Ateliê de mundos: políticas do tempo e sentidos da escola

Studio of worlds: politics of time and meanings of school

 

Priscilla Menezes de Faria [1]

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

Amanda de Faria Sánchez [2]

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

Resumo

Os gregos antigos entendiam escola como uma qualidade temporal: scholé é o tempo livre, não porconvite à inação, mas por abertura à indeterminação. No mundo Clássico, escola é o tempo-espaço não determinado pelo tempo da produtividade e, por isso mesmo, propício ao pensamento criador. Com a formação da modernidade, os tempos da produtividade e da aprendizagem foram se tornando cada vez mais indistintos, a ponto de coincidirem: a escola passa a ser, em grande medida, o espaço que prepara e antecipa o trabalho produtivo. No presente artigo, essa realidade é analisada, investigando-se a categoria tempo e suas implicações políticas, traçando conexões com os sentidos da escola. Sustenta-se a possibilidade de a escola recuperar sua afinidade com a indeterminação, recusando ser pautada pelo tempo da produção e afirmando sua conexão com o tempo da criação.  São abordados os conceitos de desencantamento e reencantamento do mundo, bem como com a pluralidade de conceitos de tempo próprios a distintas culturas, investigando a complexidade político-social desses fenômenos. Dialoga-se com o conceito de pensamento poético e evoca-se, por fim, uma educação com arte, compreendendo que,para além de uma fábrica de trabalhadores, há a urgência política de pensar a escola como um grande espaço de criação: um ininterrupto ateliê de mundos.

Palavras-chave: Tempo; Scholé, Criação; Desencantamento; Reencantamento.

 

Abstract

The ancient Greeks regarded School as temporal quality. Scholé means free time, not as an invitation to inaction, but as an openness to indetermination. In the Classical period, School is a space-time that are not determined by the productive time, and for this exact reason, they lead to creative thinking. As modernity makes way, the times of productivity and learning become more and more indistinct until they merge. School becomes, to a great extent, the space that prepares and anticipates productive work. In this article, this reality is analyzed, studying time and its political implications, outlining its connections to the meanings of School. The text support the possibility that it is possible for the School to recover the affinity with indetermination, refusing to be guided by production time, and reinforcing its connection with creation time. The concepts of disenchantment and re-enchantment of the world are addressed, as well as the plurality of time concepts specific to different cultures, investigating the political-social complexity of these phenomena. Besides, it dialogues with the ideia of poetic thinking, and finally, clames for an education with art, bearing in mind that, beyond the idea of a factory of workers, there is an urgency to conceive the School as a large space of creation: as an interrupting studio of worlds.

Keywords: Time; Scholé, Criation, Enchantment, Disenchantment.

 

No ensaio “O enigma da infância”, Jorge Larrosa evoca uma ideia formulada por Hannah Arendt: a de que “a educação tem a ver com o nascimento, com o fato de que constantemente nascem seres humanos no mundo” (Arendt apud Larrosa, p.186, 2006). Dessa premissa, o autor propõe duas possibilidades: uma na qual aqueles que chegam ao mundo são acolhidos a partir da singularidade que anunciam e outra em que são objetificados, sendo tomados como objetos de saber e poder por aqueles que creem os educar. Larrosa tece um manifesto em favor do primeiro movimento, nos convocando a “habitar na proximidade da presença enigmática da infância”, para que possamos acolher a diferença inerente à novidade dos nascimentos e nos deixar por ela transformar. Em um contexto social formatado pela lógica neoliberal, entretanto, percebe-se a hegemonia de uma educação descomprometida com a escuta das singularidades e a transformação das estruturas e investida na produção de trabalhadores e consumidores ajustados às demandas capitalistas. Severino Antônio estabelece uma crítica à educação de nosso tempo, afirmando que:

 

No desenrolar dessa vida escolar, na sucessão de séries que parecem não ter outro sentido a não ser a preparação para a seguinte, podemos constatar uma contínua perda de alegria de aprender e de pensar, uma contínua perda de sensibilidade e imaginação, e das relações vividas entre a aprendizagem e a existência (Antônio, 2013, p.149).

