Corpo presente: o desenvolvimento do sensível a partir de ações poéticas e educacionais

 

Body present: the development of sensibility through artistic and educational actions

 

Cuerpo presente: el desarrollo de lo sensible a partir de acciones poéticas y educativas

 

 

Nathalia Fonte1

Universidade Estadual de Londrina

Juliano Reis Siqueira2

Universidade Estadual de Londrina

 

 

Resumo

Este trabalho apresenta algumas ações poéticas e educacionais realizadas entre 2020 e 2022 no projeto de pesquisa ‘Peciar e a Formação do Artista’, na Universidade Estadual de Londrina. A partir da pesquisa de Iniciação Científica Presençausência: a arte e os desafios perceptivos na era digital, relacionamos os impactos negativos das tecnologias digitais na vida humana e o papel da arte em recuperar a dimensão corpórea e sensível na sociedade.  As ações apresentadas do projeto tiveram como referência o trabalho de Joseph Beuys e seu conceito de escultura social (BORER, 2001). Partimos de investigações tridimensionais no sentido de expandir as pesquisas individuais em ações coletivas; com o intuito de uma reconexão com o espaço tátil e com a busca de uma sintonia com a constelação de forças que a escultura coloca em jogo.

Palavras-chave: Ações poéticas; Estratégias educacionais; Era digital; Escultura social.

 

 

Abstract

This work presents some poetic and educational actions carried out between 2020-2022 in the research project 'Peciar and the Formation of the Artist', at the State University of Londrina. With the undergraduate research ‘Presence-absence: art and the perceptual challenges in the digital era, we traced a relationship between the negative impacts of digital technologies on human life and the role of art in recovering the corporeal and sensitive dimension of society. The actions of the project are articulated with the work of Joseph Beuys and his concept of social sculpture (BORER, 2001). Starting with an investigation in three-dimensional expression towards the expansion of individual research into collective actions; with the goal of reconnecting with the tactile space and seeking harmony with the constellation of forces that sculpture brings into play. 

Keywords: Poetic actions; Educational strategies; Digital era; Social sculpture.

 

 

Resumen

Este trabajo presenta algunas acciones poéticas y educativas llevadas a cabo entre 2020 y 2022 en el proyecto de investigación 'Peciar y la Formación del Artista' en la Universidad Estatal de Londrina. A partir de la investigación de Iniciación Científica Presençausência: el arte y los desafíos perceptivos en la era digital, relacionamos los impactos negativos de las tecnologías digitales en la vida humana y el papel del arte en recuperar la dimensión corporal y sensible en la sociedad. Las acciones presentadas en el proyecto tuvieron como referencia el trabajo de Joseph Beuys y su concepto de escultura social (BORER, 2001). Partimos de investigaciones tridimensionales con el propósito de expandir las investigaciones individuales en acciones colectivas; con la intención de reconectar con el espacio táctil y buscar una sintonía con la constelación de fuerzas que la escultura pone en juego.

Palabras clave: Acciones poéticas; Estrategias educativas; Era digital; Escultura social.

 

 

Apresentação

Dentre as palavras pequenas e difíceis, tempo parece uma das mais enigmáticas. Talvez por ser um elemento constituinte de tudo. Talvez por conter tantos significados embutidos em tão poucas letras. Existe o tempo grande, dos séculos e milênios, que não conseguimos propriamente abarcar em uma vida; o tempo micro também, dos nanosegundos e afins, que tampouco sentimos. Dizemos que não temos tempo ou que há tempo suficiente e que pertencemos a esse ou aquele tempo. Nossas vidas e nosso valor são frequentemente medidos em tempo. Às vezes o percebemos como lento demais, às vezes depressa demais. Essa percepção de aceleração tem sido a mais frequente.

Exponencialmente vamos nos afastando dos tempos grandes em direção aos menores. Em poucas décadas, nossa relação com o tempo – que vem expressivamente se acelerando a partir da era moderna – se transformou de maneira absurda. Sendo o tempo um elemento constituinte de absolutamente tudo, essa aceleração tem relação direta com a forma que vivemos; com os fatores que vêm apressando a vida humana. Hoje em dia tudo é muito rápido. E nos acostumamos com essa aceleração.

