Educação da sensibilidade, dez limões e um balde na mão

 

Sensitivity education, ten lemons and a bucket in hand

 

Educación de la sensibilidad, diez limones y un balde en mano

 

 

Luciana Mourão Arslan[1]

Universidade Federal de Uberlândia

 

Resumo

Este artigo apresenta questões relacionadas à corporeidade no ensino-aprendizagem. O foco em práticas de atenção e no trabalho sensorial é revelado a partir de um relato de uma aula, na qual alunos foram convidados a limpar os espaços do edifício no qual estudavam. O relato é o fio condutor de discussões acerca de como a corporeidade se conecta com as ações de aprender-pensar-ensinar-mover.  Esta proposta refere-se também ao campo de discussões da somaestética e de estudos da cognição que consideram o soma-corpo de forma integral.

Palavras-chave: Somaestética; Ensino-Aprendizagem; Corpo na escola; Educação Somática.

 

Abstract

This article presents issues related to embodiment in teaching-learning. The focus on attention practices and sensory work is revealed from a report of one class, in which students were invited to clean the spaces of the building where they studied. The report is the guiding thread of discussions about how corporeity connects with the actions of learning-thinking-teaching-moving. This proposal also refers to the field of discussions of somaesthetics and studies of cognition that consider the soma-body in an integral way.

Keywords: Somaesthetics; Teaching-Learning; Body at school; Somatic Education.

 

Resumen

Este artículo presenta cuestiones relacionadas con la corporeidad en la enseñanza-aprendizaje. El enfoque en las prácticas de atención y trabajo sensorial se revela a partir de un informe de una clase, en la que se invitaba a los estudiantes a limpiar los espacios del edificio donde estudiaban. El informe es el hilo conductor de las discusiones acerca de cómo la corporeidad se conecta con las acciones de aprender-pensar-enseñar-mover. Esta propuesta también se refiere al campo de las discusiones de la somaestética y de los estudios de la cognición que consideran el soma-cuerpo de manera integral.

Palabras clave: Somaestética; Enseñanza-Aprendizaje; Cuerpo en la escuela; Educación Somática.

 

Corporeidade, sentidos, arte e educação

A importância da corporeidade nos processos educativos contempla muitos aspectos. Como professora da Graduação em Artes Visuais, tenho valorizado, em meus discursos, experiências estéticas corporificadas, as quais, muitas vezes, são ignoradas[2] em vertentes estéticas mais puristas e que consideram como válidas apenas propostas artísticas que pensam a linguagem/a tradição da arte/uma visão mais formalista ou conceitual de arte/objetos no lugar de experiências cotidianas e corporificadas. Nas minhas práticas docentes, tenho convidado os alunos a observarem/sentirem suas corporeidades, priorizando propostas que focam nos estados de atentividade[3] e nos sentidos corporais. 

Tenho defendido que trazer à superfície a corporeidade amplia não somente a nossa experiência estética (e sua compreensão), mas também viabiliza um trabalho educativo mais efetivo. Estar atento e com os sentidos disponíveis às experiências é essencial para que se viabilize a “comunidade de aprendizagem”, anunciada por Paulo Freire (1996) e Bell Hooks (2017), e melhora a qualidade de presença nas práticas de estudar e de ensinar-aprender. A relação entre alunos e professores não é garantida a priori, com um bom planejamento e/ou por meio de decisões intelectuais, mas é no corpo-a-corpo, através da sensibilidade somática-corporal, que se reconhece, que se sente o outro.

Corpos exaustos, acostumados ao sequestro de suas atenções por telas brilhantes, uniformes e atraentes, dificilmente desenvolvem uma consciência de atentividade, necessária para que haja empatia, por exemplo. Corpos tensos e anestesiados nem ensinam, nem aprendem. Da mesma forma, o trabalho sensorial está interconectado com a cognição e com a percepção.  Alinho-me à teóricos defensores de que os sentidos não são um aparato neutro, que respondem a estímulos externos (VANNINI, WASKUL, 2012, p. 11), mas que são parte de um processo ativo e se retroalimentam de experiências atentas, ou seja, podem ser desenvolvidos por meio de práticas específicas.  

Mais do que tudo, tenho pensado em como desenvolver práticas para acordar corpos anestesiados e letárgicos (talvez pela pandemia, pela tecnologia, ou pelo que ainda não sei), mas também laboratórios práticos que façam despertar o desejo por novas experiências[4] e por assumir uma mobilidade de hábitosque pressupõe a consciência acerca dos hábitos irrefletidos.  

