de modos de ser e agir socialmente, um instrumento simbólico oriundo de relações de poder.
Em vista desse entendimento, os exercícios ocorreram no sentido de propiciar experimentações com artefatos culturais oriundos de saberes afro referenciados. A preocupação centrou-se nos significados atribuídos aos corpos (constituição das noções de beleza e feiúra) (Eco, 2013 e 2007) e, também, de como a linguagem constitui tudo que circunda os sujeito ou personagem elencado pelo grupo. Em função dessas considerações, recorremos aos itãns para encontrar neles, elementos que possibilitassem diálogos entre o saber ancestral e o contemporâneo, instituído pelas linguagens, na produção de sujeitos.
Ao articular o material fruto das pesquisas midiáticas, com saberes prévios dos participantes com relação às suas práticas pedagógicas e os conhecimentos desenvolvidos durante as aprendizagens dos três encontros foi possível compreender que o corpo-presença assume função basilar na criação em dança. Parece ser necessário que a formação docente não pode desconsiderar os corpos-presentes na sala de aula e, sobretudo, aqueles presentes e/ ou invisibilizados nos currículos. Por fim, os grupos propuseram tensionamentos e articulações entre as bases teóricas estudadas e apresentadas ao longo desse texto articuladas com as produções no decorrer das práticas de sala de aula, ofertadas em cada semana.
Uma dança-ação-reflexão para movimentar a Lei 10.639/03
Um caminho utilizado foi o método expositivo com estímulos e espaço para diálogos, durante e ao final das experimentações, eis o caminho para produzir movimentações e significados (Ferreira Júnior, 2011) [4ª semana] às danças afro-brasileiras. Por se constituir como os primeiros contatos dos discentes com o conteúdo, o espaço ainda requeria a exposição de uma fundamentação teórica no que tange ao processo de “entendimento estrutural” dos conhecimentos ofertados em consonância com o já sabido. Explica-se, desde já, que foi considerado esse momento que incitaria noções de resistência, pertencimento e empoderamento, pois, parte da premissa do encontro e valoração de saberes. Desse modo, a atuação foi organizada em quatro momentos, a serem: memórias, preparação/sistematização de saberes, parte principal (produção de conteúdos e materiais) e finalização/experimentação e avaliação das experiências.
A primeira parte correspondeu ao que denominamos de Memórias, na qual ocorreu uma conversa com os discentes (em grupo) abordando suas memórias relativas a proximidade com os saberes afro centrados e afro referenciados com objetivo de fazer uma anamnese não só em relação aos conteúdos em si. Cientes do que sabem e conhecem, a partir da Lei 10.639/03 focando em distintas habilidades pedagógico corporais em geral, acrescentando questionamentos, dúvidas e sugestões ao que será experienciado.
Partindo das Memórias, a segunda parte, denominada preparação/ sistematização de saberes inseriu os temas de interesse e de desenvolvimento pedagógico. A proposta recorreu a conhecimentos oriundos de diferentes espaços e pretendeu articulá-los ao que é preconizado nas Leis 9.694/ 96 e 10.639/ 03 e a Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2018). Foi realizada uma conversa sobre de que forma estes conhecimentos seriam abordados e como poderiam auxiliar na abordagem de conteúdos em diferentes espaços educacionais. Este momento foi baseado na síntese analítica do texto de Miranda (2014), pelo fato do mesmo abordar questões referentes a noção de corpo-território e foram estabelecidas conexões entre essa pesquisa e o ensino de danças de exus e pombagiras em terreiros como meio de empoderamento (Soares, 2018).
Como parte principal destaca-se uma possibilidade pedagógica, que reitera a importância do movimento em diferentes componentes curriculares – uma experimentação em danças afro-brasileiras. A ideia foi abordar questões corporais, de gesto e consciência de si, trabalhando movimentos isolados, que seriam cumulativos, ao longo das semanas, para desenvolver habilidades específicas, que além de estimularem a noção de peso, espaço, autoconfiança, lateralidades, equilíbrio, força, noção rítmica, deslocamento e temporalidade, apresentam uma possibilidade de saber-fazer dessas manifestações dançantes.
