Fotografia infantil, memória e afeto: acompanhamentos fotográficos no primeiro ano de bebês

 

Children’s photography, memory and affection: photographic accompaniments in babies’ first year

 

 

Paola Fernanda Krüger Cal[1]

Universidade Federal de Pelotas

Paula Garcia Lima[2]

Universidade Federal de Pelotas

 

 

Resumo 

Este artigo propõe uma análise da relação da fotografia infantil como suporte que permite o exercício de memórias afetivas. A fotografia de modo geral sofreu muitas transformações ao longo dos anos. No entanto, a sua importância na criação e preservação de lembranças, permanece incontestável. A pergunta norteadora para a realização desta pesquisa é: qual a importância do acompanhamento fotográfico no primeiro ano de vida do bebê para a memória afetiva das pessoas? Esta pesquisa conta com um breve relato sobre a história da fotografia, suas transformações ao longo do tempo e a importância de registrar o primeiro ano de vida de uma criança. O presente artigo está dividido em três tópicos: o primeiro tópico trata de uma introdução a respeito do tema; o segundo aborda as características da fotografia infantil; e, por fim, o terceiro tópico que discorre sobre a relação da fotografia com a memória e o afeto, principalmente no período ao qual a reflexão aqui proposta se debruça. O referencial teórico deste artigo está fundamentado em uma pesquisa bibliográfica sobre estudos de teóricos que associam diretamente a fotografia a criação de memórias afetivas, entre eles: Bosi (1994); Kossoy (1989), Leite (1998); Geddes (2020); Sontag (2004 e 2010); Le Goff (1990).  Neste sentido é embasada e reafirmada a importância do acompanhamento fotográfico infantil, tanto para a criança quanto para os familiares, através de registros que imageticamente materializam momentos e a partir dos quais há impulsos para o exercício memorial.

Palavras-chave: Registro fotográfico, Infância, Afetividade, Lembrança

 

Abstract  

This article seeks to analyze the relationship between children's photography and the creation of affective memories. Photography in general has undergone many transformations over the years. However, its importance in creating and preserving memories remains undeniable. This research includes a brief account of the history of photography, its transformations over time and the importance of recording the first year of a child’s life. The guiding question for carrying out this research is: how important is photographic monitoring in the baby’s first year of life for people’s article affective memory? This article is divided into three topics, the first topic is an introduction to the topic, the second addresses the characteristics of children’s photography, and affection, especially in the period to which the reflection proposed here focuses. The theoretical framework of this article is based on a bibliographical research on studies by theorists who directly associate photography with the creation of affective memories, including: Bosi (1994); Kossoy (1989); Leite (1998); Geddes (2020); Sontag (2004 and 2010); Le Goff (1990). In this sense, it was about supporting and reaffirming the importance of child photography. In the sense, it was about supporting and reaffirming the importance of child photographic monitoring, both for the child and for family members. 

Keywords: Photographic record, Childhood, Affection, Memory.

 

Introdução

Já dizia o cantor Cazuza: “O tempo não para”. A passagem do tempo é algo inevitável a todo ser humano, desde o momento do nascimento. Os instrumentos que foram criados para medir essa passagem como, por exemplo, os minutos, as horas, os dias, meses ou anos, muitas vezes aumentam a sensação de como esse transcurso é veloz. Por isso, congelar o tempo, principalmente durante os momentos mais importantes da vida, certamente é um desejo em comum a quase todas as pessoas. O que parece um sonho tornou-se, de certa forma, possível graças a invenção da fotografia, que embora se trate de um feito de quase 200 anos, ainda fascina, justamente por possibilitar a sensação de apreensão de algo que, sabemos, não voltará mais. A citação a seguir reflete a importância do surgimento da fotografia como uma nova forma de registrar os momentos, as diferentes realidades e, principalmente, a vida em sociedade.

 

O mundo tornou-se de certa forma “familiar” após o advento da fotografia; o homem passou a ter um conhecimento mais preciso e amplo de outras realidades que lhe eram, até aquele momento, transmitidas unicamente pela tradição escrita, verbal e pictórica (KOSSOY, 1989, p.15).

