Artistas aliados(as) para a docência em dança: a experiência do Danse à l'École na França
Dance artists, allies in dance teaching: the Danse à l’École experience in France
Silvia Soter [1]
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Marcia Strazzacappa [2]
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil
Resumo
O artigo apresenta resultados parciais de uma pesquisa de pós-doutorado cujo objetivo era estudar o modelo francês de ensino de dança nas escolas e investigar a relação entre saberes pedagógicos (TARDIF, 2012) e saberes da dança, naquele contexto, para se pensar outras possibilidades de docência em dança. O estudo concluiu que o ensino da dança nas escolas francesas ocorre pela ação de artistas da dança em parceria com professores(as) das escolas em projetos como o Dança na Escola (Danse à l`École), aqui detalhado, sustentados por políticas públicas de dois Ministérios (Cultura e Educação) há mais de cinco décadas.
Palavras chave: Ensino de dança; Dança na escola; Artistas-professores(as).
Abstract
The paper presents partial results of a postdoctoral research intending to study the French model of dance teaching in schools and to investigate the relationship between pedagogical knowledge (TARDIF, 2012) and dance knowledge in that context, in order to consider other possibilities of dance teaching approaches. The study concluded that dance teaching in French schools occurs through the action of dance artists in partnership with school teachers, in projects such as Danse à l’École (Dance at School), detailed herein, supported by public policy from two Ministries (Culture and Education) for over five decades.
Keywords: Dance teaching; Dance at school; Teacher-artists.
Há muitos anos trabalhando na formação de licenciados(as) em dança, especificamente, com as práticas de ensino e com os estágios supervisionados em dança, nos deparamos com desafios acerca do ensino dessa linguagem artística nas escolas. No que toca especificamente os campos de estágio, os desafios vão desde o número restritos de escolas que podem acolher os(as) estagiários(as), em virtude da presença/ausência da dança na Educação Básica, passando pelo desafio de se encontrar um espaço físico adequado para a prática das aulas de dança nos espaços escolares, que demandam especificidades que, em raros casos, são atendidas. Somam-se a esses desafios, questões acerca de quem é o profissional apto a trabalhar com a Dança na escola, se o(a) professor(a) de Educação Física, o(a) professor(a) de Arte, o(a) professor(a) de sala e/ou o(a) artista da dança. Seriam essas questões apenas do contexto brasileiro? Como tem se dado as formações de professores(as) de dança em outros países?
No Brasil, cabe aos cursos de licenciatura em dança a habilitação de professores de dança para atuarem na escola básica, como professores(as) de Dança/Arte. No entanto, esses cursos não são os únicos responsáveis pela formação desses professores(as) pois, como lembra Tardif (2012) no saber docente se tramam saberes da formação profissional, saberes disciplinares, saberes curriculares e saberes da experiência, além das marcas da trajetória pré-profissional. Os saberes da formação profissional são aqueles transmitidos pelas instituições de formação de professores(as), lugar e momento em que licenciandos(das) têm contato sistemático com as ciências da educação e com as teorias e tendências pedagógicas que norteiam as práticas docentes e que constituem o que Tardif entende por saberes pedagógicos. Os saberes da ciência da educação estão, por sua vez, intimamente ligados aos saberes pedagógicos, pois os últimos apoiam-se na ciência da educação como fundamento para suas reflexões e propostas. A esses saberes se articulam os saberes disciplinares, neste caso, os saberes da dança, que também se incorporam ou se aprofundam ao longo da formação inicial. (Soter, 2016)
Nossa prática docente na Universidade nos conduz constantemente a estar nos atualizando, estudando, lendo, pesquisando e pensando estratégias para aprimorar o ensino-aprendizagem. Nesse movimento, buscamos alguns exemplos do ensino de arte, na expectativa de conhecer mais experiências e vislumbrar caminhos possíveis para seguir trabalhando com o ensino de dança nas escolas.
