Um caminhar multiespécies: mesas de trabalho como modos de habitar artes, educações e comunicações diante do Antropoceno

 

A multispecies walk: working tables as ways of inhabiting arts, education and communications in the face of the Anthropocene

 

Un caminar multiespecie: las mesas de trabajo como modos de habitar las artes, la educación y la comunicación ante el Antropoceno

 

 

Susana Dias[1]

Universidade Estadual de Campinas

 

 

 

 

Resumo

Neste artigo busca-se pensar a potência de duas mesas de trabalho, desenvolvidas em diferentes contextos e denominadas de “Encontros com potências frágeis” e “Modos de atenção à Terra”. As mesas de trabalho são, ao mesmo tempo, uma intervenção artística urbana e uma metodologia de pesquisar-criar entre artes e ciências, desenvolvidas no âmbito do grupo multiTÃO (CNPq) e Revista ClimaCom. Interessa pensar como tais mesas de trabalho instauram um certo caminhar multiespécies e como geram novas possibilidades de habitar a educações e comunicações diante do Antropoceno.

Palavras-chave: Estudos multiespécies; Arte-Ciência; Caminhar; Plantas.

 

 

Abstract

The purpose of this article is to think about the potencialities of two working tables, developed in different contexts and called “Meetings with fragile potencies” and “Modes of attention to the Earth”. The working tables are, at the same time, an urban artistic intervention and a research-creating methodology between arts and sciences, developed within the scope of the multiTÃOgroup and ClimaComJournal. It is interesting to think about how such working tables establish a certain multispecies walk and how they generate new possibilities for inhabiting education and communications in the face of the Anthropocene.

Keywords: Multispecies studies; Art-Science; To walk; Plants.

 

 

Resumen

Este artículo pretende reflexionar sobre el potencia de dos mesas de trabajo, desarrolladas en contextos diferentes y denominados "Encuentros con poderes frágiles" y "Formas de prestar atención a la Tierra". Las mesas de trabajo son tanto una intervención artística urbana como una metodología de investigación y creación entre las artes y las ciencias, desarrollada en el ámbito del grupo multiTÃO (CNPq) y de la Revista ClimaCom. Me interesa pensar cómo estas mesas de trabajo establecen un cierto caminar multiespecie y cómo generan nuevas posibilidades de habitar la educación y la comunicación frente al Antropoceno.

Palabras clave: Estudios multiespecies; Arte-Ciencia; Caminar; Plantas.

 

 

 

Novos caminhares ontoepistemológicos diante da trilha do Antropoceno

 

O conceito de Antropoceno surge como uma trilha que tenta dar visibilidade a uma era marcada pelas catástrofes causadas pelas atividades humanas. É um conceito-caminho que nasce no âmbito científico, mas que tem mobilizado não apenas cientistas, mas também educadores, comunicadores, filósofos, antropólogos, historiadores, artistas e povos originários. Longe de ser um termo consensual, que chega para orientar os debates e revelar saídas, tem gerado muitas críticas, porque arrasta um conjunto de funcionamentos coloniais e modernos: desde a centralidade do debate em torno de noções de Humano, Natureza e Ciência (no singular e em maiúsculas), até a reativação de binarismos, oposições e hierarquias entre natureza e cultura, material e mental, humano e não humano, realidade e imaginação/ficção (HARAWAY, 2021; FERDINAND, 2022).

Diante do Antropoceno, é inevitável ter que reaprender a caminhar. Seja em meio as árvores e na beira rio em um dia ensolarado, ou sob fortes chuvas e ventos, em ruas alagadas e terras arrasadas pelas monoculturas. O que parece implicar muitas coisas, das quais quero destacar aqui algumas. É preciso pensar que nenhuma unidade é possível na noção de humano (LATOUR, 2020) e reconhecer que a noção de humanidade tem funcionado como um verdadeiro “liquidificador” em que modos de existir de povos originários são excluídos e triturados (KRENAK, 2019). Por isso, é indispensável admitir que as perguntas “quem é o nós?” e “de que humanos estamos falando?” (CHAKRABARTY, 2009) sejam recolocadas, a cada vez, para avaliar, por um lado, o que se pode combater, quem são os inimigos e, por outro, com quem se deve e se pode viver junto e constituir comuns (STENGERS, 2015; LATOUR, 2020).

É inescusável enfrentar a dupla fratura que manteve separados colonização e ambientalismo e promover, permanentemente, uma decolonização ontoepistemológica, que desenfurne o Antropoceno e enfrente a colonização do ser e do pensamento colocando, lado a lado, um agir junto contra o racismo e o desmatamento, contra a misoginia e a monocultura(FERDINAND, 2022). É imprescindível promover experimentações éticas e estéticas transversais que fomentem maior interatividade, participação e espaços para as perspectivas minoritárias (CARSTENS, 2022). Bem como fomentar modelos alternativos de pensamento, criação e ação que interroguem as perspectivas coloniais, dicotômicas e representacionais, que transformaram imagens-palavras-sons em meros representantes inertes de um mundo que estaria fora deles (INGOLD, 2015; DIAS, 2020).

