A Barbie ‘cai na real’: ressonância cultural e performatividade no filme Barbie

Barbie ‘gets real’: cultural resonance and performativity in the movie Barbie

 

Odailso Sinvaldo Berte [1]

Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil

 

Resumo

O presente texto busca interrogar acerca da ressonância cultural e do poder performativo da boneca Barbie, tendo como objeto de estudo o filme Barbie (2023). Entre seus objetivos estão: tecer relações entre Barbie e as questões de gênero; especular sobre o poder performativo da Barbie como imagem; refletir sobre pedagogia cultural a partir dos investimentos afetivos em práticas de uso de artefatos culturais populares. No referencial teórico encontram-se autoras(es) da cultura visual, como Mitchell (2015) e Martins e Tourinho (2011); da filosofia, Butler (2017); dos estudos culturais, Giroux (2003; 1999); do patrimônio cultural, Gonçalves (2019), e da comunicação, Bentes (2023). A abordagem metodológica utilizada é a bricolagem (KINCHELOE, 2007) em seu caráter especulativo e interpretativo, possibilitando o uso de descrições do objeto, imagens e referências teóricas de diferentes áreas como as mencionadas, para produzir análises multidirecionais e interdisciplinares. A reflexão chega a instigantes considerações sobre o poder e o querer da imagem-Barbie, as projeções humanas sobre ela, e aventa o desenvolvimento de processos criativos e pedagógicos a partir das práticas de uso da Barbie e outros artefatos culturais populares que incitam investimentos afetivos.

Palavras-chave: Barbie; Ressonância cultural; Performatividade; Imagem; Pedagogia cultural.

 

Abstract

The present text seeks to question the cultural resonance and the performative power of the Barbie doll, having as object of study the movie Barbie (2023). Among its objectives are: to weave relationships between Barbie and gender issues; to speculate on the performative power of Barbie as an image; reflect on cultural pedagogy from the affective investments in practices of using popular cultural artifacts. In the theoretical framework, there are authors of visual culture, such as Mitchell (2015) and Martins and Tourinho (2011); from philosophy, Butler (2017); from cultural studies, Giroux (2003; 1999); cultural heritage, Gonçalves (2019), and communication, Bentes (2023). The methodological approach used is bricolage (KINCHELOE, 2007) in its speculative and interpretative character, enabling the use of object descriptions, images and theoretical references from different areas such as those mentioned, to produce multidirectional and interdisciplinary analyses. The reflection reaches instigating considerations about the power and desire of the Barbie-image, the human projections on it, and suggests the development of creative and pedagogical processes based on the practices of using Barbie and other popular cultural artifacts that incite affective investments.

Keywords: Barbie; Cultural resonance; Performativity; Image; Cultural pedagogy.


 

Este texto tem como objeto de estudo o filme Barbie (2023), dirigido pela estadunidense Greta Gerwig, e em decorrência deste a própria boneca Barbie, vistos aqui como artefatos culturais populares. A abordagem metodológica da bricolagem (KINCHELOE, 2007), com seu caráter interdisciplinar, possibilita-nos trabalhar a partir de elementos conceituais de diferentes campos, especialmente da cultura visual, dos estudos culturais e da filosofia, os quais são aproximáveis, não equivalentes. As imagens desempenham papel importante no texto, não apenas ilustrando-o, mas diversificando as possibilidades de reflexão. Triangulamos (1) nossas descrições e impressões do filme Barbie, (2) conceitos e reflexões provindos das áreas mencionadas e (3) imagens do filme e da boneca, articulando uma tessitura hermenêutica da qual emergem reflexões multidirecionais.

Situando elementos do referido filme, nosso texto destaca a história da Barbie, polêmicas em torno de seu padrão corporal, questões de gênero e ainda reflexões sobre a Barbie como imagem e pedagogia cultural. Destarte, ancorados na compreensão de imagem viva de Mitchell (2015; 2012), interpretamos a Barbie como uma imagem desejante, para, a partir disso, refletir sobre sua ressonância na cultura enquanto uma forma de pedagogia cultural.

           

Barbie, sua história

Do seu primeiro filme em desenho animado Barbie and the Rockers (1987) até a recente produção cinematográfica em live-action Barbie (2023), a ressonância cultural da boneca Barbie tem se transformado junto das mudanças características da virada do século. Afinal, Barbie é um produto moldado pela habilidade cultural humana, e como o próprio filme assume, os humanos inventam coisas como o patriarcado e a Barbie só para lidar com o próprio desconforto”[2]. Barbie é um vórtice de significações, um ícone pop e um artefato cultural disponível às nossas projeções.

Barbie (2023), que faz referência a filmes e séries como O Mágico de Oz (1939), O poderoso chefão (1972), Rocky (1976), Grease (1978), Orgulho e preconceito (1995), Matrix (1999), inicia com uma recriação da cena da aurora da humanidade, de 2001 - Uma odisseia no espaço (1968), de Stanley Kubrick. Na recriação da cena, meninas brincam de serviços domésticos com bonecas-bebês quando surge Barbie em tamanho monumental, como um icônico monolito, vestindo um maiô zebrado em preto e branco (referência à primeira boneca Barbie, lançada em 1959). Com isso, as meninas quebram os utensílios domésticos e as bonecas-bebês, lançando uma delas pelos ares, até o espaço, a qual se transforma no nome “Barbie”.

Diferentemente das bonecas-bebês, Barbie não surgiu reproduzindo a pedagogia do lar, ou seja, a didática do patriarcado para formar a rainha do lar, mas difundindo imagens da mulher liberada e atuante na sociedade. Desde seu surgimento, em 1959, Barbie foi modelo, candidata às eleições presidenciais, astronauta, bailarina, cantora, bombeira, médica, professora, veterinária, militar etc. Seu lançamento coincide com as lutas do movimento feminista que ganham força na década de 1960, período em que cresce a inserção das mulheres no mercado de trabalho, surge a pílula anticoncepcional, dissemina-se o pensamento de mulheres intelectuais como Simone de Beauvoir e Betty Friedman. Esse também é o período da Guerra Fria (1947-1991) que polarizou o mundo a partir dos conflitos político-ideológicos (capitalismo x comunismo) entre Estados Unidos e União Soviética.