 

Ao reconhecer esse processo, o autor propõe uma analogia: “a história da vida escolar da criança, em nossos dias, tem sido a história de um progressivo desencanto, de modo semelhante ao desencantamento do mundo moderno” (Antônio, 2013, p.149). O conceito de ‘desencantamento do mundo’, tomado por Severino Antônio em sua análise, foi inicialmente cunhado por Max Weber, sociólogo alemão do século XIX, operando dois significados fortes ao longo de sua obra: a perda dos sentidos transcendentes, atrelada ao cientificismo, e a desmagificação do mundo, relacionada à crescente hegemonia das religiões monoteístas. Na modernidade ocidental desencantada, portanto, ‘verdade’ e ‘ciência’ se tornam categorias unívocas (Pierucci, 2003).

Severino Antônio tece a relação entre o desencantamento do mundo e o desencantamento da aprendizagem considerando que “o universo está escrito em muitas linguagens, não apenas a linguagem da lógica moderna ou da mecânica newtoniana” (Antônio, 2013, p. 159) sendo que a educação hegemônica, filha da modernidade desencantada e instrumentalizada pelo capitalismo neoliberal, não incentiva a polissemia do saber; mas, pelo contrário, reforça o espírito do nosso tempo no qual:

 

Há um excesso irracional de informações fragmentárias e confusas, de imagens manipuladas, de estereótipos homogeneizadores, de frases feitas e de slogans, de solicitações publicitárias, de tramas de marketing, de agitações ao mesmo tempo excitadas e enfastiadas. Assim, na vida mais cotidiana são anuladas as identidades e as diferenças, anulados os encontros e os diálogos criadores de significações (Antônio, 2013, p. 108).

 

Severino Antônio afirma que vivemos uma crise, mas que esse solo de adversidades pode ser fértil, pois anuncia a urgência da transformação. A mudança de que carecemos é nomeada pelo autor como: “A necessidade e a possibilidade de reencantar a aprendizagem, redescobrir sua dimensão sensível e criadora.” (Antônio, 2013, p.111). Para tal, o autor aposta em um “pensamento encarnado e pulsante, em que os conceitos e os sentidos-significações não se separam nunca das pulsações dos ritmos e figurações e emoções” (Antônio, 2013, p.122): uma razão poética que possa produzir reencantamentos nos processos de ensino e aprendizagem. Em alinhamento com a compreensão do autor, abordaremos a possibilidade da aprendizagem como uma experiência poética, dando ênfase na questão do tempo como elemento crucial dessa proposição.

Jorge Larrosa (2014) tece uma reflexão importante acerca da experiência como questão central para a educação. Indo além de compreensões que posicionam os binômios ciência/técnica ou teoria/prática como balizadores do fazer educativo, o autor evoca o par experiência/sentido como via para pensar um outro modo de pensar educação. Se ciência/técnica fundamentam o sentido da educação como ciência aplicada e teoria/prática, como práxis política, “pensar a educação a partir da experiência a converte em algo mais parecido com uma arte do que com uma técnica ou uma prática” (Larrosa, 2014, p.12).

A compreensão de experiência proposta pelo autor não tem nada a ver com o acúmulo de vivências, como se poderia pensar. Pelo contrário, Larrosa evoca a experiência como uma espécie de interrupção que nos acontece: “(...) que às vezes treme, ou vibra, algo que nos faz pensar, algo que nos faz sofrer ou gozar, algo que luta pela expressão (...).” (Larrosa, 2014, p.10). Por sua imprevisibilidade, relaciona a experiência às noções de travessia e perigo, inclusive apontando uma raiz etimológica em comum a esses vocábulos, associando-a também com a noção de exposição. Experienciar, nesse sentido, é menos controlar uma circunstância do que se expor ao que nos acomete: ter a rotina do mesmo interrompida pela alteridade inesperada que pode desvelar caminhos desconhecidos.

