Olindas Inventadas: analisando um filme realizado por crianças

Invented Olindas: analyzing a film made by children

 

Ana Julia Lacerda Meira Menezes [1]

Fundação Joaquim Nabuco, Recife, PE, Brasil

Patrícia Maria Uchôa Simões [2]

Fundação Joaquim Nabuco, Recife, PE, Brasil

 

Resumo

Este artigo investiga a invenção de paisagens em Olinda por meio do filme "Praça do Terror", produzido por crianças de 8 anos em uma escola pública na periferia da cidade, as quais desenvolvem narrativas que exploram a cidade de Olinda sem recorrer a estereótipos. O filme aborda questões como restrições à mobilidade urbana e busca por autonomia. O referencial teórico adotado fundamenta-se na noção de devir-criança de Deleuze e Guattari, assim como nas contribuições de Walter Kohan. Explora-se também a perspectiva cinematográfica de Deleuze, juntamente com as contribuições de Migliorin e Pipano no campo do cinema-educação. A metodologia adotada foi nomeada experiência “cartográfica-artística-educativa". Ao final, sugere-se que Olinda, tradicionalmente conhecida em escala global pelo olhar do colonizador, emerge aqui como um território de invenção a partir das imagens, desdobrando-se em histórias de emancipação ancoradas nas experiências das crianças. Assim, a cidade é apresentada não apenas como um patrimônio histórico, mas como um espaço permeado por afetos diversos.

Palavras-chave: Olinda; Paisagem; Cinema-educação; Devir-criança.

 

Abstract

This article investigates the invention of landscapes in Olinda through the film "Praça do Terror", produced by 8-year-old children at a public school on the outskirts of the city, who develop narratives that explore the city of Olinda without resorting to stereotypes. The film addresses issues such as restrictions on urban mobility and the search for autonomy. The theoretical framework adopted is based on the notion of becoming-child by Deleuze and Guattari, as well as on the contributions of Walter Kohan. Deleuze's cinematic perspective is also explored, along with the contributions of Migliorin and Pipano in the field of cinema-education. The methodology adopted was named “cartographic-artistic-educational” experience. In the end, it is suggested that Olinda, traditionally known on a global scale through the eyes of the colonizer, emerges here as a territory of invention based on images, unfolding into stories of emancipation anchored in children's experiences. Thus, the city is presented not only as a historical heritage, but as a space permeated by diverse affections.

Keywords: Olinda; Landscape; Cinema education; Becoming-child.

 


 

Introdução

A cidade de Olinda, em Pernambuco, é multifacetada e multicolorida, de modo que existem várias Olindas, com seus espaços e tempos que compõem uma miscelânea de experiências, memórias, imaginários e discursos que se encontram e desencontram. Sem embargo, este município possui algumas singularidades que ganharam fama. Para mencionar algumas, há a arquitetura de origem colonial que foi tombada, o carnaval, as artes visuais e as vistas panorâmicas, que permeiam e alimentam um imaginário de identificação local.

O Sítio Histórico de Olinda apresenta um acervo arquitetônico que data do período da invasão portuguesa, contando com diversos casarios e igrejas de origem colonial. Em termos de arquitetura, o passado se mantém enquanto forma na paisagem, evocando processos históricos próprios da formação social, econômica e espacial no Brasil.

A aparência preservada das estruturas pode suscitar a imaginação em certos sujeitos de como teria sido aquele local séculos atrás, quem teria andado por aquelas ruas, quem teria vivido naquelas moradias, quais conflitos teriam acontecido naquela paisagem. Em suma, pode-se experienciar reflexões acerca do Brasil colonial e suas marcas infelizes. Mas, Olinda não permanece fincada no passado: a cada instante, criam-se várias Olindas, seja nas vizinhanças do perímetro tombado, chamada de periferia, seja no próprio Sítio Histórico.

Tendo como inspiração a tradição das artes visuais relacionadas ao município de Olinda, propomos-nos a pensar na criação de paisagens deste lugar por meio de imagens. Especificamente, buscamos analisar um filme intitulado “Praça do Terror”, realizado por crianças que habitam a periferia do Sítio Histórico de Olinda. O filme se inscreve como uma narrativa de Olinda, e, sem recorrer aos estereótipos espaciais, inventa outros mundos possíveis.

