Ouvidos em trânsito: intervenções urbanas em aprendizagens docentes

 

Ears in transit: urban interventions in teacher’s learning processes

 

Oídos en tránsito: intervenciones urbanas en aprendizajes de la docencia

 

 

Tamiris Vaz[1]

Universidade Federal de Uberlândia

 

 

Resumo

O projeto Ouvidos em Trânsito explorou vivências imersivas em espaços da cidade pelo deslocamento, pela coletividade e pela escuta como ferramentas para pensar aprendizagens da docência junto aos sotaques, aos corpos e aos saberes heterogêneos que habitam a cidade. Após visitas de contato e mapeamento, foram realizadas conversas e entrevistas com moradores e comerciantes e propostas intervenções artísticas urbanas participativas. Essas intervenções se voltaram a subjetividades, memórias e temáticas sociais nascidas dos encontros com os fluxos urbanos, fazendo com que os conteúdos formativos emergissem das vivências com habitantes da cidade. Como parte do processo foram produzidos fanzines e diários afetivos, através dos quais discutiu-se o ver, o ouvir, o pesquisar e o produzir colaborativamente como saberes de uma docência aberta às contingências dos contextos percorridos. Da criança ao idoso, do feirante ao comerciante, do morador de rua ao morador de condomínio, os ouvidos de licenciandos transitaram por saberes múltiplos que fazem do aprender docente uma caminhada constante e permeada pelo inesperado.

Palavras-chave: Intervenção urbana; Aprendizagem docente; Deslocamento.        

 

 

Abstract

The project called “Ears in transit” explored immersive experiences in city spaces, trusting on displacements, collectivity and listening as tools to discuss teacher’s learning processes along with the heterogeneous accents, bodies and knowledges that inhabit the city. After visits destined to contact and to map, conversations and interviews were held with residents and commerce workers, along with propositions of participatory urban artistic interventions. Such interventions were related to subjectivities, memories and social themes that were raised from encounters with urban flows, causing formative contents to emerge from the experiences with the city’s residents. Part of the process was the production of fanzines and affective diaries through which we discussed collaborative forms of seeing, hearing, researching and producing, all of them constituting a knowledge field for a teaching that is open to the contingencies of the inhabited contexts. From the child to the elderly, from the stallholder to the trader, from the homeless to the condominium dweller, the ears of the teachers in formation transited through multiple forms of knowledge that make the teacher’s learning a journey that is constant and permeated by the unexpected.

Keywords: Urban intervention; Teacher’s learning; Displacement.

 

Resumen

El proyecto Ouvidos em Trânsito exploró experiencias inmersivas en espacios urbanos a través del desplazamiento, la colectividad y la escucha como herramientas para pensar aprendizajes de la docencia junto con los acentos, cuerpos y conocimientos heterogéneos que habitan la ciudad. Tras visitas de contacto y mapeo, se mantuvieron conversaciones y entrevistas con residentes y comerciantes, y también fueran desarrolladas intervenciones artísticas urbanas participativas. Estas intervenciones se centraron en subjetividades, memorias y temas sociales nacidos de encuentros con flujos urbanos, haciendo con que las experiencias con los habitantes de la ciudad se conviertan en contenidos formativos. Como parte del proceso, se produjeron fanzines y diarios afectivos, a través de los cuales se discutió el ver, la escucha, la investigación y la producción colaborativa como saberes de la docencia, abiertos a las contingencias de los contextos abordados. Del niño al anciano, del vendedor del mercado al comerciante, del indigente al condómino, los oídos de los estudiantes universitarios pasaron por múltiples conocimientos que hacen de la aprendizaje de la docencia un viaje constante permeado por lo inesperado.

Palabras clave: Intervención urbana; Aprendizaje docente; Desplazamiento.

 

 

Aprendizagens em Devir

Quando adentramos a sala de aula de uma escola, com seus currículos, disciplinas, horários, sabemos o papel que assumimos como professores e professoras. Não tarda a sermos bombardeados por demandas e prazos que vão nos exigindo respostas precisas e imediatas: cumprir conteúdos, disciplinar, avaliar, progredir. Acreditamos saber aonde precisamos chegar e tratamos de eliminar qualquer distração que atrase o alcance dos resultados. Encaixamo-nos em uma forma funcional e vamos nos adaptando a ela.