Tal concepção de experiência, portanto, desvia do experimento empírico-científico que, segundo o autor, trata-se de um “modo como o mundo nos mostra sua cara legível, a série de regularidade a partir dos quais podemos reconhecer a verdade do que são as coisas e dominá-las” (Larrosa, 2014, p.33). A experiência, em Larrosa, não tem a ver com acordo, consenso ou homogeneidade; se relaciona com a diferença, a heterogeneidade e a pluralidade (Larrosa, 2014, p.33). É fundamentalmente subjetiva e contextual, na medida em que um saber da experiência não pode ser tomado como verdade universal, já que é sempre particular e relativo. Larrosa não encerra a noção de experiência em um só conceito, pois compreende que conceitos determinam o real enquanto as palavras o abrem e a experiência se define por sua abertura, avessa à afobação que o soterra de sentidos (Larrosa, 2014, p. 43-44). Desse modo, a possibilidade da experiência demandaria, sobretudo, tempo: 

 

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar: parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência, dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2014, p. 25).

 

            Vivemos, porém, em um momento de acelerações e estímulos fugazes. Estamos excessivamente conectados com uma temporalidade a um só tempo cumulativa e escassa, uma espécie de tempo devorador. Em “A Infância da Educação: O conceito Devir-Criança, Walter Kohan apresenta três perspectivas acerca do tempo elaboradas na Antiguidade Clássica que ainda nos dizem respeito. Explica que há o tempo chrónos “[...] que designa a continuidade de um tempo sucessivo." (Kohan, 2005, p. 2), linear e passageiro. O tempo que estamos mais habituados no dia a dia, que encaramos no mover do relógio, cronológico. Aquele que dinamiza o trabalho e que parece nos deixar sempre atrasados. A esse respeito, Simas e Rufino indagam

 

Ao encapsular o tempo na dimensão do relógio e dos ritmos da produção e do consumo, restringindo a vida a uma funcionalidade utilitarista e comunicida, somos destituídos de vivacidade e nos tornamos mais uma peça de uma engrenagem. Somos nós que produzimos as mercadorias ou são elas que nos produzem? (Simas; Rufino, 2020, p. 17).

 

Chrónos passa como uma correnteza que a tudo leva velozmente, sem que se possa voltar. Este tempo se esgota, traz consigo a marca dos fins. Reconhecemos a importância da finitude, mas também percebemos que chrónos é experimentado sobretudo como o tempo da rapidez, que pode impedir o aproveitamento dos instantes. Entretanto, há outra concepção grega de tempo que justamente os valoriza, este é chamado: kairós. O tempo kairós se refere a um intervalo, um momento, o tempo do acontecimento, “significa 'medida', 'proporção', e, em relação com o tempo, 'momento crítico, temporada oportunidade.” (Liddell; Scott, 1966, p. 859 apud Kohan, 2005, p. 2). Kairós guarda relação com o acaso e acontece através das oportunidades, como bem resume o autor Paulo Arantes Correa:

 

Kairós se refere a uma experiência temporal, na qual percebemos o momento oportuno em relação a determinado objeto, processo ou contexto. Kairós revela o momento certo para a coisa certa, a melhor oportunidade, o momento crítico para agir, a ocasião certa e apropriada (Arantes, 2015, p. 4).

 

E, por último, há aión, “a intensidade do tempo da vida humana, um destino, uma duração, uma temporalidade não numerável nem sucessiva, intensiva.” (Liddell; Scott, 1966, p. 45 apud Kohan, 2005, p. 2), o tempo não-linear. Pode-se arriscar interpretar aión como uma faceta do tempo kairós que perdura para além dos intervalos temporais, na medida em que se expressa sobretudo através da experiência. Aión é capaz de surfar no tempo como se não se importasse com a finitude anunciada por chrónos. Em sua ciclicidade, aión permite que olhemos para o mundo afora e, ao mesmo tempo, para o mundo que há dentro de nós. Aión brinca, dá cambalhotas, desprende-se de certos limites, tais como a finitude.  Para dar seguidas cambalhotas, é necessário dominar o corpo e, com olhos abertos, pode-se ver o mundo girar. Ao tentar realizá-las várias vezes, perde-se a certeza de onde o corpo vai parar. Assim também é o tempo aiônico, aberto ao experimento e disponível às incertezas. Destaca certa vulnerabilidade, desafia o futuro e garante improvisos. Araujo, Costa e Frota complementam Kohan dizendo:

 

Se chrónos pode ser mensurado pelas batidas de um relógio, aión, no que lhe concerne, é um tempo atravessado por outras relações de intensidade e de duração. Uma força infantil de viver o tempo que, como afirma Kohan (2007, p. 114), “é o tempo circular, do eterno retorno, sem a sucessão consecutiva do passado, presente e futuro, mas com a afirmação intensiva de um outro tipo de existência” (Araujo; Costa; Frota, 2021, p. 7).

 

Para além destas três concepções de tempo oriundas do mundo Clássico, é importante considerar que há diversas outras em diferentes culturas, ou seja, o tempo é relativo não só para as relações espaço-temporais da Ciência eurocêntrica, mas na medida em que é apreendido diferentemente em cosmologias distintas. O autor Reginaldo Prandi, em “O candomblé e o tempo: concepções de tempo, saber e autoridade da África para as religiões afro-brasileiras” (2001), conta que nos terreiros há outra concepção de tempo, distante dessa marcada em horas. Inclusive, é comum retirar o relógio do pulso, pois lá ele não tem utilidade. Nos dias de ritual, as coisas acontecem quando ‘tem que acontecer’. Todos tomam seu tempo para se arrumar e preparar o que for necessário. O autor também admite que os mitos não tem ordem cronológica necessariamente e, às vezes, contam histórias anacrônicas. O mito pode explicar o passado a partir de um acontecimento presente, como afirma o famigerado ditado Iorubá, perpetuado nas oralidades de terreiro: “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”. E assim a ideia de futuro, desenhada na ciclicidade do tempo, pode ser ela própria oraculada em alguma uma expressão do presente.

 

O tempo cíclico é o tempo da natureza, o tempo reversível, e também o tempo da memória, que não se perde, mas se repõe. O tempo da história, em contrapartida, é o tempo irreversível, um tempo que não se liga nem à eternidade, nem ao eterno retorno (Prigogine, 1991: 59). O tempo do mito e o tempo da memória descrevem um mesmo movimento de reposição: sai do presente, vai para o passado e volta ao presente – não há futuro (Prandi, 2001, p. 49).

 

Ele complementa explicando que para os iorubás, por exemplo,

 

[...] tudo o que acontece é repetição, nada é novidade. Aquilo que nos acontece hoje e que está prestes a acontecer no futuro imediato já foi experimentado antes por outro ser humano, por um antepassado, pelos próprios orixás. O oráculo iorubano, praticado pelos babalaôs, que são os sacerdotes de Ifá ou Orunmilá, o deus da adivinhação, baseia-se no conhecimento de um grande repertório de mitos que falam de toda sorte de fatos acontecidos no passado remoto e que voltam a acontecer, envolvendo personagens do presente. É sempre o passado que lança luz sobre o presente e o futuro imediato (Prandi, 2001, p. 52).

 

Ainda que uma concepção não exclua a outra, estamos vivendo um modelo de sociedade que valoriza sobretudo o tempo chrónos e tende a desqualificar outras experiências temporais. Em “24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono”, Jonathan Crary relaciona o capitalismo global a um “regime 24/7”, 24 horas por 7 dias na semana, um princípio de funcionamento contínuo. Ele propõe:

 

Para além da vacuidade do slogan, a expressão 24/7 é uma redundância estática que desautoriza qualquer imbricação com as tessituras rítmicas e periódica da vida humana. Evoca um esquema arbitrário e inflexível de uma semana de duração, esvaziado de quaisquer desdobramentos de experiências, cumulativas ou não (Crary, 2016, p. 18).