Foi nesse movimento de busca que entramos em contato com a obra de Marie-Pierre Chopin, Pédagogues de la Danse[i] (2015) em que a autora tece reflexões sobre o diálogo pouco frequente entre os campos da Pedagogia, em geral exclusivamente ligado à escola, e o campo da Dança. Marie-Pierre Chopin é Professora da Faculdade de Educação (Faculté des sciences de l’éducation) na Universidade de Bordeaux. A obra de Chopin nos estimulou a conhecer de forma mais verticalizada suas pesquisas acerca dos perfis de pedagogos da dança, por meio de um estudo a partir de uma temporada de quatro meses como professora visitante junto ao Laboratório Cultures et diffusion des savoirs (CeDs)[ii] dirigido por ela na França, como parte do pós-doutorado. O presente artigo apresenta resultados parciais dessa pesquisa em fase de conclusão.
Olhares cruzados
Em nossas trocas sobre a formação de professores(as) de dança e sobre a presença da dança nas escolas identificamos quão distintos são os contextos e as circunstâncias entre os dois países, evidenciando a necessidade de explicar a um público francês o modelo brasileiro de formação de professores(as) não apenas de dança, mas também de dança; o lugar que o estágio supervisionado obrigatório ocupa nessa formação, os desafios específicos da dança e o status da dança na educação básica, dentro da área de artes.
Esse olhar estrangeiro que a distância permite nos ajudou a reconhecer as singularidades do modelo brasileiro de formação de professores(as) e o estranhamento que esse modelo pode provocar para quem não o conhece, bem como os caminhos tortuosos que a dança como ensino de arte percorre, já há algumas décadas, para garantir um lugar digno ao Sol, na escola básica, no Brasil.
No movimento de olhar para um lado e para o outro, fizemos a exercício de organizar algumas das características de cada contexto. Esse exercício não parte de uma suposição ingênua de que haveria comparação possível entre as duas situações ou que as soluções encontradas em um país pudessem ser, simplesmente, transferidas ao outro. Como alerta Nóvoa (2018), as desilusões da educação comparada se dão exatamente pela
crença na existência de uma solução para os problemas educacionais; ou um exemplo que se pode encontrar num país; ou um imaginário do qual devemos apropriar ou uma lei a ser aplicada em diferentes realidades; ou uma classificação que hierarquiza os países de acordo com os resultados escolares dos alunos. (2018, p. 21)
Para o autor (2018), o interesse pelo trabalho comparado se dá por sua capacidade de “abrir problemáticas”. Para um trabalho comparado com um foco maior nos problemas do que nas coisas, o autor aponta a necessidade de três gestos: o de distanciamento, o de intercessão e de comunicação. É preciso nos afastarmos do que pensamos saber, é necessário desconhecermos para que possamos acessar outros conhecimentos. Nisso consiste o gesto de distanciamento. Perceber a importância do intercessor como alguém que vai além de simplesmente “transportar, transpor ou traduzir ideias de um lugar para outro” configura o gesto de intercessão. Por fim, o tornar comum, etimologicamente à base do termo comunicar, é central para um trabalho comparativo problematizador. É o que garante “a capacidade de trabalharmos em comum a partir das nossas diferentes posições e maneiras de pensar.” (2018, p. 21)
Reconhecemos que os três gestos apontados por Nóvoa nos acompanharam nesses meses de pesquisa. Distanciar-se e entender o que acontece na França a partir do Brasil para melhor compreender o que acontece aqui, a partir de lá.
Organizamos o quadro abaixo que pretende resumir alguns dos achados dessa pesquisa no que diz respeito à formação de professores(as) de dança.