 

Paisagem: artes visuais e poder

A partir do século XVII, em especial nos Países Baixos, a descrição geográfica e as pinturas de paisagem se relacionam intimamente (Besse, 2014). Este é o momento no qual a Holanda investe nas invasões a territórios do Continente Americano, como aconteceu no território do atual estado de Pernambuco, no Brasil. Frans Post foi um dos principais pintores de paisagem de origem holandesa, e veio ao Brasil junto com Maurício de Nassau, em 1636, com o intuito de mostrar a terra para os europeus, assumindo a condição de ilustrar paisagens deste território para a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais.

A forma de retratar a vista se baseava na observação dos elementos da paisagem e na sua própria imaginação, permeado pela técnica da tradição paisagística holandesa. Frans Post ilustrava a fauna e a flora, campos férteis, casarões, igrejas e estradas, além de pessoas, compondo uma aparência de relação harmoniosa com a natureza (Erkan, 2012). A apresentação da paisagem experienciada no Nordeste do Brasil em Frans Post ilustra uma colonialidade do olhar, uma ética e estética eurocentrada que visava a exploração de recursos naturais e humanos daquele local.

Frans Post se tornou um dos mais conhecidos pintores de paisagem do Brasil, alimentando um imaginário visual europeu. Quando voltou para a Europa, continuou a pintar paisagens do Brasil, baseando-se em sua memória. Uma dessas obras é a “Vista de Olinda” (Figura 1), onde na pintura há uma vista panorâmica e uma igreja em um plano mais próximo, no qual se percebe pessoas escravizadas e mestres brancos (Erkan, 2012).

 

Figura 1 - Vista de Olinda. Frans Post (1662)

 

A composição em quadro da vista se associou a uma imagem de paisagem enquanto um espetáculo. No caso de Frans Post, as paisagens são imaginárias, associadas a uma subjetividade ainda mais evidente. O quadro “Vista de Olinda” conta uma história de invasão e ocupação de territórios, assim como paisagens podem ser interpretadas como textos (Schmidt-Loske & Wettengl, 2020).

Jorge Larrosa (2019) nos diz que, na sociedade moderna, a educação formal tencionou a contemplação da natureza com um estremecimento moral, na qual há uma história que subjaz às paisagens. As paisagens se relacionariam com discursos, ordens ou lógicas, e as disposições e movimentos dos indivíduos estariam relacionados aos imaginários espaciais. Segundo o autor, a cultura age enquanto um conjunto de esquemas de mediação e de formas que delimitam as coisas, os sujeitos e as subjetividades.

 

Olinda: narrativas e construção de imaginário

Exploramos neste escrito alguns aspectos da cidade de Olinda, centrando-nos especialmente em seu sítio histórico e algumas de suas narrativas, com o intuito de delinear as interconexões que deram origem à nossa experiência cartográfica-artística-educativa com crianças.

O Sítio Histórico de Olinda recebeu, em 1982, o título de “Cidade Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade” pela UNESCO, apresentando um acervo arquitetônico e monumental que data do período colonial, além de ser palco de grandes carnavais (Nascimento, 2008). Por este motivo, a localidade possui uma significativa visibilidade turística e é considerada paisagem-postal do município de Olinda, bem como do estado de Pernambuco, possuindo fama em níveis nacionais e internacionais.

É um espaço que foi e é permeado por múltiplos discursos e práticas relacionadas à experiências singulares, tendo a paisagem enquanto força aglutinadora de uma identidade local. Há uma série de produções artísticas que apresentam e enaltecem paisagens do Sítio Histórico de Olinda e suas poéticas, como nas artes visuais, literatura e música.