No chão da sala de aula, tenho trazido à superfície esses aspectos, tanto em ações que envolvem grandes deslocamentos sensoriais (em travessias e caminhadas pela cidade, banhos de floresta, entre outros), quanto em exercícios que solicitam a consciência aos pequenos gestos e a atenção às mobilidades mais sutis.  O texto aqui presente discorre acerca de uma dentre essas práticas, realizada em 2022, a qual propôs um pequeno deslocamento corporal e sensorial. A proposta convidou os alunos a limparem o corredor e uma das salas do edifício onde estudavam: a olhar, sentir e habitar tais lugares de passagem por meio de um programa prático e corporal de limpeza.  Escrevo-penso sobre essa proposta/programa de limpeza em três etapas:  a limpeza; uma aula entre baldes e levantando a poeira.

No meu penúltimo livro, sobre corporeidade nos processos de ensino-aprendizagem (ARSLAN, 2021), apresentei de forma muito breve algumas propostas possíveis para desenvolver o corpo-consciência.  Nessa publicação, eu alertei que não queria de forma alguma apresentar uma "receita" de práticas. Assim, imagino que aqui, ao detalhar uma proposta, fique evidente que o relato dela não é mais do que uma estratégia de pensamento compartilhado. Tampouco é uma prática exemplar – afinal, ao escrever este texto, levanto também muitas dúvidas sobre ela.  

Por não ter como avaliar tais práticas com medições ou provas, nada mais me resta do que refletir sobre a documentação delas.  

A limpeza: inspirações da vida e da arte 

Peço licença para explicitar algumas vivências e referências que inspiraram o planejamento desta prática de aula, abordar a sua criação. Demarcar esse tempo expandido que envolve a concepção de uma aula ressalta o trabalho invisível da docência e demarca o tempo real, pouco econômico, de planejamento dela: reconhecer o tempo de preparo de uma aula – que escapa aos breves e fragmentados tempos escolares – é uma necessidade política. Um professor precisa ter experiências corporais e somáticas, sua sensibilidade precisa ser nutrida: com tempo, dinheiro e oportunidades que antecedem o tempo da aula.

No caso da proposta do programa de limpeza, ela começou a nascer no meu corpo-mente, provavelmente, a partir do contato com o artista nipo-alemão Tadashi Endo. Em julho de 2018, realizei um workshop de 10 dias no Butoh Centre MAMU, na cidade de Göttingen, Alemanha. Esse workshop reuniu cerca de 12 participantes de diferentes partes do mundo: alemães, uma afro-alemã, um norueguês, uma japonesa que residia na Noruega, uma suíça, um brasileiro que vivia na Dinamarca e eu. Havia diversidade sexual, etária, uma multiplicidade de peles, cabelos, cheiros e dietas. Nós dormíamos, comíamos e compartilhávamos o banheiro no próprio estúdio – que se convertia em um festivo e etílico albergue após o workshop. Na cozinha, trocamos receitas vindas dos locais onde havíamos vivido e/ou baseadas em dietas “ideológicas” (havia vegetarianos, veganos etc). Todos pareciam ter uma identidade flutuante, inclusive nas suas afiliações em arte:  alguns já trabalhavam com butô, outros estavam em grupos independentes de arte-terapia, teatro-físico, artes visuais, contato-improvisação, performance, além da presença de assistentes sociais em busca de referências para seus trabalhos comunitários. Entretanto, durante o workshop, toda a diversidade do grupo parecia formar uma unidade heteróclita diante da “figura” do orientador Tadashi Endo. Completamente atípicas para nossos repertórios, as propostas de Tadashi, não nos ofereceram abrigo definido, e seu método não era dado a filiações estáveis. O próprio Tadashi referenciava um conhecimento advindo de diversas fontes (artes marciais chinesas, o butô japonês, do polonês Grotowski e dos seus estudos de dança na Alemanha).  O butô e a pessoa de Tadashi indicavam uma formação que não necessariamente seria identificada como puramente japonesa. O workshop desconstruía modelos culturais de educação: algo muito difícil de se conquistar por meio de um discurso e que necessitava muita prática.   