É vital pensarmos na estranha formulação estética que o Antropoceno propõe, que exige lidarmos com um mundo desequilibrado que certas práticas humanas trouxeram à existência (CARSTENS, 2022), assim como lidar com a percepção de mundos cada vez mais tóxicos e reduzidos. E, diante disso, é de extrema importância que estimulemos a inclusão, a flexibilidade, a mutabilidade e a multiplicidade (CARSTENS, 2022), que ativemos os emaranhados parentescos entre humanos e uma infinidade de outros não humanos que compõem as possibilidades de vida (HARAWAY, 2021; CARSTENS, 2022). Precisamos aprender, por entres artes-ciências-filosofias (no plural, em minúsculas e, assim, unidas), a andar com atenção por onde estamos indo e a caminhar como quem entra em comunicação com uma terra/Terra viva, ativa e criativa (DIAS, 2020). Temos que aprender a habitar o terreno movediço e arriscado dos encontros entre heterogêneos, das associações e cooperações (TSING, 2019), das simbioses desprogramadas (HARAWAY, 2021; TSING, 2019), que possibilitem “perceber-fazer floresta” (DIAS, 2020).

 

 

 

Fonte: Mesa de trabalho “Encontros com potências frágeis”, 2016, organizada por Fernanda Pestana, Sebastian Wiedemann e Susana Dias.

 

 

Tudo isso implica pensar que a trilha oferecida pelo Antropoceno não está dada de antemão, mas faz-se no caminhar. Implica, também, em pensar uma nova arte de caminhar. Talvez esse modo de caminhar possa ser aprendido com as plantas, seres que estão longe de serem sésseis e que têm muitas maneiras de perambular junto com muitos. Talvez o nome desse perambular das plantas possa se chamar: terra/Terra; já que foram elas que constituíram uma Biosfera propícia à vida tal como a conhecemos (COCCIA, 2018a). Caminhar, com as plantas, é fazer mundos. Aprender com as plantas a caminhar é interpelar ideias de caminhar centradas no Humano, tais como as de desbravar ou descobrir, e assumir um certo caminhar multiespécies, em que abrir uma trilha na mata não é cortar a floresta, mas plantar uma floresta, instaurar uma floresta, tal como fizeram os povos indígenas na Amazônia. Nessa perspectiva, é a mata que abre a trilha para um “nós”.

Não por acaso, entre as diversas mesas de trabalho que o nosso grupo de pesquisa, o multiTÃO: prolifer-artessub-vertendo ciências, educações e comunicações (CNPq), desenvolveu desde 2014, escolho aqui duas delas para pensar, que experimentaram as plantas como “companhias” de pesquisa e criação (HARAWAY, 2021). A companhia, para Donna Haraway, é um conceito-prática que ela vivencia não apenas como zoóloga e filósofa, mas também como filha, esposa, mulher, polvo, floresta... Seu modo de, radicalmente, não separar a vida, do pensamento e da escrita; de assumir que não escreve-pensa sobre as coisas-seres-forças do mundo, mas com coisas-seres-forças-mundos que escrevem-pensam-junto, têm nos movimentado a pensar-viver-junto com as plantas processos de criação em mesas de trabalho.

As mesas de trabalho surgem como parte de nossa proposta de fazer existir uma revista – a ClimaCom– que não acontecesse apenas online, como as outras já produzidas noLabjor-Unicamp. Com a ClimaCom nos aventuramos por novos modos de relação com a problemática ambiental, as mudanças climáticas, o Antropoceno, Gaia, o Capitaloceno, o Plantationoceno (HARAWAY, 2021; STENGERS, 2015; FERDINAND, 2022). Enfrentamos os desafios de escapar aos negacionismos, catastrofismos, normatizações, infantilizações, romantizações... e aprender a criar junto a uma terra/Terra viva e ferida. Por isso mesmo, queríamos uma revista viva! Uma revista que percorresse as ruas, casas e centros culturais, brincasse nas praças, ateliês e laboratórios, se esgueirasse entre as árvores, dobrasse as esquinas e as curvas dos rios, sentasse nos becos e ruas sem saída, dançasse nos quilombos urbanos, risse nos bancos das escolas e tomasse banho de mar nas aldeias. Uma revista que girasse e se multiplicasse, portanto, por outros meios e vivências que não apenas os da universidade e das telas. Não para convencer os públicos, mas para criar junto, para nos autocompostarmos e metamorfosearmos o pensamento-ação produzido dentro das universidades.

Foi assim que nasceu essa prática da mesa de trabalho, que foi nomeada por nós de muitas maneiras: “mesa de trabalho a céu aberto”, quando experimentamos encontros entre nuvens, plantas e papéis, sem medo de que o céu caísse, para inventar um arquivo flutuante e metaestável; “mesa de trabalho ao ar livre”, quando buscamos ativar as potências-floresta dos materiais e criar re-existências sensíveis; “mesa de trabalho espiritual”, quando percebemos que, como diz David Lapoujade pensando com Etiénne Souriau (2017), a transformação da matéria em material é um processo de espiritualização da matéria; “mesa de trabalho expandido, quando percebemos que uma mesa não era apenas uma superfície estável com quatro apoios, mas que um tapete no chão, uma página de um caderno, uma fotografia, uma tela de computador... também podiam devir mesa de trabalho(DIAS, BRITO, 2022).

Começamos com a ideia de que a mesa de trabalho era uma metodologia de criação que estávamos desenvolvendo com a Revista ClimaCom. No entanto, com a mesa de trabalho “Modos de atenção à Terra”, que realizei durante o pós-doutorado “Perceber-fazer floresta: do chamado a pensar o que pode a matéria papel diante do Antropoceno”, sob a supervisão da professora Maria dos Remédios de Brito no programa de pós-graduação em Artes (PPG-Artes) da Universidade Federal do Pará (UFPA), percebi que a mesa era também uma intervenção artística em espaço urbano, um misto de assemblage coletiva, instalação viva e interativa, performance multiespécie, escultura transitória... Assumir essa dupla funcionalidade, método de criação artes e obra artística coletiva, ao mesmo tempo, permitiu pensar em novos problemas, que aqui quero articular apresentando, mais detalhadamente, duas dessas mesas de trabalho: “Encontros com potências frágeis” e “Modos de atenção à Terra”.