Nas culturas yorubás, os corpos são “[...] um microcosmo e nele estão contidos todos os elementos e forças da natureza que, distribuídos harmoniosamente pelo corpo, explicam a sua mitologia [...]” (Zenicola, 2001, p. 84). Desse modo, corpo é natureza, logo concebido a partir de elementos basilares onde: nossas estruturas biológicas seriam a terra, nossas sensibilidades e emoções significam o fogo, nossos sistemas circulatórios fazem alusão a água e, por fim, o ar denota todos elementos abstratos da nossa humanidade, envolvem nossa criatividade e percepções.
Assim, dançar está implicado em propor jogos de perguntas e respostas referenciadas em uma situação vivenciada por um sujeito e, a partir disso, abrir possibilidades de ressignificação do pré-conhecido oferecendo-lhe, inclusive, olhares outros a determinado acontecimento, “[...] em ressonância com seu ambiente, cria e é submetido a mitologias do corpo em movimento [...]” (Godard, 1995, p. 11).
Toda dança resulta do modo particular de um corpo organizar, com movimentos, o seu conjunto de referências informativas (biológicas e culturais). Do mesmo modo, o contexto cultural corresponde ao ambiente do corpo, no sentido de que o conjunto de informações que caracterizam os modos de pensar e operar vigentes na sociedade em que está inserido delineia seu campo particular de possibilidades interativas (Britto, 2008, p. 72).
Foi proposta uma possibilidade de aprendizagem não verbal, no sentido do qual quem está vivenciando a aula reúna seus próprios dados, “[...] a partir de uma experimentação direta. Através do processo de solução de problemas, ele conquista o conhecimento da matéria” (Koudela, 1998, p. 64). Um processo reflexivo, que impulsiona a improvisação “[…] provoca o sujeito a reagir, seja no interior da proposta que lhe é feita, seja em torno da proposta, explorando amplamente a zona que se desenha para ele, segundo o modo como sua imaginação é convocada” (Ryngaert, 2009, p. 91) e traduzida em prática corporal, segundo a qual em Bourdieu (2004), [se aprende], por uma comunicação silenciosa, prática, corpo a corpo. Fazer, “sentir na pele” para posteriormente adaptar as atividades para sua realidade. Essa dinâmica,
[…] exige uma incorporação que, enquanto pressupõe um trabalho de inculcação e de assimilação, custa tempo que deve ser investido pessoalmente pelo investidor, […] essa incorporação não pode efetuar-se por procuração. Sendo pessoal, o trabalho de aquisição é um trabalho do “sujeito” sobre si mesmo […] Esse capital “pessoal” não pode ser transmitido instantaneamente por doação ou transmissão hereditária, por compra ou troca (Bourdieu, 1998, p. 75).
O trabalho de aquisição ao qual Bourdieu se refere trata-se exatamente em “viver pessoalmente” todas as etapas. No contexto da ideia de improvisação é necessário promover um clima de cooperação e receptividade para que cada sujeito exponha suas narrativas pessoais corporais, observar a narrativa do outro e juntos criarem novas possibilidades. Assim, o respeito, a igualdade e a responsabilidade são peças fundamentais para o processo de aprendizagem.
O que deve importar é o estar junto, é o sentir-se fazendo parte, é o compartilhar e tais questões se mantêm presentes e igualmente fortes e necessárias em criações por intermédio de improvisações. Compreender que todo movimento nasce genuinamente de experiências sensoriais. A percepção do corpo do outro afeta o movimento e é por ele afetado. A interação está posta e novas possibilidades emergem. Julga-se então necessário “[…] encontrar o equilíbrio entre estrutura e liberdade […], a estrutura não pode ser esquecida e nem a liberdade pode ser tolhida, pois é no equilíbrio entre uma e outra que a invenção acontece [...]” (Muniz, 2004, p. 62). Desse modo produzir espaços onde a reflexão sobre formas de improvisar sinalizem outras formas de habitar o corpo e, a partir de outras pedagogias encontrar elementos que venham a nutrir visões de mundo.