Um exercício de Tadashi, repetido diariamente nos dez dias de workshop, partia de uma ação muito simples: limpar o chão.  Todas as aulas começavam com esse aquecimento: uma limpeza do piso do estúdio, com panos, balde e água. Essa limpeza deveria ser feita de forma coordenada:  após molhar e torcer bem um pano, seguindo os comandos do Tadashi, íamos e voltávamos duas vezes no espaço (juntos), na posição invertida, como mostra a imagem 1. 

Imagem 1 – A ação de limpeza no workshop oferecido por Tadashi Endo

Fonte: Limpeza do piso, a ser realizada todo início das aulas. Fotografia de Janine Jogwer, experiência da autora/ pesquisa de campo.  

Os panos deveriam ser lavados e pendurados para secarem em um varal no jardim e serem reutilizados no dia seguinte. Era importante torcer bem o pano, porque, se molhado, irritava Tadashi. Assim, a limpeza acabou sendo parte de nosso treinamento.  Certa vez, Tadashi comentou uma performance ou treinamento (não me recordo bem), a qual consistia em passar mais de quatro horas mergulhando um pano no balde e torcendo-o. A ação era repetida exaustivamente até que pano e artista virassem uma coisa só.  Como você (seu corpo) se afeta pela matéria do pano torcido? Como se afeta pela água?  

Ressalta-se que, no Japão, as experiências estéticas não precisam estar desvinculadas de funcionalidades cotidianas: a cerimônia de chá, as artes marciais, a caligrafia, o origami, o ikebana são práticas tratadas com o mesmo status da arte[5]. No entanto, uma arte que se mescla com a vida e ocorre fora de instituições é muito comum no Oriente Médio, na África ou mesmo quando olhamos para alguns povos originários no Ocidente.  E, me parece, Tadashi parecia importar-se mais com a vida do que com as performances. No contexto do workshop, limpar o estúdio não era ação performática, era parte do treinamento corporal. A performance aparecia como consequência, ele comentou numa de suas aulas: o dançarino dá a oportunidade para os outros verem a sua vida através do seu corpo.

No movimento japonês de artistas chamado zero dimension ou zero jigen[6], nos anos pós Hiroshima, (alinhado aos movimentos de vanguarda europeus e estadunidenses); os artistas criavam rituais – performados em espaços urbanos – a partir de atos muito simples e costumeiros, realizados em slow motion ou deslocados da cotidianidade. Também Hijikata, apontado como precursor do butô, incluía ações/ou estudos de movimentos "banais" em suas práticas: Hijikata propunha que o movimento deveria ser produzido a partir de ações simples e cotidianas, mas observou que, ao repeti-las obsessivamente, elas poderiam se transformar em ações de estranha veemência. Todas as ações deveriam, portanto, conformar-se com uma execução, apenas habituando-se às suas possibilidades. Dessa forma, o corpo inteiro poderia se tornar uma arma mortal para fazer um movimento particular. Como se todos os tendões se rompessem de uma vez, fazendo um acompanhamento sonoro (GREINER, 2015; p. 121). Outra interpretação possível para o ato de limpeza é presente nesse treinamento (e em outros) é o seu sentido “simbólico”, que não estaria desconectado da prática. No Japão, é mais consciente este sentido integrado, no qual corpo e ambiente são compreendidos como uma unidade indivisível, na filosofia budista, limpar o ambiente é limpar também a mente e o coração.  

A artista Yoko Ono, que fez parte do grupo de vanguarda artística Fluxus, e tem um trabalho de arte dedicado à limpeza, se volta mais para as ações simbólicas de limpeza. Na sua “Peça de Limpar”, é possível verificar que, mesmo os atos mais concretos de limpeza, são de caráter mais simbólico:

PEÇA DE LIMPAR  

Faça uma lista numerada das tristezas em sua vida. Empilhe pedras que correspondam a esses números. Acrescente uma pedra cada vez que houver tristeza. Queime a lista e aprecie  

o monte de pedras por sua beleza.
Faça uma lista numerada das felicidades em sua vida. Empilhe pedras que correspondam a esses números. Acrescente uma pedra cada vez que houver felicidade. Compare o monte de pedras
ao monte da tristeza.
   

 

PEÇA DE LIMPAR III  

Tente não dizer nada negativo sobre ninguém. a) por três dias; 
b) por quarenta e cinco dias
c) por três meses.  Veja o que acontece com sua vida.  

 

PEÇA DE LIMPAR IV  

Escreva tudo que você teme na vida.
Queime o papel.
Despeje óleo de ervas com aroma doce sobre as cinzas.   