Nesse contexto, a empresária estadunidense Ruth Handler (1916-2002), cofundadora da fabricante de brinquedos Mattel, Inc., inspirou-se em uma boneca suíça chamada Lilli (personagem de uma tirinha do jornal Bild-Zeitung) para criar a Barbie – diminutivo de Bárbara, filha de Handler. A personagem Lilli se assemelhava a uma pin up, esperta em seduzir e se valer dos homens, e enquanto boneca, media 30cm, tinha um guarda-roupa variado e era vendida em tabacarias, bares e lojas para adultos. Lilli era tanto um presente para homens em despedidas de solteiro (que a penduravam no espelho retrovisor ou deixavam sobre o painel do carro) quanto para moças, como um mimo sugestivo do namorado (GERBER, 2009). Com uma predecessora assim, é de se imaginar porque Barbie não é uma boneca comum e que seu surgimento produziria mudanças no imaginário cultural e na formação humana.

Barbie chegou ao Brasil em 1982, quando a empresa Brinquedos Estrela obteve a licença da Mattel para produzir a boneca no Brasil até 1996. Conforme destaca Beigbeder (2000, p. 5-6) Barbie “segue a moda, segue seu tempo”,não à toa elafoi “a primeira top model” que ainda antes das modelos vedetes “já mudava de roupa a cada estação”, como “nenhum outro brinquedo”. Entre as séries da boneca aqui produzidas destaca-se o diversificado guarda-roupa que mudou seu mundo cor-de-rosa. Seu aniversário de dez anos no Brasil, em 1992, foi comemorado com uma série de quatro bonecas vestidas exclusivamente pelo estilista brasileiro Conrado Segreto (1960-1992), a qual adensou o fato de que “a Barbie assume a lógica da moda como propulsora de seu funcionamento” (BERTÉ, 2023, p. 230).

De forma jocosa, a narradora do filme Barbie diz que o surgimento da Barbie possibilitou a resolução de todos os problemas do feminismo e que, pelo menos as Barbies, que vivem no mundo imaginário da Barbielândia,acreditam nessa ilusão. A Barbielândia é o mundo cor-de-rosa, perfeito, onde o sistema é uma espécie de matriarcado governado por uma Barbie negra. As Barbies, de diferentes etnias, biotipos corporais e identidades de gênero (incluindo uma Barbie transexual), exercem as mais diversas profissões como políticas, médicas, escritoras, jornalistas, físicas, construtoras, administradoras etc. Elas têm suas próprias casas, carros e cargos, enquanto os Kens não têm funções sociais, são supérfluos e existem a partir do olhar das Barbies.


 

Imagem 1– O Monte Rushmore da Barbielância e suas referências

Fonte: reprodução do Tumblerhttps://shezowhero.tumblr.com/post/723766924008423424

As referências dos rostos esculpidos no Monte Rushmore da Barbielância são: a primeira Barbie (1959), a primeira amiga negra da Barbie, Christie (1968), a primeira Barbie oriental (1981) e a primeira amiga latina da Barbie, Teresa (1987).

 

Para expressar o matriarcado da Barbielância, a direção de arte do filme Barbie criou uma versão do Monte Rushmore (imagem 1) na qual em vez dos rostos dos presidentes estadunidenses George Washington, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln, estão os rostos da Barbie original e de suas primeiras amigas, as bonecas Christie (negra), Kira (oriental) e Teresa (latina). O governo na Barbielândia não só e regido por mulheres como por representantes de diferentes culturas e etnias.

A Mattel começou a diversificar o mundo caucasiano e cor-de-rosa da Barbie em 1968, quando criou sua primeira amiga negra, a boneca Christie. Em 1980, criou a primeira Barbie negra, conhecida como Black Barbie, que tem olhos castanhos, cabelos curtos e texturizados ao estilo afro. Em 1981 surgiu a primeira Barbie oriental e em 1987 a primeira amiga latina da Barbie, Teresa. Criada em 1980 e relançada em 2012, a série Dolls of the World busca representar mulheres de diferentes partes do mundo.Já em 1993 foi criada a série Native American Barbie, representando mulheres de diferentes povos indígenas estadunidenses.

De 2015 em diante, a Mattel diversificou as bonecas Barbie adotando diferentes tons de pele, cores de cabelo e olhos, formatos de pés, tamanhos, biotipos corporais, cabelo e penteado, e muitos modelos de roupas e acessórios. As séries Role Models (2015), Fashionistas (2016), Inspiring Women (2019) e Looks (2021) celebram a diversidade étnica, corporal e a atuação social feminina. Em 2022 foi lançada uma Barbie transexual em homenagem à atriz estadunidense Laverne Cox,em 2023 uma Barbie com Síndrome de Down e em 2024 uma Barbie com deficiência visual em homenagem à paratriatleta e velocista espanhola Susana Rodriguez.

Conforme Beigbeder (2000, p. 5)Barbie se adapta, muda, transforma-se. [...] segue seu tempo. Ela o reflete”. As transformações da Barbie no que tange a diversidade étnica, corporal e identitária tanto expressam uma importante forma de representatividade de pessoas injustamente inferiorizadas ao longo da história, quanto a atenção e estratégia de sua fabricante em perceber tendências que captam diferentes consumidores(as). Junto do teor educativo está o interesse de mercado.