Como consta no guia da XIª edição do evento ‘Olinda Arte em Toda Parte’, de 2011, em um texto escrito pelo curador do evento, Raul Córdula, as pinturas de paisagem estariam presentes em Pernambuco desde o século XVII, durante o episódio do domínio holandês, como as obras de Frans Post. Guita Charifker e José Cláudio (Figura 2) são exemplos de pintores de paisagem do século XX que, de acordo com Raul Córdula, integrariam uma tradição pernambucana da arte, que teria sido iniciada há centenas de anos.

 

Figura 2 - Vista de Olinda. José Cláudio (1983).

 

A cidade de Olinda, então, é associada a uma aura de “magia” e encanto. Paulatinamente, as artes, em especial as visuais, tornaram-se um elemento simbólico da identidade cultural do Sítio Histórico de Olinda, e por extensão, de toda cidade de Olinda. Esta prática artística acarretou uma certa popularidade, de modo que a partir da segunda metade da década de 1960, com o chamado Movimento da Ribeira, foram criados espaços para galerias artísticas e ateliês nas casas do Sítio Histórico, mudando a dinâmica socioespacial do lugar (Barreto, 2008).

O Movimento da Ribeira influenciou as formas de ocupação e o perfil populacional do Sítio Histórico, causando uma espécie de gentrificação devido à ‘valorização’ da sua paisagem por determinados grupos ligados à burguesia e à intelectualidade (Barreto, 2008). O perímetro patrimonializado passou a apresentar casarios coloniais reformados, preservados, bem como inúmeras galerias e ateliês, culminando no momento em que foi considerada Patrimônio da Humanidade, o que acarretou em investimentos na área de gastronomia, hospedagem e turismo.

Nas encostas das colinas do Sítio Histórico, em localidades como Monte e Guadalupe, são localizadas as periferias desta centralidade. Para Barreto (2008), a ocupação ao lado do núcleo histórico por uma população com menor poder aquisitivo descaracterizaria a paisagem historicamente protegida. Este pensamento se relaciona com a divisão das Olindas no que concerne a paisagem e a renda de suas populações, em segregações que ocorrem em outras cidades do Brasil.

 

Noções de Devir-criança

Nossa investigação concentra-se em crianças que frequentam uma escola pública localizada no bairro de Guadalupe, especificamente em uma região caracterizada como periférica. Apesar de ostentar o título de sítio histórico, este bairro é constituído predominantemente por edificações mais contemporâneas, não contempladas por processos de tombamento.

Realizamos encontros semanais ao longo de três meses (agosto a novembro de 2022) com seis crianças, todas do gênero feminino e com 8 anos de idade. Utilizamos aqui nomes fictícios por elas escolhidos, a saber: Annabelle, Arlequina, Bruxinha, Cineasta, Diabinha e Fada. Todos os encontros ocorreram nas dependências de sua escola.

Nossa compreensão da infância fundamenta-se na perspectiva deleuziana do Devir-Criança, concebendo-a não meramente como uma fase do desenvolvimento humano, mas sim como uma condição que transcende limitações cronológicas. Kastrup (2000) comenta que na concepção piagetiana de tempo, o processo de desenvolvimento infantil aconteceria dentro de uma ordem cronológica, sucessiva; enquanto que para Bergson haveria uma coexistência de todos os tempos. É a partir desta noção bergsoniana que Deleuze e Guattari pensam a noção de devir-criança, compreendendo a coexistência de tempos distintos e heterogêneos como o princípio do devir. O devir-criança diria respeito à dimensão da invenção e da transformação em movimento, entendimento que rompe com a lógica desenvolvimentista estática, sucessiva e rígida ou, noutros termos, com as formas estabelecidas – inclusive como forma-criança ou forma-adulto (Deleuze & Guattari, 1996).

Walter Kohan (2007) pondera que as diferenças entre as compreensões de história e devir, chrónos e aion, macro e micropolítica podem contribuir na compreensão de duas noções de infâncias: uma que seria majoritária, contínua, das etapas de desenvolvimento, dos parâmetros de educação infantil e escolar; e outra infância, minoritária, que habitaria outra temporalidade, mais próxima da experiência, da ruptura, da revolução e criação. A infância, nesta perspectiva, seria a afirmação do ainda não previsto nem nomeado, assumindo que não há um caminho predestinado a ser seguido (Kohan, 2011).