 

 A fotografia pode ser definida como a arte de criar imagens por exposição luminosa em uma superfície fotossensível. Uma das autoras deste manuscrito exerce a profissão de fotógrafa há alguns anos e tem como uma de suas motivações profissionais a possibilidade de capturar momentos únicos que se tornarão perenes na memória das pessoas. Entre os mais diversos tipos de fotografia, definiu-se desenvolver este trabalho com foco principal no acompanhamento fotográfico mensal do primeiro ano de vida dos bebês, que se caracteriza pelos registros em fotografias que começam com a descoberta da gestação e, depois, do nascimento e de acompanhamento mensal da criança até esta completar um ano. Trata-se de uma maneira de registrar essa fase marcante e de rápidas mudanças na vida da criança, eternizando momentos de grande peso afetivo e funcionando como um suporte memorial que permite exercitar o ato de lembrar. 

A fotografia está intimamente ligada com a necessidade humana de lembrar, de construir subsídios que permitam o exercício memorial. Dentre as lembranças que podemos ter e, como mencionado acima, há aquelas ligadas ao que se chama de memória afetiva, a qual pode ser definida como a lembrança que surge através de elementos sensoriais e emocionais. A memória afetiva pode ser despertada através de imagens, sons, odores, sabores, cores, ambientes, etc, que fazem recordar algo vivido. Tudo aquilo que tenha um significado particular se transforma em lembrança de vida e consequentemente em memória afetiva, tal como nos explica Portillo (2006):

 

Uma memória afetiva pode se desenvolver a partir de uma percepção sensorial como um odor, um som, uma cor, desde que tal percepção esteja ligada a um momento afetivo importante. O resgate da memória afetiva é fundamental no nosso processo de desenvolvimento psicológico, de autoconhecimento e desenvolvimento pessoal. (PORTILLO, 2006, n.p.).

 

Durante o primeiro ano de vida da criança ocorrem as suas principais mudanças físicas, sociais e motoras. Com o passar dos meses é possível perceber seu desenvolvimento cognitivo, o desenvolvimento dos cinco sentidos, o processo interativo com as pessoas e o ambiente ao seu redor. De acordo com Piaget (2011), a criança passa pela fase denominada sensório motor (0 a 2 anos), a qual compreende o período em que a criança descobre o mundo através do movimento, onde ela explora tudo o que há ao seu redor e não atua mais de forma despretensiosa como puro reflexo, mas passa a ter objetivos a alcançar através de sua ação sobre o meio.

 Este trabalho tem por objetivo desenvolver a afirmação de que o acompanhamento fotográfico do bebê se torna um marco de experiências muito ternas, justamente, nesta fase tão fundamental no início da vida das pessoas, onde as mudanças são constantes e ocorrem muito rapidamente. Assim sendo, este artigo demonstra como um registo fotográfico pode ser considerado uma significativa fonte para o exercício da memória afetiva, permitindo, inclusive, que a própria pessoa fotografada possa se rever em uma fase, da qual, quando adulta, já não lembra mais. Registrar o nascimento dos primeiros dentinhos, a firmeza ao sentar, os sorrisos, os primeiros passos, dentre outras coisas, é tornar perene o momento inicial da vida. O método utilizado para a realização deste trabalho foi a revisão bibliográfica com foco em artigos acadêmicos e também a análise de obras publicadas relacionadas ao tema proposto. 

Na primeira seção do presente artigo temos o surgimento da fotografia descrito por Mauad (1996), e conceitos importantes segundo Ghiraldelli Jr. (2001) e Andrade (2010, n.p.)  relacionados à infância, que é uma fase singular da vida. Após relaciona-se à fotografia infantil com a criação de memórias afetivas, processo importante para o desenvolvimento humano, tanto para a formação da identidade do indivíduo como para a criação do vínculo familiar. Estas afirmações foram embasadas em autores como Rossini (2001), Bradley; Lang (2000), Bosi (1994) e Kossoy (1989). Também apresentam-se fotografias infantis realizadas nos anos 1980 comparadas com as atuais, visando reforçar a importância do acompanhamento fotográfico infantil. Tal estrutura apresentada é considerada suficiente para uma inquietação inaugural, mas que abre portas para investigações futuras que poderão pautar-se acerca da visão do fotógrafo sobre o tema abordado e também dos atores envolvidos no processo de registros fotográficos no primeiro ano de vida de bebês.