É uma adaptação instintiva para a sobrevivência. Mas as atuais velocidades são tão maiores que as da vida humana, tão mais perto do nano do que do macro em que nossos corpos funcionam, que convivemos com o perigo dessa dissonância. Sofremos, em escala pessoal e social, grandes impactos. Negativos, na maioria das vezes. Como diz Virilio:

 

Se tudo é movimento, tudo é, ao mesmo tempo, acidente. Nossa existência de veículo metabólico poderia resumir-se numa série de colisões e traumatismos, uns assumindo o aspecto de carícias lentas e perceptíveis, ou, conforme o impulso que lhes seja dado, tornando-se choques mortais, apoteoses de fogo, mas, sobretudo, uma outra maneira de ser. A velocidade é uma causa de morte pela qual não apenas somos responsáveis como da qual, mais ainda, somos criadores e inventores(VIRILIO, 2005, p. 106, grifo original).

 

Assim se corroem nossas mentes, as relações com nós mesmos e com o mundo. Porque estamos vivendo em um tempo que não é, afinal, nosso. Esse tempo é das tecnologias digitais, dos dados e informações, submetido à lógica cruel do capitalismo. Ele nos faz participar de suas engrenagens de forma que internalizamos sem perceber uma configuração de existência imposta. Portanto, ao vivermos num mundo onde as informações funcionam em seu próprio ritmo impaciente, nos tornamos impacientes também. E adoecemos.

É simples fazer um pedido para desacelerar: sabemos que precisamos desacelerar há muito tempo e recentemente vêm até surgindo discursos nas redes que nos atentam a isso, mas não é tão simples desacelerar quando tudo em nossa volta nunca para.

A pandemia causada pelo COVID-19 trouxe essa reflexão transformada em um real impedimento: se impossibilitou, pelo menos em um primeiro momento (e para um grupo determinado de pessoas), sair de casa para trabalhar; pareceu um empurrão para que pensássemos nesse tempo que não é nosso e tentássemos nos reconciliar com o tempo de nossos corpos. Houve até uma volta extremamente positiva às práticas artesanais.

Mas esse empurrão logo nos fez esbarrar em um problema: o tempo em si (dentro de uma sociedade capitalista, globalizada, dominada por recursos tecnológicos). Normalmente o desaceleramento é associado a necessidades de trabalho e estudo, porque é aí que nos acostumamos a ver o tempo escorrer por nossos dedos.

O que não é inteiramente verdade: o tempo se tornou ao longo dos anos uma mercadoria que é colocada à venda camuflada sob o termo mão-de-obra; disponibilizada, em momentos inicialmente de descanso, para ser vendida e comprada por empresas que lucram com nossa atenção, desde as emissoras de televisão, agências de propaganda e empresas contratantes, até as grandes empresas donas das redes sociais, esses lugares (ou melhor: não-lugares) em que boa parte da humanidade passa seu tempo em pseudorrelações sociais.

Esse tempo dominou completamente os diversos territórios de nossas vidas. A dimensão do trabalho, do entretenimento e das relações entre pessoas não mais funcionam para nós ou sequer com algum respeito a nós. Ao considerar tudo isso, é difícil pensar em como poderíamos possivelmente desacelerar.

Talvez desfazendo as amarras que nos prendem a essas esferas escravizantes e tornar mais fortes os laços com o mundo que nos cerca. Tomar de volta nosso tempo não depende apenas do mundo do trabalho – porque o resto do mundo já está sujeito aos mesmos princípios. A volta aos fazeres artesanais é sim um bom começo, mas é um começo que deve ser expandido para seus arredores como galhos e raízes.

Existe também outro fator em questão: é impossível pensar sobre tempo sem pensar sobre espaço. Eles se fazem um no outro, afinal, são um no outro. E nossas experiências de existência se refletem em nosso entendimento no espaço, por também se configurarem nele. “Território é uma vizinhança, um produtor autônomo de espaço, que questiona sobre o tempo (CARERI, 2017, p.11).

No cenário pandêmico pelo qual recentemente passamos, essa experiência de existir no espaço se alterou: para os que conseguiram ficar a maior parte do tempo em casa, a casa se tornou outro universo; para os que precisavam se locomover pela cidade, o espaço externo se tornou não-amigável, limitado, até mesmo hostil.