 

A Barbie estereotipada entra em crise existencial e toma um choque de realidade

Na trama do longa-metragem de Gerwig, um certo dia, a ‘Barbie estereotipada’ (loira, magra, alta), nome da personagem protagonista, interpretada pela atriz Margot Robbie, após pensar na morte, acorda com tudo dando errado em seus dias que eram sempre perfeitos. Seu modo de andar, sempre na ponta dos pés em função da anatomia do sapato de salto alto, desaba. A Barbie, literalmente, põe os pés no chão, desequilibra e cai. O fato de ter pensado na morte, junto aos demais acontecimentos que lhe tiram a perfeição, inclusive o surgimento de celulite, colocam Barbie perante um dilema, seguir a vida normal ou saber a verdade sobre o universo, o que lhe exige ir ao mundo real para resolver tal situação.

Logo ao chegar no mundo real, Barbie tem um violento choque de realidade, pois se vê objetificada pelos olhares masculinos e pelas piadas de duplo sentido. Ela é assediada e expressa sentir-se desconfortável consigo mesma por causa do modo violento com que a estão observando e tratando. Ela vê a vida, o movimento, a natureza, as relações humanas, as pessoas, e se emociona. Vê uma idosa e se surpreende com sua beleza, aprendendo e admirando as marcas do tempo. Já em uma conversa com meninas adolescentes, Barbie é acusada de atrasar o movimento feminista, ter um ideal de corpo impossível, destruir a autoestima de meninas, poluir o planeta, incentivar o consumismo, ser o capitalismo sexualizado e uma fascista. E ao chegar na sede da empresa Mattel, sua fabricante, Barbie pergunta pela mulher no comando, a diretora executiva, e descobre que os cargos são todos exercidos por homens, os quais buscam prendê-la em uma caixa. Ao contrário do que pensava, que seria abraçada e bem recebida por sua fama, ela se horroriza com o mundo real, pois é objetificada pelos homens e odiada pelas meninas.

Conforme os(as) participantes do episódio “Barbie” da série documental Brinquedos que Marcam Época (2017), ao vestirem o primeiro protótipo da boneca, os designers da Mattel perceberam que a espessura do tecido das roupas cobria-lhe o queixo e apagava suas formas. Desse modo, seu pescoço e pernas foram alongados e sua cintura foi afinada para que, vestida, conservasse a silhueta corporal. Por ter aparência realista, sempre foram e são comuns críticas e polêmicas de representação corporal em torno da boneca. 

 

Ser a Barbie... Num fenômeno de mimetismo e atração magnética, crianças configuram em si as características e a aparência de uma boneca fabricada com ingredientes nocivos. Elas aprendem que é preciso adquirir o corpo rígido, plástico, tóxico de Barbie [...].

Enquanto mulheres pagam e arriscam suas vidas para se tornarem bonecas, Barbie esforça-se para ser viva, “humanamente possível”, um modelo insólito de mulher. (ROVERI, 2012, p. 111-112).

 

A ditadura da representação corporal atribuída à boneca é uma questão polêmica debatida em ambientes educacionais, acadêmicos, terapêuticos e midiáticos, com casos de pessoas, mulheres e homens, que padecem crises de anorexia ou mesmo se submetem a cirurgias estéticas e aplicações de próteses para tornarem-se Barbies e Kens humanos. Sobre as proporções corporais da Barbie, comenta a ex-diretora executiva da Mattel, a estadunidense Jill Barad: “Mas ela foi pensada como manequim. [...] Ela não é humana, é uma boneca! Não é para ter proporções humanas”[3]. Que poder tem uma boneca – objeto inanimado – de impor tais condições às pessoas? Tal poder reside na boneca ou nas projeções humanas sobre ela?

Noutro momento do filme a narradora enfatiza que ninguém se parece com a Barbie, apenas ela mesma. Nesse sentido, podemos inferir que, enquanto um artefato cultural, criado por humanos, Barbie desfila por uma passarela de mão dupla no que tange as ditaduras de padrões corporais. Ela é fruto desses padrões de corpo e beleza que conformam os entendimentos de seus fabricantes e também da audiência sociocultural que a consome. E, ao mesmo tempo, a boneca acaba por influenciar e potencializar esses arquétipos, sendo mais uma imagem que os propaga.

 

Ken, patriarcado e performatividade de gênero

Por sua vez, o personagem Ken, interpretado pelo ator Ryan Gosling, que insistiu em acompanhar a Barbie na viagem ao mundo real, está encantado com tudo o que vê. Se na Barbielândia ele brigava com os demais Kens pela atenção e carinho da Barbie, no mundo real, nem sequer a defendeu na situação de assédio, pois estava extasiado com sua grande descoberta: “os homens mandam no mundo”. Fascinado por cavalos e carros e absorto com as gestualidades masculinas de poder e comando, atitudes de virilidade e força bruta, ele delira com imagens de presidentes em telões e notas de dólar, de ídolos como Sylvester Stallone e John Travolta. E ao vê-las, vai repetindo-as e incorporando-as.Após compreender algo sobre o que é o patriarcado, através de imagens, livros e exemplos incorporados, ele retorna e implanta esse sistema, transformando a Barbielândia no Reino do Ken.

Essas cenas do Ken descobrindo o patriarcado nos remetem ao conceito de performatividade de gênero desenvolvido pela filósofa estadunidense Judith Butler, e para tal fim ela usa como exemplo a drag queen (homem que se veste de mulher para imitar e exagerar referentes femininos para fins deshows de entretenimento). “A performance da drag brinca com a distinção entre a anatomia do performista e o gênero que está sendo performado” (BUTLER, 2017, p. 237). Com maquiagem, roupas, adereços e maneirismos hiperbólicos e paródicos, a drag queen instaura uma espécie de ilusionismo que recria em seu corpo masculino o gênero feminino, por vezes confundindo o olhar do(a) espectador(a) e convencendo-o(a) de que se trata mesmo de uma mulher. E também existe o drag king, uma mulher que performa o gênero masculino.