A parte final, consistiu na fruição dos entendimentos apresentados corporalmente pela turma, em organização de roda. A proposição foi focar na percepção de como os corpos se sentiram durante a prática, o que já sabiam e o que aprenderam, como percebem suas aprendizagens e como explorariam essa prática em seus locais de ensino. A intenção foi tensionar quais saberes permaneceram, quais foram anexados aos seus já sistematizados e, com isso, vislumbrar quais ascenderam às ordens discursivas das suas apresentações e planejamento de ensino. Além disso, como, a partir de uma prática de dança outras atividades podem ser oportunizadas nos espaços das escolas. Isso porque, “[...] para nós, descendentes desses povos (africanos), a dança significa mais do que uma filosofia ou cosmovisão, significa existir” (Petit, 2015, p. 74).
Para não concluir, mas ressoar saberes-fazeres na docência
O componente curricular de Introdução à Educação Física (IEF) oportuniza um primeiro contato com a área em questão e, por isso, carrega em si o compromisso ético de apresentar contextos balizados pela perspectiva das diferenças (Corazza, 2017). Para tanto, busca acessar territórios micropolíticos que escapam às ordens discursivas e, por isso, acabam sendo subjugados e, por vezes, invisibilizados nos currículos, tanto na formação docente, quanto na escolarização básica. Essa compreensão implica no fazer-se docente na metamorfose do devir, isso porque, nessa lógica ela pressupõe encontros entre sujeitos e saberes que precisam ser questionadores e questionados.
A ideia é produzir outros saberes, a partir de outras pedagogias, nas quais a centralidade corporal protagonize a mediação das relações de ensinos e de aprendizagens. No caso dessa escrita a leitura corporal pressupõe o lócus das danças afro-religiosas, pois é por meio dela que se torna possível processos comunicativos entre sagrado e profano, mediados pelas rezas, itãns e atabaques. É na articulação desses três que as aprendizagens agenciam ancestralidades e, assim, as premissas culturais que precisam ser trabalhadas, segundo a Lei 10.639/03. São acionadas racionalidades que intercomunicam ayê (terra) com o orùm (sagrado) e colocam em xeque relações entre sagrado e profano.
As performances derivadas dos estudos conduziram espectadores a dimensões que possibilitaram múltiplos diálogos, os quais podem ser trabalhados em diferentes componentes curriculares, sendo abordados de maneiras distintas. Ainda que os corpos tenham sido a centralidade do trabalho, a percepção de como as danças passam a ser conteúdos da Educação Física delinearam o período de experimentação, sem que fosse necessário ampliar os diálogos acerca de saber se as danças devem ou não ser trabalhadas pela área em questão. Estudar as performances pressupõe reflexão crítica, partindo como proposto aos discentes dos privilégios que cada sujeito sustenta e tira proveito, implica em realizar o exercício digressivo de lugar de fala, a fim de que eles compreendessem quais valores socioculturais carregavam para pensar o ensino de danças em diferentes espaços, mas, nesse momento em sua formação.
Nessa experimentação, a criação coreográfica, ainda que fosse processo e fim, em diferentes momentos foi coadjuvante das vivências, pois cedeu espaço para contação de histórias mitológicas de seres que estão para além da racionalidade cartesiana dos currículos europeus. Foram acessados temas transversais, em diálogo com as mitologias yorubás e as práticas propostas, os quais proporcionaram formas de reconhecimento de como a docência pode explorar os saberes afro diaspóricos e as demandas políticas do hoje. Após o percurso estético filosófico, a ação de apresentar suas cenas coreográficas evidenciou a imersão dos discentes frente aos diálogos propostos, o que agenciou funções artísticas e pedagogias das danças, aproximando teorias e práticas pós-coloniais, reiterando às culturas afro-brasileiras.