 

Mesa de trabalho 1 - “Encontros com potências frágeis”

A caminhada começa atenta ao que pode um corpo com o chão. Agachamos e com as mãos atentamente farejamos o chão em busca de folhas, galhos, frutos, flores, espículas, capulhos, capsulas verdes, flocos de fibras, sementes... Seguindo as trilhas criadas nos solos-corpos pelas plantas, pressentimos a localização da árvore, a estação do ano, o clima daquela semana, a presença de outros animais, as alterações no meio... De algumas plantas só encontramos folhas recortadas, de outras os frutos ainda úmidos, ou sementes aladas longe da árvore mãe. Outras nos surpreendem com flores fora de época, ou com uma terra nua, quando deveriam estar repletas de folhagens. Certas plantas nos doam apenas um ou dois bagos fibrosos e duros, outras ofertam inúmeras sementes pequeninas e transparentes. Seus cheiros ora nos atraem, ora repelem. Sentimos como todos esses materiais são pedaços de chão que aprenderam a caminhar.

Voltamos a agachar e, delicadamente, recolhemos algo e depositamos com cuidado na sacola. Percebemos que tudo que cai das árvores, e que cabe nas mãos e sacolas, pode ser material para a mesa de trabalho. Há diferenças entre os materiais vegetais, mas não há um material que seja melhor do que o outro. A ligação olhos-mãos-pés-caminhos vai revelando como cada material é único, mesmo que sigam padrões dentro das espécies, percebemos como não há um modo apenas de inventar uma sinuosidade, uma estria, um buraco, uma cor. Durante a coleta, sentimos como as plantas oferecem uma abundância de materiais para pensar e criar, materiais que pedem que a vida, as artes-ciências-filosofias, possam seguir sendo reativadas. Enchemos alegremente, e rapidamente, as sacolas e as imaginações...

 

 

 

Fonte: Mesa de trabalho “Encontros com potências frágeis”, 2016, organizada por Fernanda Pestana, Sebastian Wiedemann e Susana Dias.

 

 

Os materiais advindos das árvores têm qualidades de chão, são materiais que caminham, que então no meio do caminho, e que, portanto, apresentam-se sempre em ruínas: roídos, desfeitos, fragmentados, amassados, destroçados, molhados, esburacados, cheios de terra, colados uns aos outros. Coletar pode ser recusar a ruína, mas as plantas ensinam que é preciso abraçar um estado de precariedade e procurar vida nessa ruína. O gesto de coletar revela como a fragilidade é constitutiva dos modos de existir das plantas, e condição necessária para que possam se tornar outra coisa. Se os materiais apresentam alguma integridade, não é aquela humana demais, que busca a inteireza, a retidão ou a completude, mas uma integridade da terra/Terra, capaz de honrar uma vida em movimento, em constante transmutação. Durante a coleta, sentimos como compor uma mesa com elas é sempre retomar as colaborações entre os corpos e o chão. Por outro lado, o caminhar vai se mostrando um “trabalho imaginativo” tanto quanto escrever, desenhar, fotografar e pintar, como já percebia Tim Ingold: “Caminhar é viajar na mente, tanto quanto sobre a terra: é uma prática profundamente meditativa” (2015, p. 289).

A caminhada não termina com as sacolas cheias, ela segue nas mesas do laboratório-ateliê, onde são delicadamente são dispostos os materiais. Na mesa, os materiais caminham de mãos em mãos para uma primeira separação por tipos, cores, texturas, formas, espécies... O contato com as plantas na coleta e na mesa começam a ativar inúmeras ideias para criar coletivamente imagens para o dossiê “Vulnerabilidade” que havíamos proposto para a ClimaCom. Enquanto algumas mãos depositam os materiais vegetais em sacolas de papel pardo, outras já começar uma nova coleta de mapas, gráficos e fotos de satélite, presentes em artigos de climatologistas do projeto INCT Mudanças Climáticas. Os dedos-olhos-pés agilmente deslizam pelo mouse-tela-imagem e ouvem-se muitos cliques e alguns risos. Em uma mesa de edição, as imagens coletadas são repetidas, invertidas, multiplicadas e se transformam em mosaicos coloridos que serão impressos e colados em cartões redondos de 50 cm de diâmetro e disponibilizados para a criação de mandalas com as plantas coletadas.

Das prateleiras saem arames, colas, tesouras, alicates, linhas e massas de modelar e na mesa reúne-se tudo que permita conectar, juntar, colar e compor diferentes partes de plantas. São, ainda, separados alguns exemplares de insetos de uma coleção entomológica. Todos esses materiais servirão para criar esculturas de animais com as plantas. Uma ficha de classificação fabulada para esses animais também é inventada, propondo que se localize a “vulnerabilidade da coleta”, se atribua um “nome afetivo”, se identifique a “medida improvável” e se nomeie o “local da potência”. De outras prateleiras, descem tecidos coloridos que são cortados em formato de bandeiras. Neles vamos escrever, junto com quem passar, em uma nova língua, talvez uma língua que o vento saiba ler. Buscamos palavras habituais do léxico da divulgação científica com as mudanças climáticas - medo, catástrofe, futuro, floresta, tempestade, rio, ciclone, inundação, clima, mudança, natureza, humano, entre outras – e as fragmentamos, roemos, quebramos, criando pequenos fragmentos, que poderão circular, ser recombinados, em palavras nunca vistas e ouvidas, toda uma criação que buscará fazer com que o Antropoceno gagueje. Uma estação fotográfica, também foi pensada, como uma máquina profissional, tripé e um suporte para que mandalas e esculturas efêmeras fossem registradas.