Para Butler, a performance drag expõe a ficção reguladora da heterossexualidade, ou seja, “ao imitar o gênero, a drag revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero – assim como sua contingência” (BUTLER, 2017, p. 237). Para a filósofa, a heterossexualidade compulsória ditada pelo patriarcado, consiste em um conjunto de normas reguladoras que, impostas sobre os corpos, implicam em uma repetição estilizada de atos – gestos, movimentos e estilos corporais que constituem a ilusão de um eu permanente marcado pelo gênero. As normas reguladoras vigoram através da subserviência dos corpos em repetir a performance (comportamentos, roupas, papéis sociais de homem ou de mulher) que elas ditam. Nesse sentido, a heterossexualidade compulsória não passa de uma performance que somos obrigados(as) a repetir, iludidos(as) de que se trata de uma lei natural.

No filme Barbie, ao deparar-se com a performance da heterossexualidade compulsória o Ken vai incorporando, repetindo e aprendendo os gestos de virilidade e poder que vê nas imagens e nos corpos masculinos. Refletindo a partir do conceito de performatividade de gênero de Butler, a pesquisadora espanhola de educação artística María Acaso discute sobre como as imagens estão transformando a realidade, “performando nosso corpo, nossas ideias, nossos hábitos” (ACASO, 2012, p. 96, tradução nossa). Isso nos provoca a pensar em como as imagens de Bill Clinton, Sylvester Stallone e John Travolta performam o corpo, as ideias e hábitos do Ken – uma metáfora bem articulada pela diretora e pelo ator e que expõe como os homens aprendem a ser homens, imitando e repetindo a performance da heterossexualidade compulsória.

Esse poder performativo da imagem também pode ser relacionado com a Barbie enquanto uma imagem/representação do feminino. Tanto nos modos como ela pode influenciar meninas a não seguir a cartilha da pedagogia do lar, como nas formas de ditar um padrão corporal inatingível, Barbie pode performar corpos, ideias e comportamentos.


 

Barbie, uma imagem viva?! O ela quer?

Na trama do filme Barbie, ao ver o mundo e a realidade como eles são, a Barbie estereotipada não se sente mais ‘a Barbie’ em seu conjunto de ideais de beleza e empoderamento. Ela percebe que diante da existência em sua temporalidade e finitude, e do patriarcado com a opressão e objetificação do feminino, tudo o que compunha seu mundo perfeito, falha.Rompe-se a imagem idealizada e na crise emerge uma imagem real, viva.

O pesquisador estadunidense dos estudos visuais Mitchell (2015) termina seu texto sobre ‘o que desejam as imagens’ propondo que esta pergunta pode ser direcionada a qualquer imagem e convida-nos a este exercício. Aceitando esse convite e seguindo a perspectiva deste autor, o que queremos aqui, mais que um ventriloquismo pitoresco, é um experimento de pensamento. Considerando a Barbie enquanto uma imagem-artefato cultural, parafraseamos a pergunta do autor: o que a imagem-Barbie quer?

Na tentativa de compreender as imagens como seres vivos e desejantes, e considerar a imagem para além de um recipiente de significados, Mitchell (2015) pergunta: o que querem as imagens? Sua inusitada pergunta solicita uma subjetivação das imagens, uma personificação desses artefatos inanimados, semelhante a práticas infantis de tratar objetos inanimados, como as bonecas, como se fossem seres vivos. O autor reconhece que sua pergunta ecoa os estudos acerca do desejo do Outro marginalizado, das minorias, centrais para os estudos de gênero, sexualidade e etnia.

Em sintonia com Mitchell (2015), deslocamos a pergunta ‘o que a imagem-Barbie faz?’ (poder) para ‘o que a imagem-Barbie quer?’ (desejo).Nesse deslocamento analógico, se o poder da imagem-Barbie é como o poder dos subalternos, que não podem falar, talvez possamos deduzir que a razão pela qual o desejo da imagem existe seja a de compensar essa sua impotência.

Fazendo uma espécie de analogia entre as imagens e as mulheres, Mitchell (2015) faz referência a Fried (1990) e recorda a convenção primordial da pintura destacando como esta forma de arte deve atrair o espectador, prender seu olhar e atenção, encantá-lo e paralisá-lo. O desejo da pintura é fixar o observador em seu lugar, tornando-o uma imagem para o olhar dela, a exemplo da górgona grega Medusa. Esse efeito Medusa é possível de ser compreendido como uma demonstração de que “o poder das imagens e o poder das mulheres são modelados um a semelhança do outro” (MITCHELL, 2015, p. 174), e isso se refere a um modelo abjeto e castrador de mulheres e imagens, de quem o poder se manifesta como falta e não possessão. É nesse sentido que perguntar à imagem o que ela deseja, é perguntar o que lhe falta.

Agregando elementos a essa discussão, citamos a jornalista e crítica cultural estadunidense M. G. Lord (2004) que ao comentar as transformações na aparência facial da boneca Barbie ao longo dos anos, faz uma instigante relação entre a Barbie e a pintura.

 

Do ponto de vista da história da arte – e a Barbie tem sido protegida significativamente por direitos autorais como uma obra de arte – sua mudança mais radical ocorreu em 1971 e foi um reflexo direto da revolução sexual. Até então, os olhos da Barbie eram voltados para baixo ou para o lado – o olhar desviado e submisso que caracterizava os nus femininos, particularmente os de natureza pornográfica, desde o Renascimento até o século XIX. O que foi tão chocante na Olympia de Manet (1863) foi que a modelo estava nua e olhando descaradamente para o espectador. Em 1971, no entanto, quando a América começou a aceitar a ideia de que uma mulher poderia ser desinibida sexualmente, Barbie, em sua encarnação de "Malibu", teve permissão para ter aquele corpo e olhar para frente. (LORD, 2004, p. 12, tradução nossa).