 

O regime 24/7 denega toda irregularidade, intervalo ou variação inerentes à vida, pois é “um tempo alinhado com as coisas inanimadas, inertes ou atemporais” (Crary, p.19, 2016). Sendo imputado sobre seres humanos, distanciando-nos cada vez mais dos ritmos que constituem a alternância entre tempos de trabalho e tempos de descanso. É o tempo produzido pelo capitalismo em seu estágio avançado, criando “a alucinação da presença, de uma permanência inalterável, composta de operações incessantes e automáticas.” (Crary, p.39, 2016). Se chrónos é o tempo da linearidade, o regime 24/7 é sua exacerbação homogênea, redundante e acelerada. Marx já havia compreendido que o regime capitalista não poderia se desenvolver caso não houvesse um rompimento massivo com os ritmos da terra e os modos de vida comunitários, como acontece no espaço da fabril, onde a organização do trabalho se desvincula da família, comunidade, ambiente e de formas tradicionais de dependência mútua ou associação (Crary, p.73, 2016).  Com o desenvolvimento do neoliberalismo, a lógica da produtividade ininterrupta e apartada dos ritmos naturais e comunitários passa a independer da fábrica e se alastra nos espaços domésticos e até mesmo nos territórios subjetivos. Cada vez mais encontramos dificuldade em vivenciar “tempos, comportamentos e locais que constituem de fato camadas de vida ‘não administrada’, vida descolada, ao menos em parte, de imperativos disciplinares.” (Crary, p.78).  O autor utiliza o mesmo adjetivo que Severino Antônio usou para tecer sua analogia acerca do processo escolar, afirmando que:

 

Um mundo 24/7 é um mundo desencantado, com sua erradicação das sombras e da obscuridade, e de temporalidades alternativas. É um mundo idêntico a si mesmo, um mundo com o mais raso dos passados, e por isso sem espectros. Mas a homogeneidade do presente é um efeito da luminosidade fraudulenta que pretende se estender a tudo e se antecipar a todo mistério ou desconhecido (Crary, 2016, p. 29).

 

 O mistério, o desconhecido, a pausa, o estranhamento são incompatíveis com o tempo do mundo desencantado onde as prioridades são eficiência, funcionalidade e velocidade. Um tempo que promete a novidade a cada instante, mas que não dá lugar ao que verdadeiramente poderia admiti-la: espaço para o encontro com a alteridade, a diferença radical que Hannah Arendt tão belamente relacionou ‘àqueles que chegam ao mundo’. Para acolher a diferença, precisaríamos de espaços resistentes ao tempo da produtividade, abertos à invenção de outras relações com o tempo. E que espaço-tempo poderia ser esse? Os gregos clássicos diriam que esse tempo-espaço é scholé: a escola. 

Segundo Kohan (2018, p. 303), scholé significa “tempo ocioso, tempo livre […], ou seja, tempo liberado, tempo que se perde, tempo que não precisa ser aproveitado para uma coisa fora do próprio tempo, da própria experiência do tempo.” Larrosa dirá que é o tempo da contemplação: um tempo separado do trabalho, um tempo não utilitário, não produtivo. (p.241). Citando o filósofo Vilém Flusser, vai à etimologia da palavra e expõe:

 

Escola significa ócio, scholé. Na Antiguidade, isso é extraordinariamente positivo. A ausência de ócio é desprezível, ascholia. Em inglês é business. Tobebusy é o contrário de tohaveleisure. Business como oposto de escola é, portanto, algo desprezível. Ócio em latim é otium, o antônimo de negotium. (Flusser apud Larrosa, 2018, p. 240)

 