Todos esses processos caminharam junto com a leitura do livro O tempo das catástrofes de Isabelle Stengers (2015). A ideia da mesa era produzir coletivamente imagens para esse dossiê. Buscávamos nos guiar pela consideração de Stengers sobre a vulnerabilidade, quando ela dizia que sempre serão vulneráveis as respostas à intrusão de Gaia (2015), modo como ela nomeia o tempo presente marcado pelas catástrofes. Tratava-se, então, de experimentar a vulnerabilidade como potência de vida, como potência de ação junto diante de uma terra/Terra viva, como potência de confiança em um futuro aberto aos devires. Experimentar habitar a superfície das imagens com as plantas, retirando-as do lugar de uma superfície inerte e transformando-as em uma mesa de trabalho coletiva.

Já na praça, a mesa de trabalho ganha uma lousa amarrada a uma árvore com uma pequena provocação escrita: “Com as mudanças climáticas, não são apenas espécies animais e vegetais que estão ameaçadas de extinção, estão ameaçados também os processos criativos”. A frase gerou alguns comentários entre os adultos, que participavam animados da mesa, e que diziam estar encantados com as propostas, mas que faziam questão de ressaltar que não acreditavam nesse “negócio de mudanças climáticas”. Havia em suas expressões um certo estranhamento entre a frase proposta e o que a mesa de trabalho fazia existir na praça. Percebendo que seus comentários não geravam nenhuma reação entre nós, eles (e nós) continuavam entretidos com os materiais e processos.

As mesas não foram pensadas como espaços de exercitar convencimentos e denúncias (STENGERS, 2015; LATOUR, 2020), duas lógicas que dominam as práticas educacionais e comunicacionais, e às vezes também as artísticas, quando temas como as mudanças climáticas estão em jogo. Nossa aposta é a de que os encontros entre artes-ciências-filosofias têm a potência de escapar a essas lógicas, que operam pela violência do julgamento e revelam pouca disposição para o encontro e criação conjunta.

 

 

Fonte: Mesa de trabalho “Encontros com potências frágeis”, 2016, organizada por Fernanda Pestana, Sebastian Wiedemann e Susana Dias.

 

Em cada um dos processos propostos, vimos os materiais caminharem de modos inesperados e impensados. Não imaginávamos, por exemplo, que as sacolas de papel pardo com materiais como sementes, pedras, conchas, galhos, folhas, já fossem em si mesmas uma proposta de experimentação. Por estarem no chão, transformaram-se em material preferido, sobretudo, entre as crianças. Foram elas as que fizeram acontecer as Mandalas do Clima e que nos mostraram que o chão é a mesa de trabalho das plantas. O chão é o “lugar em que vivem, onde cultivam relações vitais, onde se está vivo, e não um mero pano de fundo inerte ou um suporte para a vida na Terra, e a ‘mesa de trabalho’ é uma vivência desse tipo” (DIAS, BRITO, 2022). Lembro-me, ainda hoje, de uma delas transformando a sacola com algodão do campo (Cochlospermumvitifolium) em uma espécie de caldeirão onde cozinhava nuvens, histórias e risos, muitos risos.

As esculturas foram processos realizados, sobretudo, pelos adultos. Trabalhosas e demoradas, nos surpreenderam por instaurar uma outra lógica de estar na cidade, a da desaceleração. Compor as esculturas envolvia gerar encontros entre partes de diferentes plantas, ou tentar reunir conchas e plantas, pedras e plantas, o que exigia um demorar-se no chão entre materiais vegetais e algumas ferramentas. A dificuldade de juntar os materiais com o que oferecemos (cola, massa de modelar, arames) tornavam os seres que nasciam extremamente frágeis. Quase não resistiam a qualquer tentativa de deslocamento, era quase como se tivessem sido feitos, pelas próprias plantas ao caírem no chão e formarem casualmente um animal. Dedicar-se à criação da escultura era encarar a precariedade dos materiais, insistir após inúmeras tentativas fracassadas de criar conexões e acolher uma falta de garantias sobre a eficácia das experiências. Percebemos como as matérias vegetais ofereciam uma diversidade incríveis de formas, texturas, desenhos, arquiteturas para compor antenas, patas, olhos, asas, escamas, pelos, unhas, pernas, cabeças... Algumas plantas eram percebidas pelas pessoas como bichos, ou como partes dos bichos em si mesmas. Com as esculturas, se tornou perceptível que animais são plantas por outros meios e modos de existir, que plantas e animais compartilham da mesma “carne” como insiste Donna Haraway (2021). Assistimos com a mesa, a um caminhar multiespécies dos materiais, onde se caminha, ao mesmo tempo, no terreno da imaginação/ficção e da vida real, algo que Ingold insiste como sendo fundamental para estar vivo(2015, p. 284).

 

Mesa de trabalho 2 – “Modos de atenção à Terra”

A segunda experiência com as mesas de trabalho aconteceu em Belém durante 2022 e fizeram parte da pesquisa de pós-doutorado que desenvolvi. Elas circularam pela Praça Batista Campos, pelas trilhas do Museu Emílio Goeldi, pelas praias da Ilha do Combú, pelos corredores da Faculdade de Artes Visuais, as salas de aula, corredores e quintal do Programa de Pós-Graduação em Artes e pelo vão do Mirante do Rio na Universidade Federal do Pará.