 

Imagem 2 – Olympia, Vênus de Urbino e Barbie Malibu

Fontes: GOOGLE Arts & Culture; MATTEL Creations. No alto, detalhes das pinturas Olympia, de Édouard Manet, 1863 (Coleção do Musée d’Orsay, Paris), e Vênus de Urbino, de Tiziano Vecillio,1538, (Coleção Família Rovere). Abaixo, a boneca Barbie Malibu (2021), originalmente lançada em 1971.

 

Na imagem 2, Olympia (1863) nua, pousa sobre a cama e encara o observador. Esta postura feminina na arte também pode ser observada, séculos antes, na pintura Vênus de Urbino (1538).  De maneira semelhante, a Barbie encara o observador e exibe sua pele bronzeada na areia da praia de Malibu, com sua cabeleira loura iluminada pelo sol do verão californiano, na imagem da Mattel para o lançamento desta série de bonecas. As musas da arte e a musa de plástico, cada uma em seu tempo e a seu modo, inauguram uma forma de efeito Medusa, encarando o observador, com corpo e olhar desnudos, e expressando de modo desejante o que lhes falta, enquanto imagens/representações(d)e mulheres silenciadas, mutiladas e restritas a mera ilustração/decoração.

Seguindo a relação entre os papéis assujeitados da mulher e da imagem, proposta por Mitchell, o discurso da personagem Glória, interpretada pela atriz estadunidense America Ferreria, no filme Barbie, agrega elementos a esta reflexão. Após ver a Barbielândia tomada pelo patriarcado, a Barbie estereotipada se encontra em profunda crise existencial, e sente que não é boa o suficiente em nada por nunca ter sido presidente, médica, escritora etc., mas apenas bonita. Glória então diz:

 

É literalmente impossível ser mulher! [...] Tem que ser magra, mas não demais [...]. Tem que ter dinheiro, mas não pode pedir dinheiro, porque aí é grosseiro. Tem que ser chefe, mas não pode ser cruel. [...] Você tem que adorar ser mãe, mas não pode falar dos seus filhos o tempo todo. [...] Você é responsabilizada pelo mau comportamento dos homens, o que é absurdo, mas se disser isso é acusada de reclamar demais. Você tem que ser bonita para os homens, mas nunca tanto que provoque eles e isso ameace outras mulheres, porque você tem que ser parte da sororidade[...]. Você nunca pode envelhecer [...]. É difícil demais! É contraditório demais! [...] Eu estou tão cansada de ver a mim mesma e de ver todas as outras mulheres fazendo de tudo para que as pessoas gostem da gente. E se tudo isso for igualzinho para as bonecas que são apenas uma representação das mulheres, então eu nem sei mais...[4]

 

Esse é um dos trechos do filme que silenciou as platéias de diferentes sessões a que assistimos, pela veemência e crueza com que expõe o jugo imposto historicamente sobre as mulheres. Inclusive, dizer isso a todas as Barbies é a estratégia que as personagens adotam para libertá-las da submissão imposta pelo patriarcado na Barbielândia/Reino do Ken. Ao finalizar dizendo da imposição desse jugo à boneca que é apenas uma representação/imagem da mulher, esse trecho do texto da personagem adensa, em nosso modo de ver, o paralelo entre a imagem e a mulher proposto por Mitchell. Nesse sentido, consentir com a ficção constitutiva das imagens como seres animados, simulacros de pessoas, como propõe o autor, nos dá a ver como as imagens – e nesse caso a Barbie como imagem – podem devolver-nos de modo especular as faltas cometidas às mulheres.

Ao refletir sobre o futuro da imagem, Mitchell (2012) discute também seu passado e presente. Com exemplos como os bisões das cavernas de Lascaux, Adão feito de barro e o bezerro de ouro da bíblia, os dinossauros do filme Jurassic Park (1993), o mitológico Frankenstein, os robôs e cyborgs, e o clone humano, o autor constrói uma alegórica odisseia da imagem, propondo a ideia da imagem viva. Do cinema platônico, pedagógico e ritualístico, conformado pelas imagens dos bisões nas paredes das cavernas de Lascaux (pois estas instruíam os humanos para a caça dos bisões), a reflexão de Mitchell chega à sala de controle do Jurassic Park invadida por um dinossauro velociraptor. Acidentalmente, o dinossauro liga um projetor que exibe o filme de orientação do parque projetando sobre seu corpo a sequência de DNA que possibilitou sua clonagem a partir dos restos fósseis dos seus antepassados extintos. Enquanto na caverna de Lascaux as imagens pintadas dos bisões instruem os humanos para a caça, na sala de controle do Jurassic Park a imagem digital do dinossauro é quem caça os humanos.

Essas imagens propostas por Mitchell nos fazem refletir sobre as descobertas de Barbie em uma sala branca, já quase no final da trama. Pouco antes disso, quando se discute um suposto final feliz e clichê para a Barbie com o Ken, isso é questionado e então perguntam a ela: “O que você quer?”E a Barbie estereotipada responde que não sabe o que quer. Recordamos Mitchell (2015, p. 187) ao dizer que “o que as imagens querem” talvez seja apenas “serem perguntadas sobre o que querem”, sendo que “a reposta pode muito bem ser ‘nada’”, e para descobrir e entender o que elas querem, talvez precisem ser ajudadas, como nós humanos. E no momento em que Barbie diz não saber o que quer, adentra sua criadora Ruth Handler, interpretada pela atriz Rhea Perlman, que a convida para caminhar.

Em uma sala ampla, vazia, branca, com tênues alternâncias de cores em luz, Barbie expressa que quer viver a experiência de dar sentido às coisas, não ser o produto, quer exercer a capacidade de imaginar, não ser a ideia. Singelamente, ela pede permissão a sua criadora para ser humana. Handler pede que Barbie lhe dê as mãos, fazendo-nos recordar a pintura A criação de Adão, de Michelangelo, porém com outra plasticidade que imprime a ação criadora feminina. Com esse gesto, Handler expressa que não lhe cabe permitir que Barbie se torne humana, pois essa é uma decisão que ela própria deve tomar. Mas pelo menos, como criadora, convém alertar sobre a imperfeição e a finitude que implica ser humana. E a boneca compreende que para ser humana não precisa pedir ou querer, mas descobrir. Nesse momento, a tomada fecha em close-up no olho de Barbie que vê imagens de mulheres reais. Ao abrir os olhos, ela não vê mais sua criadora, desaparece da sala branca e na cena seguinte está na cidade de Los Angeles, usando uma roupa comum, com calça jeans e sandalha rasteira, indo ao consultório de sua ginecologista.