A partir dessa investigação, Larrosa sintetiza: “a escola é o oposto da fábrica” (2018, p. 244). A escola se revela aqui, portanto, como a possibilidade de um tempo que é livre não por inatividade, mas por abertura à sua própria indeterminação. Tempo disponível à experiência, afeito ao inesperado, propício à criação. Uma espécie de tempo outro, aberto “no interior mesmo do tempo cronometrado” (Larrosa; Rechia, 2018, p. 462), onde se poderia: “esquecer-se do tempo, de suspender o tempo ou, como se diz em uma bonita expressão ‘dar tempo ao tempo’” (Larrosa; Rechia,2018, p.462). Aqui cabe questionar: a escola ainda pode ser o lugar do tempo livre? O que vemos na escola hegemônica é a prevalência do tempo chrónos, atravessado pela lógica capitalista 24/7, fazendo com que haja foco na preocupação com o futuro profissional dos estudantes, pensando no que estes sujeitos virão a ser, sem olhar para o que já são. Na Educação Infantil, via de regra, pensa-se no Fundamental I, quando os estudantes irão aprender a escrever.  Então, pensa-se no Fundamental II, quando os estudantes irão ter ‘disciplinas mais focalizadas’ e, ao chegar no Fundamental II, estão pensando no Ensino Médio, onde irão focar no vestibular e assim sucessivamente. Esse processo é consoante a uma concepção de infância que a vê como eminentemente passageira, uma fração da vida, uma etapa biológica, uma parte de um todo maior. Uma visão da infância circunscrita como o território de produção da vida adulta. Ainda que possa ser vista desse modo, existe uma infância que está para além desse entendimento: a infância como a própria condição da experiência.

 

[...] como acontecimento, como ruptura da história, como revolução, como resistência e como criação. É a infância que interrompe a história que se encontra num devir minoritário, numa linha de fuga, num detalhe: a infância que resiste aos movimentos concêntricos, arborizados, totalizantes: ‘a criança autista’, ‘o aluno nota dez’, ‘o menino violento’. É a infância como intensidade, um situar-se intensivo no mundo; um sair sempre do seu lugar e se situar em outros lugares, desconhecidos, inusitados, inesperados (Kohan, 2005, p. 4).

 

A infância, como essa potência que não se resume a uma etapa cronológica, previsível e controlável, pode nos dar pistas a respeito da constituição de um tempo livre na escola. De saída, podemos perceber que a infância está mais ligada ao tempo aiônico do que ao tempo chrónos. Kohan afirma:

 

Com relação à infância, o fragmento também sugere que o próprio da criança não é ser apenas uma etapa, uma fase numerável ou quantificável da vida humana, mas um reinado marcado por outra relação - intensiva - com o movimento. No reino infantil que é o tempo, não há sucessão nem consecutividade, mas a intensidade da duração. Uma força infantil sugere Heráclito, que é o tempo aiônico (Kohan, 2005, p. 2).

 

Uma visão de tempo que assume a não linearidade e acolhe caminhos múltiplos, transformações, fluxos, continuidade, metamorfose, mudança, se aproxima da noção de devir, como explicita o autor:

 

Devir-criança não é tornar-se uma criança, infantilizar-se, nem sequer retroceder a própria infância cronológica, Devir é um encontro entre duas pessoas, acontecimentos, movimentos, ideias, entidades, multiplicidades que provoca uma terceira coisa entre ambas algo sem passado, presente ou futuro: algo sem temporalidade cronológica mas com geografia, com intensidade e direção próprias (Deleuze: Parnet, 1988, p. 10-15). Um devir é algo sempre contemporâneo, criação cosmológica: um mundo que explode e a explosão de mundo (Kohan, 2005, p. 4).

 

Ele continua explicando que “O devir-criança é uma forma de encontro que marca uma linha de fuga a transitar, aberta, intensa” (Kohan, 2005, p. 4). Portanto, devir-criança independe de qualquer idade, é fluxo que percorre caminhos atemporais e não lineares, assim como áion. Propor um devir-criança à educação, nesse sentido, nos parece tarefa imprescindível para revolucionarmos os modos como as políticas do tempo produzem os sentidos da escola. Uma educação que possa enfrentar a prevalência de chrónos e suspender, por um momento que seja, o foco em um futuro sempre adiado, trazendo ênfase para a experiência do presente poderia ser uma aliada da emancipação dos sujeitos e da própria ideia de escola.