E fora da sala de aula, quando não somos nem professores, nem estudantes, o que sabemos sobre a partilha de saberes? E quando percorremos espaços/tempos onde não somos obrigados a cumprir prazos e tarefas que se convertem em diplomas e honorários, que força de existência nos permite ensinar, aprender, criar algo?

O que faria com que nos mantivéssemos juntos, ensinando e aprendendo algo, se não houvesse uma estrutura que garantisse a segurança dos papéis que ocupamos em um processo educativo? 

Gilles Deleuze (2007) já dizia que para que um pintor possa começar uma pintura ele precisa, antes, esvaziar a tela e não preenchê-la. Precisa varrer os clichês da pintura para inscrever a sua própria pintura sobre uma superfície. Que clichês da educação precisamos varrer para começar um processo singular de docência? Que tal começarmos com a ideia de que se aprende o que o professor ensina?

Essa afirmação, aparentemente óbvia, não se aplica necessariamente. Aprendemos o que movimentamos em nossos corpos a partir de experiências que podem, sim, ser disparadas pela fala ou outro ato de um professor, mas dependem de uma postura ativa de alguém que produz conexões outras com esse saber. É o que tenho chamado de "aprendizagem em devir" (VAZ, 2017), a partir do conceito de devir, explorado amplamente pelos filósofos Deleuze e Guattari. Aprender em devir é aprender em um movimento de vir a ser, que nunca se finaliza em um conhecimento fixo e determinista, mas, pelo contrário, movimenta possibilidades únicas, singulares, que não cessam de se modificar. 

Por que continuamos a frequentar os mesmos lugares quando já os conhecemos? Porque não se trata apenas do conteúdo, mas das experiências que esses lugares nos proporcionam: as risadas, as histórias, os encontros, que sempre trazem novas sensações a cada momento vivido. A ideia de devir nos lembra que nunca pisamos duas vezes no mesmo rio (já dizia Heráclito, filósofo grego), pois suas águas são sempre outras. Os lugares nunca são os mesmos. Nunca exercemos a mesma docência, ela está sempre a se modificar.

Tais questionamentos têm me feito pensar caminhos para uma educação que não é estrutura, mas processo afetivo, uma necessidade combinada com desejo, que torna inevitável uma mudança de trajeto, de perspectiva, gerando saberes outros.

            É na rua que convido estudantes de licenciatura do curso de Artes Visuais a experimentar possibilidades de viver esse processo. O interesse principal do projeto Ouvidos em Trânsito passa por ouvir e aprender, não através da repetição de conhecimentos cristalizados, mas no contato com caminhadas singulares de habitantes da cidade. A ideia foi promover conexões e fissuras na educação pelo perguntar, pelo ouvir, pelo pensar e pelo atuar artisticamente.

O projeto foi iniciado no primeiro semestre de 2022 em duas turmas de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal de Uberlândia, junto ao componente curricular Projetos Interdisciplinares III (Prointer III). Era nossa primeira experiência presencial após o período de aulas remotas, ocasionado pela pandemia de Covid-19. 

            Nesse retorno presencial, em 2022, havia 32 estudantes matriculados, 18 no turno integral e 14 no noturno. Por se tratar de um componente curricular de 120 horas, os encontros aconteciam duas vezes por semana, possibilitando que, em vários momentos, intercalássemos as aulas entre encontros na universidade para leituras e planejamentos e visitas aos espaços da cidade, para desenvolvimento dos projetos.

            Grande parte dos estudantes havia cursado todos os semestres anteriores remotamente, a maioria morando em outras cidades. Assim, esse foi um momento de conhecer a cidade, suas práticas culturais e seus fluxos. Foi também uma oportunidade para conhecermos melhor uns aos outros, visitando em grupos os espaços e criando vínculos afetivos através da imersão em experiências que a cidade oferece.