Em sintonia com Mitchell (2015) compreendemos que a consideração das imagens como sujeitos subalternos marcados pelos estigmas da diferença possibilita-nos ver seu funcionamento como bodes expiatórios no campo social da visualidade humana. O que as imagens querem não é necessariamente o desejo de seu criador, nem a mensagem que elas comunicam ou o efeito que produzem. Como nós humanas(os), as imagens – a exemplo das Barbies do filme, hipnotizadas pela ideologia do patriarcado – podem não saber o que querem, e devem ser ajudadas através do diálogo com outras(os), outras imagens, contextos, textos e sujeitos. 

O humano “sonho de produzir não apenas uma imagem ‘viva’ de um ser vivo, mas uma imagem que é ao mesmo tempo uma cópia, uma reprodução, e um ser vivo” (MITCHELL, 2012, p. 25), embora o autor aponte para a clonagem, nos faz refletir sobre a boneca Barbie tornando-se humana na metaimagem fílmica em que a interpretação da atriz Margot Robbie, após ser perguntada sobre o que deseja, transpõe a boneca da Barbielância e da sala branca para o mundo real.Quase como a libertação do Mito da Caverna de Platão, ao sair da Barbielância, botar os pés no chão, perceber-se um corpo vivo, findável e consciente dos desastres do patriarcado, Barbie entra em processode descobrir o que é ser humana(o), dando margem para o entendimento de que não nascemos mulher ou homem, mas nos tornamos, conforme reflete a filósofa francesa Simone de Beauvoir (2008).

Da aparição mítica e monumental como o monolito de 2001 – Uma odisseia no espaço que instaura uma nova era (no início do filme), à sala branca em que manifesta o desejo de ser humana, desconstruindo a imagem da criação, inferimos que Barbie reposiciona sua ressonância cultural e acrescenta elementos à odisseia da imagem, instigando as relações que aqui propomos com a reflexão de Mitchell. Com os exemplos da caverna de Lascaux e da sala de controle do Jurassic Park, Mitchell discute como a imagem contemporânea e futurista, criada por nós, tornou-se viva, voraz e ameaçadora. O futuro da imagem aponta para a imagem de uma imagem por vir, no entanto, esse futuro é sempre agora, na mais recente e mais nova forma de imagem, sejam as imagens de Lascaux, as do Jurassic Park e, acrescentamos aqui, a Barbie.

 

A ressonância e a pedagogia cultural da Barbie

Em sua crítica à exposição Salon de Barbie: A Multi-Media Exhibition, 1994, no The Kitchen, em Nova York, Parks comenta que, ao sair da mesa de debate Cafe Barbie, que era parte da mostra, ouviu uma mulher expressar seu aborrecimento com as críticas feitas à Barbie, pois, quando criança, suas únicas opções eram as bonecas Barbie, Chatty Cathy (boneca menina falante) e Betsy Wetsy (boneca bebê), e que Barbie superava essas outras “por 1 milha de distância”.

 

Barbie é tanto um ícone cultural com vida própria (ou melhor, vidas) quanto um brinquedo protegido por direitos autorais de uma corporação interessada em manter o controle sobre seu produto. [...] Quando futuros estudiosos considerarem a ressonância da Barbie em nossa cultura, eles errarão feio se não começarem por aquela avaliação [Barbie supera as outras bonecas por 1 milha de distância]. (PARKS, 1994, p. 40, grifo nosso, tradução nossa).

 

A ressonância da Barbie na cultura perpassa questões de gênero em como as mulheres têm sido educadas através dos brinquedos, de padrões corporais, moda e consumo. O fato de estabelecimentos, vitrines e pessoas terem se vestido de rosa em muitas cidades do mundo, por ocasião do lançamento do filme Barbie, é um sintoma dessa ressonância. Para os(as) adultos(as) colecionadores(as) da boneca ela é um objeto estético e para as crianças um brinquedo, muito embora, para ambos os grupos, ela seja um artefato cultural que pode moldar a capacidade de construção de significados, os comportamentos e práticas sociais (HALL, 1997).

Vista como artefato estético a compor coleções e exposições, Barbie pode ser relacionada a bens patrimoniais. Ao argumentar sobre patrimônio e cultura subjetiva, Gonçalves (2019) inspira a refletir sobre como diferentes objetos e espaços, sejam obras de arte, bens patrimoniais ou outros artefatos culturais causam ressonância em nós.

 

Na medida em que os patrimônios encontram “ressonância” no corpo e na alma dos homens e das mulheres que pretendem representar, opera-se um trabalho subjetivo de reconstrução, no qual a marca da dimensão individual ou da personalidade é incontornável. (GONÇALVES, 2019, p. 36-37).

 

            A ressonância de um objeto em nós passa pelos modos como nos vemos representados(as) nele. O objeto ressoa interiormente através de uma reconstrução subjetiva que dele fazemos, de modo que nos toca, afetivamente, desde as entranhas, produzindo nossa identificação com ele. Nesse sentido, a ressonância cultural da Barbie, se a tomamos como peça exposta e contemplada em museus e shoppings centers, e isso é um fenômeno cultural e econômico que ocorre em diferentes partes do mundo[5], pode ser relacionada a diferentes objetos considerados patrimônios culturais. Talvez a Barbie esteja próxima do que Gonçalves (2007) entende como “formas ‘não auráticas’ de autenticidade, articuladas pelo princípio mesmo da reprodutibilidade, e nas quais os objetos são reproduzidos e transitórios” (p. 56). Ainda que sem a aura conferida pelo sistema de arte e cultura, Barbie pode ser compreendida como um ícone cultural.