Quadro 1: Formação de professores(as) de Dança
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Para atuar como professor(a) de Dança no ensino não formal: |
FRANÇA |
Necessário ser portador do Diplôme D’état[3] de professor(a) de dança (nas categorias Ballet Clássico, Dança Contemporânea ou Jazz) |
BRASIL |
Não há exigência de uma certificação/habilitação específica. (os cursos de licenciatura em dança também acabam acolhendo estudantes que querem atuar ou que já atuam nesse segmento) |
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Se desejo realizar uma formação para atuar como professor(a) de dança para o ensino não formal, onde fazer? |
FRANÇA |
Ingressar em alguma formação de preparação ao Diplôme D’état de professor(a) de dança (Ballet Clássico, Dança Contemporânea ou Jazz) |
BRASIL |
Não há formação específica para isso |
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Se pretendo me tornar professor(a) da educação básica e quero atuar com dança, o que fazer? |
FRANÇA |
O caminho mais frequente, mas não exclusivo, é fazer o Curso universitário de STAPS- Educação Física, para atuar na escola como professor(a) de educação física e esportiva (EPS). Não há formação universitária para professor(a) de dança na escola básica, especificamente, mas os(as) professores(as) de educação física são importantes articuladores(as)/propositores(as) de ações de dança na escola. |
BRASIL |
Há 36 cursos de licenciatura em dança - habilitação para professor(a) de dança/arte na escola básica. A dança também é conteúdo a ser tratado no ensino de educação física na escola básica. |
Fonte: elaborado pela pesquisadora
No tocante à presença da dança na escola, vemos que no Brasil, mesmo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB 9394/96, estabelecendo que Arte é disciplina obrigatória ao longo de toda a educação básica e que as artes visuais, a música, a dança e o teatro devem fazer parte do ensino da arte; na prática, a dança está pouco presente nas redes de educação básica, como uma disciplina e/ou conteúdo. "A maioria das escolas privilegia, na seleção de conteúdos de arte, principalmente as artes visuais.” (Strazzacappa e Morandi, 2012, p.87)
Na França, das linguagens artísticas, apenas as artes plásticas e a música são conteúdos e/ou disciplinas obrigatórias na educação básica. A presença da dança nas escolas francesas se dá de formas variadas em propostas estreitamente ligadas às políticas públicas de Educação Artística e Cultural (EAC), como veremos a seguir. A parceria entre o Ministério da Educação e o Ministério da Cultura viabiliza a colaboração entre estruturas culturais e estabelecimentos escolares, entre artistas da dança e professores(as) e estudantes da educação básica, por meio de uma grande variedade de propostas que são planejadas, elaboradas, desenvolvidas e avaliadas conjuntamente.
Em outras palavras, embora a dança não se configure como disciplina nem como conteúdo obrigatório da grade curricular na educação básica francesa, ela se faz presente de forma potente por meio da convivência com artistas da dança. Porém, não se trata aqui de apresentações de dança realizadas nos pátios escolares como contrapartida de editais de fomento, comuns em nosso território nacional. Trata-se de ações artísticas e culturais, planejadas de forma coletiva entre escola, associações, artistas, comunidade e estudantes, como veremos a seguir.
Danse à l’école (Dança na Escola[iii]) - um pouco de história
Para compreendermos as particularidades e o que singulariza as ações de dança nas escolas francesas é necessário voltar ao tempo. Ainda que não tenhamos como objetivo traçar neste texto a longa história da educação e da cultura na França, parece-nos necessário trazer alguns elementos que conduziram a presença da dança nas escolas francesas à forma na qual se configurou e em que segue se desenvolvendo.
Desde os anos 1970, mesmo oscilando entre avanços e retrocessos em termos de políticas públicas e dotação orçamentária, um modelo de ação a partir de um repertório amplo de dança e de métodos e competências para a inserção da Dança nas escolas foi se desenvolvendo. Como indica Germain-Thomas, esse modelo se baseia na geminação (jumelage) de ações do Ministério da Cultura e do Ministério da Educação, na “parceria entre instituições do mundo/campo cultural e do educacional e privilegia a intervenção de artistas nos estabelecimentos escolares, em relação com os professores, com respeito às suas prerrogativas.” (Germain-Thomas, 2016, p. 8).
