Na cidade e no bairro: livros de literatura infantil para se imaginar e ler o mundo
In the city and in the neighborhood: children’s literature books to imagine and read the world
Maria Laura Pozzobon Spengler[1]
Literalise - UFSC
Karina Rousseng Dal Pont2
Universidade Federal do Paraná - UFPR
Resumo
O encontro entre as cidades e a literatura é um convite a desvelar com as palavras modos de exercitar a criação de imagens com as cidades inventadas pelas formas e afetos provocados na imersão na leitura e que transbordam possibilidades imaginativas de reconhecer em algumas delas as cidades que carregamos em nossas vivências. Desde a pequena infância vivenciamos os espaços da cidade. Ao acionar a literatura e os modos como escritores e escritoras capturam os espaços urbanos em suas narrativas (pela sutileza das composições com as palavras ou pelas possibilidades imaginativas criadas nesse encontro), contemplando a leitura literária como experiência estética para sensibilização, apresentaremos neste texto alguns exercícios de atenção e análise de dois livros ilustrados que trazem a temática da vida no bairro: Meu bairro (2020), de María José Ferrada e Ana Penyas, e Meu bairro é assim (2016), de Cesar Obeid e Jana Glatt, obras da literatura infantil para refletirmos sobre os modos como educamos espacialmente as crianças.
Palavras-chave: Cidade; Literatura Infantil; Livro Ilustrado.
Abstract
The meeting between cities and literature is an invitation to unveil with words ways to exercise the creation of images with cities invented by the forms and affections caused by immersion in reading and that overflow imaginative possibilities of recognizing in some of them the cities we carry in our experiences. From early childhood we experience the spaces of the city. By activating literature and the ways in which writers and writers capture urban spaces in their narratives (by the subtlety of compositions with words or by the imaginative possibilities created in this encounter), contemplating literary reading as an aesthetic experience for awareness, we will present in this text some exercises of attention and analysis of two illustrated books that bring the theme of life in the neighborhood: Meu Bairro (2020), by María José Ferrada and Ana Penyas, and Meu Bairro é assim (2016), by Cesar Obeid and Jana Glatt, works of literature to reflect on the ways in which we spatially educate children.
Keywords: City; Children's literature; Picturebook
Para olhar a cidade
Assim – dizem alguns – confirma-se a hipótese de que cada pessoa tem em mente uma cidade feita exclusivamente de diferenças. Uma cidade sem figuras e sem forma, preenchida pelas cidades particulares.
Ítalo Calvino, As cidades invisíveis.
As cidades quando apresentadas pela literatura, são convite a desvelar com palavras, modos de exercitar a criação de imagens, formas, afetos e diferenças nas "cidades particulares” que carregamos. Ítalo Calvino, nos provoca com suas “cidades invisíveis” a (re) conhecer diferenças e semelhanças entre as 55 cidades descritas em sua obra, e aquelas que temos em nossas memórias, a partir de nossas experiências e sensações. Assim, as cidades que carregam nomes de mulheres, e são apresentadas pelo viajante Marco Polo ao imperador mongol Kublai Kan, se expandem para além de noções cartográficas, geográficas ou históricas, para encontrar na imaginação e experiência sensível do narrador suas experiências pelas ruas, vielas, construções e com os sujeitos que nelas vivem.
Clarisse, cidade gloriosa, tem uma história atribulada. Diversas vezes decaiu e refloresceu, mantendo sempre a primeira Clarisse como inigualável modelo de todos os esplendores, a qual, comparada com o atual estado da cidade, não deixa de suscitar suspiros a cada giro de estrelas. (Calvino, 2014, p.98).
Cidades que não são visíveis a olho nu, nem podem ser fixadas temporalmente, mas que transbordam possibilidades imaginativas de reconhecer em algumas delas as cidades que carregamos em nossas vivências.