            Tanto o filme como a boneca Barbie podem ser vistos como formas de pedagogia cultural. Refletindo sobre como a “cultura da mídia” tem se especializado em transmitir mensagens pedagógicas, Giroux (2003, p. 128) enfatiza como esta “tornou-se uma força educacional substancial [...] na regulação de significados, de valores e de gostos” que legitimam “posições de sujeito” referentes à reivindicação identitária em relação a gênero e sexualidade, etnia, cidadania, nacionalidade, protagonismo social, padrões de beleza e significados da infância. A cultura empresarial, aliada à cultura da mídia, têm transformado sonhos em capital, reescrevendo a cultura infantil, adentrando e/ou tomando o lugar da educação formal com a produção de materiais curriculares e brinquedos.

            Mesmo com a peculiaridade já exposta anteriormente, de não reiterar a pedagogia do lar, a Barbie integra o sistema de capital e consumo das culturas empresarial e midiática enquanto “um brinquedo protegido por direitos autorais de uma corporação interessada em manter o controle sobre seu produto” (PARKS, 1994, p. 40, tradução nossa), como já citado. Nesse conjunto de produtos, brinquedos, animações, filmes etc., Barbie pode ser compreendida como parte de uma pedagogia cultural que educa fora da escola, no sentido de que os lugares pedagógicos se constituem onde se organizam e desdobram as relações de poder (STEINBERG; KINCHELOE, 2001).

            Próximo de como Giroux compreende e analisa o filme hollywoodiano Dirty Dancing (1987), a boneca e o filme Barbie podem ser vistos como “uma forma popular” e serem tratados como textos e artefatos exemplares para “demonstrar como a formação de identidades ocorre através de ligações e investimentos que são tanto uma questão de afeto e prazer quanto de ideologia e racionalidade” (GIROUX, 1999, p. 214).

Os investimentos afetivos que ligam as pessoas (crianças, jovens, adultos) às formas culturais populares, a exemplo de Barbie (o filme e a boneca), têm uma capacidade cultural real e devem ser vistos em relação aos embates socioculturais hegemônicos e contra-hegemônicos que regulamentam a produção e vivência dos desejos e afetos. Nesse sentido, para analisarmos “como o corpo se torna não somente o objeto do [seu] prazer [patriarcal]”, mas “o sujeito do prazer”, tanto a “ideia” como a “experiência do prazer devem ser constituídas politicamente”, de modo que, “o prazer torna-se o consentimento da vida no corpo” e um dado importante para a “transformação revolucionária da sociedade como um todo” (GIROUX, 1999, p. 228).

Em correlação com isso estão os interesses do campo de estudos da cultura visual, dentro dos quais mais que as imagens em si, importa “o uso social, afetivo e político-pedagógico das imagens”, ou seja, “as práticas culturais que emergem do uso dessas imagens” (TOURINHO; MARTINS, 2011, p. 53). Nesse sentido, a ênfase nos afetos investidos pelos sujeitos no uso da Barbie, ou seja, suas relações de prazer – lúdicas e estéticas – com este artefato cultural, quer propor a consideração dessas experiências tendo em vista processos criativos e pedagógicos nos quais se possa compartilhar, explorar e debater tais experiências. Trata-se de vivências onde a centralidade está no entender-se como corpo-sujeito do prazer, atentando às razões pelas quais se investe afeto na Barbie ou outras imagens e artefatos, perguntando-se sobre as interferências disso na formação e construção de si. E com isso, refletir sobre o que se pode fazer com esse artefato em termos de reinvenção e criação de histórias originais (CERTEAU, 2012) em diversos campos como a arte, a moda, a educação, a psicologia, a filosofia etc.

 

Considerando um rosa-choque de realidade

Afinal, a Barbie é fascista ou feminista? O que pode a Barbie? O que quer a Barbie? E ao refletir sobre tais questões, podemos perceber que a Barbie é uma imagem, um artefato cultural que “pode adquirir tantas formas quantas são as variedades de vida com que se depara” (MITCHELL, 2012, p. 27). A Barbie não é boa e nem má por conta própria, mas pode ser o que as relações que estabelecemos com ela possibilitem que ela seja.

 

Parece que certos raciocínios esquecem tudo que nós projetamos em nossos brinquedos e artefatos. Quem já brincou de casinha e boneca sabe quanto a imaginação pode ir longe dos estereótipos! [...] uma boneca não vai mudar o mundo, mas as meninas que brincam de boneca podem mudar o estado das coisas e fabular mundos. (BENTES, 2023).

 

            Em sua crítica do filme Barbie, a pesquisadora brasileira da comunicação Ivana Bentes faz uma discussão instigante sobre os diversos significados da boneca no filme e no contexto sociocultural. Importa questionar o poder performativo do filme e da boneca, entre outros artefatos culturais, para atentarmos acerca de suas influências, dos modos como podem nos fazer repetir comportamentos, discursos e ações – performances – que moldam nossa corporeidade muitas vezes alijando-nos de nós mesmos e perpetuando injustiças. Ao mesmo tempo, importa-nos perceber sua ressonância e seus desdobramentos enquanto pedagogias culturais que podem impulsionar processos criativos e pedagógicos baseados na consideração dos investimentos afetivos que fazemos no uso de tais artefatos.

Como a imagem-Barbie não é boa e nem má em si mesma, também sua performatividade e ressonância não são, pois ambas podem impelir ou impedir a autonomia dos sujeitos. Isso ocorre a depender de como se está atento ou se é estimulado a atentar para a não disjunção entre o ato de uso do artefato, os significados atribuídos a este, e como isso conforma a subjetividade e nos coloca em relação com o mundo.