A prioridade governamental atribuída à Educação Artística e Cultural desde os anos 1970 foi crucial para que a colaboração entre instituições culturais e instituições de ensino promova projetos de dança na escola. Destacamos especificamente o Colóquio de Amiens intitulado “Pour une école nouvelle” (Por uma escola nova), realizado em 1968, identificado por Grabowski (apud Germain-Thomas, 2016, p. 17) como o momento em que a educação artística se inscreveu nos debates sobre a educação escolar de modo definitivo. Um dos relatórios finais do colóquio destaca que:
Para a educação artística não é suficiente explorar apenas os recursos escolares, é preciso fertilizar o mundo não escolar, enriquecê-lo e utilizá-lo. A exposição itinerante, concerto, a discoteca, o teatro, a televisão, [...] o brinquedo, a roupa, o móvel, o habitat, a praça, o local urbano ou rural são também objetos de formação de exigência artística e cultural.” (apud Germain-Thomas, p.17)
Esse relatório já recomendava a necessidade e o interesse de abrir a escola para o mundo, convocando pessoas que tenham experiências outras a trazê-las aos estudantes, adentrando o espaço escolar com seus saberes. Na conclusão das discussões do referido colóquio estava a aposta na parceria entre a Arte e a Educação, no entendimento de que “os mundos da educação e o da cultura convergem para uma esperança comum, fundada na aptidão da arte e dos artistas a contribuir na construção de uma sociedade melhor, tocando as gerações mais novas.” (Germain-Thomas, 2016, p. 21)
No início dos anos 1980, Jacques Lang, então Ministro da Cultura, fundou a Direção de Desenvolvimento Cultural que, por sua vez, criou um acordo entre o Ministério da Cultura e o Ministério da Educação, considerado por pesquisadores da Educação Artística e Cultural (EAC) como um ato fundador. Este texto manifesta a decisão comum aos dois ministérios de alinhar suas ações a serviço de projetos artísticos e educativos de modo coerente e integrado. No documento de 1983 está indicado que:
A colaboração irá favorecer uma maior abertura dos estabelecimentos escolares para o entorno cultural e programas escolares e educativos para a dimensão artística, bem como uma maior consideração dos projetos culturais em relação às questões próprias à infância, à idade escolar e à universidade. Essa colaboração permitirá também a participação mais ativa dos artistas e dos organismos culturais no despertar da sensibilidade, ao lado dos professores de escola e demais funcionários da educação nacional (Ministério da Educação Nacional e Ministério da Cultura, protocolo de acordo, 25 de abril de 1983, p. 23 apud GERMAIN-THOMAS, 2016, p. 23).
Artistas da dança, implicados pelos compromissos de ação cultural das instituições que os acolhem, passaram a circular pelo espaço escolar e se tornaram peças fundamentais para o desenvolvimento de projetos de dança nas escolas. Já os estabelecimentos escolares convidaram e convidam esses artistas da dança, os receberam e os recebem, para que os estudantes da escola básica francesa, da educação infantil ao ensino médio, realizem o necessário percurso artístico e cultural com dança e por meio da dança como parte das obrigações da escola básica.
Nas décadas que seguiram houve variações nos investimentos de recursos financeiros, materiais e profissionais nestas ações, mas a colaboração entre esses dois ministérios seguiu sustentando a dança na escola na França.
O papel das Instituições Culturais e da Educação Artística e Cultural EAC
As instituições culturais, teatros, centros coreográficos, centros de desenvolvimento coreográficos etc. possuem a missão de realizar ações culturais, definidas em seus cadernos de compromissos oficiais (cahiers de charges). Para além de acolher artistas e companhias em residência para o desenvolvimento de novas criações coreográficas, abrigar temporadas de artistas nacionais e estrangeiros, faz parte de suas obrigações e compromissos propor e desenvolver ações de Educação Artística e Cultural (EAC). Essas ações têm múltiplos formatos e são dirigidas a distintos públicos. Podem acontecer em parceria com associações locais em ações sociais junto a lares de idosos ou a hospitais, por exemplo. Podem igualmente disponibilizar ingressos gratuitos para espetáculos de dança para um público pouco familiarizado com determinados estilos, seguido de uma conversa com os artistas para troca de impressões. Quando há um artista ou companhia em residência de criação por um período mais longo, é possível ainda propor oficinas semanais de dança na própria instituição para grupos de amadores de diferentes idades. São inúmeros os formatos dessa ação cultural e a figura do mediador cultural é central para o bom desenvolvimento dessas importantes ações. Dentre esses parceiros para a ação cultural, os estabelecimentos de educação básica, as escolas, são primordiais.
Também nos compromissos das instituições de educação é imperativo criar oportunidades para que os estudantes tenham contato com as diversas linguagens artísticas, para além das artes visuais e da música, presentes obrigatoriamente na grade curricular francesa. A experiência com a dança ainda é mais valorizada por ser essa uma prática corporal e expressiva, e alargar o repertório de conhecimentos nos currículos.
Essa dupla missão de instituições culturais e de instituições de ensino de desenvolver projetos de educação artística e cultural, confirmadas pelas orientações dos dois ministérios aos quais estão submetidas, cria e sustenta o ambiente em que os projetos de dança na escola se desenvolvem.