Kohan (2019) recupera de Deleuze o termo ‘devir-criança’ como movimento de experimentação, de tensionamento que desafia mundos reais e inventa mundos novos. Este autor rejeita a ideia de infância como um estágio no tempo, com rígidos contornos preestabelecidos, afirmando-a como acontecimento fora do tempo, extracronológico, que mobiliza forças, intensidades e devires (Kohan, 2020).

Jorge Larrosa (2019) fala da infância enquanto ‘outro’, enquanto algo que questionaria poderes e concepções pré-estabelecidas das instituições que se propõem ao acolhimento da própria infância. Pensar uma infância que é um outro do saber: a encarnação do surgimento da alteridade que move uma ‘verdade’ à qual deveríamos nos dispor a escutar. Não se submete a uma objetivação nem se manifesta de acordo com um projeto, mas requer uma iniciativa e uma abertura para a sua recepção.

Em consonância com Kohan (2011), não buscamos aqui apresentar uma idealização ou romantismo da noção de Infância, nem associar esta a uma ideia de natureza perdida, metafísica ou a um estado de perfeição humana, mas apresentar uma política do pensamento assentada na igualdade e na diferença, apostando na transformação das relações através da inquietude.

Acerca do caráter revolucionário da infância, Sandra Mara Corazza (2013) diz que as crianças também são artistas, uma vez que fazem as mesmas coisas que a Arte. Ambas “não ordenam lugares, mas abrem rasgões para o Fora; movimentam-se sobre um devir-infantil e sobre o esquecimento da história e o abandono das lembranças de infância” (Corazza, 2013. p.3). A arte, assim como as crianças, trilha por caminhos e linhas erráticas, articulam ou desativam zonas de vizinhança; realizam viagens no tempo e espaço sem saírem do lugar, ‘enlouquecendo’ o que se diz ser a voz da prudência e do senso comum.

 

Praça do Terror: uma análise

Em nossa experiência cartográfica-artística-educativa, o cinema foi até a escola. Gilles Deleuze (1985), comenta que o cinema constituiria um conjunto de informações sonoras e visuais. Há, num quadro cinematográfico, muitos quadros diferentes. O quadro pressupõe um ângulo no enquadramento, o que para Deleuze é a arte de escolher as partes que entram em um conjunto. Um quadro, um espelho ou uma janela exigem do sujeito posicionamentos, bem como a coragem de decidir querer enxergar, em um gesto político e poético do “ver”, como reflete Bernardina Leal (2009).

Ao falarmos das imagens cinematográficas, os filmes são abordados como paisagens ou como construtores de geografias. Fala-se das paisagens ou de geografias fílmicas (Costa, 2014). O cinema não é apenas representação, expressão ou um produto, mas é o próprio tempo em estado puro tornando-se sensível por meio de signos específicos presentes em sua estrutura, que constrói e dissolve realidades (Deleuze, 2018; Oliveira, 2012).

Como mostram Migliorin e Pipano (2021), há uma ampla variedade de formas, meios e dispositivos para se realizar a prática cinematográfica. A relação dos sujeitos com as tecnologias audiovisuais apresenta atualmente uma ampliação do acesso à produção visual, sobretudo pela forma como os processos subjetivos estão amplamente entrelaçados a essas tecnologias. Acompanhamos um crescimento do acesso à tecnologia de processamento de imagens e sons, bem como do tratamento imediato da imagem no próprio celular, com programas de edição de imagem (Migliorin & Pipano, 2021).

Nos nossos encontros, o cinema esteve subjacente na criação de espaços de expressão e na abertura de janelas para o compartilhamento e a invenção coletiva. Em consonância com Migliorin e Pipano (2021), compreendemos que o cinema não aparece para pedir ou exigir algo, mas acaba se acomodando nas capacidades sensíveis dos sujeitos.

Uma das nossas motivações é a criação de espaços para a inventividade através da imagem. Quando adotamos o caráter ético-estético do fazer coletivo com inspiração na noção de devir-criança, perdem-se as coordenadas, a câmera passa de mão e a montagem é fruto de diálogo. Ao fim do processo – que pressupõe a criação de outros processos – as imagens construídas não são propriedade de uma só pessoa, mas são do grupo (Migliorin & Pipano, 2021).