            Cada grupo de estudantes escolheu um tema para movimentar suas visitas.  A turma do período integral imergiu nos seguintes contextos:

            - Feiras livres: uma feira pequena e familiar realizada no bairro Saraiva e outra que ocupa várias quadras do centro da cidade. Ambas ocorrem semanalmente, tornando-se parte inerente da cultura visual da cidade. A intervenção realizada foi a montagem de uma mesa que oferecia café e alimentos comprados ali mesmo, em troca de histórias sobre a feira ou sobre a vida de quem a frequenta. 

            - Praça Ismene Mendes: a praça mais movimentada da cidade, contando com muitos vendedores ambulantes e moradores de rua, além de transeuntes que se deslocam para acessar o comércio central. A intervenção realizada foi a montagem de uma mesa que oferecia café e pão de queijo em troca de conversas sobre qualquer assunto que a pessoa se sentisse instigada a iniciar.

            - Estádio Juca Ribeiro: estrutura arquitetônica desabilitada nos anos 1990 e transformada em um supermercado. Do estádio foi preservada apenas parte das arquibancadas, debaixo das quais ainda funcionam lojas comerciais, muitas abertas desde a época em que o estádio estava ativo. A intervenção realizada foi um mural de lambe-lambe sobre as arquibancadas, contendo fotografias de pessoas entrevistadas na vizinhança junto com celebridades narradas por suas histórias de jogos e shows no estádio.

            A turma do período noturno escolheu imergir em dois contextos:

            - Quermesses: entre junho e julho acontecem festas juninas quase diariamente em diversos bairros da cidade, organizadas por comunidades católicas. Os grupos focaram em duas dessas quermesses, que ocorrem em praças da cidade, uma no bairro Santa Mônica e outra no centro. As intervenções realizadas pelos dois grupos foram um Correio Deselegante, que entregava mensagens às pessoas que frequentavam a festa, e a colagem de adesivos contendo mensagens relacionadas à "reciclagem" de sentimentos.

            - Conservatório Estadual de Música Cora Pavan Capparelli: o conservatório segue uma estrutura semelhante à de uma escola estadual, com estudantes das mais variadas faixas etárias. Seus corredores e pátio externo possuem um grande fluxo de estudantes que se deslocam entre uma aula e outra. A intervenção realizada foi composta por proposições distribuídas pelo pátio e corredores, as quais convidavam estudantes à interação durante os deslocamentos, na criação de músicas coletivas e no desenhar cores a partir dos sons que ouviam no espaço.

            Para além das pessoas entrevistadas inicialmente e das que participavam posteriormente das ações artísticas propostas, havia aquelas que apenas observavam, faziam breves comentários, fotografavam ou mesmo desviavam incomodadas com o ruído visual em seus itinerários. A recusa em participar fez parte de nossas avaliações dos processos. O "não" também diz muito sobre como um convite inusitado afeta a rotina de um local. Mas é pelo "sim" que laços são criados. Pelo menos para algumas pessoas, a cidade nunca mais será a mesma depois de todas as histórias ouvidas e vividas em cada um desses territórios.

 

Ampliando Repertórios

            Uma questão que considerei importante para o desenvolvimento do projeto Ouvidos em Trânsito era de que os conteúdos e temas abordados nas intervenções não fossem pensados previamente, mas que emergissem dos cotidianos visitados. Através de uma atitude de espreita (DELEUZE; PARNET, 1995) e entrega, eu desejava que perguntas fossem sendo elaboradas in loco pelos próprios estudantes, tanto as perguntas a serem feitas aos transeuntes e habitantes quanto questionamentos internos aos grupos, sobre possibilidades de ocupar artisticamente esses territórios. Que provocações esse lugar nos faz? Como podemos devolver essas problematizações em forma de arte na interação com as pessoas?

            Somente depois das primeiras duas visitas era iniciada a escrita de um projeto, o qual descrevia o contexto visitado e iniciava a elaboração de objetivos de ação. Feito isso, bibliografias e referenciais artísticos iam sendo pesquisados, a fim de construir um repertório contemporâneo acerca dos assuntos. Uma linha que acabou unindo todos os trabalhos foi a relação entre história (da cidade), práticas culturais (festa junina, eventos esportivos, alimentação em feiras, habitação das praças) e memórias afetivas. 