***
Desde a pequena infância vivenciamos os espaços da cidade, tanto públicos como privados. Basta lembrarmos dos trajetos percorridos a pé ao lado de um adulto. Num piscar de olhos lembramos do cheiro das árvores frutíferas ou do colorido das flores anunciando a primavera. A ida à casa dos avós, as brincadeiras nas ruas, praças e nas poças d’água deixadas pela chuva após dias quentes de verão. Os olhos que percorriam freneticamente as paisagens pela janela do carro ou do coletivo. Os passeios de bicicleta pela vizinhança ou a ida à padaria da esquina. Essa é uma das formas de viver e lembrar das cidades pela infância, mas, para essa infância do século XXI, o que resta dessas cidades? Quais possibilidades ainda oferecem aos deslocamentos e vivências se as cidades continuam a ser planejadas para o carro, para homens, construções, para a velocidade?
Estabelecer com a cidade outros modos de vivê-la para além da funcionalidade e do uso dos espaços é um tema urgente à educação. Desde antes da pandemia, estudos e pesquisas sobre o cotidiano das infâncias nas cidades já nos mostravam a importância dessa temática tanto para a leitura desses espaços que compõem a cidade da qual as crianças fazem parte como para um desemparedar das práticas pedagógicas. A pandemia e o distanciamento social privaram ainda mais o deslocamento físico e cotidiano pelas cidades, e essas privações atingem sobremaneira as crianças e suas famílias. A casa foi se tornando ao longo desse período o lugar do estudo, do descanso e da brincadeira. Francesco Tonucci[2] nos convoca a pensar “a casa como lugar de brincadeira e aprendizado durante a pandemia”, já que o medo pelo contágio nos impossibilita percorrer a cidade com a tranquilidade de outros dias, e muitos dos hábitos adquiridos durante esse tempo de isolamento, ainda permanecem na constituição do cotidiano das famílias nesses últimos anos, tempos de convívio emparedado, cercado por telas.
Ao levar os olhos a passear pelos espaços frequentados pelas crianças desde a creche, a potência do encontro com a cidade estará também em encontros sensíveis, como ao encantar-se com gotas de chuva que escorrem pelas janelas, com as borboletas que visitam as árvores do parque, com a dança das folhas das árvores quando bate uma ventania. Com o barulho e movimento dos carros, motos e ônibus que passam pela rua. Pelos passeios aos arredores da creche, ou pela observação do trajeto casa–escola. Este pode ser um momento para se analisar formas e volumes, cores das construções e suas funções. Ao caminhar e percorrer a pé as ruas do bairro, outra compreensão espacial é composta pelos cheiros dos pães assando, os cachorros que correm desenfreados atravessando ruas ou pelo grito estridente de "quatro bandejas de morango, só paga 10 reais".
Essas são imagens das cidades particulares que vamos compondo ao longo da nossa vida. As vivências com o espaço urbano são decorrentes de uma série de fatores como a possibilidade de brincar nas ruas após as aulas, ou, já na creche e na escola, de participar de saídas de estudo e frequentar com a família os espaços públicos que a cidade oferece. Se ainda assim essas possibilidades forem pouco oferecidas, também nos educamos “pelo conjunto de imagens que a cultura nos oferece” (Calvino, 2015, p. 109), com o currículo da escola, textos e fotografias dos livros didáticos e com a literatura.
Desde a educação infantil, a relação das crianças pequenas e bem pequenas com a cidade pode compor campos de experiência que orientem a organização do trabalho pedagógico. A relação das crianças com os espaços de vivências são disparadores para dialogar tanto com as questões conceituais como metodológicas do trabalho docente. Marcia Gobbi (2018) afirma, para além dessas questões, que existe uma perspectiva política nessas ações, ao darmos voz e vez para as crianças expressarem seus pensamentos e sentimentos em relação aos espaços urbanos.
Infância e cidade têm se apresentado como temas cuja relação se mostra bastante fecunda e cada vez mais necessária a compor estudos sociais da infância, em especial com forte caráter sociológico e antropológico. Moradia, mobilidade urbana, brincadeira, relações e práticas sociais, diferença, habitar são temáticas importantes quando nos debruçamos sobre a infância, em especial com as crianças de pouca idade, que sempre foram e ainda são alijadas das discussões sobre cidades. (Gobbi, 2018, p. 24).