 

A Fotografia Infantil

Congelar uma imagem, fazer um momento importante parar no tempo… Acredita-se que além da necessidade de registro das coisas (que sempre acompanhou a humanidade) e, em específico da busca por um registro mimético do mundo a ilusão de capturar o passado em imagens, impulsionou a invenção da fotografia. Mauad (1996) nos explica que:

A fotografia surgiu na década de 1830 como resultado da feliz conjugação do engenho, da técnica e da oportunidade. Niépce e Daguerre - dois nomes que se ligaram por interesses comuns, mas com objetivos diversos - são exemplos claros desta união. Enquanto o primeiro preocupava-se com os meios técnicos de fixar a imagem num suporte concreto, resultado das pesquisas ligadas à litogravura, o segundo almejava o controle que a ilusão da imagem poderia oferecer em termos de entretenimento (afinal de contas, ele era um homem do ramo das diversões). (MAUAD,1996, p.74).

 

A possibilidade de registro verossímil, fosse de paisagens ou de pessoas, em um suporte, feitos a partir de uma “máquina”, impressionou enormemente a sociedade que presenciou tal invenção. Tal surpresa assombro é observada na fala a seguir: 

 

Em 1840, Edgar Allan Poe saudou a chegada da fotografia como um marco da modernidade. “Um invento representativo do potencial mágico dos anos modernos; o mais extraordinário triunfo da ciência”. Afinal, se a ciência era o símbolo maior dessa era, a fotografia não ficava atrás. (SCHWARTZ, 2011, p.7)

 

A fotografia surge no século XIX, época do capitalismo moderno e das máquinas, quando há grande ascensão de camadas sociais e grande necessidade de se produzir tudo em série, especialmente retratos (FREUND, 1976, p. 13). Ter um retrato feito nessa época era considerado “um ato simbólico mediante o qual indivíduos da classe ascendente manifestaram sua ascensão social” (FREUND, 1976, p. 13).

Entretanto, nos anos que sucederam o seu surgimento, tirar uma fotografia era considerado algo raro. Quando a fotografia começou a se popularizar, o fotógrafo passava de casa em casa, tirava a fotografia e depois de alguns dias trazia a foto revelada. No início do século XX surgiu o fotógrafo ambulante, também chamado de fotógrafo instantâneo ou “lambe - lambe”, profissional que fotografavam nas ruas, praças e jardins. Isso quando a família tinha condições financeiras para pagar, e mesmo assim tratava-se, muitas vezes, de uma fotografia de toda a família ou apenas dos filhos. E assim muitas gerações cresceram com poucos registros de imagens relacionadas a sua infância. E, como consequência disso, muitas das histórias se perderam no caminho ao longo do crescimento até a chegada da vida adulta. 

A fotografia analógica marcou uma época, entretanto era caracterizada por ser um processo demorado e complexo. Nos anos 1980 começou a surgir a fotografia digital, uma nova tecnologia que revolucionou a área fotográfica e também o acesso a ela. O ato de fotografar tornou-se quase que um hábito diário entre as pessoas. De acordo com Sontag (2010, n.p.), esta necessidade em fotografar tudo é desenvolvida principalmente com a entrada da tecnologia digital: é possível encontrarmos as fotografias em computadores ou em qualquer outro suporte digital.

Atualmente milhares de fotografias são tiradas diariamente em todo o mundo. A cada ano surgem novas tecnologias na área fotográfica, equipamentos mais modernos, novos softwares e aplicativos de edição. A fotografia que inicialmente era restrita a determinadas camadas da sociedade, hoje está acessível e cada vez mais indispensável à vida das pessoas. 

A fotografia possui diversas ramificações, e todas sofreram muitas transformações com o passar do tempo. Com o registro fotográfico infantil não foi diferente, entretanto, ela continua contando histórias para o futuro, pois ela “congela” os momentos únicos tanto para a formação da identidade da criança fotografada, quanto para a identidade da família como um todo. 

 Logo, o registro da infância não é algo antigo na história da humanidade. De acordo com o historiador francês Philippe Ariès (1986), foi apenas no século XVII que começaram a surgir as pinturas em que crianças aparecem sozinhas. As representações imagéticas das crianças aumentaram com a chegada da fotografia. No século XIX o processo de produção de retratos era reservado para indivíduos abastados e muitas vezes era uma única foto da criança, sendo retirada principalmente após sua morte. De acordo com Ferraz (2014, n.p.), as únicas ocasiões em que se fotografava eram no nascimento, no casamento e na morte, acontecimentos únicos na vida de qualquer indivíduo. A infância é uma fase da vida repleta de descobertas e aprendizados, sendo que Ghiraldelli (2001, n.p) define essa etapa da vida como a fase onde o indivíduo possui características inocentes, mas também como um momento onde a criança é vista como um sujeito com muitas peculiaridades. 