            Além dos estudos e planejamentos de cada grupo, semanalmente eu oferecia referenciais para serem estudados e discutidos durante as aulas, os quais apresento brevemente a seguir.

            1. Aprendizagem em devir:

            Em vários momentos do semestre estudamos referenciais que propõem a educação como prática inventiva, aberta às contingências. Para isso lemos Tim Ingold (2015), que fala do movimento, da caminhada, como recurso para levar o pensamento do aprendiz para fora, para o mundo, em vez de tentar inculcar algo em sua mente. O autor sugere uma educação em que, em vez de nos colocarmos em frente à classe para ensinar, convidemos estudantes a olhar (e se movimentar) para fora, a atuar com o inusitado, acessando o mundo afetivamente. É com essa perspectiva que nos abrimos para ativar a espreita por aprendizagens múltiplas, nascidas da imprevisibilidade do encontro com a arte nas ruas.

            Virgínia Kastrup contribui com uma noção de aprendizagem que não é voltada à coleta de informações e de suas representações, mas de um aprender que "se faz através da detecção de signos e forças circulantes, ou seja, de pontas do processo em curso" (KASTRUP, 2015, p. 33). Essas aprendizagens, para ela, envolvem um "perder tempo", "um perder-se no tempo", para permitir que a experiência aconteça com demoramento e cuidado mútuo. 

            A A/r/tografia, a partir de Dias e Irwin (2013), foi um caminho metodológico apresentado aos discentes para embasar a produção dos projetos, explorando a aprendizagem em devir por caminhos investigativos atravessados por diferentes papeis: de artista, de pesquisador e de professor. Nesse tipo de investigação, Irwin destaca a "emergência" como um elemento chave. O que emerge de nossos encontros e como damos abertura para que essas emergências nos levem a caminhos inesperados de aprendizagem?

            2. Pedagogia cultural: 

Para estudar possibilidades de aprendizagens que os contextos culturais nos oferecem, propus aos estudantes o estudo do conceito de pedagogia cultural. Magalhães (2013) argumenta que as instâncias culturais como a mídia, a família, a religião, assim como a escola, também têm uma pedagogia, através da qual são gerados conhecimentos, valores e habilidades. Tais pedagogias regulam condutas e modos de ser, constituindo relações de poder e subjetividades.

            Nessa linha de pensamento, Ellsworth (2012) fala da força pedagógica dos espaços anômalos de aprendizagem. O design, a arquitetura, as mídias são, para ela, potências do aprender justamente por se constituírem não como projetos educativos, mas como produção de ocos que podemos habitar.

            No campo específico das artes visuais, Herguera (2011) propõe o termo "Transpedagogia", definido como "projetos feitos por artistas e coletivos que misturam processos educacionais e a criação de arte, em trabalhos que oferecem uma experiência que claramente é diferente das academias de arte convencionais ou da educação de arte formal" (HERGUERA, 2011, p. 11).

            Esses referenciais ampliam os olhares dos licenciandos para os diversos locais onde a educação acontece, os convidando a pensar como podem atuar artisticamente em meio a esses discursos, de modo a constituir estratégias de aprender e ensinar para além das demarcações curriculares.

            3. Arte colaborativa: 

Para aproximar estudantes de trabalhos artísticos politicamente engajados, que se focam mais em encontros e processos que em resultados estéticos, levei para a aula o conceito de "heterotopia", a partir do qual Foucault (2013) lança provocações sobre as habitações dos espaços, discutindo lugares que fogem às normas de controle da sociedade, que estão dentro dos lugares, mas que funcionam em outros ritmos, gerando desvios.

Britto (2016) propõe que a arte, especialmente a colaborativa, pode ser geradora desses locais de desvio, produzindo heterotopias ao despertar novas percepções sobre os locais habitados, como linhas de fuga aos modos automatizados de deslocamento. Para isso, ela nos apresenta alguns coletivos artísticos que vêm produzindo arte colaborativa no tecido urbano, fazendo reverberar críticas/políticas na habitação da cidade. É a partir dessa perspectiva artística que os grupos planejam suas intervenções nos espaços visitados.