Por organizar, pela primeira vez, as mesas de trabalho em outra cidade, pude dar uma atenção maior à própria mesa como uma coisa viva que ganhou muita expressão na proposta que desenvolvíamos. Em Belém, para garantir a mobilidade da mesa, eu tinha adotado o formato de um tampo móvel e tripés, que permitiam o fácil transporte em carros pequenos. E costumava levar duas ou três mesas com tampos e tripés. Como não consegui encontrar os tripés na cidade, terminei trilhando caminhos desconhecidos na internet e apelei para redes de vendas populares, que entregaram os tripés diretamente no lugar que me hospedei por um bom preço. A compra do tampo de madeira me fez deslocar pelos bairros da periferia de Belém e conhecer uma cidade menos turística e mais fervilhante. O tamanho do tampo e quantidade de mesas foi uma grande preocupação, afinal, a mesa de trabalho precisava andar pela cidade de transportes por aplicativo ou taxi e tinha que ter um tamanho que coubesse em qualquer carro e, ao mesmo, que possibilitasse dispor os muitos materiais coletados. Mas eu também contava com um tapete com impressões botânicas e bordados que seria disposto no chão, então optei por uma mesa apenas.

Toda a investigação para chegar à quantidade e à medida final da mesa, de 1 mesa de 1,50 x 0,70 cm, me fez retomar as leituras de Isabelle Stengers, em A invenção das ciências modernas (2012), onde ela pensa o medir nas ciências como um gesto gerador de novas relações, como um movimento instaurador de devires (2012). Pensando com a mesa de trabalho, percebo agora que não se caminha sem medir. O problema é que automatizamos a percepção desse gesto de medir durante o caminhar, tornando-o invisível. Mas basta que estejamos privados de algum dos nossos sentidos, como a visão, para que passemos a caminhar com muita atenção à distância entre um pé e outro, entre um corpo e outro, calculando cautelosamente a velocidade que imprimimos nos deslocamentos, examinando detidamente a duração dos percursos. 

Uma das atividades que propus na mesa foi, justamente, a experiência de vestir a cabeça com uma sacola de papel pardo com desenhos e experimentar tornar-se um “Dendê-que-anda”. Uma árvore fabulosa que encontramos no Museu Paraense Emílio Goeldi, e que ganha destaque no Guia Botânico do Museu Goeldi como “A planta que ‘anda’” (2006, p.37). Dendê-do-Pará ou Caiauê tem um modo de andar peculiar: ele cresce até o tamanho de uma pessoa e, depois, seu crescimento é horizontal e seu tronco vai se decompondo pelo chão. É uma espécie de caminhar que passa por misturar-se com a terra. Para adentrar a perspectiva do Dendê, e vivenciar uma “cosmologia especulativa” (COCCIA, 2018b), propus a experiência de criação de uma máscara: Dendê-que-anda. Os desenhos figurativos e abstratos feitos na sacola por muitas mãos deram vida à ideia. Depois, investimos em caminhar com a máscara e experimentar um corpo sem acesso a cores ou formas, um corpo lento e que necessitava de ajuda para os deslocamentos, um corpo que gerava novas percepções entre os humanos. Uma brincadeira que gerou uma aproximação imprecisa com o mundo, tal como vivem as plantas e que abriu várias conversas em torno dos modos como as plantas caminham: seja através do fototropismo, ou no sistema digestivo dos animais, ou através das sementes e de novas mudas produzidas por humanos, ou ainda, participando com a evapotranspiração da criação dos rios voadores. Sempre um caminhar junto, coma terra, o Sol, os rios, os animais, os fungos, os céus, as gentes... As plantas caminham, mas é sempre um caminhar-junto, um caminhar multiespécies.

A cabeça de dendê estava sob a mesa junto com muitos outros materiais:

“livros de botânica, filosofia, antropologia e arte indígena que lidam com vegetais; o livro-objetoFloresta² (DIAS, PENHA, 2019), criado em mesas de trabalho anteriores em Campinas; galhos, sementes, folhas, flores e cascas coletadas no Museu Paraense Emílio Goeldi, no Marajó, com as erveiras no Ver-o-Peso, nos supermercados, praças e ruas de Belém; também haviam plantas que ganhei, tendo em vista que a conexão com as plantas passou a ser parte das minhas relações com as pessoas em Belém; disponibilizei também fotografias produzidas no Museu Emílio Goeldi, fichas pautadas de arquivo, discos de papel pardo, sacolas de vários tamanhos de papel pardo, canetas posca e canetas hidrocor de diferentes tamanhos, bombril, tesouras, cola, lupas, pinças, placas de petri, um caderno de desenho e escrita “Quais são suas plantas companheiras” (DIAS, 2023).

 

Percebo agora que essa lista de materiais não está completa. A cada nova mesa, novos materiais foram agregados, como imagens de povos de terreiro de Belém e de animais que vivem no Jardim Botânico do Museu Paraense Emílio Goeldi, mas que raramente são vistos pelos visitantes. Agreguei, também, as primeiras páginas do livro “Modos de atenção à Terra”, com montagens feitas com as primeiras criações da mesa de trabalho em páginas de papel pautado das fichas de arquivo. A escolha desse papel foi proposital, pois poderia ser associado às práticas de arquivo das ciências, o que era interessante pelo fato de grande parte das plantas da mesa ter sido coletada em uma visita guiada no jardim botânico do Museu Paraense Emílio Goeldi. Um papel que traria, também, o desafio de escapar às ideias de Ciência, Humano, Natureza e Arquivo (no singular e com maiúsculas) e que, por isso mesmo, precisava ser habitado de múltiplos modos, de maneira a interrogar as lógicas monoculturais, arquivistas e colonizadoras que o atravessam. Percebo, agora, que as mesas em Belém permitiram fazer as páginas caminharem em coexistências emaranhadas entre naturezas e culturas, em colaborações entre artes e ciências, movimentando, desde dentro do papel pautado, a experimentação de um arquivo vivo. Detalharei aqui mais algumas reflexões com a mesa, para que seja possível visualizar esse movimento. 