Antes disso tudo já estávamos, por muitos motivos, caminhando para uma sensação de não-pertencimento ao mundo – uma sensação de ser nós contra o mundo, e não nós, partes do mundo. Entre várias questões se destacam nossa relação de dominação, onde consideramos tudo que não é humano como recurso e propriedade nas mãos da humanidade, e nossa relação com a imagem, especialmente no contexto das tecnologias digitais. A pandemia, nesse aspecto, agiu como um catalisador de processos que há muito vêm acontecendo.

No processo de percepção do mundo ao nosso redor estão ativos todos os nossos sentidos, como na percepção primordial indistinta de que Merleau-Ponty (2004) fala em ‘O olho e o espírito’. No entanto, a relação da sociedade ocidental com o mundo parece acontecer com mais força com base no olhar. E na audição, em partes. O fato de nos comunicarmos por linguagens que se traduzem em caracteres visuais e sons faz parte desse desenvolvimento, principalmente se pensarmos que grande parte de nosso conhecimento é traduzido em linguagem.

 Mas esse não é o único fator que condiciona a atual hipervalorização da visão. Os avanços técnicos que aconteceram a partir do século XIX são em muito responsáveis pela relação com o mundo que desde então está em constante mudança. A invenção da fotografia e de instrumentos que nos permitem aproximar visualmente coisas que estão muito longe ou muito pequenas, a invenção do cinema, televisão e tecnologias digitais... Todas foram essenciais para esse desenvolvimento da visão (e da audição) como centro perceptivo.

Com isso, os outros sentidos se atrofiam. Inclusive os próprios sentidos da visão e audição se desgastam, se considerarmos a falta de sensibilidade causada pelo alto grau de exposição a informações.

Nosso estar no mundo é, por princípio, espacial, tridimensional, multissensorial. Mas a imagem tornou-se mediadora de nossa experiência. Guy Debord (1997), há muitos anos, já nos atentou que esse é um fato condicionador de uma ‘sociedade do espetáculo’. Não nos colocamos mais como parte do universo, mas observadores distantes – porque a visão segregada do todo perceptivo formado pelos sentidos proporciona isso. Nosso entendimento do espaço como espaço, dos corpos como corpos no espaço, dá lugar ao entendimento de espaços e corpos como imagens.

Entre lentes e espelhos, a forma como acessamos a realidade ao nosso redor transforma a vida ou em uma realidade inalcançável – imagem do mundo – ou reflexo de nós mesmos. A presença de smartphones e redes sociais onde tudo é registrado por fotos e vídeos e as distâncias atenuadas pela conexão da internet causam a impressão de que estamos mais conectados e mais próximos. Mas essa conexão só permanece num reino impalpável.

Susan Sontag (2004) discorre sobre como a fotografia tornou o mundo mais “acessível” e, ao mesmo tempo, mais empobrecido – porque a experiência acessada por meio de fotos é, na verdade, uma sombra de experiência; um fantasma. E embora essa qualidade fantasmagórica tenha um potencial artístico rico, a forma como as imagens técnicas permeiam todos os aspectos de nossa vida traz consigo um ruído: barulho que nos impossibilita pensar. Byung-Chul Han segue pelo mesmo caminho ao chamar nossa sociedade de cada vez mais espectral (HAN, 2018).

Esse espectral ruidoso e empobrecido é equivalente a uma sociedade lisa e sem profundidades. O ser humano se afasta então da natureza multidimensional e multissensorial da existência, do toque e da reciprocidade inscrita nele – esse momento onde tocar equivale a ser tocado não apenas no sentido físico imediato, mas também metafórico.

Merleau-Ponty (2004, p. 16), ao dizer que “tudo o que vejo por princípio está ao meu alcance, pelo menos ao alcance de meu olhar, assinalado no mapa do ‘eu posso’.”, coloca reflexões sobre a percepção com certo destaque à visão, mas uma visão que raramente existe. Principalmente se pensarmos que a visão para Merleau-Ponty faz parte daquela percepção que na verdade é indiferente a essas separações dos sentidos.

Os aparelhos digitais separam deliberadamente nossa visão e audição dos outros sentidos, coloca-os em contextos diferentes: o que está na tela não tem textura, cheiro, gosto ou profundidade.