O verbo "ouvir", que dá título ao projeto Ouvidos em Trânsito, atravessa os três eixos aqui apresentados, pois, para aprendermos da cidade, foi necessário que abríssemos nossos ouvidos às vozes que por ela ecoam e, mais do que isso, pensar sobre os espaços que as mesmas têm ocupado na formação de professores.

Que vozes estão sendo ouvidas dentro das aulas de artes visuais? Que vozes compõem os repertórios artísticos e conceituais das e dos docentes dessa geração? Kilomba (2019) alerta sobre uma ordem eurocêntrica de conhecimento que torna científicos e credíveis modos de produzir conhecimento pautados em uma hierarquia branca, violenta, que determina quem pode falar, quem tem a fala universal, objetiva, neutra, racional, imparcial, factual, em detrimento de saberes marginalizados pautados como específicos, subjetivos, pessoais, emocionais, parciais e decorrentes de meras opiniões.

Acredito que a realização desse projeto pôde gerar um trabalho baseado no estímulo à criação e à pesquisa como estratégia para a formação de docentes engajados com o campo social e atentos às vozes e afetos que movimentam os encontros com os diferentes corpos que atravessam a produção de saber.

 

Visitas e percursos

            Uma ferramenta avaliativa processual que nos acompanhou durante todo o percurso foi o Diário Afetivo. Esse diário não tinha o intuito de servir como memória de experiências, mas como um "meio de cartografar nossos próprios processos, acionando problematizações" (VAZ; GARLET; MACHADO, 2021, p. 41). Ele é também um processo artístico, onde estudantes dão formas a dilemas, conceitos e sensações através de imagens e objetos, fugindo da cronologia para tornar suas experiências ferramentas provocadoras de novos pensamentos em quem as acessa.

            Munidas das ferramentas iniciais, as turmas dividiram-se em grupos e iniciaram suas imersões nos locais. Ao todo foram quatro visitas e mais uma de retorno para distribuição de fanzines. Cada grupo fez as quatro visitas em um mesmo local ou em locais similares entre si (dois endereços de feiras, dois endereços de quermesses, etc.). 

Visita 1: Observação e registro imagético

Esse momento foi de ambientação, fotografando, vivendo o espaço, entendendo seus fluxos, reconhecendo seus públicos. Tratou-se de um tempo para viver o que o espaço tinha para oferecer. As pessoas se reúnem sozinhas ou em grupos? O que aproxima e o que distancia essas pessoas? Há algum lugar que nos convida a permanecer? Há lugares desconfortáveis? Que discursos estão envolvidos na organização desse lugar? Hernández (2014) nos diz que pensar as pedagogias culturais que atuam em um espaço vai além de traçar relações entre cultura e educação, mas envolve atuar em um campo que "propõe a necessária colaboração entre agentes, métodos e propostas de ação social, com a finalidade de que sejam os próprios coletivos os que dirijam o caminho que queiram seguir" (p. 347). Isso implica planejar modos de pesquisa participativos, entrecruzando questões sociais, políticas e artísticas a fim de "desvelar, questionar e subverter os discursos que naturalizam o olhar ao redor de imagens e de relações" (HERNÁNDEZ, 2014, p. 348).

Após a visita, fomos conversando sobre sensações, ideias, possibilidades e limitações vividas nos locais, tomando como ponto de partida as fotografias produzidas. 

            Visita 2: Conversas/entrevistas e registro escrito ou em áudio.

            Quem passa ocasionalmente e quem habita cotidianamente esse local? Como podemos nos conectar com essas pessoas?

            O exercício da pergunta é explorado no intuito de multiplicar lugares de fala como fontes de acesso a saberes para além do acadêmico. E, com isso, produzir novas rotas de experimentação, aprendendo a viver artisticamente e coletivamente espaços culturais da cidade que habitamos. A pergunta não nasce para receber respostas definitivas sobre um lugar ou contexto, mas para gerar possíveis conexões com ideias que habitam e narram esse fragmento de cidade. São perguntas-máquina, ao passo "que se desenrolam em problemas e perseguem uma pergunta fundamental, que não se satisfaz[em] e perdura[m] através de todas as respostas" (SARDI, 2007, p. 227). Perguntas impulsionadoras de novos movimentos.