Toda a organização do transporte da mesa, e dos materiais distribuídos em sacolas pardas de papel e sacolas plásticas resistentes de feira, ativaram o reencontro com as pesquisas e criações de Agnes Varda no filme Lesglaneurs et laglaneuse (2020). Filmando diversos gestos de catar, ela cria uma ecologia bastante aberrante e curiosa e faz com que interroguemos o que pode um corpo que caminha com um recipiente. A própria ideia do que é um recipiente se torna um problema exercitado no filme. Varda apresenta recipientes já reconhecidos, tais como as sacolas, cestos, panelas, bacias, potes, redes, jarros, aventais, trouxas. Mas nos lança em uma aventura de alteração perceptiva quando nos faz ver que carros e caminhões são recipientes com rodas, que embalagens não são meros invólucros, mas também transportam seus conteúdos, que câmeras fotográficas e filmadoras são receptáculos onde colocamos as imagens e sons que captamos, que os filmes são recipientes que contêm gentes e que as próprias pessoas são vasilhames que carregam coisas-seres-forças em suas mãos, estômagos, cérebros, tecidos, células... O livro-objeto que estávamos fazendo é, também, uma espécie de sacola ou cesta, que conteria tudo o que produzido na mesa. O filme de Varda remete fortemente ao texto “A ficção como cesta: uma teoria” de Ursula K. Le Guin (2020). Neste fabuloso ensaio, Le Guin nos convida a pensar na potência de guardar e transportar coisas. Vamos percebendo como os recipientes permitem um caminhar com muitos, o que aqui estou compondo como um caminhar multiespécies. Os recipientes permitem a Le Guin contar outra história sobre humanos e mais que humanos em relações, uma história que diz respeito a ferramentas que permitem fazer “circular energias” (Le Guin, 2020, p.13). Diferente das armas, que movimentam uma história de assassinatos e guerras, os recipientes são coisas que permitem narrar “um processo contínuo da vida” (Le Guin, 2020, p.14).

E esse caminhar-com-muitos pode transformar o humano, pode abri-lo para múltiplas experimentações. Em meu caso, andar com a mesa e todas essas sacolas por Belém me fez devir sacoleira, vendedora ambulante, feirante, erveira, representante do Museu Emílio Goeldi, artista, bióloga... O que implicava que o meu corpo também fazia parte da mesa de trabalho, ele também se tornava uma mesa de trabalho. E os corpos que se aproximavam para viver e criar junto à mesa, também se dispunham a uma transformação: tornavam-se materiais entre os materiais. Um dos modos como fizemos isso aparecer no livro-objeto foi colocando plantas nos corpos de todas as pessoas que aparecem nas fotografias incluídas no livro. Seus rostos foram cobertos de flores de pitanga, folhas de costela de adão, espadas de Ogun e Iansã, galhos e folhas de manjericão e arruda...

As propostas para a mesa também foram sendo construídas a cada encontro. Um chamado que permaneceu da primeira à última mesa foi a de desenhar e escrever com as plantas companheiras. Fomos, assim, reunindo muitas possibilidades de pensar o que poderiam ser “plantas companheiras”: vizinhas, parentes, colegas de trabalho, protetoras, professoras, amigas, amantes... Muitas mulheres foram recordadas na mesa como importantes portais de conexão com as plantas. Ouvimos, muitas vezes, as pessoas dizerem: “tudo isso lembra minha mãe...”, “essa mesa é a cara da minha tia”, “sinto a minha avó aqui”, “minha esposa se identificaria muito com tudo isso”, “lembro da minha filha...”.

Mulheres que lidam com as ervas, que investigam propriedades químicas, que fazem chás e sopas, que cuidam de canteiros e vasos, que distribuem mudas e sementes, que lutam pela demarcação de terras, que ensinam a amar as plantas, que curam e encantam, que mantêm vivos quintais memoráveis e agroflorestas vibrantres. Uma força feminina adveio intensamente nas mesas de trabalho em Belém, o que me faz pensar na mesa como um útero capaz de carregar coisas que foram lentamente, e coletivamente, sendo desenvolvidas.

Mas os homens que chegaram à mesa também surpreenderam, não apenas por suas práticas como agricultores, agrônomos, botânicos, farmacêuticos, vendedores de coco ou açaí, mas também por manifestarem admiração profunda por samambaias, amizade verdadeira por tajás, dedicação genuína às vitórias régias... A mesa se tornou uma espécie de estação sensível, onde nos tornávamos capazes de sondar as plantas que nos habitam e de perceber que esse habitar diz respeito a um caminhar-junto.

Fonte:Modos de atenção à Terra, 2023, organizada por Susana Dias.

 

O convite a escrever e desenhar com as plantas companheiras, em um caderno de papel, mobilizou inúmeros movimentos tanto figurativos, quanto geométricos. Os desenhos figurativos permitiram acessar as formas de inúmeras plantas, como árvores e ervas, mas também os seus modos de existir em florestas densas e intrincadas ou em pequenos canteiros ou vasos. Oferecemos também canetas posca que permitiram desenhar nas superfícies das plantas. A grande maioria dos desenhos nas plantas foi geométrico ou abstrato e pouquíssimos figurativos. Havia no gesto de desenhar nas plantas um chamado a sentir a superfície como viva. Diferente do papel, que se oferece, muitas vezes, como superfície demasiado lisa, branca e inerte, lidamos com superfícies rugosas, onduladas, espinhentas, duras, quebradiças, maleáveis, porosas...  Desenhar nas sementes, nas cascas das árvores, nas folhas ou nos galhos era um modo de perceber que as próprias plantas desenham, esculpem, pintam com seus corpos. Percepção que movimentam artistas como Valéria Scornaienchi e Marli Wunder, que têm as plantas como companheiras de criação. Desenhar nas mesas de trabalho tornou-se, muitas vezes, um modo de relação com os próprios desenhos feitos pelas plantas. E os desenhos das plantas em seus corpos dizem dos percursos que fizeram na vida, trazem marcas de suas trajetórias, de seus modos de caminhar na terra/Terra. Desenhar emergia, também, como um modo de caminhar com uma superfície-história-vida-vegetal.