De acordo com Virilio (1994), que anuncia a ruína da visão de Merleau-Ponty pela visibilidade técnica, isso resulta em uma visão disléxica e uma amnésia topográfica. A visão disléxica seria um analfabetismo da imagem num mundo de imagens; a amnésia topográfica uma incapacidade de imaginar o espaço.

Sendo a memória um dos fatores que nos leva à imaginação e o desenvolvimento perceptivo a forma como sentimos o existir e criamos essas memórias, em um mundo onde tudo é achatado em imagem e temos contato com tantas constantemente, temos um material cada vez mais pobre para imaginar-nos no espaço.

Toda essa crise - do toque, do olhar, da percepção espacial, da própria configuração da existência humana - se encontra dentro do domínio da arte. Porque, de certa forma, como diz Santos (2008, p. 81), essa crise “[...] é, também, a sua própria crise.”. É preciso fazer arte, pensar arte, para tentar entender o processo pelo qual passamos. 

A partir do fazer tridimensional - que, como diria Herbert Read (1994), é uma arte tátil -, abre-se a possibilidade de retomar o contato com a existência multidimensional e multissensorial que nos escapa neste momento.

Em um mundo onde as pessoas olham sem profundidade, observam e mostram coisas compulsivamente, o toque é algo quase alienígena. Ao mesmo tempo, toda experiência física o envolve de alguma forma. Nem que seja o vento. É um sentido que permeia o corpo humano inteiro e que está conosco desde antes mesmo de abrirmos os olhos; pode estender nosso corpo para além de si mesmo, para o resto do mundo possível. 

A mediação da nossa vida tem sido feita por imagens e nós estamos cada vez mais vendo do que sentindo. As experiências em primeira pessoa raramente acontecem sem a presença de um celular com câmera e muitas acontecem a partir do celular com câmera. O estar presente de corpo e alma está dando lugar à aparência, à teatralidade destinada a um espectador, e a experiência centrada no toque é uma das formas de se estar presente, aqui, agora, e realmente viver experiências.

Mas é mais fácil sumir. Dói menos. Mais fácil é se afogar em conteúdos incessantes em diversas plataformas digitais porque, mesmo que nos afetem de maneira negativa, são anestésicos. Consumo instantâneo para uma gratificação instantânea atraente, principalmente quando se tratando das complexidades de um mundo real carregado de estímulos que muitas vezes podem ser cruéis. Principalmente quando esses estímulos já fazem parte de um mecanismo imposto que nada tem de respeito aos corpos que no mundo habitam.

Ao criar ações poéticas que englobam as facetas multissensoriais da vida e pensar em maneiras para disponibilizá-las às pessoas, dá-se origem à possibilidade de vivências perceptivas para os sujeitos participantes (DEWEY, 2010) e de levar a reflexão sobre nosso estado de constante ausência a outras pessoas, buscando uma educação que implique na libertação do corpo – que, através da tatilidade, possibilite presenças autênticas. 

Dewey (1964) pensou a experiência em algo que, antes de mais nada, é ação. A educação pensada a partir Dewey (1948) deveria enfatizar o aspecto ativo na educação: a expressão, o desenvolvimento muscular e os movimentos; considerar que o estado de consciência é essencialmente motor e impulsivo e que os estados conscientes tendem a projetarem-se em ações. Desconsiderar esse princípio causa uma perda de tempo e energia, pois coloca o estudante numa atitude passiva, receptiva e absorvente.

As condições de ensino que imobilizam o corpo (escolar e remota) não permitem que o estudante siga sua própria natureza motora. Os processos intelectuais e racionais, ou seja, as ideias, são também resultado da ação e se desenvolvem para controlar melhor a ação. Razão é primariamente a lei da ação ordenada ou efetiva. Para Dewey, desenvolver a capacidade de raciocínio e juízo sem referência à seleção e ordenamento dos meios de ação é o erro fundamental dos métodos de ensino.