A partir do século XVIII a criança passou a ter uma maior visibilidade, conquistando assim o seu lugar na sociedade, pois até então ela era logo inserida no mundo adulto. Segundo Ariès (1981, p. 04), “de criancinha pequena, ela se transformava imediatamente em homem jovem, sem passar pelas etapas da juventude, que talvez fossem praticadas antes da Idade Média e que se tornaram aspectos essenciais das sociedades evoluídas de hoje.”

A própria ideia de criança, tal qual definimos atualmente, como um ser de singularidades, necessidades específicas, interesses e modos de pensar distintos, não existia antes do século XVIII, embora já houvesse a presença de ideias na antiguidade sobre a capacidade de desenvolvimento intelectual das pessoas nesta etapa da vida (ANDRADE, 2010, n.p.).

 

Foi somente no século XVIII com o surgimento do sentimento de infância, que a concepção de infância se efetivou. A partir daí elas passam, do ponto de vista biológico, a ser tratadas com particularidades, a serem percebidas na sua singularidade por possuírem sentimentos próprios. (NIEHUES; COSTA, 2012, p. 285).

 

A maioria das crianças que nasceram até o século XX possuem poucos registros fotográficos da infância, e os cenários de suas fotos são geralmente na cama, no sofá da sala de sua própria casa, tomando banho, sentadas em uma cadeira ou montadas em um cavalinho. Nos estúdios fotográficos, os fotógrafos montavam cenários, muitas vezes pintados à mão, contendo o desenho de paisagens ou personagens queridos pelas crianças da época.  

Crianças sentadas em uma cadeira ou sofá, ou em pé com a roupa de domingo, ou seja, a melhor roupa que a criança tinha e era usada somente em ocasiões especiais. Dessa maneira eram feitas as fotos que retratam a infância de muitos. No entanto, agora, tudo isso deu lugar a cenários bem elaborados e criativos que contam com uma composição produzida e, no caso dos registros fotográficos de bebês, conta com roupas e acessórios de acordo com a temática de cada mês. As famílias parecem não querer perder um momento sequer do crescimento do bebê.  

A fotografia infantil, assim como outros nichos, sofreu muitas transformações com a chegada da fotografia digital, da pós-produção e também das redes de exposição de imagens, como as redes sociais. “Com o surgimento das tecnologias digitais e a sua crescente aplicação ao fazer fotográfico, os processos de pós-produção ganham um espaço cada vez mais significativo na construção da imagem” (LIMA, 2015, p. 03).

A fotógrafa australiana Anne Geddes, criadora da fotografia newborn ou fotografia de recém-nascido nos anos 1990, foi responsável por uma grande inovação no acompanhamento fotográfico infantil. O trabalho de Geddes transformou de maneira revolucionária todo o estilo da fotografia infantil que é tão popular em todo o mundo. Geddes (2020, n.p.) afirma: “Eu não penso no meu trabalho como fotografia de bebê. Eu penso no meu trabalho como uma forma de contar histórias.”

 

                                         Fotografar bebês é um trabalho muito complexo, e é preciso ter consciência de todas as nuances do ambiente. Exige enorme energia mental; é necessário manter a concentração integral no que estou fazendo. E também é preciso ter muito amor pelo tema; caso contrário, não se vê o coração na imagem final”.  (GEDDES, 2020, n.p.).

 

A fotografia mensal, ou seja, a observação e registro das evoluções do bebê a cada mês até que a criança complete um ano de idade, tornou-se escolha dos pais e familiares como uma maneira de preservar, em alguma medida, estas etapas, onde através dos registros, haverá o estímulo de sempre lembrar dessa fase de descobertas, mas também de “apresentar” ao fotografado, na sua fase adulta, como ele era. As mudanças das crianças, tanto físicas como comportamentais, são muito rápidas durante esse período. Mudam a cor dos olhos, a cor e o crescimento do cabelo, as características do rosto, o aprendizado ao sentar, engatinhar, caminhar e interagir com os familiares, entre outras mudanças significativas. 

Com a chegada ao mercado de equipamentos cada vez melhores em uma época em que as pessoas gostam de novidades, do diferente e estão cada vez mais conectadas à internet, a fotografia infantil se reinventou. Surgiu o Newborn, que é a fotografia do bebê recém-nascido e o Smash The Cake caracterizado por ser uma sessão de fotos onde a criança “destrói” o bolo, comemorando o primeiro ano de vida – por exemplo. A cada aniversário mensal (que passou a ser nomeado “mesversário”), um cenário e uma temática diferente, para capturar cada detalhe do crescimento e das mudanças do bebê.  