 

Peça de Limpar Yoko Ono. Fonte: https://www.fuggiamo.com/blogs/news/yoko-ono (tradução do autor)

A limpeza também está presente, de forma ativista, no trabalho da artista contemporânea Mierle Laderman Ukeles, que, em 1969, escreveu um manifesto pela manutenção da arte, onde inicialmente definiu 4 atos, ao quais foram performados no Wadsworth Atheneum Museum e envolviam: a abertura e o fechamento do museu; a guarda das chaves; a limpeza das vitrines e a limpeza das escadas. Por um lado, politicamente, mostra que a equipe de limpeza em um museu é tão importante quanto os curadores e, por outro, dá destaque ao trabalho de muitas mulheres que (naquele tempo) ficavam confinadas à limpeza do espaço doméstico. Outra artista mais ligada ao movimento feminista, Martha Rosler, apresentou o trabalho “limpando cortinas”, onde sugere a alienação da dona de casa e seu isolamento do mundo político. Outra obra, criada pela artista Brendan Fernades, em colaboração com mais seis dançarinos, também se constituiu na realização de um “trabalho de limpeza”: juntamente com a equipe do Wythe Hotel in Williamsburg, os dançarinos elaboraram uma dança inspirada nos movimentos de limpeza que faziam parte do cotidiano.  

Devo também pontuar outro evento, que também pode ter sido uma inspiração para a minha proposta e se refere a um trabalho que eu desenvolvi. Em 2020, estava num trabalho de criação do livrodança “Danças para vestir o pensamento” ( ARSLAN, 2023), ao mesmo tempo que lecionava estágio para alunos (ensino remoto, durante a pandemia covid-19). A partir da leitura de textos da Bell Hooks, com os alunos, propus que eles criassem ações para que eu dançasse no prédio que estaríamos frequentando, não fosse a pandemia. Então, fui ao prédio no qual leciono (que estava vazio durante a pandemia) e lá executei uma longa improvisação. Ao fazer essa ação de improvisação, eu me deparei, em certos momentos, com enormes camadas de poeira e, então limpei o espaço. Acarinhando o mesmo.

Essa improvisação, na época, me proporcionou, pessoalmente, uma sensação de intimidade e conexão com o local.  Nesse período, as ações improvisadas no edifício me ajudaram muito a restabelecer uma nova conexão com esse espaço, diminuindo o meu temor de voltar a frequentá-lo, o que sempre me causava um pouco de tensão e incômodo – pois ele me oprimia, me expelia, me transmitia muita frieza, tristeza e falta de acolhimento.

Uma aula entre baldes 

O contexto da aula em que propus o programa de limpeza ocorreu num período pós-pandemia covid-19. Vivíamos simultaneamente uma euforia de estarmos fora de casa e um estranhamento nos encontros corpo-a-corpo: o uso de máscaras faciais havia sido recentemente liberado. O grupo de alunos cursava um componente curricular centrado em questões relativas à corporeidade e à educação. Era a primeira vez que eu ministrava esse componente em aulas presenciais: três turmas, de cerca de 20 alunos cada, um total de 60 alunos, me acompanharam nessa proposta. As práticas eram quase sempre combinadas na aula anterior e, quando não surgiam propostas do coletivo, que raramente apareciam no princípio do curso, eu mesma propunha uma experiência: foi o caso dessa. Anteriormente a ela, havíamos lido/discutido ideias de Michel Foucault (1987) sobre os espaços escolares e sobre como o edifício e os tempos métricos do calendário acadêmico, que fragmentam e dividem tudo, estavam lá, com e entre nós.

Mas como aprofundar e transformar essa relação com o espaço das instituições de ensino? É possível subverter alguns aspectos? É possível reconhecer padrões estruturais de nossas percepções para além dos apontados por Foucault? É possível desenharmos formas de nos movermos neles que transgridem o projeto disciplinador oculto?

O estadunidense Shusterman (2012), criador da somaestética, é quem me ajudou a olhar para a teoria Foucault e refletir: o que posso fazer somaticamente/corporalmente para não ser anestesiada por estruturas tão cruéis como as apontadas por Foucault? A ideia de auto-vigilância (no lugar de vigilância panóptica) é tristemente anunciada pelo filósofo Byung Chul-han (2015), que praticamente atualiza as questões de Foucault na contemporaneidade no seu livro Sociedade do Cansaço, comentando que agora somos nós que nos escravizamos.