            A partir dessas conversas e entrevistas já não visitávamos apenas lugares, mas histórias, memórias afetivas e presenças vivas que fazem de cada território algo singular e rico culturalmente.

            Visitas 3 e 4: intervenção artística

            A terceira e a quarta visitas foram voltadas ao desenvolvimento de intervenções artísticas colaborativas. Era importante, nesse momento, que os licenciandos tomassem como disparadores dessas ações as problematizações e pensamentos que os alimentaram nas visitas anteriores, e que as intervenções fossem programadas a partir do que emerge da cidade para, assim, se integrarem e respeitarem a vida que já habita cada local.

            Irwin (2012) aborda o conceito de emergência a/r/tográfica para propor uma educação que se coloca aberta aos acontecimentos inesperados. Ela propõe que nos foquemos naquilo que está acontecendo fora do que tendemos a considerar o foco do saber, que olhemos para as margens, deixando ecoar as ideias que nascem tanto fora quanto dentro de nós (intervenção e intravenção).

            Havia uma grande expectativa sobre como o público receberia as intervenções, se aceitariam os convites para participar, se o trabalho ficaria esteticamente envolvente, se eles saberiam como improvisar diante dos acontecimentos inesperados. Procurei acalmá-los, sugerindo que fossem abertos às interações inesperadas e que se focassem mais em viver as experiências do que em aguardar respostas perfeitas.           

            Visita de retorno: 

Ao sentir a expectativa de um dos comerciantes entrevistados quanto ao uso de sua fala, o grupo do Estádio Juca Ribeiro entendeu que seria gentil retornar ao espaço com alguma reverberação dessa ação, demonstrando respeito ao tempo e atenção dedicado pelas pessoas entrevistadas. Assim, produziu um fanzine com imagens e breves relatos sobre as ações, e retornou ao local para entregar uma cópia do material a cada entrevistado. O grupo da praça também elaborou um fanzine e retornou a ela para distribuir ao público local. Diante disso, os demais estudantes concordaram que seria importante produzir um material que compilasse parte das experiências e pudesse ser compartilhado para outras pessoas. Foi quando decidimos produzir o fanzine "Ouvidos em Trânsito". Esse fanzine foi disponibilizado digitalmente para acesso livre durante alguns meses. 

 

 

Imagem 1 – Detalhes do fanzine Ouvidos em Trânsitoe6kdYqe3q-I3QqH8DteELij-LF5lgzOX8fDofx72c2Gt2XFgBawpclMVzTgVINKFe6L-H0rvPD-1spMF0oMS0n0W_cLi1zfmAe5UnKTGl5P-u9wu3vViRmM3e_3Ffgxg4aGDkhq1XPBFfcAqSIFoGcA.png

Fonte: a autora

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Imagem 2 – Detalhes do fanzine Ouvidos em Trânsito

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Fonte: a autora

 

 

            O diário afetivo, mencionado no início deste subcapítulo, foi uma produção individual que acompanhou todo o semestre. Diferente de um diário tradicional, voltado a relatos cronológicos, esse diário pôde ganhar diferentes formatos e modos de registros. Ele é um convite a pensar o próprio processo artisticamente, descolando-se do passado e explorando as sensorialidades de quem o experiencia. É um provocador, um material propositor, que nada pretende ensinar, mas que instiga pensamentos. 

A apresentação dos diários foi um momento de celebração. Distribuímos todos pela sala como em uma exposição artística. Alguns pendurados, outros sobre as mesas, colados na parede ou dispostos pelo espaço. 

 

 

 

 

 

Imagem 3 – Apresentação dos diários afetivos

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Fonte: a autora

 

 

Imagem 4 – Detalhe de diário afetivo

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Fonte: a autora

 

            Após ler, tocar, experimentar e sentir cada um dos diários, fomos conversando sobre os processos que os compuseram, as escolhas, os recortes, as relações entre memórias e provocações para serem levadas por quem lê/experimenta. A produção de diários afetivos nos afasta do relato fixado em acertos e erros, entendendo a aprendizagem da docência como uma caminhada que não se fecha em si mesma, mas que reverbera em criações que seguem também reverberando em outros encontros.