Registros de ritos, mesmo como os recém citados, que são propositadamente criados, também são oriundos de uma das “máximas” da fotografia, de que ela é uma ponte que liga o passado ao presente. Uma forma de se ver e reconhecer em uma determinada época onde pouco se recorda, um instrumento para se “enxergar” quando criança. Quase que uma prova documental das características do sujeito nessa fase da vida, uma confirmação de sua vivência. “Cada foto é um momento privilegiado, convertido em um objeto diminuto que as pessoas podem guardar e olhar outras vezes” (SONTAG, 2004, p.28).  

 

 

 

 

 

Memória e Afeto 

A memória é a capacidade de criar, armazenar e resgatar informações, e é a partir das nossas experiências que construímos nossas recordações. É um processo cognitivo fundamental para o desenvolvimento humano.

 

A memória é considerada um sistema complexo e múltiplo combinado por arranjos de codificações ou subsistemas que permitem a armazenagem e a recuperação de informações no cérebro. Várias informações presentes no cérebro são utilizadas no resgate da memória, podendo ser classificada quanto ao tipo de estímulo. Nesse âmbito, elas podem ser visuais, táteis, auditivas, gustativas e olfativas. (BADDELEY; ANDERSON; EYSENCK, 2011).

 

            A afetividade pode ser definida como fenômenos psíquicos vivenciados através de emoções e sentimentos. Rossini (2001, p. 9) nos diz que, “a afetividade acompanha o ser humano desde o nascimento até a morte. Ela ‘está’ em nós como uma fonte geradora de potência de energia”. 

Logo, a memória afetiva tem a capacidade de fazer o indivíduo recordar situações emocionalmente importantes que estão associadas aos sentimentos vivenciados no passado. Por isso, a fotografia infantil é essencial tanto para os pequenos quanto para a união, identidade e conexão familiar. 

 

Possivelmente, eventos emocionais são mais lembrados, porque a emoção acompanha eventos novos e julgados importantes para o indivíduo, direcionando a atenção para eles, de forma que melhora a consolidação do evento na memória. (BRADLEY; LANG, 2000).

 

            A fotografia é um substrato que auxilia na construção e preservação da memória, pois através de sua visualidade, conta as histórias do passado, gerando assim lembranças futuras, que serão sempre uma construção motivada por questões presentes. A fotografia infantil, em especial, possui a capacidade de registrar uma etapa muito importante, que é o início da vida. Segundo Le Goff (1990, p. 467), a fotografia revoluciona a memória, multiplica-a, dá-lhe precisão e verdade visuais nunca antes atingidas, permitindo assim guardar a memória do tempo e da evolução cronológica.

            Por ser uma imagem que representa um momento, uma fase única da vida do indivíduo, existe uma ligação emocional com a fotografia que é capaz de despertar sentimentos no observador, que visualiza a sua trajetória ao longo da vida. “Essas imagens podem nos levar ao passado numa fração de segundos; nossa imaginação reconstrói a trama dos acontecimentos dos quais fomos personagens em sucessivas épocas e lugares” (KOSSOY, 1989, p. 68).

As imagens produzidas exercem um papel fundamental na hora de contar e recordar os momentos significativos, funcionam como uma fonte de informação e de descrição daquilo que já foi vivido. Para Leite (1998), as lembranças permanecem guardadas no inconsciente, esquecidas, até que algo as evoque ou mobilize. Ao rever antigas fotografias, as lembranças são evocadas e a subjetividade é mobilizada diante da realidade passada trazida ao presente.

Alguns estudos afirmam que não é possível se recordar de muitas características pessoais, além de muitas vivências e informações durante os primeiros anos de vida. Esse fenômeno é denominado de “amnésia infantil”. O psicanalista Sigmund Freud no século XIX definiu a amnésia infantil como o esquecimento de memórias precoces. É por isso que o ser humano não consegue se lembrar do que viveu antes dos dois anos e meio de idade. Tudo isso se deve principalmente às mudanças estruturais que acontecem no cérebro humano nessa fase, pois o sistema nervoso central ainda não está totalmente desenvolvido. Entretanto, isso não significa que as memórias dos primeiros meses de vida não sejam relevantes, pelo contrário, elas possuem um papel primordial no desenvolvimento físico, emocional e intelectual da criança até a fase adulta.