Considerando este aspecto ativo da experiência, apresentamos aqui algumas ações poéticas e educacionais realizadas entre 2020 e 2022, no programa de iniciação científica[1] inscrito no projeto de pesquisa Peciar e a Formação do Artista, articulando-as com o trabalho de artistas que tentaram dissolver os limites entre arte e vida, principalmente os de Joseph Beuys e seu conceito de escultura social. Essas ações estão vinculadas com o projeto de extensão Oficinas de artes visuais em Londrina: pesquisa plástica e arte pública em parceria com o Apotheke Londrina[2].

 

Corpo-barro

Em articulação com o projeto de extensão Oficinas de artes visuais em Londrina: pesquisa plástica e arte pública, foi desenvolvida a ação corpo/barro: uma proposta de experiência sensorial cujo princípio era a criação com envolvimento total do sujeito, um estar-de-corpo-e-alma em comunhão com o mundo a partir da comunhão com a argila, da integração. 

A oficina corpo/barro funcionou como um ciclo, no qual a primeira pessoa trabalhava com a argila e criava sua própria experiência, resultando em um trabalho plástico que poderia envolver também outros materiais. A pessoa relatava essa experiência de forma escrita (um relato honesto, podendo ser informal) e enviava então seu trabalho finalizado e o pequeno texto para a segunda pessoa, continuando assim até chegar no fim do ciclo. Quase como um efeito dominó.

No fim do processo, realizamos uma roda de conversa para que os participantes compartilhassem suas histórias e seus relatos. No total foram 17 integrantes, entre eles: estudantes da Licenciatura em Artes Visuais-UEL (principalmente participantes do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência - PIBID), uma professora da educação básica supervisora do PIBID e o coordenador do projeto

Ninguém além da proponente teve acesso às imagens e relatos de todos os participantes – respondendo-os em particular para que não ficassem sem uma devolutiva por muito tempo. As reflexões elaboradas foram profundas e os resultados plásticos muito interessantes, criando narrativas sobre suas experiências com o afeto e a tatilidade do mundo em um momento pandêmico no qual suas experiências sensíveis foram extremamente prejudicadas.

 Posteriormente, nossa conversa alinhou a experiência de todos e, mesmo sem muitas orientações específicas, a união de corpo e barro através de uma rede de afetos, mesmo que virtual e a partir de uma plataforma digital, pareceu possibilitar a volta ao corpo e ao tempo do corpo. Ficou claro que todos temos em nós profundidades sensíveis que estão sendo apagadas, desgastadas aos poucos, mas ainda não estão mortas.

 

Me dê terra

Durante alguns meses em 2022, fizemos o enraizamento em água de sessenta e uma mudas de planta: Jibóias (Epipremnum pinnatum) e Lambaris (Tradescantia zebrina), para a ação poética me dê terra’’. A partir da ideia de tatilidade pensada dentro da escultura – que, afinal, está sempre intimamente relacionada com a troca – decidimos compartilhar com outras pessoas essa troca, a partir do cuidado com as plantas. A ação foi planejada para acontecer na abertura da exposição do grupo de pesquisa Apotheke Londrina, no qual este projeto se insere. A exposição foi fruto de uma curadoria coletiva de meses, sendo realizada na galeria do Departamento de Arte Visual no CECA (Centro de Comunicação e Artes), da Universidade Estadual de Londrina; e foi inaugurada no dia 18 de agosto de 2022.

Imagens 1 e 2 - registro das ações Carpiderias/Me dê terra na abertura da exposição Apotheke Londrina.

Fonte: Apotheke Londrina, registro por Gabrielle Mázaro.

A partir da proposição da professora Vanessa Deister, do departamento de Arte Visual da UEL, de uma performance na abertura da exposição intitulada Carpideiras’, foi possível articular de modo integrado a ação ‘Me dê terra. Disponibilizamos as plantas enraizadas em água, um pote de terra e ferramentas para que as pessoas pudessem realizar o plantio durante a exposição e levar as mudas para casa.

 

Imagem 3 - registro da ação ‘Me dê terra’ na abertura da exposição Apotheke Londrina.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: Apotheke Londrina, registro por Gabrielle Mázaro.