As plantas ativaram, sobretudo, desenhos que se conectam aos modos como povos indígenas fazem suas pinturas e expressam histórias de viver junto com diferentes seres. Vimos nascerem muitos grafismos sobre a mesa. O grafismo, na fala do artista Denilson Baniwa vai se mostrando como uma prática que envolve quatro processos: “Observação-Recorte-Redução-Abstração” (2021. s.p.). Diz ele:

Todos os grafismos indígenas nascem da observação do conteúdo todo da natureza e de um recorte do que veem. Depois reduzem ainda mais essa relação, como se colocasse uma lupa no ambiente e depois vai trabalhando no desenho até virar uma coisa que ainda parece um sapo, mas não é um sapo realista (BANIWA, 2021, s.p.).

 

Trouxe as reflexões e explicações de Denilson para as últimas mesas que realizamos e, também, algumas lupas, para incentivar os movimentos de observação dos detalhes das plantas e acentuar a relação com as ciências que aparece em sua descrição da prática do desenho indígena. A mesa tornava-se, assim, um lugar de provocar pensamentos em torno de um trânsito e uma contaminação entre artes e ciências, não permitindo restringir esses conceitos-práticas unicamente a atores e instituições já reconhecidos como artistas/artísticos e cientistas/científicos.

Os desenhos geométricos nos lançaram em uma experiência ancestral afroameríndia, não representacional, com as imagens. Isso porque, como percebe Ingold (2015) ao pensar com o povo indígena Yolngu, desenhos e pinturas “são seres do passado ancestral, apresentados e divulgados no presente”, “a pintura é apenas uma das muitas maneiras nas quais esses seres podem se revelar, ou fazer sentir sua presença” (2015, p. 293). Essa experiência, diz Ingold, gera a possibilidade de sentir que a paisagem e o desenho existem no mesmo plano ontológico (2015, p. 293). Ingold defende a ideia de que, ao invés de reforçar a separação entre material e mental, os desenhos geométricos oferecem um lugar “onde mente e mundo podem se mesclar forjando uma experiência interior da unidade da vida” (2015, p. 294).

Haviam, também, na mesa de trabalho, fotografias de povos de terreiro de Belém que coletei em várias matérias de jornais, revistas e blogs na Internet. Isso porque, quando o visitamos o Museu Paraense Emílio Goeldi, a equipe da área de educação nos informou que havia uma trilha que eles haviam criado e que relacionava as árvores do Goeldi com as práticas da umbanda e candomblé em Belém, mas que a trilha havia sido descontinuada por não ser bem aceita.

A “Trilha Afro-Amazônicos e seus Símbolos” era aberta a estudantes do 1º. ao 3º. ano e propunha um roteiro interpretativo que envolvia:

a samaumeira, árvore escolhida por Mametu Nangetu da nação Angola e por Baba Tayando da nação da Pajelança; o “Lago dos Tambaquis” simbolizando a água, símbolo eleito por Mãe Nalva da tradição Iorubá; a jaqueira apresentada por Mãe Jocolocy da nação Jeje Savalu; a dendezeira, escolha de Mãe Vanda da Umbanda e a árvore mamorana, símbolo importante para o Tambor de Mina, representado por Pai Alfredo (Agência do Museu Goeldi, 09/05/2016).

 

Desde a primeira mesa de trabalho, pessoas de religiões de matriz africana participaram escrevendo e falando sobre as relações com as plantas em suas práticas umbandistas e de candomblé. Algumas pessoas, também associaram a mesa a uma espécie de altar ou oferenda, algo que reverenciava não apenas as plantas, mas também as divindades que as cuidam, protegem e acompanham. As imagens de povos de terreiro que disponibilizei participaram de colagens e desenhos, em interações com plantas e grafismos. Também compuseram cortejos de papel em meio às plantas dos jardins do Museu Paraense Emílio Goeldi que foram fotografados e foram compor páginas do livro. O livro, ao final, foi organizado junto com os artistas e pesquisadores de Belém, Bianca Santos, Breno Filo e Marília Frade, que participaram da primeira à última mesa de trabalho. Para finalizar o livro-objeto nos encontramos durante três meses online e recriamos, em uma mesa de trabalho multimídia, as criações feitas em Belém. O livro, ao final, ganhou o nome de “Companhia como modo de atenção à Terra” e vai sair em uma parceria da editora do PPG-Artes da UFPA e Revista ClimaCom.

 

Pode uma mesa caminhar?

Essa pergunta, que pode parecer estranha a princípio, começou a ganhar sentido com esta escrita. Não apenas porque as mesas de trabalho percorreram diferentes espaços-tempos, mas também porque caminharam no mesmo lugar, ao colocarem propostas, materiais, corpos e ideias em movimento constante. Promoveram um verdadeiro caminhar multiespécie e deram a pensar o que pode ser esse modo de andar por aí.