 

As lembranças relativas à infância talvez seja tudo o que possuímos. Nossas lembranças infantis nos mostram nossos primeiros anos não como eles foram, mas tal qual como aparecem nos períodos posteriores em que as lembranças foram despertadas. Nesses períodos de despertar, as lembranças infantis não emergiram, como as pessoas costumam dizer; elas foram formadas nessa época. E inúmeros motivos sem qualquer preocupação com a precisão histórica, participaram de sua formação, assim como da seleção das próprias lembranças (FREUD, 1996/1899, p. 304).

 

O acompanhamento fotográfico mensal da criança desde o nascimento até completar um ano de idade, corresponde a fase do desenvolvimento sensorial, da descoberta de sons, cheiros, cores e sabores. É a partir das experiências vivenciadas que as memórias são construídas e ficam registradas, gerando assim memórias afetivas. Experiências de afeto, cuidado e diversão influenciam diretamente a maneira que a criança se relaciona, expressa suas emoções e encara as dificuldades durante a sua evolução ao longo da vida. 

Para Souza (2011, p.19):

Os primeiros anos de vida da criança, a Primeira Infância, são essenciais para o seu desenvolvimento físico, emocional, cognitivo e cultural. A mesma neuroplasticidade que deixa a regulação emocional, a adaptação do comportamento e as habilidades vulneráveis ao rompimento precoce por causa de ambientes estressantes, também permite seu desenvolvimento bem-sucedido com intervenções adequadas durante períodos sensíveis na sua maturação. 

 

À medida que o ser humano vai crescendo, a sua bagagem de memórias vai aumentando. Por isso, as fotografias tornam-se heranças de fases importantes da vida, como por exemplo, o início dela. A psicóloga brasileira Ecléa Bosi traz à tona a frase da escritora francesa Simone Weil, para justificar a importância de ter passado e poder resgatá-lo através da fotografia: “Um ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência que conserva vivos os tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro” (BOSI, 1994, p. 443). 

O acompanhamento fotográfico infantil representa cuidado e carinho, ou seja, representa uma vontade de lembrar no futuro, garantindo que se possa exercitar a memória de um momento que, sim, é muito fugaz. Desperta o interesse dos envolvidos afetivamente ao bebê, mas também chama a atenção de todos que visualizam a imagem dele que segue sendo o centro das atenções.

A fotografia é um fator expressivo para a recordação de momentos vividos, da história de vida em si, pois registra as imagens que auxiliam na construção de memórias, podendo servir de motivação para lembrar.

 

Estamos constantemente nos valendo de imagens instantâneas da nossa vida, registradas em papel fotográfico, para retornar o processo de rememorar e assim construir a nossa versão sobre os acontecimentos já vividos. (SAMAIN, 1998, p. 22).

 

Até os anos 1990 eram escassos os registros fotográficos da infância, de forma que a maioria das pessoas que cresceu até este período possui poucas fotografias que registram essa fase da vida e que permitam a construção e o exercício memorial.  Defende-se que a fotografia incorpora significados e informações que vão além daquilo que está enquadrado na imagem, na medida em que pode a ela serem somadas narrativas, relatos e interferências de outras lembranças. A figura 1, por exemplo, trata-se de uma fotografia de uma das autoras deste artigo, com aproximadamente 6 meses de idade, sentada no sofá da sala da casa dos avós maternos, sob uma manta de crochê, e, ao lado é possível observar a mesinha das revistas, alguns bibelôs e um disco de vinil, este, parte de um grande acervo da coleção de sua avó. Um cenário simples, mas acolhedor e com grande importância afetiva. Como dito, o que é descrito aqui, ultrapassa os limites do quadro e adentra em um outro terreno, o dos sentimentos e emoções.


Figura 1: Fotografia no sofá da sala dos avós, em 1988. 

 

Fonte: acervo de uma das autoras

 

Atualmente o acompanhamento fotográfico mensal de bebês conta com a criatividade em elaborar a cada mês uma nova temática. Nos meses do ano com datas especiais, os temas geralmente são baseados nisso, como Páscoa, Dia das Mães, Dia dos Pais, Natal, Ano Novo, etc, como na figura 2, onde foi possível registrar a reação de surpresa da bebê ao segurar um ovo de Páscoa. Nos demais meses, o cenário comumente é combinado com os pais, como a figura 3, onde os pais escolheram   registrar o 3º mês do bebê, que coincidiu com a chegada da estação de outono.


Figura 2: Fotografia de acompanhamento mensal, 11º mês, 2019.