Ainda assim, mesmo ampliando os espaços de pesquisas e discussões sobre esse tema é sabido que a organização pedagógica nas instituições de educação infantil, a relação com a cidade, o bairro e seus entornos ainda aparecem esmaecidas. Paulo Freire nos ensina que "desde muito pequenos aprendemos a entender o mundo que nos rodeia. Por isso, antes mesmo de aprender a ler e a escrever palavras e frases, já estamos ‘lendo’, bem ou mal, o mundo que nos cerca" (Freire, 2003, p. 71). Portanto, essa trajetória de ler o mundo se inicia pelo espaço vivido e pelas leituras do lugar no qual as crianças passam grande parte do dia. Sabemos também que as legislações que orientam a Educação Infantil apresentam como prerrogativa que as crianças devem ter livre acesso aos espaços das instituições, além de uma série de outros critérios que levam em consideração a potência e as possibilidades de ler e compreender o mundo em que vivem.
Nos Anos Iniciais, a rua, o bairro, a cidade são escalas e conceitos trabalhados na educação geográfica, por exemplo. O espaço vivido pelas crianças e adolescentes compõe com o currículo escolar possibilidades de encontros com a cidade, seja nas temáticas abordadas, seja nas possibilidades metodológicas como leitura e produção de imagens, análise e construção de mapas, e o estudo do meio. De modo geral essas temáticas estão mais consolidadas a partir dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental do que na Educação Infantil. Ainda assim, não há garantias de que vivências ou propostas de leituras da cidade estejam presentes nas práticas cotidianas para além de uma instrumentalização sobre o tema. Caberia refletirmos sobre por que priorizamos ao longo da formação escolar a instrumentalização das formas de ler a cidade e o espaço ao invés de provocarmos a formação de um pensamento sobre esses modos de representá-lo e compreendê-lo (Dal Pont, 2018).
Essa relação quase automatizada em apresentar o que é a cidade implica os modos como já adultos vivemos esses espaços: de forma estéril, atribuída à falta de tempo imposta pela correria do dia a dia, com movimentos milimetricamente calculados de trajetórias pelo espaço urbano. Olhamos para a paisagem apenas na direção dos olhos, naquilo que a vista alcança. Tudo que vibra, cheira ou se movimenta e está abaixo, acima, atrás ou em qualquer outra direção que desvia o olhar passa despercebido. Ao problematizar essas relações que estabelecemos com os espaços urbanos desde pequenos, pensamos junto a Félix Guattari (2008, p. 170) a relevância da “restauração da cidade subjetiva que indaga tanto os níveis mais singulares das pessoas quanto os níveis mais coletivos”, para poder dizer sobre a cidade e as formas de apresentar suas ruas, construções, desvios, calçadas, pessoas, surpresas, afetos e sentimentos explorados nos percursos.
O diálogo com a literatura e as narrativas possibilita pela potência da leitura das imagens e dos textos um transbordamento sobre os modos de ler e mapear as cidades. Segundo Calvino podemos pensar em “dois tipos de processos imaginativos: o que parte da palavra para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem visiva para chegar à expressão verbal” (Calvino, 2015, p.101).
A aposta está num convite para mirarmos as cidades pela literatura por diferentes “processos imaginativos” (Calvino, 2015) como algo que extrapole os fins explicativos e impregne as relações com a cidade de outras estéticas. Podemos provocar uma educação que ative a imaginação, criação e invenção com a cidade, como nos ensina Gilka Girardello (2011). Para a autora a imaginação e a sensibilidade precisam ser educadas desde a infância. E as relações estabelecidas com a literatura, as narrativas, a arte e contato com a natureza que enfatize a imaginação “por sua importância como geradora de interrogações e alternativas (...) e também é condição, propulsão e manifestação de toda a subjetividade, sendo por isso ligação entre sensibilidade e intelecto, entre ciência e arte.” (Girardello, 2011, p. 89)
A aproximação das crianças com a literatura e a cidade torna-se um exercício imaginativo para construção de pequenos desvios nos caminhos cotidianos da educação ao propor a construção de relações poéticas com o espaço pela proliferação de sensibilidades. Portanto, podemos seguir a educar e viver o espaço urbano apenas como um simulacro de formas e funções, ou podemos experimentar e construir outros sentidos com a literatura, desde a Educação Infantil, que possam mover alguns aspectos de como compreendemos o que é uma cidade, ampliando assim as leituras sobre esse mesmo espaço.