Um caminhar que se inventa junto, entre humanos e mais que humanos, entre gentes, livros, plantas, imagens, bichos, palavras, rios, linhas, nuvens... Um caminhar que nos engaja materialmente com a terra/Terra, estimula cocriações e coevoluções afirmativas em meio às catástrofes, destruições e perturbações do Antropoceno. Um perambular que afirma possibilidades de existência para além das representacionais, onde caminhar ganha força como modo de fazer mundos vivos e não de andar sobre mundos inertes já prontos e acabados. Emerge toda uma arte de caminhar-junto, de caminhar-com-muitos, que ativa o devir artista de todo mundo e transforma os humanos em materiais entre materiais.

Ao caminharmos-junto-com-muitos somos mobilizados a escapar das hierarquias, dos binarismos, linearidades e normatizações do modelo de comunicação baseado na ideia do déficit de conhecimento, que frequentemente povoa artes, educações e comunicações. Percebemos como desenhar, colar, fotografar e escrever são gestos intimamente conectados ao caminhar, como propõe Ingold (2015). Gestos que implicam os corpos e materiais em movimentos constantes, em que múltiplos sentidos estão sempre perambulando na criação das imagens.

Quando caminhamos-junto-com-muitos, o material e o mental, o organismo e o meio, a teoria e a prática, o produto e o processo, também andam juntos, em miríades de arranjos entrelaçados, indistinguíveis. E esse caminhar é uma verdadeira “ofensa ao pensamento moderno, que insiste em que o que chama de “ficções” da imaginação não pode ter nenhuma relação com o mundo da nossa existência corpórea” (INGOLD, 2015, p. 286).

Quando uma mesa caminha, podemos instaurar práticas de revitalização das confluências e hibridações entre diferentes ontoepistemologias, entre diferentes artes-ciências-filosofias, entre diferentes práticas, criando diálogos que incluem o que foi excluído pelas perspectivas coloniais (as plantas, os rios, os bichos, os povos indígenas, os povos africanos...) e, assim, participar da continuidade criativa dos mundos através de um caminhar multiespécies.

 

Projetos

Este artigo é um produto dos projetos de pesquisa: Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia-Mudanças Climáticas (INCT- Mudanças Climáticas) Fase 2, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), projeto 465501/2014-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) projeto2014/50848-9 e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) projeto 16/2014; e projeto de pós-doutorado “Perceber-fazer floresta – do chamado a pensar o que pode a matéria papel diante do Antropoceno”, desenvolvido no Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Federal do Pará (UFPA) sob supervisão de Maria dos Remédios de Brito; e projeto "Perceber-fazer floresta: alianças entre artes, ciências e comunicações diante do Antropoceno" (Fapesp 2022/05981-9).

 

REFERÊNCIAS

 

BANIWA, Denilson. Grafismos indígenas: desenhos e falas. Youtube Sesc Rio, 1 de maio de 2021. Disponível em: <https://www.facebook.com/watch/?v=215784330313624>. Acesso em: 30 jun. 2023.

CARSTENS, Delphi. The Anthropocene crisis and higher education: a fundamental shiftabr. Institute for Interdisciplinary Research into the Anthropocene, Texas, 2022. Disponível em: <https://iiraorg.com/2022/04/19/the-anthropocene-crisis-and-higher-education-a-fundamental-shift/>. Acesso em: 20 ago. 2022.

CHAKRABARTY, Dipesh. O clima da história: quatro teses. Tradução: Denise Bottmann,Fernanda Ligocky, Diego Ambrosini, Pedro Novaes, Cristiano Rodrigues, Lucas Santos,Regina Félix e Leandro Durazzo. In: NODARI, Alexandre; CERA, Flávia. Sopro 91. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2009. (Panfleto).

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DIAS, Susana; BRITO, Maria dos Remédios de. A arte pública diante do Antropoceno: experimentações em “mesas de trabalhos”. In: FUREGATTI, Sylvia; BASSANI, Thiago Samuel; SEQUEIRA, Alexandre. Arte pública no Brasil: convergências e dissensos. Campinas, SP: IA/UNICAMP, 2022. pp. 201-210. Disponível em: <https://geapbr.files.wordpress.com/2023/03/anais-geap-br-2022-3.pdf>. Acesso em: 30 jun. 2023.

DIAS, Susana. Mesas de trabalho a céu aberto. ClimaCom – Políticas vegetais [online], Campinas, ano 9, dez. 2022. Available from: <http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/mesas-de-trabalho/>. Acesso em: 30 jun. de 2023.

DIAS, Susana. Perceber-fazer floresta: da aventura de entrar em comunicação com um mundo todo vivo. ClimaCom – Florestas [Online], Campinas, ano 7, n. 17, Jun. 2020. Disponível em: <http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/susana-dias-florestas/>. Acesso em: 30 ago. 2022.

HARAWAY, Donna. O manifesto das espécies companheiras - cachorros, pessoas e alteridade significativa. Trad. Pê Moreira. 1a. ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Trad. Fábio Creder. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Trad. Letícia Mei: prefácio Angela Davis; posfácio Guilherme Moura Fagundes. São Paulo: Ubu Editora, 2022.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

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LATOUR, Bruno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. Tradução: Maryalua Meyer. São Paulo; Rio de Janeiro: Ubu Editora; Ateliê de Humanidades, 2020. (Coleção EXIT).

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STENGERS, I. No tempo das catástrofes - resistir à barbárie que se aproxima. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2015. (COLEÇÃO EXIT).

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TSING, A. L. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB MilFolhas, 2019.

 

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[1] Susana Oliveira Dias tem pós-doutorado em artes pela Universidade Federal do Pará (UFPA). É pesquisadora (PqA) do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e editora da Revista ClimaCom. E-mail: susana@unicamp.br.