 É assim que tenho pensado em como fomentar uma consciência somática e uma crítica a estruturas educacionais que anestesiam nossas sensibilidades, mas, também, de certa forma, tenho tentado apontar caminhos pelos quais podemos manter nossa vitalidade para não nos encolhermos e afundarmos mais ainda em nossas próprias visões catastróficas. Admiradora do gênero lecture-performance (ARSLAN, 2022), eu tenho procurado organizar aulas que convoquem corpos vivos e atentos, abertos a criação. Então, eu não tenho planejado aulas espetaculares (do ponto de vista da minha performance), mas, sim, encontros capazes de cultivar certo caráter de acontecimento em tempo real: planejando práticas que gostaria de fazer e fazer junto, com todas as turmas. No caso desse programa de limpeza, por exemplo, foi uma semana inteira de faxina para mim, já que participei do programa três vezes, com três turmas, em três áreas distintas do bloco.  

Para isso, combinamos, na aula anterior, que, dentro do possível, providenciaríamos materiais de limpeza. Nessa aula, uma aluna nos ensinou a fazer detergente usando dez cascas de limões descartadas e congeladas com um pouco de álcool[7]: o que além de ser mais recomendado para alérgicos, gera um produto mais biodegradável (receita que uso até hoje na minha casa). E, ainda que esse produto não estivesse disponível em todos os dias de limpeza, essa receita nos convidou a pensar em todos os espaços, para além do prédio, afetados pela limpeza. Notei que nem todos os alunos estão anestesiados, e alguns, inclusive, estão muito atentos a uma visão mais (ecologicamente) integrada. Também, uma semana antes, conversei com a funcionária responsável por esse trabalho no edifício, consultando-a sobre o que achava da atividade e se gostaria de sugerir algo: ela disse que seria legal se os alunos olhassem mais para a limpeza do espaço, explicou ainda que trabalha sozinha no edifício e que não alcança locais altos.

No dia da aula, fizemos algumas atividades corporais na sala, só para aquecer e ritualizar o início da proposta: uma automassagem e um “chuveirinho” com as mãos correndo pelos corpos, em trios. Logo a seguir apresentei o programa:  

PROGRAMA LIMPANDO E TORCENDO PRÁTICAS ARTÍSTICAS: uma experiência de ensino-aprendizagem a partir de uma prática de limpeza. 

• Às 19h30 podemos iniciar o trabalho de limpeza;

• Alunos que não desejam limpar podem: 1. ler (em voz alta) para nós trechos de textos enviados no grupo de WhatsApp; 2. Tirar fotos; 

• Manteremos silêncio, falaremos apenas o essencial para a tarefa de limpeza que nos propusermos a fazer;

• Procuraremos nos centrar ao máximo no que estamos limpando, com atenção aos mínimos detalhes; 

• Imaginaremos um grande elástico nos unindo, de forma que estaremos sempre “na vista” um dos outros; 

• Usaremos cadeiras – com muito cuidado – para alcançar as partes altas, que são as áreas em que a funcionária Lurdes (única responsável pela limpeza do bloco I) encontra maior dificuldade. Também podemos nos centrar em detalhes, armários, banheiro, corrimãos; 

• Às 20h40 podemos retornar para a sala, para uma escrita automática;

• 21h15 intervalo;  

• Entre 21h30 e 22h conversaremos sobre a experiência. 

No primeiro dia, com a primeira turma, ao longo da proposta, fui vendo que estava sendo feita com engajamento. Confesso que a coreografia dos corpos em movimento no espaço, subindo em paredes, agachados no chão, já me pareceu uma boa coreografia naquele espaço, tão cheio de memórias de corpos realizando movimentações tão parecidas.

Ao final, quando conversamos, após uma escrita automática sobre a experiência, apareceram muitas reflexões sobre o surgimento de um senso de comunidade, de como a organização da limpeza, que parecia impossível no silêncio, foi surgindo durante o trabalho. Muitos disseram não gostar de limpar a casa, mas que, na atividade, o de estarem juntos fez com que o ato de limpar ficasse mais divertido. Muitos alunos – inclusive eu – disseram ter sentido uma vontade de limpar mais a própria casa. E, claro, surgiram sugestões de que repetíssemos o programa juntos em algumas das casas!