As principais referências deste trabalho são as práticas de Joseph Beuys. Ações que acontecem no limiar entre arte e vida atravessam esta pesquisa, apresentando caminhos dentro da produção em arte que transitam entre a ideia tradicional de escultura e a escultura social de Beuys, na qual a sociedade é a matéria prima; e a escultura se torna sinônimo de ação. A proposta de Beuys era “[...] arte como ensinamento e não ensino da arte.” (BORER, 2001, p.14). Para ele, todo ser humano tem o potencial de ser um artista, e em arte está inscrita a ação sensível no mundo, seja pela palavra ou pelas mãos. (ROSENTHAL, 2011).

 

Imagem 4 - registros da ação Carpideiras na abertura da exposição Apotheke Londrina.

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte - Grupo Apotheke Londrina, registro por Gabrielle Mázaro

 

Imagem 5 - registros da ação Carpideiras na abertura da exposição Apotheke Londrina.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: Apotheke Londrina, registro por Gabrielle Mázaro.

A noção de experiência para John Dewey, estética por natureza, relaciona-se intimamente com as proposições beuysianas de arte e escultura social. O autor diz que “[...] a arte, em sua forma, une a mesma relação entre o agir e o sofrer, entre a energia de saída e a de entrada, que faz que uma experiência seja uma experiência.” (DEWEY, 2010, p.128).

E embora a escultura social de Beuys fale sobre a ação do homem sobre a sociedade, seu trabalho com a materialidade do mundo demonstra que estar sujeito à materialidade do mundo é parte essencial de seu trabalho, pois com isso podemos “[...] aprender das próprias substâncias as potencialidades que elas encerram e, por conseguinte, as nossas. (BORER, 2001, p.15).

Fazemos uma aproximação de “Me dê terra” com 7000 carvalhos, ação de Beuys na Documenta 7 em Kassel, na Alemanha. Existia uma pedra de basalto para cada um dos 7000 carvalhos, todas empilhadas na praça em frente ao Museu Fridericianum. A proposta do artista era que a cada plantio de um carvalho na cidade de Kassel fosse retirada uma pedra da pilha e colocada ao lado da nova árvore. O último carvalho foi plantado em 1987, um ano após sua morte. O trabalho suscita reflexões sobre a importância da biodiversidade nas políticas do espaço.

 

Imagem 6 - 7000 Carvalhos, Joseph Beuys, Kassel, Documenta 7, 1982.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: Dieter Schwerdtle, arquivo da Documenta de Kassel.

Voltamos então à questão da tatilidade: o espaço entre agir e sofrer da experiência de Dewey, ou a experiência de Larrosa Bondía (2002) no padecer de um sujeito que é território de passagem, ou mesmo o corpo de Merleau-Ponty, que é encruzilhada, no qual “[...] entre vidente e visível, entre tocante e tocado, entre um olho e o outro, entre a mão e a mão se produz uma espécie de recruzamento, [...]” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 18).

A experiência exige uma sensibilidade tátil. É isso que buscamos recuperar com estas propostas de ação, sejam em uma visão tradicional de escultura e artesania ou uma visão expandida como a de escultura social[3]. Recuperar, também, o corpo no qual essa tatilidade é possível, a partir dos sentidos.

O sensorial, em “Me dê terra”, se dá de forma extremamente sutil: um toque na terra, na água, na raiz; o cheiro da planta, o som da interação entre corpos. Apresenta, também, a possibilidade de experiências sensoriais que acolham os sentidos ao invés de sobrecarregá-los, pois de sobrecarga já temos muito.

Esta ação começou com uma prática diária e lenta, do enraizamento. Seu primeiro contato com pessoas fora do projeto começou na abertura da exposição no intuito de se expandir e ramificar, tocar as pessoas, se espalhar pela cidade e circular afetos.

 

Escultura: estratégias poéticas e educacionais

No contexto da sociedade do cansaço buscamos, através da linguagem da escultura, estratégias para escapar da hiperatividade. As ações apresentadas são exercícios para alcançar em si um ponto de soberania, o vazio Zen num mundo onde as pessoas e a sociedade são transformadas em máquinas de desempenho que reagem imediatamente aos estímulos. O intuito foi de capacitar nossos sentidos a uma atenção profunda e contemplativa. Reavivar nossa capacidade de resistir aos estímulos; revitalizar nossa vida contemplativa; que não significa passividade, mas sim resistência aos estímulos opressivos e intrusivos (HAN, 2017).