Desse modo participativo e aberto, veio a ser concebida a obra cinematográfica de ficção “Praça do Terror”, conforme intitulado pelas próprias participantes. Elas escolheram este nome porque o filme se passaria na praça que fica em frente à sede do bloco icônico que abre o carnaval de Olinda chamado ‘Homem da Meia Noite’. Nesta praça, há alguns brinquedos públicos e um campo de futebol, bem frequentado pelas pessoas que moram ao redor.

O acesso aos frames em formato de linha do tempo do filme na íntegra está no link:  https://drive.google.com/file/d/1Q1RJAYO5nfkzqCr7yh00G6nuvbNMTdCb/view?usp =sharing . De modo a não revelar a identidade das crianças, colocamos emojis que correspondem às suas expressões na obra.

Procurando uma entrada na análise do curta-metragem realizado pelas crianças, percebemos que a paisagem do espaço público externo à escola aparece apenas em um breve e curto momento do filme (Imagem 1), e em um vislumbre passageiro ela rapidamente sai do plano para dar lugar ao movimento rápido das crianças que interagem no pátio da escola.

Imagem 1 - a cidade do Recife ao fundo, vista pela cidade de Olinda.

 

Embora a obra realizada no âmbito da nossa pesquisa pareça não ter alguma relação com a paisagem, é pela paisagem que entramos, como se abríssemos uma janela, ou melhor, é por ela que saímos, como uma possibilidade de intervir, interagir ou protagonizar nos nossos espaços de existência.

No frame que aparece, distante, a silhueta dos prédios da cidade vizinha Recife, a paisagem aparece como que para se fazer lembrar que ela está ali, enquanto uma participante que estaria ‘ausente’ ou fora de campo da filmagem, fora da escolha, do quadro, da cena. Mas não é apenas aqui que a Paisagem efetivamente aparece.

Em termos éticos e estéticos, a paisagem é permeada por poderes em toda a trama. Primeiramente, a praça é percebida como um local cuja paisagem é a do comum, onde se brinca e se socializa. Na obra, o espaço público tem uma centralidade. No momento em que a Bruxa começa a interferir, com ações centralizadoras, as personagens são proibidas de circularem pela praça, que é o que causa o problema principal da história. Essa ação da Bruxa causa efeitos imprevisíveis na comunidade (Frame 1).

 

Frame 1

 

Além da interrupção no ato de contemplação da paisagem que a Fada estava tendo no começo do filme, há um tipo perigoso de ameaça à vivência que começa com aquele ato: a expulsão de se estar num local público para um espaço privado. Parece-nos que a Bruxa atua como um poder assim como o do mercado em um espaço público de interesse, que faz uso da persuasão e da força para expulsar e deslocar os indivíduos.

No decorrer do filme, a Bruxa foi, aos poucos, capturando as pessoas que até então estavam vivendo suas vidas. Começou cerceando a Fada, e depois prendeu e impôs limites às outras personagens. A trama parece sugerir que, caso não tivesse um ponto de transformação na trama, a Bruxa iria continuar ganhando poder e influência sob mais e mais pessoas, de acordo com os seus objetivos. Percebemos também que a Bruxa faz uso de poderes cada vez mais potentes para deter os movimentos e as expressões das personagens. Ela brada que ninguém vai escutar a revolta delas, mas por que exige que se calem, se ninguém vai ser capaz de ouvir? (Frame 2).

 

Frame 2

 

O último e mais potente poder lançado pela Bruxa atuou sobre a memória das personagens. Sem a ciência de seus conflitos anteriores e seus motivos para alguma revolução, nada é feito. É como se tudo estivesse bem e ninguém tivera sido prejudicado. É neste momento que a Bruxa atinge o ápice de seu poder, é onde está satisfeita com suas conquistas: tem as personagens sob seu poder e elas não sabem que são dominadas, inclusive considerando a Bruxa enquanto uma pessoa boa para elas.