Para a aula da limpeza do bloco, primeiramente nos separamos em grupos da limpeza, da leitura e do registro. Limpar esse espaço do bloco que passamos e vivemos ali quase todos os dias, muitas vezes, sem perceber que a limpeza nos possibilita estar mais limpos também,  tanto de alma, quanto de corpo. Me lembro e anotei de alguns registros que leram para mim enquanto passava pano no corredor e que me fizeram refletir: “Varrer a poeira do chão e a sujeira da alma, é uma prática cotidiana para encontrar a harmonia e a serenidade”, e outro trecho que dizia que se ensinamos as crianças a não respeitar os objetos e o espaço deles, elas consequentemente podem também não valorizar as pessoas e descartá-las como é feito com objetos. Fiz um registro da escrita automática. (R. M.)

A percepção do espaço também apareceu muito na conversa final, à qual respondi que o abaixar, o chegar perto, o deslocar-se no espaço é imprescindível nesse reconhecimento, que não é só feito pelos olhos. Em alguns relatos, houve atenção aos cheiros e ao toque, à sensação da poeira.

Nesse dia, fizemos uma limpeza geral no nosso bloco, quando a proposta foi enunciada pela professora eu achei que a experiência não seria nada boa por exigir trabalho em equipe, mas mesmo assim, estava aberto para qualquer sentimento naquele momento. Sendo assim, começamos a limpar o chão, móveis, armários, etc. Grande parte dos alunos, por minha surpresa, estava ajudando eficientemente. [...] Além disso, foi possível observar cantos e extremidades que nunca tínhamos refletido antes, havia muita sujeira e poeira em locais geralmente de difícil acesso, como no topo dos armários, me fazendo refletir que esse jeito de ver as coisas é como as faxineiras do bloco olham experienciam o mesmo todos os dias, me fez conectar com essas trabalhadoras que são pouco reconhecidas. Mesmo após o fim da atividade da limpeza e o compartilhamento da nossa experiência com os outros, não me senti cansado hora alguma, pelo contrário, estava mais disposto do que antes da atividade ser proposta, isso me fez perceber minha preferência por atividades mais práticas e manuais do que teóricas. Além de ter sido uma experiência totalmente beneficente para minha percepção do nosso bloco. (J. P.) 

“Neste dia a professora nos mostrou uma forma diferente de ver a limpeza dos objetos e do local, fizemos no primeiro momento uma limpeza energética e após isso fizemos a limpeza física de uma das salas do bloco, sempre tive muitos problemas pela forma de enxergar a limpeza e quando fizemos ela de forma leve, em conjunto em trouxe uma nova visão sobre isso. (T. B. O.)

"As mãos passando desde do fio de cabelo até a ponta do pé foi realmente como um banho o sentimento da água caindo, na parte da limpeza foi prazeroso o cheiro do álcool na tentativa de limpar o quadro, foi prazeroso organizar as tesouras e lápis. As dificuldades foram o que trouxe um pouco de desconforto, isso se provocou pela poeira irritando o nariz, o corpo cansado juntamente com uma dor no joelho que tive." ( M.E.G.A) 

Na segunda turma, senti que houve certa resistência física por parte dos alunos do diurno, uma preguiça mesmo: o dia amanheceu nublado e chuvoso, o que não parecia muito convidativo para o trabalho com água. Também, posteriormente a essa atividade e após consultar a coordenação sobre alguns alunos, descobri que essa turma reunia quatro alunos diagnosticados com autismo. Pelos relatos posteriores deles, notei que esse tipo de atividade causava muito incômodo, por quase tudo: por ser corporal, coletiva, envolver uma ação improvisada, exigir interação com os demais alunos, muitas texturas, etc. Mesmo sem saber, à época, desses casos de autismo, havia a opção de não limpar, a qual minimizava o desconforto – mas não o suficiente.  Tenho procurado oferecer a opção de que os alunos possam sempre não fazer se não desejarem: pois acredito que o sucesso das práticas deve envolver um engajamento integral, ou seja, deve haver o desejo de estar ali. Isso é bastante complicado quando tratamos de ensino formal, e confesso que não tenho ainda um posicionamento fechado sobre isso, pois sinto que alguns alunos demoram a comprar as ideias do coletivo, às vezes, mais movidos por uma inércia e um hábito de trabalhar individualmente do que pela atividade em si. Nessa turma, mais alunos escolheram ficar lendo o Manual de Limpeza do Monge Budista e, talvez por isso, apareceram muitos relatos sobre aspectos meditativos da prática de limpeza. Alguns alunos até mesmo associaram com a integração corpo-ambiente, afirmando a conexão entre limpar o ambiente e limpar a mente.