Entendemos que acessar o devir-criança é se reconectar com a existência enquanto matéria da invenção, algo que se faz através da experiência, assumindo a dimensão pluralizada da existência. Voltando à metáfora das cambalhotas, poderíamos pensar que o devir-criança é como enredar-se em si, laçar todos os corpos que habita e habitou, lançar-se nos tempos que já viveu e girar junto aos emaranhados kairós que se tem vivido. Devir-criança é, portanto, também, um movimento de reencantamento das possibilidades de ser.

A noção de reencantamento, diferentemente da noção de ‘desencantamento do mundo’, não se conceitua a partir de uma sistematização proposta por um autor em específico, mas é afirmada aqui como a necessidade de encantar aqueles que já sofreram um processo de desencante, ou seja, aqueles que foram, por ora, desvitalizados. Nas palavras de Simas e Rufino, “[...] o contrário da vida não é a morte, o contrário da vida é o desencanto" (2020, p. 10). Além de um gesto de afronta à mortificação, reencantar é ato de desobediência, transgressão, invenção e reconexão: armação da vida, em suma” (Simas; Rufino, 2020, p. 6). De acordo com os autores

 

A noção de encantamento traz para nós o princípio da integração entre todos as formas que habitam a biosfera, a integração entre o visível e o invisível (materialidade e espiritualidade) e a conexão e relação responsiva/responsável entre diferentes espaços-tempos (ancestralidade). Dessa maneira, o encantado e a prática do encantamento nada mais são que uma inscrição que comunga desses princípios (Simas; Rufino, 2020, p. 7).

 

Desse modo, reencantar-se é também perceber-se como parte de um cosmos singular e complexo. É afirmar uma subjetividade constituída a partir da conexão, uma identidade que se trama nas relações e se revitaliza nos encontros. “O encanto pluraliza o ser, o descentraliza, o evidenciando como algo que jamais será total, mas sim ecológico e inacabado” (Simas; Rufino, 2020, p. 9). Nesse sentido, seres em processo de reencantamento necessitam experimentar realidades espaço-temporais encantadas. Isso implica em tempos que se distanciam da velocidade de chrónos e se aproximam de um devir-criança aiônico, experimentados em espaços livres do imperativo do tempo do trabalho, abertos a estranhar o que é dado e disponíveis à criação.

Como conta Severino Antônio,

 

Para reaprender a recuperar a vitalidade da razão, é preciso também revitalizar a aprendizagem, com educação da sensibilidade e da imaginação. Reconheço que parece utopia. Mas é realizável. É possível e necessário. A aprendizagem é filha do tempo. E vivemos um tempo de fundo desencanto com a razão e de fundo desencanto da racionalidade (2013, p. 152).

 

É justamente nessa trama de conexões, nessa revitalização da noção de pensamento, que percebemos a potência de uma educação com arte. Arte esta que é diferente daquela que reforça paradigmas coloniais, mas a que conversa com as subjetividades criativas e convida à experimentação. Pois, para além de uma disciplina dotada de materialidades e metodologias criativas próprias, a arte se revela um dispositivo epistemológico, um território de produção de pensamento onde as verdades unívocas assombradas pelo tempo linear são postas em abalo e abertas à variação:

 

Ao abrir mão da totalidade dos sentidos para dar lugar à variabilidade das possibilidades, o poético se faz uma estratégia para o reencantamento do mundo, pois se torna um catalisador de multiplicidades que abre espaço para o mistério, o inaudito, o incapturável. (Faria, 2022, p.12)

 