É reiterada então, uma necessidade de acessar metodologias artísticas que possibilitem atender a complexidade das relações e distinções étnico-culturais e sociais que estão em constante transformação na contemporaneidade. O que emerge desse saber é que será na produção de significados e atribuição de sentidos às práticas docentes que ocorrerá uma aprendizagem significativa, a qual afetará a relação ensinante-aprendente. É preciso romper ciclos naturalizantes que insistem em desumanizar sujeitos, apagar culturas e silenciar vozes que ressoam em nossos cotidianos, as quais estão vivas e pulsantes no interior das relações sociais que são orientadas pela mitigação de saberes eurocentrados (como por exemplo os currículos escolares e manuais juristas). Contudo, reitera-se que os mitos são “[...] histórias primordiais que relatam os fatos do passado que se repetem a cada dia na vida dos homens e mulheres [...]” (Prandi, 2001, p. 16) e, nesse sentido, eles são inscritos nos corpos, os quais carregam os pesos atribuídos a cada mito.
Por fim, retoma-se a ideia inicial do texto, ao dizer sobre os lugares de fala, enquanto categorias de análise. Entender esse conceito, na formação docente implica dizer que são os saberes encarnados nos corpos que possibilitam tomadas de decisões e produções narrativas sobre determinado saber. Cabe aos discentes em formação manterem acionadas suas análises críticas dos seus lugares de privilégios e de ação ética dentro da profissão escolhida. O exercício aqui empreendido, apenas, sinaliza uma possibilidade de ensinar uma perspectiva de arte contemporânea, a partir de afro-brasilidades.
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Notas
[1] Professor de Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG); Pedagogo pela Faculdade Intervale; Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas (FAE - PPGE - UFPEL), na linha de pesquisa Epistemologias descoloniais, Mestre em Educação em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde em ampla parceria entre FURG - UFRGS - UFSM, do Instituto de Educação, na linha de pesquisa: Educação científica: implicações das práticas científicas na constituição dos sujeitos; Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande, no programa de Pós-Graduação em História (PPGH - FURG) do Instituto de Ciências Humanas e da Informação (ICHI), na linha de pesquisa Campos e linguagens da História; Especialista em Ensino de Artes, pela Faculdade Intervale; Especialista em Educação Física Escolar pela Pós-Graduação em Educação Física escolar do Instituto de Educação – FURG. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1690-8991. E-mail: rodrigosoaresfurg@gmail.com
[2]. Doutora pela Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia - UFBa (2009), no Programa de Gestão e Politicas da Educação/Faculdade de Educação; Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM (2004), no Centro de Educação; Licenciada em Educação Física pela Universidade Federal de Santa Maria (2001). Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA no curso de Licenciatura em Educação Física. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5361-0740. E-mail: martasilveira@unipampa.edu.br
[3] Possui graduação em Zootecnia pela Universidade Federal de Santa Maria (1989), mestrado em Extensão Rural pela Universidade Federal de Santa Maria (1994) e doutorado pelo Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (2010). Atualmente é professor da Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA- Campus de Itaqui, onde atua nos cursos de agronomia, nutrição, engenharia de agrimensura e no Bacharelado Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia. Orcid: https://orcid.org/0009-0002-1407-7570. E-mail: paulosilveira@unipampa.edu.br
[4] A Lei de Terras de 1850 impõem que o acesso a terra seja alcançado apenas via aquisição por meios monetários; com a alforria dos negros escravizados, estes sem ter recursos financeiros (nenhuma política pública foi adotada para aquisição de terra), ficaram privados de terem seu lote de terra para produzir e viver. A exceção fora aqueles que se aquilombaram (processo de resistência à subalternização).