Nestas ações poéticas e educacionais pensamos nas peculiaridades da escultura, desde criar um objeto tridimensional no espaço até a presença, o pensamento, a fala, a ação e a abertura para o inacabado, para uma “obra” coletiva ainda por vir. Retomar o protagonismo era, para Beuys, a forma de sair da condição de vítima atomizada para retomar o Sentido perdido, voltar a conhecer a essência das coisas, o sentido da vida e das relações com o mundo. O retorno necessário a um pensamento elementar que se perdeu. (BORER, 2001).

Com o excesso de uso de telas na atualidade é importante ressaltar que a percepção do espaço é quase inteiramente adquirida através da educação. Os espaços tátil e visual são dois mundos distintos. A escultura é a arte do espaço tátil, na qual o artista trata com sensações, sentimentos diretos; e não sobre a base de conceitos, que são construções intelectuais secundárias.

Para o escultor, os valores táteis constituem uma realidade a ser transmitida diretamente, uma existência corpórea. A escultura é a arte da palpabilidade. A única maneira em que podemos ter uma sensação direta da forma tridimensional de um objeto é através do contato e da manipulação. Só tocando obtemos uma sensação física; o tato é essencial para a percepção de contraste sutis de forma e textura. É necessário o toque para se ter consciência e registrar a forma e o volume do objeto. Quando os museus proíbem de tocar as esculturas, nos privam de um modo essencial de apreciá-la, que é apalpando e manipulando. Se somente olhamos a escultura, só obtemos uma série de impressões bidimensionais do objeto tridimensional (READ, 1994).

As ações descritas acima partiram de uma busca de reconexão com nossa sensibilidade háptica primária e com os valores táteis, no intuito de nos descondicionarmos da imposição social da telas; experimentando corpos através de uma sensibilidade plástica, do apalpar, do acariciar e do abraçar. Esta sensibilidade plástica é mais complexa que a sensibilidade visual: envolve a sensação da qualidade tátil das superfícies, a sensação de volume dos planos da forma, a percepção sintética da massa e a ponderabilidade do objeto (READ, 1994). É impossível transmitir a natureza destas sensações por meio de palavras, fotografias e telas. A oficina corpo/barro foi uma possibilidade de buscar a presença, a conexão com o material, para “escutar a escultura”, sentir a terra, a água e o próprio corpo. Através do tato podemos dispensar o uso da visão na criação de formas. O corpo não domina o barro - se submete às suas forças.

Essa visão tradicional da escultura não é rechaçada por Beuys, artista que não se retira quando o trabalho está pronto. Ele está presente na obra; o princípio de “conferência permanente” e a presença do artista afirma o espaço ilimitado do campo de ação; e o trabalho como obra da fala, que envolve engajamento e pedagogia criativa. Para além da escultura como objeto tridimensional, em Beuys a fala é a escultura que participa do espaço criado, através do intercâmbio e renovação (BORER, 2001). Com essas referências foram desenvolvidos os trabalhos de mediação, nos quais os artistas envolvidos nas ações, intervenções e exposições puderam dialogar com o público sobre essa busca de uma obra coletiva e inacabada.

Tanto as ações performáticas como os desdobramentos educativos a partir das obras desenvolvidas foram realizados nesta busca do entendimento do verdadeiro sentido da escultura de que falava Beuys: “uma busca de sintonia com essa constelação de energias que a escultura põe em jogo”. Mais que trabalhar com um material específico; mas a “necessidade de criar outros conceitos de poder do pensamento, poder da vontade, poder da sensibilidade”. A matéria em estado bruto não é exposta como obra de arte, mas constitui-se como espaço pedagógico, servindo a um processo de transformação; atingir a expressão concreta de uma espiritualidade (BORER, 2001, p.15).

Seguimos esses rastros de Beuys, um professor que repetia uma lição repetível e considerava que qualquer pessoa pode ser ensinada; afirmava que “toda pessoa é um artista” e abria suas aulas para os candidatos que haviam sido recusados por nota na academia, forçando assim o Ministério da Educação a admitir esses alunos. Nesse sentido, o projeto de extensão busca uma abertura para comunidade local, de forma a não ficar restrito a estudantes matriculados na universidade. A parceria com o projeto PIBID Artes Visuais/UEL possibilita que pesquisas plásticas se desdobrem em oficinas em escolas públicas de Londrina.