Foi preciso a Fada, e aqui poderia ser colocada a Fada enquanto a força de organização coletiva, com o uso de um poder subversivo para que, finalmente, elas recuperassem as memórias. A situação narra a necessidade de que alguém ou algum grupo que percebe um ponto de vista diferente, faça intervenções para que algo mude efetivamente. Parece apontar que, se ninguém se incomoda com determinadas situações, talvez nunca outras pessoas percebam a sua própria situação injusta.

A praça torna-se do ‘terror’ quando a Bruxa toma conta dela. Quando não há oportunidade de contemplação da paisagem. Quando não há forma de fruição da vida que não seja associada à presença da Bruxa. Na obra “Praça do Terror”, os aspectos valorizados são coletivos. Há uma busca pela harmonia e coletividade. Não há conciliação com os poderes que oprimem: a Bruxa apenas torna a ser amiga de todas quando seus poderes motivados por vontades egoístas e centralizadoras deixam, efetivamente, de existir e de exercer influência (Frame 3). No filme, a democracia é atravessada, inevitavelmente, pelo direito à mobilidade e à expressão de suas escolhas, tanto coletivas quanto individuais.

 

Frame 3

 

“Praça do Terror” inaugura universos dentro do Sítio Histórico de Olinda, uma vez que o cinema cria realidade, e não é apenas uma representação descolada da vida. Relacionamos a obra enquanto uma narrativa de paisagem coletiva em Olinda, feita por crianças que vivem em Olinda e se inspiram em Olinda.

Este filme apresenta sujeitos atravessados por afetos tais como angústia, terror, raiva e alegria. As caracterizações e cenários que emergiram durante a filmagem aparentavam ser fruto de repetidos ensaios, enquanto na realidade, foram majoritariamente um resultado de brincadeiras espontâneas, tal qual o carnaval. A coletividade permeou a experiência, e cada indivíduo se tornou o que quis naquele momento: bruxa, fada, boneca, ser mítico, personagem de quadrinhos ou até mesmo uma câmera. A magia do cinema se revela em seus usos mágicos, aqueles que transcendem a ideia de registro da realidade e alcançam o campo do devir, da criação livre e espontânea. Nessa brincadeira, que assim como o carnaval é um momento de liberdade e expressão, a coletividade dava o tom da experiência.

É possível dizer que essa experiência, além de mobilizar o território do devir-criança, transita pelo devir-carnaval tal qual o de Olinda, em movimentos que se encontram na produção de uma obra de arte que se desdobra de modo imprevisível, sempre a se reinventar.

Realizar um filme coletivo pode ser um caminho para a compreensão de que há uma paisagem, e não só eu posso questioná-la, mas também intervir, criar mundos. Lembrando o cineasta Pedro Costa mencionado por Larrosa (2013), é preciso ter um pouco de atrevimento para podermos produzir coisas. A paisagem não é espontânea, é algo que aparentemente está ‘posto’, mas está permeada de enquadramentos e exclusões, pois a paisagem, acima de tudo, é percepção, e percepção é algo construído.

Os sujeitos de poder pretendem dar visibilidade a determinados aspectos em detrimento de outros, assim como buscam inibir a participação e o direito não só de percebê-la, mas de transformá-la. Em suma, “Praça do Terror” é uma imagem de uma comunidade onde não se busca um poder que seja o ditador da paisagem. É uma paisagem permeada por afetos, mas que não pertence unicamente a ninguém e a todos os sujeitos ao mesmo tempo.

A potência política dessa experiência reside na possibilidade de criar outras formas de vida e inventar outros mundos possíveis, abrindo caminhos para a liberdade e a transformação. A liberdade de expressão e a subversão dos padrões sociais que acontece em um cinema de brincar chama a atenção para a emergência de novos modos de ser e de se relacionar.


 

Considerações finais

Como já mencionado, a cidade de Olinda é famosa por suas produções imagéticas. A vasta e icônica produção artística com inspiração e menção à Olinda está relacionada às narrativas que se popularizaram em meados do século XX, mas também muito relacionadas às pinturas de paisagens e cartografias provenientes das invasões holandesas.