 

Tudo é de passagem

        Apostar em aprendizagens docentes voltadas à arte e às culturas do cotidiano é considerar a experiência como ferramenta primordial da produção de saber. Para isso, foi preciso desmistificar a ideia de que o conhecimento pode ser medido pelo acúmulo de referências legitimadas, para assim nos abrirmos aos saberes da cidade e de seus habitantes. Ao serem apresentados os trabalhos em aula, foi possível perceber essa movimentação acontecendo pelo respeito demonstrado em relação às histórias ouvidas e pelo modo como elas foram ganhando espaço nos planejamentos das intervenções. A preocupação com a obra deu lugar a um interesse pelo protagonismo das pessoas participantes. Ouvir e saber respeitar suas vozes pela fala, pela escrita, pelo desenho, ou mesmo pelas expressões faciais, era o desejo de todos os grupos. Inclusive, nem tudo que foi ouvido foi compartilhado com a turma toda. Havia um respeito pela confiança conquistada.

Muitas pessoas só precisam de uma oportunidade para serem ouvidas, percebidas, respeitadas em suas trajetórias de vida. Quando os licenciandos abriram-se para isso, foram presenteados com muito afeto e sabedoria. Não há dúvidas de que aprendemos muito mais do que ensinamos nesses encontros.

Além dos encontros com as pessoas de cada lugar, houve também uma grande mudança nas relações entre os próprios licenciandos. No início do semestre era comum vê-los entrando na sala de aula em silêncio, focados em seus celulares, com receio de interagir com colegas que conheciam apenas das aulas remotas. Aos poucos, as aulas foram ficando mais barulhentas. Várias experiências foram vividas coletivamente e tornando suas relações mais próximas: almoçar juntos um pastel de feira, descobrir um novo sabor de rúcula, rir de momentos inusitados durante as conversas, ajudar a superar a timidez em conversas com pessoas estranhas, conhecer histórias, pegar ônibus juntos, vestir-se a caráter para a festa junina. Enfim, viver a cidade e aprender a habitá-la coletivamente.

Antes de me focar em respostas precisas a uma pergunta, tenho buscado pensar, como orientadora de futuros professores e professoras, o que move cada pessoa a querer perguntar algo. Quando nasce em mim uma pergunta que me faz querer movimentar o corpo, o pensamento?

Os estudantes fazem perguntas que me surpreendem, escolhem locais que me desafiam a estudar, a me deslocar fisicamente e também a deslocar minha relação com a cidade e com a educação. Permitem-se conhecer a cidade a partir de outras perspectivas, investem em conversas com pessoas com quem talvez eu mesma não tivesse coragem de investir. Ensinam-me sobre relações, sobre empatia, sobre encontros.

Eu lhes ofereço um oco (ELLSWORTH, 2012) e eles me dizem "atire-se nessa fenda com a gente!"

Em uma das últimas aulas propus que escrevessem um texto coletivo com fragmentos de seus próprios relatos sobre o que aprenderam e o que ensinaram nesse processo. Compartilho aqui um excerto desse texto feito por múltiplas mãos:

 

Ensinar

É aprender a compreender o outro.

Trazer algo diferente sobre algo já conhecido.

É perceber que às vezes é preciso ter um ombro amigo e perder tempo para ganhar espaços a serem habitados.

É sair do controle para chegar a uma nova ideia, a um resultado interessante.

É produzir uma abertura para compartilhar memórias, olhar as pessoas de uma forma mais acolhedora, trocar ideias, momentos, ensinamentos, afetos sinceros, olhares profundos.

No mundo sempre haverá quem irá aprender com você sem você perceber.

Caminhos percorremos, pessoas conhecemos, histórias vamos vivendo e conhecimentos vamos colhendo. De tudo ficou um pouco, mas tudo é de passagem.

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

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[1] Doutora em Arte e Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás (GO), Mestra em Educação e Licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal de Santa Maria (RS). Pesquisadora, artista visual e professora do curso de Artes Visuais na Universidade Federal de Uberlândia (MG). Líder do Uivo: matilha de estudos em criação, arte e vida. E-mail: tamirisvaz@gmail.com.