Livros ilustrados que instigam o olhar
Contemporaneamente, deparamo-nos com livros para a infância que se destacam pela qualidade artística e literária das linguagens que o compõem, enquanto objetos que possibilitam experiências estéticas diversas, o livro literário para crianças se constitui como um passeio por uma galeria de arte.
[...] a Literatura Infantil apresenta um conjunto de novos recursos de linguagens que ampliam a literariedade do texto verbal e permitem diálogos entre a palavra, a imagem e o projeto gráfico, linguagens múltiplas que convivem juntas e que possibilitam uma pluralidade de produções, materialidades das mais diversas que são expressas em livros de todos os formatos. Essa diversidade, que amplia as possibilidades de leitura, promove a necessidade de se conhecer e explorar as novas expressões que atravessam o literário. Assim, no livro de Literatura Infantil a palavra, a imagem e a materialidade convivem juntas, se complementam e se completam, comunicam-se entre si, dialogam, de tal maneira que para a compreensão desse universo de linguagens devemos estar atentos não somente para a importância de uma ou outra linguagem. Afinal, a leitura do objeto livro configura caminhos de compreensão e interpretação não lineares e, portanto, exige olhar atento de seu leitor. (Spengler, 2017, p. 18)
Define-se, a partir do conceito de livro ilustrado, que é o livro que engendra três linguagens: a palavra escrita, a ilustração e o projeto gráfico, dado pela materialidade do livro. Assim, pelo encontro dessas três linguagens, o livro ilustrado convoca o leitor para a vivência de uma experiência de leitura que exige:
[...] uma memória avivada e uma percepção astuta para a combinação de elementos que formam a materialidade: dimensão, formato, organização dos textos nas páginas duplas, diagramação, tipografia, acabamentos gráficos, elementos paratextuais (capa, quarta capa, lombada, folhas de guarda e folhas de rosto etc.), entre outros. (Medeiros; Spengler; LOpes, 2021, p. 287)
A pesquisadora francesa Marie Bonaffé (2008) afirma que as crianças são curiosas pela linguagem e estão banhadas por ela todos os dias, a literatura para a infância contribui para esse encontro, constituindo instrumento importante para o conhecimento da língua, do mundo e da empatia, formação tão necessária em nossos dias. Ao propiciar aquisição de linguagem, os livros de literatura infantil oportunizam a expansão de ideias e enriquecimento de repertórios linguísticos e culturais. O pesquisador Peter Hunt (2010, p. 60) afirma que “os livros para criança são uma introdução à vida que se estende diante delas”.
Ao contemplar a ideia da leitura literária como experiência estética para sensibilização, o corpus de análise desse texto constitui-se de dois livros ilustrados que trazem a temática da vida no bairro: Meu bairro (2020), de María José Ferrada, escritora chilena, e Ana Penyas, ilustradora espanhola, foi traduzido por Carla Branco e publicado pela Editora Pallas Mini; Meu bairro é assim (2016), de Cesar Obeid e Jana Glatt, publicado pela Editora Moderna. O conjunto dos livros é composto por um título traduzido e um livro de autores brasileiros, e os dois livros analisados contemplam características de livro ilustrado, como as destacadas anteriormente.
Muito já se sabe sobre cada um deles, ao observarmos os textos de quarta capa. Em Meu Bairro, indicando o caráter subjetivo da narrativa, “O bairro da Dona Marta é um bairro como outro qualquer, mas é também um bairro único no mundo, porque é o dela” (Ferrada, 2020, texto da quarta capa). No livro Meu bairro é assim, a rítmica proposta para a construção narrativa também é o convite para o leitor abrir o livro:
Hoje os bairros vão brilhar
Com a arte de rimar
Bairro todo mundo tem:
Jovem, idoso ou neném
Seja residencial,
Rural ou comercial.
Bairro antigo ou mais recente,
Com bastante ou pouca gente
Pra trabalho e moradia,
Bairros viram poesia.
Abra o livro para ler
O que os bairros vão dizer.