Pensamos aqui em uma educação com arte, que inclui e vai além do ensino de arte, pois não toma a matéria artística apenas como objeto de investigação, mas recorre ao poético como um fundamento ético que posiciona o compromisso com o diverso no centro da ação educadora. Quando Larrosa e Arendt propõem a educação como acolhimento das singularidades, evocam uma prática que contenha a um só tempo o cuidado e a abertura. Cuidar dos que vêm passa, certamente, por lhes dizer acerca do mundo que está dado; mas inclui, em igual medida, a pergunta sobre quais mundos desejam criar. Pensar uma escola que contenha um tempo livre daquele da produtividade capitalista é trazer para os centros dos currículos o exercício a criação: não apenas a criação que envolva materialidades tipicamente relacionadas à arte, mas a criação como uma qualidade do conhecer. Para tal, é preciso admitir uma não separação entre conhecer e experienciar, entre a sala de aula expositiva e o ateliê. Admitindo, enfim, que a própria escola possa ser ela própria um grande ateliê: um ateliê de mundos.

 

Assim também na escola: poetizar a aprendizagem. Pelo convívio com a criação poética e com modos poéticos de ver e de dizer as coisas. Convivência com a linguagem simbólica, densamente carregada de emoção e de imaginação. Intensamente carregada de sentido. Antídotos contra a morte da sensibilidade, da atividade imaginativa, e da própria racionalidade criadora. Assim também o convívio com a arte e a filosofia revelam-se antídotos. Contra o crescente desencanto com o aprender, com o pensar, com o criar, e com a aventura de viver (Antônio, 2013, p. 153).

 

O tempo do ateliê é o tempo do processo criativo, que se faz não apenas de causas e efeitos, mas de abertura aos desvios, acasos, encontros impremeditados, aprofundamentos em gestos mínimos e abertura aos intervalos. É ainda o tempo da multiplicidade, da convivência entre as diversas possibilidades já que, como afirma Cecilia Almeida Salles (2004), “o movimento criativo é a convivência dos mundos possíveis” (p.26). No ateliê, prevalece o inacabamento, as tentativas, os diálogos e a constante possibilidade da transformação. Não é, portanto, um espaço compatível à produtividade a toda prova. Pelo contrário, o tempo-ateliê é o tempo do processo e este tem suas formas culminantes, mas não se resume a nenhuma delas.  

Se pudermos considerar a infância como essa intensidade temporal, desvinculada de uma finitude cronológica, na qual prospera a possibilidade experiência, chegamos ao devir-criança como um tempo afinado à escola como espaço aberto à criação. O devir, ao contrário de chrónos, não supõe a síntese, o fechamento; pelo contrário, é o próprio processo de transformação que acontece no contínuo encontro das diferenças. Assim, poderíamos pensar em uma escola na qual a criança deixa de ser interpelada por um projeto de adultização (objetificação, proletarização), mas se torna o próprio horizonte das ações. A criança não é mais aquilo que deve ficar para trás, mas aquilo que perseguimos no cerne mesmo do tempo cronológico: a possibilidade do irrompimento do novo em cada um de nossos encontros com aquilo que há.

 

REFERÊNCIAS

 

ANTÔNIO, Severino. Poetizar o pedagógico: alguns ensaios, de modo constelar. Piracicaba: Biscalchin Editor, 2013.

 

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[1]Artista, pesquisadora e professora adjunta da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, atuando no campo da Arte e Educação dentro da licenciatura em Pedagogia. Doutora em Artes Visuais pelo Programa de pós-graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Integra o grupo FRESTAS (Formação e Ressignificação do Educador: Saberes, Arte, Troca, Sentidos) e coordena a pesquisa "Investigar o poético: ensaios metodológicos, experimentações narrativas" na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).  Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4004-2128. Email: priscilla.menezes@unirio.br.

[2]Pedagoga formada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e mestranda em Educação na linha de pesquisa Práticas Educativas, Linguagens e Tecnologia, também na UniRio. Sob orientação da professora Dra. Léa Tiriba, acompanha o GiTaKa, Grupo de Pesquisas Infâncias, Tradição Ancestral e Cultura Ambiental e, além disso, é integrante do grupo de estudos Investigar o Poético, coordenado pela Profa. Dra. Priscilla Menezes, também na UniRio. Orcid: https://orcid.org/0009-0004-2793-3246. E-mail: amanda.sanchez.as21@gmail.com.