As crianças realizadoras da obra “Praça do Terror” se inspiraram em Olinda para fazer a obra de arte, mas sem mencionar em nenhum momento a palavra “Olinda”. Elas não remeteram a uma narrativa já consagrada acerca de Olinda, mas se ancoraram em suas experiências, que talvez nem tanto se relacionem ao imaginário mais exportado sobre esta cidade. A cidade estava lá, mas não era compreendida como um patrimônio histórico, mas como um espaço permeado de afetos diversos.

É relevante observar que nossas interlocutoras apresentam narrativas sobre a cidade de Olinda para além de uma ideia de essência de lugar, mas se colocam em diálogo com territórios inventados, unindo fantasias da imaginação e questões sociais comuns a tantas pessoas no mundo.

Como pondera Larrosa (2013), há diversas ficções que consideramos necessárias para que as poucas ficções impostas e dominantes não sejam as únicas conhecidas. Comprometer-se com a ‘verdade’ é buscar mudar o ‘real’, o que implica em buscar mudar as formas de se ver, dizer, pensar, atuar e mudar as ficções do cotidiano, muitas vezes de uma forma dissidente e polêmica. O real é um espaço de luta entre as múltiplas ficções dos sujeitos.

Ao confrontarmos os limites institucionais do ensino para a realização de uma obra fílmica, em seus processos básicos de roteiro, filmagem e edição, emerge uma potência política. O caráter coletivo da produção, aliado à abertura para o novo presente nas criações, estabelece um espaço de criação que foge aos moldes tradicionais da educação. É notável a presença de uma missão criativa no processo, sem, no entanto, a cobrança de resultados finais específicos. O entusiasmo é o motor que impulsiona a criação.

A disposição em seguir o processo "à deriva" é um gesto que revela uma abertura à experimentação e à imprevisibilidade, onde objetivos iniciais são superados e transformados em experiências que se integram na compreensão de devir-criança. A partir disso, é possível vislumbrar o devir-criança do cinema como uma contribuição significativa para os campos da educação.

Descobrir o mundo pela percepção através da câmera, descobrir paisagens e os afetos produzidos no atrito com o mundo e com outros corpos. Essas descobertas se tornam viáveis a partir das escolhas a serem feitas, tais como: para onde devo olhar? Para onde devo apontar a minha câmera? A que elementos quero chamar atenção? Quais elementos devo ocultar para dar sentido a trama que estou tecendo? A quais devo dar visibilidade e quais devo tornar invisíveis? Qual plano? Qual câmera? Qual enquadramento? Assim, pensamos nos desdobramentos que transcendem do pátio da escola: o quanto essa experiência de filmar influencia no próprio olhar e suas formas?

Tudo isso convoca a uma certa tomada de poder. É um exercício de apropriar-se da imagem assim como de um meio de produção, da cidade ou de sua existência. As crianças, no pátio da escola, tomam posse de sua própria imagem. São elas que inventam suas imagens e suas paisagens, são elas que contam da maneira como bem entendem a sua própria história, no nosso caso, no meio de um ‘faz de conta’ regado a risos e gargalhadas.

A cidade de Olinda, uma vez conhecida em escala global a partir do olhar do sujeito colonizador, desponta como território de invenção a partir das imagens. Em suas narrativas, desdobram-se histórias de emancipação conduzidas pela aspiração de autonomia, entrelaçadas à noção de devir-criança.

 

Referências

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Imagem 1

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[1] Mestra em Educação, Culturas e Identidades pela Universidade Federal Rural de Pernambuco/Fundação Joaquim Nabuco. Professora de Geografia da rede pública municipal do Recife e estadual de Pernambuco. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7212-7447 . Email: analacerdamusica@gmail.com.

[2] Doutora em Psicologia Cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é Analista em C&T Senior da Fundação Joaquim Nabuco e docente do Programa de Pós-graduação em Educação, Culturas e Identidades da UFRPE/FUNDAJ.  Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1606-7894. E-mail: pusimoes@gmail.com.