(Obeid, 2016, texto da quarta capa)
Em sua materialidade, Meu bairro compõe-se de 28 páginas, 22,5 centímetros por 16,5 centímetros, e encadernação brochura; quando aberto em direção horizontal, atinge o tamanho de 45 centímetros.
Figura 1: Capa do livro Meu Bairro
Fonte: Acervo das autoras.
Ao dedicar o livro “a todas as mulheres que desfrutam de sua idade e que, sem se importar com o que aconteça, continuam mantendo suas atitudes” (2020, p. 2), as autoras já demonstram o interesse em trazer aspectos feministas à narrativa, também demarcado quando mostram o dia a dia de uma senhora idosa e outras diversas informações presentes nas ilustrações, como o símbolo do feminino em adesivo colado em carro (p. 21) ou a escrita em parede, em forma de grafite, “nenhuma a menos” (p. 23).
Figura 2: Livro Meu Bairro, páginas 4,5, 22 e 23
Fonte: Acervo das autoras.
As ilustrações são compostas em tons de cinza e azul, com destaque a elementos em cores vibrantes, que mesclam fotografias, colagem e pintura. Cada página dupla divide-se entre a ilustração, apresentada sempre na página direita, e o texto verbal em página de fundo branco com um elemento trazido da ilustração ao lado.
A orelha que acompanha a capa traz uma imagem das janelas de um edifício, roupas penduradas em varais e várias pessoas distribuídas em janela; ao centro, uma mulher que segura um novelo de linha, cujo fio esticado perpassa todos os espaços e é segurado por cada uma das personagens.
A narrativa se constitui pela vivência de Dona Marta, moradora antiga de um bairro durante um dia comum, a saída de casa, explorando os caminhos de seu bairro, a ida ao cabelereiro, consulta médica, um passeio pelo parque e o encontro com as amigas (que permanecem jogando cartas desde a manhã), “De volta, confirma que tudo continua tal e qual ela deixou: Inês, Ana e Maria continuam no carteado (combinaram que será infinito)” (p. 22), e por fim o descanso em casa.
Na ilustração da página 7, em frente a uma escola, as autoras constroem um tempo e espaço para celebrar a pluralidade da vida em sociedade, mostrando famílias diversas e convocando o leitor para também olhar com sensibilidade para as diferenças nas cidades em que vivem.
Figura 3: Livro Meu Bairro, página 7
Fonte: Acervo das autoras.
O seu caminhar pelo bairro é o encontro com os espaços organizados, alguns transformados com a passagem do tempo, como a pluralidade dos passageiros de um ônibus, ou a quantidade de carros espalhados pelas ruas e outros, conservando características de muitos anos, como o número do ônibus, que a protagonista usa há 50 anos.
Figura 4: Livro Meu Bairro, páginas 16 e 19
Fonte: Acervo das autoras.
Em entrevista ao Correio Braziliense, a autora afirma que procurou “encontrar imagens e uma linguagem simples que seja confortável e especialmente próxima da criança que lê" (Izel, 2021, p. 1). Dessa forma a criança poderá reconhecer nessas imagens e narrativas elementos que se assemelham ao seu bairro, ao espaço que percorrem diariamente. Ou então, pela dessemelhança, poderão questionar o que seu bairro tem de diferente do bairro da Dona Marta, se no seu bairro as pessoas se encontram, ou ao longo dos anos o que mudou em suas paisagens.
Em Meu bairro é assim (2016), a materialidade do livro se dá pelo conjunto de 24 páginas, com encadernação brochura e formato quadrado, com 22,5 centímetros de cada lado. As páginas duplas são compostas de ilustrações e textos verbais rimados que se distribuem de maneiras diferentes em cada uma das páginas. As guardas iniciais e finais trazem elementos que se repetem nas ilustrações no decorrer da narrativa.
Para Lupton (2013, p. 83), é a escolha da tipografia adequada que deve “auxiliar os leitores a navegarem na correnteza do conteúdo”, e certamente é esse o convite que a capa do livro Meu bairro é assim faz aos leitores. As palavras que formam o título, ao serem desenhadas de forma a brincar com o conteúdo da narrativa, apresentam cada uma das letras como se adquirissem formato de construções como prédios e casas vivas com pessoas nas janelas, e entre as linhas, nos espaços vazios que separam as palavras, surgem ruas em que circulam automóveis, pessoas e animais. As palavras ilustradas da capa dão à narrativa o aspecto subjetivo de sua criação, e isso aproxima o seu conteúdo ao leitor, proporcionando “espontaneidade e qualidades emocionais ao texto, como se o escritor/artista tivesse agido diretamente na obra” (Lupton, 2013, p. 36).