Por si só, a Barbie não pode nada, mas aquilo que nós humanos projetamos nela e os modos como a usamos, sejamos seus fabricantes ou consumidores, é o que dá vida e ressonância a ela em nossas práticas culturais. Meninas, meninos e menines que brincam de Barbie, sejam crianças ou colecionadores(as) adultos(as), podemcontrastar a utopia cor-de-rosa da boneca com as duras realidades de nossa sociedade, a independência feminina dela com a pedagogia do lar. E ainda, o matriarcado e a diversidade das Barbies com o patriarcado e as atrocidades latentes da extrema direita no Brasil e no mundo, para assim repensar as relações humanas e imaginar, projetar e construir outras realidades e mundos possíveis.

           

Referências

ACASO, María. Pedagogías invisibles: el espacio del aula como discurso. Madri, Espanha: La Catarata, 2012.

 

BARBIE; Direção: Greta Gerwig. Intérpretes: Margot Robbie, Ryan Gosling. Roteiro: Greta Gerwig, Noah Baumbach. Produção: Mattel Films. Estados Unidos: Warner Bros, 2023.

 

BERTÉ, Odailso. A série Barbie “Criações Exclusivas Conrado Segreto”: o ethos cultural da moda e seus atravessamentos em processos criativos. dObra[s] – revista da Associação Brasileira de Estudos de Pesquisas em Moda[S. l.], n. 38, p. 224–247, 2023. DOI: 10.26563/dobras.i38.1586. Disponível em: https://dobras.emnuvens.com.br/dobras/article/view/1586 . Acesso em: 24 maio. 2024.

 

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

 

BEIGBEDER, Frédéric. Barbie. São Paulo: Cosac & Naify, 2000.

 

BENTES, Ivana. O que pode uma boneca? Cult, 26 jul. 2023. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/o-que-pode-uma-boneca. Acesso em: 1 ago. 2023.

 

Brinquedos que marcam época (The Toys That Made Us). [Série documental]. Direção: Tom Stern. Desenvolvimento: Brian Volk-Weiss. Estados Unidos: Netflix, 2017. (179 min), son., color.

 

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 2017.

 

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

 

FRIED, Michael. Absorption and Theatricality. Chicago: Chicago University Press, 1990.

 

GIROUX, Henry A. Atos impuros: a prática política dos estudos culturais. Porto Alegre, RS: Artmed, 2003.

 

______. A cultura popular como uma pedagogia de prazer e significado: descolonizando o corpo. In: GIROUX, Henry A. Cruzando as fronteiras do discurso educacional: novas políticas em educação. Porto Alegre, RS: Artmed, 1999. p. 211-240.

 

GERBER, Robin. Barbie & Ruth: a história da mulher que criou a boneca mais famosa do mundo e fundou a maior empresa de brinquedos do século XX. São Paulo: Ediouro, 2009.

 

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Patrimônio, espaço público e cultura subjetiva. In: TAMASO, Izabela; GONÇALVES, Renata de Sá; VASSALLO, Simone. A antropologia na esfera pública: patrimônios culturais e museus. Brasília: Associação Brasileira de Antropologia, 2019. p. 29-48.

 

______. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Rio de Janeiro: Iphan, 2007.

 

HALL, Stuart. The centrality of culture: notes on the cultural revolutions o four time. In: THOMPSON, Kenneth. Media and cultural regulation. Califórnia: Sage, 1997. p. 232.

 

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STEINBERG, Shirley R.; KINCHELOE, Joe L. (Orgs.). Cultura infantil: a construção corporativa da infância. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

 

STONE, Tanya Le. The good, the bad, and the Barbie: a doll’s history and her impact on us. Nova Iorque: Viking, 2010.

 

ROVERI, Fernanda. Barbie na educação de meninas: do rosa ao choque. São Paulo: Annablume, 2012.

 

TOURINHO, Irene; MARTINS, Raimundo. Circunstâncias e ingerências da cultura visual. In: MARTINS, R.; TOURINHO, I. (Org.). Educação da cultura visual: Santa Maria, RS: UFSM, 2011. p. 51-68.

 

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[1]Pós-Doutor em Arte pela Universidad Iberoamericana Ciudad de México (2018); Doutorado em Arte e Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás (2014). Professor Adjunto da Universidade Federal de Santa Maria, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8726-5591. E-mail: odailso.berte@ufsm.br.

[2]Trecho do texto da personagem Ruth Handler, interpretada pela atriz Rhea Perlman. BARBIE; Direção: Greta Gerwig. Roteiro: Greta Gerwig, Noah Baumbach. Produção: Mattel Films. Estados Unidos: Warner Bros, 2023.

 

[3]Jill Barad, ex-diretora executiva da Mattel, em depoimento para o episódio “Barbie” da primeira temporada da série documental Brinquedos que Marcam Época (The Toys That Made Us). Netflix, 2017.

[4] Discurso da personagem Glória, interpretada pela atriz America Ferreira. BARBIE; Direção: Greta Gerwig. Roteiro: Greta Gerwig, Noah Baumbach. Produção: Mattel Films. Estados Unidos: Warner Bros, 2023.

 

[5]Algumas exposições de bonecas Barbie:

Barbie Negra: O Poder da representatividade. Museu Histórico Paulo Setúbal, Tatuí, São Paulo, 2022.

Barbie Expo, 2016. Exposição permanente, Centro Comercial Les Cours Mont Royal, Montreal.

Barbie, 2016. Museu des Arts Décoratifs, Paris.

Barbie. The Icon, 2015. Museu delle Culture, Milão.

Black Barbie: Uma Celebração da Beleza Negra. Shopping Pátio Higienópolis, São Paulo, e Barra Shopping, Salvador, 2010.

Art, Design and Barbie: The Evolution of a Cultural Icon, 1995. Liberty Street Gallery, Centro Financeiro Mundial, Nova York.

Salon de Barbie: A Multi-Media Exhibition. The Kitchen, Nova York, 1994.