Esses exemplos nos fazem pensar em movimentos que ocorrem no Brasil. Existem algumas parcerias já estabelecidas entre associações, companhias de dança e escolas da educação básica, porém, além de poucas, são frutos de iniciativas pontuais e restritas a um determinado público, não se configurando como Políticas Públicas de Estado. Os exemplos que podemos citar são ações localizadas em determinadas cidades, geralmente capitais, como o trabalho educativo da São Paulo Cia de Dança (SPCD), no Estado de São Paulo, ou o trabalho desenvolvido pelo Festival Panorama em 2023, em que artistas da dança realizaram residências artísticas em escolas municipais, em parceria com professores(as) de arte/dança, no Rio de Janeiro. Mesmo assim, essas ações ainda sofrem com a mudança de gestão. Na maior parte das vezes, são dependentes de financiamentos descontínuos e acabam por não aprofundar a relação entre artistas da dança, professores(as) e estudantes em torno da Arte, enfraquecendo a presença desta na escola.
Fora essas exceções, a dança que chega nas escolas brasileiras como parte do ensino de arte carrega as marcas das trajetórias dos licenciados(as) em dança, suas potências e seus limites. Cabe a estes(as) e só a estes(as) mobilizar os saberes da dança, mesmo quando em suas trajetórias pré-profissionais, em sua formação e em suas experiências profissionais posteriores, não tenham experimentado nenhum processo artístico de dança, nem como intérpretes, nem como coreógrafos(as), em contexto de dança profissional. (Soter, 2016)
Constelação - O Centro Nacional da Dança (CND) e a Dança na Escola
Em 2018, o Centro Nacional da Dança (Centre National de la Danse-CND), importante polo de recursos para a mediação e a educação artística e cultural em dança, ligado ao Ministério da Cultura, na França, criou um dispositivo de Educação Artística e Cultural chamado Constelação (Constellation). Por meio dessa proposta, dirigida a equipes de ensino, a artistas e a mediadores(as) culturais, o CND busca orientar, alinhar, integrar e avaliar as ações de EAC com dança nas escolas.
A publicação que apresenta o dispositivo tem quatro fascículos. O principal descreve os princípios gerais do projeto e sua metodologia, com um passo-a-passo das diferentes etapas e um calendário alinhado ao ano letivo, acompanhado de orientações às equipes educativas e artísticas. O segundo é um caderno de bordo a ser preenchido digitalmente dirigido a artistas, equipes educativas e mediadores(as) culturais para que registrem o trabalho desenvolvido, dúvidas e reflexões. O terceiro traz propostas de atividades de dança e de mediação e foi construído e assinado coletivamente por vários artistas e educadores participantes dos anos anteriores, como ferramenta para inspirar as ações dos artistas e educadores. Espera-se que a cada ano, as novas equipes enriqueçam com suas próprias experiências esse material. Por fim, há um caderno de bordo físico para os(as) alunos(as), com recursos gráficos como emojis, por exemplo, para que registrem e avaliem sua experiência nesse percurso de educação artística e cultural com dança.
Figura 1: página do Caderno de Bordo para as crianças do Constelação
fonte: Centre National de la Danse (CND)
Se por um lado, o documento ressalta a singularidade de cada proposta de dança na escola, insistindo no caráter original daquilo que é criado por cada artista da dança em diálogo com a equipe educativa, mediador e turma, por outro, indica com precisão as etapas que constituem esse percurso de educação artístico e cultural por meio da dança.
Cada grupo passará por um encontro introdutório que acontecerá em sala de aula, sete dias de ateliers de prática coreográfica e de mediação, duas conferências tendo a anatomia corporal e suas representações como tema. Também assistirão a dois espetáculos, farão parte de um atelier pais e crianças, no caso dos da educação infantil e anos iniciais, encontrarão os outros grupos para um dia de atividades partilhadas. O ciclo é finalizado por um momento de conclusão em sala de aula. Todas essas etapas estão dispostas em uma linha do tempo apresentada graficamente, mês a mês, no fascículo principal e discorrem ao longo de um ano letivo.