Figura 5: Capa do livro Meu Bairro é assim
Fonte: Acervo das autoras
O texto verbal se constitui em forma de versos rimados e na maioria das vezes convoca o leitor para a diversão por meio das finalizações divertidas que o autor cria para os versos. Em seu blog, o autor fala que
É muito importante trabalhar os vínculos que as crianças têm com o entorno de sua casa ou da escola. O bairro tem elementos que podem levar a criança a refletir sobre os lugares que ela gosta, os passeios a pé pelo entorno, as características das ruas do bairro, as diferenças entre os bairros, os nomes engraçados ou curiosos. (Obeid, 2021, p. 1)
Esse pode ser um convite a estruturar um estudo do meio junto às crianças, a levá-las a desbravar os espaços do entorno das instituições que passam parte do dia. Assim, aposta-se na perspectiva do professor Jader Janer Lopes (2014) de que a criança vive e se relaciona com o espaço pelo processo de "interação produtiva", seja com seus objetos, com seus pares, seja pela mediação dos adultos e de forma individual.
Conceber o espaço como interação produtiva significa concebê-lo como intensidade e possibilidades, como constantes aprendizagens e desenvolvimento, pois as crianças não estão simplesmente passando pelo espaço, elas são/estão no próprio espaço. (Lopes, 2014, p. 104).
Outro conjunto de páginas, também trata dos modos de se locomover pelos espaços, utilizando meios de transporte diversos:
Figura 6: Livro Meu Bairro é assim, páginas 18 e 19
Fonte: Acervo das autoras
Uma das ilustrações que se destaca na composição encontra-se nas páginas 10 e 11, que demonstra a relação de pertencimento do lugar no planeta, mostrando ao leitor uma aproximação visual entre o local e o global, usando uma técnica cinematográfica de zoom in, assemelhando-se ao que acontece quando acessamos em ferramentas digitais o software Google Earth. Para a educação geográfica, essa é uma das formas de levar as crianças a compreender a relação entre as diferentes escalas das quais fazem parte, levando-os a exercitar um pensamento espacial sobre os diferentes modos como representamos esses espaços.
Figura 7: Livro Meu Bairro é assim, páginas 10 e 11
Fonte: Acervo das autoras
Para além de apenas apresentar a composição física do bairro, a narrativa também destaca as pessoas e os aspectos imateriais que formam esses espaços, assim como nas primeiras frases do texto, quando “Bairro todo mundo tem: jovem, idoso ou neném” (Obeid, 2016, p. 4).
O livro Meu bairro é assim, além das características que lhe dão caráter de livro ilustrado, também contempla o que chamamos de livro informativo, aquele que busca “tornar compreensível e interessante para determinado leitor temas e questões relacionados à ciência e conhecimentos em geral” (Garrálon, 2015, p. 38). Esses livros mostram a possibilidade de aproximar as crianças de “muitas questões ligadas à vida real, sugerindo um mundo muito mais amplo do que o universo que as rodeia”. (Garrálon, 2015, p. 39)
As ilustrações são compostas em cores vibrantes e ocupam praticamente o espaço todo das páginas duplas. A dobra das páginas, em alguns momentos, serve também como linguagem que define o próprio espaço e constituição dos lugares, como nas páginas 14 e 15, em que a esquina do encontro de duas ruas se dá exatamente na dobra do livro.
Ao convocar o leitor para participar da narrativa, o texto verbal traz importantes conhecimentos geográficos, como os diferentes tipos de bairros, que podem ser explorados para a compreensão das diferenças dos espaços: “É bairro comercial, rural ou residencial?” (Obeid, 2016, p. 14), ou como são compostas as ruas e elementos que fazem parte de lugares distintos: “Tem uma rua de terra? Tem um bezerro que berra?” (Obeid, 2016, p. 14).