 

Fonte: Registro fotográfico de uma das autoras.

 


Figura 3: Fotografia de acompanhamento mensal 3º mês, 2021. 

 

Fonte: Registro fotográfico de uma das autoras

 

Quando a criança completa o 12º mês, é tempo de celebrar com um belo cenário de um ano (como é possível observar na figura 4), e/ou com o ensaio Smash The Cake, ou traduzindo, “amassar o bolo”, onde o bebê brinca, amassa, come e se lambuza, exemplificado aqui com a figura 5.


Figura 4:  Fotografia de acompanhamento mensal 1° ano, 2022. 

 

Fonte: Registro fotográfico de uma das autoras

 

 


Figura 5: Fotografia de acompanhamento mensal 1° ano, 2022. 

Fonte: Registro fotográfico de uma das autoras 

 

            É notório que houve mudanças significativas ao longo dos anos na forma de registrar a infância, especialmente durante o primeiro ano de vida do bebê. A sociedade está em constante processo de transformação, logo a fotografia segue o seu percurso inovador. O que não muda é a passagem rápida dessa fase da vida, o quanto as crianças crescem e se desenvolvem, por isso, a fotografia segue sendo uma excelente maneira de eternizar esses momentos, captando cada detalhe importante.

Considerações Finais

A fotografia surgiu como um instrumento para responder os anseios de registro do mundo, especificamente, da busca por representações mais miméticas da realidade, servindo para contar histórias e reforçar a identidade. Através das imagens fotográficas tornou-se possível registrar momentos importantes da vida, seja de uma pessoa ou da sociedade como um todo. Ela tornou o mundo familiar, como afirma Kossoy (1989).  No momento em que a infância ganha uma maior definição e caracterização ao longo da história, automaticamente as crianças adquirem um espaço maior nas representações imagéticas, como assegura o historiador Ariès (1986).  

Durante esta pesquisa também foi possível comprovar a ligação que a fotografia, em especial o acompanhamento fotográfico de bebês, possui com a criação de memórias afetivas. Segundo Le Goff (1990), a fotografia permite guardar a memória do tempo, ela registra os acontecimentos ao longo de sua passagem. Ao ser feita uma retomada histórica na busca de registros infantis, pôde-se perceber mudanças, as quais vieram alinhadas no que se refere a forma como as crianças eram/são vistas pela sociedade. Hoje, a infância é vista como uma fase singular e importante na vida do ser humano e, somado a chegada da fotografia digital, a utilização de equipamentos cada vez mais modernos, pós produção das fotografias e também, uma sociedade cada vez mais conectada à internet, vê-se esse grande “boom” neste tipo de registro fotográfico. 

            O acompanhamento fotográfico mensal da criança é uma maneira de eternizar os momentos importantes dessa fase de intensas e frenéticas mudanças da vida. Para os pais e familiares, a fotografia se torna um tesouro capaz de despertar sensações e emoções, uma maneira de guardar memórias e momentos de afetividade por muitas gerações. Para a criança fotografada, um arquivo único contendo as suas principais características, o início do desenvolvimento da sua identidade e o seu contato inicial com o mundo. Mais do que isso, uma herança de alto valor afetivo para quando estiver na idade adulta. Folhear o álbum fotográfico é como visitar as páginas de um livro que conta a sua própria história, onde a criança é a personagem principal do enredo.

            A fotografia de acompanhamento mês a mês é o registro de fases repletas de mudanças. É um meio de reforçar a autoestima e a confiança do indivíduo, mostrando que ele é único e que possui um papel importante no meio em que vive. Esses registros fotográficos auxiliam na construção da memória afetiva da criança, criando recordações de momentos incríveis e demonstrando o afeto e o cuidado da família com ela, além de gerar uma percepção de pertencimento ao ambiente familiar em que está inserida. Quando adulto o ser humano possui uma curiosidade natural em saber sobre suas origens, como foi sua infância, como eram suas principais características, ou seja, de como era a sua vida no início de tudo. Já dizia o fotógrafo e educador Schisler [s.d]. “O que se guarda torna-se a nossa história, e o que não é guardado perde-se e é apagado de nossas memórias”.

            Sendo assim, é indiscutível que a fotografia exerce um papel importante e possui uma grande responsabilidade na vida das pessoas, desde o nascimento, pois não se trata de apenas registrar os momentos especiais e guardar e relembrar recordações. O seu papel vai além, a fotografia conserva o que foi vivido e como foi vivido, o crescimento e evolução do indivíduo, quem eram as pessoas de seu convívio. A fotografia permite “olhar para trás” e reviver tudo aquilo novamente. 