As atribuições de participante das equipes também são indicadas no documento. Espera-se que os artistas contribuam com suas práticas e pesquisas coreográficas pessoais e seus modos próprios de transmitir a dança. O olhar dos artistas sobre os(as) alunos(as) leva em conta a proposta artística que eles conduzem. Já as equipes educativas olham esses(as) mesmos(as) alunos(as) do ponto de vista da vida escolar para além da proposta de dança. Aos/Às mediadores(as) culturais cabe inscrever o projeto no universo da dança, intermediando os diálogos e as trocas entre os membros da equipe e entre estas e os(as) estudantes. Cada ator cumpre um papel igualmente importante para a construção, a condução e a avaliação das propostas.
A experiência do Atelier - revendo o conceito da docência em dança
A dança é abordada por meio de ateliers. O termo atelier é recorrente em todo o documento de 2018, como nos anteriores em que se descreve a dança na escola. Na língua francesa, um atelier é um local onde artistas e/ou artesãos(ãs) desenvolvem seus trabalhos individualmente ou em grupo.[iv]. Em dança, um atelier é um espaço/tempo de experimentação que pode ocorrer em um estúdio de dança ou em outros locais.
Ao descrever as atividades de dança na escola nos anos da Danse au coeur[v], Germain-Thomas já afirmava que os ateliers eram a base do edifício. (Germain-Thomas, 2016, p. 43)
Lefévre (in Brun, 2013, p. 274) propõe a metáfora do caldeirão para entender o atelier de dança. Utensílio de preparação de alimentos mas também de poções mágicas, no caldeirão, como no atelier, ingredientes são dispostos, misturas são experimentadas que, eventualmente, resultam em mágica. A autora afirma:
O atelier funciona como um laboratório de pesquisa para os atores envolvidos. Nele, se experimentam possíveis, se fazem tentativas e erros, se desenham rascunhos, se acumula material suscetível de ser utilizado em cena. Nisso o atelier justapõe os lugares de formação, de ensaio, de experimentações, de conflitos, de criação, de contestação, de aceitação e de transbordamento. Participar de um atelier, é também se inscrever em um tempo singular mais dilatado: o tempo do atelier opera uma ruptura com o tempo social. (Lefévre, in Brun, 2013, p. 274)
Como situação de ensino, o atelier se distingue de uma aula de dança, mais precisamente, de uma aula de técnica de dança. Não há controle sobre o modo como um atelier irá se desenrolar, ainda que a experimentação se dê a partir de estímulos e propostas precisas. Um atelier é, com frequência, planejado, mas não há garantia de que se chegue onde se pretendeu chegar, ou no intervalo de tempo previsto. Como a autora sublinha, o tempo social não é o mesmo tempo do atelier e o ateliê é também um “espaço outro” (Lefévre, p. 275). Lefévre sugere que o atelier possa ser considerado uma espécie de heterotopia (Foucault, 1984 apud Lefévre, 275) “onde as coisas aparecem, se transformam, se encontram, se abandonam, se compõe na espessura da relação com o outro e no indizível dessa co-presença.”
Como já afirmava Marcelle Bonjour, "A Dança na Escola não é a escola de dança” (1994, p.3) também por essa razão. A Dança na Escola, nos moldes do que vem sendo desenvolvido na França, se dá a partir de experimentações, de explorações, de improvisação, de criação. São suas estratégias singulares que os(as) artistas da dança partilham com os estudantes e, nem sempre, ao final da experiência se tem algo pronto, algo a ser mostrado. Muitas propostas não chegam a um resultado artístico a ser apresentado, o que não as invalida de forma alguma.