Figura 8: Livro Meu Bairro é assim, páginas 14 e 15
Fonte: Acervo das autoras
Nas últimas páginas, ao construir rimas que terminam em perguntas, os autores convidam o leitor a participar da narrativa, mostrando o que ele conhece sobre seu próprio bairro. Quando convidado a agir por meio de perguntas, o leitor se sente implicado sobre o que está a conhecer (Garrálon, 2015). Dessa forma, a narrativa propõe o reconhecimento a priori do leitor sobre a realidade e o lugar que o cerca, possibilitando que as práticas relacionadas com a temática e com a Geografia escolar sejam dotadas de sentido.
As crianças são sujeitos do mundo de cultura em que convivemos e, assim como os adultos, sujeitos entre sujeitos, devem acessar seus direitos aos produtos culturais elaborados pelas pessoas na construção da história humana, pela arte e pela literatura infantil.
A Literatura Infantil é arte e representa o mundo e a cultura por meio da palavra e da imagem, e das possibilidades de encontros entre ambas proporciona para a criança o envolvimento com a língua e a linguagem em formas variadas e complexas. Ela descreve o mundo e, muito mais do que isso, o organiza. O contato com os livros de Literatura Infantil possibilita ao leitor a interação com a cultura, com os jogos de linguagem que o envolvem pela engenhosidade da linguagem [...]. (Spengler, 2017, p. 51)
Os livros de literatura infantil fazem parte desse acervo cultural, e é nossa função, enquanto adultos responsáveis pelas escolhas a serem apresentadas às crianças, escolher material de qualidade que faça parte da formação leitora e humana das crianças. Especificamente em relação a temas que compõem a componente curricular de Geografia, ficam evidentes os encontros possíveis entre a literatura e o modo de educar a sensibilidade e a imaginação em relação às leituras possíveis de seus espaços de vivências cotidianas: a rua, a escola, o bairro e a cidade.
Para ampliar o olhar sensível
Para Gilka Girardello (2011), “um laço indissolúvel une a narrativa à imaginação, e as crianças têm necessidade das imagens fornecidas pelas histórias como estímulo para sua própria criação subjetiva, para sua exploração estética e afetiva dos meandros do mundo”. Quando se trabalha a literatura como uma possibilidade de conhecimento de mundo, contempla-se uma quebra dos limites cartesianos esperados, buscando apresentar a linguagem geográfica como uma leitura mais poética e libertadora sobre o espaço. Busca-se também possibilitar um encontro com o espaço vivido por meio de uma manifestação artística, e que esse encontro provoque e estimule o senso crítico e (re)conhecimento de realidades diversas e vivências, próprias e de outras pessoas. Os livros de literatura infantil provocam esse encontro quando apresentam realidades diversas, convidando o leitor criança a conhecer outras paisagens, outros modos de se viver e outros lugares.
A possibilidade de vivências estéticas por meio da literatura pode contribuir para o rompimento de visões lineares e fragmentárias do conhecer e ainda desenvolver conhecimentos fundamentais para que a criança reconheça o espaço em que vive, ampliando seu entendimento sobre ele e compreendendo sua realidade local, constituindo noção de pertencimento. Assim como afirmado por Straforini (2004, p. 18), “estudar o lugar para compreender o mundo significa para o aluno a possibilidade de trilhar no caminho de construir a sua identidade e reconhecer o seu pertencimento”. Para o autor, é nos valores de identidade e pertencimento no mundo que construímos o cotidiano de nossas vidas. Desse modo, as histórias escritas e suas visualidades contribuirão na composição das leituras cotidianas dos espaços de vivência das crianças, levando-as a, além de ler e compreender o mundo, buscar a imaginação de outros mundos possíveis com a literatura.
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[1] Doutorado em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil (2017). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9361-20510000-0000-0000-0000 . E-mail: entreaspas.educultura@gmail.com
2 Doutorado em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil (2018). Professora Adjunta do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9286-2158 . E-mail: karinapont@ufpr.br
[2] Para saber mais: https://portal.aprendiz.uol.com.br/2020/05/18/francesco-tonucci-casa-como-lugar-de-brincadeira-e-aprendizado-durante-pandemia/ Acessado em 20/06/2021.