            A presente discussão foi estimulante e enriquecedora para as autoras, na medida que estabeleceu uma discussão teórica sobre a atividade profissional de uma delas como fotógrafa, e também para a outra autora que é docente e doutora em Memória Social e Patrimônio Cultural e docente na área de fotografia. Inquietações e motivações diárias presentes em seus trabalhos, compuseram a pergunta norteadora da pesquisa e, através das pistas científicas traçadas, foi possível comprovar a relevância das suas atuações como profissionais da área de Artes Visuais.

            Por fim, como quase toda pesquisa, não se entende que este estudo aqui se encerra. Ele se estabeleceu e dá conta de uma necessidade inicial, mas para além disso, abre espaço para uma sequência na pesquisa, que poderá ser focada na visão do fotógrafo sobre a temática, além de entrevistas com as pessoas relacionadas diretamente à temática de acompanhamento fotográfico no primeiro ano de bebês. 

 

Ps. A utilização das fotografias das figuras 2 a 5 no presente artigo foram autorizadas pelos pais e/ou responsáveis. 

 

Referências Bibliográficas

 

ÁGUEDA, A. A. O Fotógrafo Lambe-lambe no Largo do Machado: Um olhar sobre Memórias Coletivas no Espaço Urbano. 2002. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO), Rio de Janeiro, 2002.

 

ANDRADE, Lucimary Bernabé Pedrosa de. Educação infantil: discurso, legislação e práticas institucionais. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.

 

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1981.

 

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 15. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

 

BADDELEY, A. D.; ANDERSON, M. C.; EYSENCK, M. W. Memória. Porto Alegre: Artmed, 2011. 472 p.

 

Bradley M.M., Lang P.J. Measuring emotion: behavior, feeling and physiology. In: Lane R.D., Nadel L., editors. Cognitive Neuroscience of Emotion. Oxford University Press; Oxford: 2000. 

 

FREUD, Sigmund. (1996). Lembranças encobridoras. Em: Edição Standard brasileira das obras psicológicas complementares de Sigmund Freud. (Volume 3) Rio de Janeiro: Imago. (Publicado originalmente em 1899).

FREUND, Gisèle. La fotografía como documento social. Barcelona: Gustavo Gili, 1976.

                                                                                                                              

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1990. (Coleção Repertórios).

 

LEITE, MIRIAM LIFCHITZ MOREIRA. Retratos de família: imagem paradigmática no passado e no presente. In: SAMAIN, ETIENNE. O fotográfico. São Paulo: Hucitec, 1998.

 

MAUAD, Ana Maria. Através da imagem: fotografia e história interfaces. Revista Tempo, Niterói, v. 1, n. 2, p. 73-98, 1996. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg2-4.pdf>. Acesso em: 23 set. 2023.

 

MONSORES, Julia. Fotos de recém-nascidos: um olhar no trabalho de Anne Geddes. Seleções, Rio de Janeiro, novembro, 2020. Disponível em https://www.selecoes.com.br/inspiracao/fotos-recem-nascidos-anne-geddes/. Acesso em: 22 set. 2023.

 

NIEHUES, M. R.; COSTA, M. Concepções de Infância ao longo da História. Rev. Técnico Científica (IFSC). v. 3, n. 1, 2012. Disponível em <https://periodicos.ifsc.edu.br/index.php/rtc/article/download/420/342>. Acesso em: 12 de nov. 2023.

 

ROSSINI, Maria Augusta Sanches. Pedagogia afetiva. Petrópolis: Vozes, 2001.

 

SAMAIN, Etienne. O fotográfico. São Paulo: Hucitec, 1998.

 

SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

 

SOUZA, S.R. Saúde integral da criança. In: SOUZA, S.R. (org.). Fundamentos do desenvolvimento infantil: da gestação aos 3 anos. São Paulo: Fundação Maria Cecília Souto: Vidigal, 2011. P. 17-31. E-book.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1]Especialista em Artes pela Universidade Federal de Pelotas, Brasil (2023). Orcid: https://orcid.org/0009-0002-4836-3786. E-mail: paolafernandakruger@gmail.com.

[2] Doutorado em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Pelotas, Brasil (2015). Professora Adjunta da Universidade Federal de Pelotas, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8845-9737. E-mail: paulaglima@gmail.com.