A Dança na Escola do ponto de vista de uma artista da dança
Buscando compreender o modo com os(as) artistas desenvolvem suas parcerias com os(as) professores(as) entrevistamos uma artista da dança contemporânea que vem participando de ações de dança em escolas, na França, desde 2019. Trata-se da polonesa Ágata Maszkiewicz. Ágata tem formação de intérprete de dança na Áustria e depois na França, trabalha em pequenas companhias e desenvolve projetos próprios com dança e performance. Em 2019, foi convidada por uma colega artista visual para colaborar em um projeto de dança dirigido a um público amador de variadas idades. Ela considera ter sido esta a sua primeira experiência com aulas e ateliers regulares. Nessa ocasião, a elas foi proposto que levassem esses ateliers de dança e artes visuais a escolas, o que fizeram. No ano seguinte, a artista foi indicada pela Agência OARA[vi] , que apoiava materialmente seu trabalho artístico, para desenvolver ações de dança em escolas na região da Nova Aquitânia, na França. A artista destaca a importância de uma boa articulação entre a direção das escolas e os(as) professores(as) que serão os parceiros do projeto, para o sucesso da ação. Ela conta, por exemplo, que ao chegar à primeira escola foi recebida com indiferença por parte da turma e da professora, que não pareciam entender bem a razão de sua presença, o que fez com que ela não pudesse avançar muito. A direção da escola havia solicitado à OARA a colaboração de uma artista da dança, mas não parecia ter construído essa demanda junto à professora da turma. Já na segunda escola em que foi recebida, a professora estava sedenta por sua presença, pois queria que sua turma tivesse uma experiência com dança, mas não se sentia capaz de propô-la sozinha. Ágata pôde então trabalhar com os(as) alunos(as) e com a professora, por meio de ateliers de improvisação, atendendo a demanda da docente. A artista relata um terceiro caso em que foi acolhida por uma professora que estava coreografando para uma turma de meninas e que precisava da ajuda da artista para conseguir dar às alunas ferramentas que permitissem que tivessem uma participação mais propositiva na criação. Ágata diz ter trabalho com a professora, nesse caso, munindo-a de estratégias para que as estudantes conseguissem realizar o que a professora-coreógrafa pretendia.
Desde 2023, convidada pelo CDCN-Bordeaux (estrutura cultural que acolhe Ágata como artista residente) participa do projeto Constelação. Na sua visão, o projeto Constelação, por ter uma estrutura clara, com etapas, cronograma e estratégias pré-determinadas, tem facilitado a atuação tanto de artistas, quanto dos(as) professores(as). A adesão das escolas ao projeto não é imposta e, pela sua experiência, isso faz com que apenas as escolas e os(as) professores(as) que desejam essa parceria, se envolvam, tornando o trabalho mais fluido e produtivo. O fato de o programa Constelação ter chegado ao atual formato graças ao saber construído ao longo dos anos por artistas da dança, professores(as) de escola e mediadores(as) culturais, coautores(as)da proposta, dá à Ágata maior segurança para agir, uma vez que as propostas emergiram da experiência de seus pares. Na sua leitura, a solidez das orientações do documento e da metodologia se deve ao fato de partirem de saberes da experiência (Tardif, 2012) de seus pares, edificados na prática, no confronto com diferentes realidades e contextos, as sessões de formação, de planejamento das aulas e os próprios fascículos são considerados pela artista apoios eficazes e, quase sempre, adequados para a dança na escola. Quase sempre, pois a artista conta que buscou seguir à risca o ritmo e as orientações do Constelações com uma turma de educação infantil, com crianças de 3 e 4 anos. Na sua experiência, para crianças tão pequenas, o tempo das sessões preconizadas pela Constelação não se mostraram adequados. Estar em parceria com a professora da turma, conhecedora há mais tempo dos(as) alunos(as) e de seus ritmos de concentração, permitiu que ela se adaptasse às possibilidades das crianças. Para isso, foi necessário desobedecer às orientações gerais. Como está previsto na metodologia do Constelação que os documentos de orientação sejam revistos e atualizados regularmente, incorporando os saberes construídos a cada ciclo, acredita-se que uma melhor adequação das propostas às turmas de educação infantil já fará parte de uma próxima edição.
Pelo relato desta artista da dança vê-se que o encontro entre artista da dança e professor(a) não é sempre igual, que não está sempre ganho. Entender a necessidade dos(as) professores(as), da turma e poder dialogar com as resistências, intenções e desejos são parte do fazer dessa artista, nas ações que vêm desenvolvendo com Dança nas escolas. Talvez essa seja mais uma importante distinção entre o contexto francês e o brasileiro. Um(a) artista da dança, ao mobilizar saberes da experiência e saberes da dança em uma sala de aula, opera como catalisador(a) dessas experiências artísticas. A parceria com o(a) docente responsável pela turma assegura que estes saberes da dança se combinem e se articulem aos saberes da experiência pedagógica do professor. Confiar que cada colaborador(a) tem saberes e que estes são complementares e todos são necessários é premissa para o bom desenvolvimento destas ações.