A ideia de Beuys que trazemos nas ações e oficinas é a de revelar os segredos da fabricação, afirmando que esses produtos (materiais) são acessíveis e que todos podem fazer uso deles. Retomar a confiança no tato, no cheiro, na escuta mais do que na transmissão de conceitos. A linguagem da terra como língua primordial, que associa, de forma orgânica, pensamento e ação; quando se abre para as forças elementares vitais dos minerais, vegetais e animais. Transformar um material indeterminado em uma forma determinada, através do movimento, é um elemento básico da escultura e da ação.

 Caminhar com Beuys nos compele a alquimia de transformar o cotidiano em espiritualidade, ativando nossas energias vitais para trazer os corpos de volta às almas. Buscar que todos encontrem e realizem o seu próprio caminho criativo e retomem o poder de se libertar e mobilizar energias profundamente arraigadas; para reconectar com a força dos povos indígenas dizimados em oposição aos colonizadores que impuseram o mundo materialista governado pelo dinheiro; a arte como caminho de retorno a uma sociedade natural.

As performances Carpideiras / Me dê terra, realizadas na abertura da exposição Apotheke Londrina, incorporaram o sentido de ‘procissão’ de Beuys, no qual  as artistas caminharam e deslocaram-se suscitando o movimento do público que acompanhava a ação de lavar as escadas e pisos do departamento de arte, “mulheres que tentavam limpar, lavar, expurgar o que persiste em ficar para atrapalhar a alma humana ….”[4] e desenvolver uma ação artística em defesa da natureza e rumo à cura de um mundo em destruição, em proporções jamais alcançadas.

A arte pode intervir em lugares inacessíveis para medicina oficial. A água com anil, o sal grosso no canto da galeria, as mudas, a terra compunham o pacote medicinal das artistas para uma cultura enquanto perda da natureza, retomando o sentido beuysiano de medicina como arte de ajudar a natureza, onde o reestabelecimento físico ocorre na medida em que estamos ligados à natureza como organismo geral e retomamos a animalidade perdida, assim podendo desenvolver os sentidos e a harmonia com Gaia.
REFERÊNCIAS

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, n.19, jan.- abr. 2002.

BORER, Alain. Um lamento por Joseph Beuys. In: Joseph Beuys. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

CARERI, Francesco. Caminhar e parar. São Paulo: Gustavo Gili, 2017.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

DEWEY, John. Arte como experiência. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

DEWEY, John. El niño y el programa escolar: mi credo pedagógico. Buenos Aires: Losada, 1948.

DEWEY, John. La reconstruccion de la filosofia. Buenos Aires: Aguilar, 1964.

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HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Trad. Lucas Machado. Rio de Janeiro: Vozes, 2018.

HAN, Byung-Chul. O desaparecimento dos rituais: uma topologia do presente. Editora Vozes, 2021.

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KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Arte & ensaios, v. 17, n. 17, p. 128-137, 2008.

LANIER, Jaron. Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais. Trad. Bruno Casotti. Rio de Janeiro: Intrínseca, 1ed, 2018.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Trad. Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

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ROSENTHAL, Dália. Joseph Beuys: o elemento material como agente social. ARS (São Paulo), v. 9, p. 110-133, 2011. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ars/a/QGnwCXSXLXGWYT3n5dj83qH/?lang=pt>. Acesso em: 19 mai. 2023.

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[1]Programa de Iniciação Científica da Universidade Estadual de Londrina, com fomento da Fundação Araucária (2020-2021 e 2021-2022).

[2]O projeto de pesquisa Peciar e a formação do artista e o projeto de extensão Oficinas de artes visuais em Londrina: pesquisa plástica e arte pública realizaram uma parceria interinstitucional com o Estúdio de Pintura Apotheke da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e com a Companhia Descolonizadora.

[3] Rosalind Krauss (2008), em “A escultura no campo ampliado”, discute o surgimento desse “campo ampliado” ou “campo expandido” dentro da arte contemporânea, borrando as fronteiras que anteriormente delimitavam cada saber artístico.

[4]Vanessa Deister, artista e professora do Departamento de Arte Visual da Universidade Estadual de Londrina em 2022.