 "Nesta aula colocamos em prática a meditação por meio da limpeza do nosso espaço no bloco de artes. Enquanto alguns alunos limpavam, outros liam trechos do livro do monge Keisuke Matsumoto “Manual de limpeza de um monge budista” (R.B.) 

"Durante a limpeza do no nosso bloco, alguns alunos ficaram em total silêncio, concentrados no que estava fazendo e em profundos pensamentos, outros não conseguiram de fato meditar como o proposto. Todavia, a tarefa de limpar um espaço pela manhã, deixou a maioria energizada, mas após a atividade em questão, a sensação de cansaço me atropelou. A mente estava cansada demais para pensar em qualquer coisa após a limpeza. Com o tempo chuvoso, a vontade era apenas de deitar-se na cama e hibernar por 300 anos. ( L. O. )" 

Nessa aula aprendemos sobre essa forma de meditação, uma limpeza externa que também nos cura internamente. Descobri que isso era algo que eu já praticava inconscientemente, pra mim quando tudo está um caos na minha vida, eu começo organizando o ambiente em que eu estou. Desde então, toda vez que tenho oportunidade, eu procuro fazer as atividades do meu dia a dia com essa mentalidade de meditação.  (R.S.B) 

Finalmente, o que mais me animou foi o reconhecimento da profissional da limpeza e um sentimento de empatia para com ela, assim como o reconhecimento de que nossos hábitos de limpeza naturalizam questões que, por vezes, fazem parte de uma tradição social e/ou cultural irrefletida. Nesse sentido, lembrei-me das proposições de Lepecki (2012) acerca da coreopolítica, assim como dos programas performativos de Eleonora Fabião (2013), de como pequenas movimentações dos corpos são implicadas com relações sociais e de como relações políticas e sociais podem ser mudadas através de projetos de movimento.

"No fim da aula conversamos sobre como foi a experiência da limpeza, o que essa prática nos fez refletir e de como isso pode estar ligado à problemas sociais e à arte também. A professora nos mostrou um artigo que exemplifica performances e obras que levam a limpeza (em qualquer campo) como foco. Na questão social debatemos sobre como a limpeza é vista como um trabalho inferior aos outros, como isso está ligado a nossa herança escravocrata e de como isso afeta a forma que enxergamos a sociedade e o espaço público.  Confesso que no começo não sabia muito bem o que esperar do resultado dessa prática, mas no fim me surpreendi de como unificou e sintonizou nossa turma e de como conseguimos tirar proveito reflexivo sobre uma atividade tão simples e cotidiana. Como disse na minha escrita automática, limpar me ajuda a organizar o espaço interno. No dia seguinte, sábado de manhã, comentei com a moça da limpeza sobre a aula e disse que falei sobre ela. Ela deu um sorriso e já começou a falar sobre a vivência dela no trabalho de limpeza rs foi bem legal." (H. M. T) 

 

Imagem 2 – Fotos dos alunos realizando limpeza

Fonte: (arquivo pessoal/ diário coletivo da aula).

Levantando a poeira

Quando é proposta uma atividade focada em práticas que exigem mobilidade e tarefas que lidam com aspectos sensoriais, parece haver muita compreensão da extensão de aprendizagens que se desdobram a partir disso.

A literatura científica já vem, há algum tempo, mostrando estudos integrados sobre os sentidos. Já são disseminadas muitas correntes que identificam outros sentidos corporais para além dos cinco difundidos no senso comum (olfato, visão, tato, paladar, audição); a propriocepção, por exemplo, (a capacidade de perceber a organização corporal) é um exemplo, dentre outros sentidos, que aparecem em abordagens que citam nove, vinte ou até mais sentidos corporais.  No entanto, é muito difícil medir o desenvolvimento sensorial e os estados de atentividade. Geralmente, os tempos escolares são curtos e mudanças em tais quesitos são perceptíveis a longo prazo.