Os passos que ainda precisam ser dados
Como enfatiza Paulo Freire em Pedagogia da Esperança “ninguém caminha sem aprender a caminhar, sem aprender a fazer o caminho caminhando, refazendo e retocando o sonho pelo qual se pôs a caminhar” (Freire, 1997, p.79). A pesquisa de pós-doutorado nos permitiu conhecer a ação Danse à l’école no contexto francês, identificando as características dos saberes mobilizados por artistas da dança quando em situação pedagógica, em parceria com professores(as) das escolas de educação básica.
Ter conhecido in loco a experiência da parceria entre escola e instituições artísticas e culturais, entre professores(as) e artistas nos permitiu refletir acerca de nossa própria prática docente e a repensar possibilidades de ações ao voltar para a sala de aula da universidade para ministrar disciplinas de prática de ensino e estágio supervisionado no curso de licenciatura em dança. Talvez seja necessário começarmos a sonhar outros modos de interação entre professores(as) da escola básica e artistas da dança, construindo parcerias e trocas mais significativas, em que os saberes pedagógicos e artísticos se somem e se entrelacem, fortalecendo a presença da dança nas escolas brasileiras. Para isso, o papel dos(as) professores(as) é central, assim como é necessária a presença dos(as) artistas da dança nas escolas, cada um(a) com seus saberes.
REFERÊNCIAS
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
GERMAIN-THOMAS, Patrick. Que fait la danse à l’école? Enquête au coeur d’une utopie possible. Toulouse, Éditions de l’Attribut, 2016.
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SOTER, Silvia. Saberes Docentes para o ensino de dança: relação entre saberes e formação inicial de licenciados e em Dança e Educação Física que atuam em escolas da rede de ensino do Rio de Janeiro e região metropolitana. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ. Dezembro de 2016. Disponível em: http://www.educacao.ufrj.br/ppge/teses2016/tSilviaSoter.pdf. Acesso em: 18 jul. 2024.
STRAZZACAPPA, Márcia; MORANDI, Carla. Entre a arte e a docência: formação do artista da dança. Campinas: Papirus, 2012. 4. ed.
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This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)
Notas
[1] Silvia Soter é doutora em Educação (2016) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Docente da Faculdade de Educação da UFRJ. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9760-8551. E-mail: ssotersilvia@gmail.com
[2] Marcia Strazzacappa é doutora em Arte (2000) pela Universidade Paris 8. Docente aposentada da Faculdade de Educação da UNICAMP. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4118-6572. E-mail: marciastrazzacappa@gmail.com
[3] Diplôme d'État é uma certificação para professores de dança, criada em 1989, obtida por meio de um exame nacional. Damasio (2010) explica que a preocupação com a saúde de crianças e jovens alunos de dança foi determinante para a mobilização do Ministério da Cultura para a exigência que os professores tivessem esse diploma e “inaugurou uma discussão acerca das práticas tradicionais de aprendizagem em dança, até então pouco problematizadas nos meios institucionais” (2010, p.77). Programas de formação e preparação ao exame foram instituídos, apoiados nos conteúdos e habilidades que são exigidas para o exame.
[i] CHOPIN, Marie-Pierre. Pédagogues de la danse: transmission des savoirs et champ chorégraphique. Paris: Éditions FABERT, 2015
[ii] https://ceds.u-bordeaux.fr/Le-CeDS/Presentation-et-historique
[iii] Iremos a partir de então substituir Danse à l`École por Dança na Escola grafado com maiúsculas por ser o nome do projeto.
[iv] ver Atelier no Dicionário Robert online. Acesso em 27 junho de 2024
https://dictionnaire.lerobert.com/definition/atelier#:~:text=D%C3%A9finition%20de%20atelier%20%E2%80%8B%E2%80%8B,Atelier%20de%20r%C3%A9parations.
[v] Danse au Coeur foi uma associação criada em 1989 por Marielle Bonjour que, por mais de duas décadas, foi referência para a formação continuada de professores(as) e artistas que desenvolveram propostas de dança nas escolas. Em 2002, ganhou o estatuto de Pólo Nacional de Recursos Artísticos e Culturais, junto com o Centro Nacional da Dança (CND), tornando-se responsável pelo desenvolvimento de recursos pedagógicos e de documentos com orientações para artistas da dança e professores(as) para o projeto Dança na Escola. Em 2011, após sucessivos cortes de orçamento, a associação encerrou suas atividades.
[vi] https://oara.fr/