Um dos maiores desafios que tenho encontrado desde que assumi o desafio de focar na educação sensorial-somática é lidar com o desconforto gerado por pequenas mudanças de hábitos. Por exemplo, mesmo havendo um quase consenso sobre o quão desconfortável são os ambientes escolares, como o hábito de passar horas sentado é ainda muito forte, sinto que uma pequena caminhada até a entrada do campus, às vezes, gera desconforto. Parece-me que, apesar de tantas possibilidades de mobilidade virtuais, do aumento de academias e de praticantes de yoga, do cultivo de viagens para locais remotos, ainda há uma dificuldade em abrir-se corporalmente-sensorialmente para o que não se conhece. Mas não seria o pensamento e a criação dependentes desse movimento rumo ao desconhecido? A imagem do “pensamento-sentado” (BAITELLO, 2012), que relaciona o mover-pensar é muito didática, Baitello argumenta que temos cultivado na contemporaneidade um pensamento sobre os glúteos, um pensamento com pouca mobilidade e pouca experiência. Eu, atualmente, também não acredito mais em transformações de pensamento, que não estejam atreladas a transformações somáticas-corporais-sensoriais.

 

REFERÊNCIAS 

ARSLAN, Luciana Mourão. CORPO (sentido); corporeidade e estesia nos processos de ensino-aprendizagem. Uberlândia: Regência e Arte Editora, 2022.

 

ARSLAN, Luciana Mourão. Danças para vestir o pensamento. Invisíveis Produções: São Paulo: 2023.

 

BAITELLO, Norval. O pensamento sentado. S. Leopoldo: Unisinos, 2012.

 

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015

 

DAMÁSIO, Antonio. O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.


DAMÁSIO, Antonio. E o cérebro criou o Homem. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

 

FABIÃO, Eleonora. O programa performativo: o corpo-em-experiência. Revista do LUME, n. 4, dez. 2013.

 

FOUCAULT, M.  Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.

 

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia-saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

 

LEPECKI, André. Coreopolítica e coreopolícia. ILHA: Revista de Antropologia, Santa
Catarina, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan./jun. 2012a.

VANNINI, Phillip; WASKUL, Dennis, GOOSCHALK, Simon. The Senses in Self, Society, and Culture, New York, Imprint Routledge, 2012.  

GREINER, Christine. Leituras do Corpo no Japão e suas diásporas cognitivas. (Tese Livre Docente em Comunicação) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015. 

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora Martins Fontes. 2017.

 

SHUSTERMAN, Richard.  Vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a estética popular, São Paulo: Ed. 34, 1998.

 

SHUSTERMAN, Richard. Consciência corporal. São Paulo: É Realizações Editora, 2012.

 

This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)

 

 



[1] É professora na Universidade Federal de Uberlândia - UFU, onde leciona no Curso de Graduação em Artes Visuais. Graduou-se em Artes Visuais (licenciatura) na FASM, em Dança (bacharelado) na UFU, fez mestrado em Artes na UNESP e doutorado em Educação na USP (com 6 meses de mobilidade na Universitat de Barcelona/ bolsa Santander). Também realizou pesquisa pós-doutoral no Center for Body, Mind and Culture na Florida Atlantic University com bolsa da CAPES. Tem concentrado seus estudos na área da estesia e corporeidades nos processos de ensino-aprendizagem, pesquisando Improvisação na Dança, Yoga, Performance e Somaestética. Contatos: e-mail: luciana.ars.land@gmail.com; acesso aos últimos livros no linktree do instagram @luciana.arslan.

 

[2] Muitas vezes, essas produções que envolvem um corpo engajado são chamadas de arte-popular, arte-indígena: “arte hífen’. Essas artes-hífen não fazem parte da do mainstream da historiografia da arte e são a outra ”história”. 

[3] “Estado de atentividade” é um termo que emprestei da minha colega Patricia Chavarelli, do grupo de pesquisa Núcleo de Estudos de Improvisação em Dança (NEID) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), achei mais adequado do que estado de atenção.

[4] A concepção de experiência que me guia é a de Jonh Dewey e Richard Shusterman.

[5] Essa relação de arte que não nega a sua utilidade na vida cotidiana, se distancia de uma vertente estética que predomina nas instituições de ensino de arte e em museus de arte contemporânea, onde prevalece uma concepção de distanciamento estético.

[6] Itoi Kanji (aka Dadakan), Akiyama Yutoku-Taishi, Mizukami Jun, and artists of groups who performed on the streets and on stage such as Matsue Kaku of Kurohata (Black Flag Group), Koyama Tetsuo of Vitamin Art, and Suenaga Tamio of Kokuin.

 

 

[7] Basta ir congelando os limões usados, e quando se tem uns dez limões colocamos eles num pote com agua e tampamos por dois dias. Batemos no liquidificador e peneiramos, podemos colocar uma colher de álcool. O cheiro fica muito agradável.