Escrever com o que fica e escapa em pesquisas

 

Escribir con lo que queda y lo que escapa en la investigación

 

Writing with what stays and escapes in research

 

 

Elaine Schmidlin[1]

Universidade do Estado de Santa Catarina

 

Sandra Maria Correia Favero2

Universidade do Estado de Santa Catarina

 

 

Resumo

Este texto ensaia o pensar com o que escapa de uma pesquisa e permanece nos caminhos da vida, docente e artística, de duas pesquisadoras. Como visibilizar o que fica em suspenso pelo percurso, recolhido ou escondido, que, de certo modo, ficou deixado de lado nos trabalhos realizados? Foi a pergunta que impulsionou a escrita das autoras em processos de investigação nas áreas de arte e da educação. Esses restos ou sobras de pesquisas possibilitaram uma escrita que recusa investidas hierárquicas e dominantes, propondo invenções de novos problemas em composições sensíveis, emaranhadas a diversas práticas em um tom menor (rastros em fotos, bordados etc.). O que se pretendeu foi o rastreio de imagens e notas adormecidas nos guardados e gavetas, deixados à margem, em pesquisas empreendidas pelas pesquisadoras na área de artes visuais.

Palavras-chave: Artes visuais; Educação; Imagens; Pesquisa.

 

 

Resumen

Este texto ensaya el acto de pensar con lo que escapa a una investigación y permanece en los caminos de la vida, tanto docente como artística, de dos investigadoras. ¿Cómo visibilizar lo que queda suspendido a lo largo del recorrido, recogido u oculto, que, en cierto modo, fue dejado de lado en los trabajos realizados? Fue la pregunta que impulsó la escritura de los dos autores en los procesos de investigación en las áreas del arte y la educación. Estos remanentes o sobras de investigación posibilitaron una escritura que rechaza los ataques jerárquicos y dominantes, pues propone invenciones de nuevos problemas en composiciones sensibles, enredadas en menor medida con prácticas diversas (huellas en fotografías, bordados, etc.). Lo que se pretendía era el calco de imágenes dormidas y apuntes en los armarios y cajones, dejados al margen, en la investigación emprendida por los dos investigadores en el campo de las artes visuales.

Palabras clave: Artes visuales; Educación; Imágenes; Investigación.

 

 

Abstract
This text tries to think with what escapes a research and remains in the paths of life, both teaching and artistic, of two researchers. How to make visible what remains suspended along the way, collected or hidden, which was left aside in the works carried out? It was the question that spurred the writing of these authors in research processes in the areas of art and education. These remnants or leftovers of research made possible a writing that rejects hierarchical and dominant attacks. It proposes inventions of new problems in sensible compositions, entangled with different practices in a minor key (traces in photos, embroidery, and other things). What was intended was the tracking of sleeping pictures and points in the cabinets and drawers, left on the sidelines, in research carried out by the researchers in the field of visual arts.
Keywords: Visual arts; Education; Pictures; Research.

 

 

Do que se trata escrever com o que fica e escapa de pesquisas? Queremos acreditar no acontecimento ou no sentido incorpóreo deixado pelas imagens e notas guardadas em gavetas, uma vez que, também, sussurram o que é in[comum], tornando possível esta escrita que pode e deve gaguejar com aquilo que ainda cintila nos arquivos de uma pesquisa. Pretende-se, com este artigo, criar linhas heterogêneas com aspectos que foram deixados à margem pelas pesquisas empreendidas pelas autoras, tais como desvios, imagens, ruídos, intuições, curiosidades ou notas que, neste texto, são experimentadas por afectos[2], os quais abalam a estrutura de um pensamento único e fazem proliferar modos de observar a vida a partir de encontros em um plano de imanência; plano em que a filosofia cria seus conceitos, ou seja, um plano de consistência. “É uma mesa, um platô, uma taça. É um plano de consistência ou, mais, exatamente, o plano de imanência dos conceitos, o planômeno” (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 51).

Neste plano, uma das autoras, que pesquisa e atua na área de processos de criação com a gravura e livros de artista, caminha para observar a vida que se prolifera na natureza, para fazer insurgir outras formas em sua composição com a arte, extraindo seus modos de existir. Como afirma Lapoujade (2017, p. 15), “cada existência provém de um gesto que o instaura, de um ‘arabesco’ que determina que será tal coisa. Esse gesto não emana de um criador qualquer, é imanente à própria existência”.

Outra, que pesquisa e atua na área de licenciatura em Artes Visuais, tenta bordar uma tela inexistente em linhas que se cruzam ao mostrar seu avesso e sua aversão àquilo que teria de ser perfeito, no qual a linguagem apenas se apropriaria daquilo que foi expropriado, “pois a linguagem não pode ser reapropriada, como se fosse um objeto roubado a ser reavido; é preciso pensar esse gesto em outros termos, a saber, a possibilidade e as modalidades de um livre uso da linguagem” (PELBART, 2008, p. 12).

As pesquisadoras pensam e compõem com o menor em um movimento vulnerável que busca a ativação de uma capacidade sensível, o qual, como salienta Rolnik, “esteve recalcada por muitos séculos, mantendo-se ativa apenas em certas tradições filosóficas e poéticas” (FURTADO; LINS, 2008, p. 27); e juntam-se ao que escapa de suas pesquisas para insuflar outros ventos, ou compor o que Rolnik chama de corpo vibrátil, no sentido de apreender o mundo em sua condição de campo de forças que nos afetam e se fazem presentes em nosso corpo sob a forma de sensações. Com ela, como Rolnik (2008, p. 28) comenta, “o outro é uma presença viva feita de uma multiplicidade plástica de forças que pulsam em nossa textura sensível, tornando-se assim parte de nós mesmos. Dissolvem-se aqui as figuras de sujeito e objeto, e com elas aquilo que separa o corpo do mundo”.

Encadeadas, a escrita é tecida a partir de um fio que se embaralha no corpo do texto, como aquelas nos mapas e nos decalques, em que a palavra surge como rastro e mistério, tal qual Deligny (2018, p. 11), “em linhas de errância inéditas, que foram sua principal artimanha para golpear a linguagem e remendar o aracniano”.

E assim, como aracnianas, nos propusemos a tecer o presente texto tal qual uma rede que se espalha sobre as palavras, ora encobrindo-as, ora deixando-as vulneráveis.

 

Borda+ar = [trans]bordar

 

Imagem 1 – Bordado livre

3b.jpg

Fonte: Da autora, pesquisa de campo.

 

Por muitos anos, tenho pesquisado sobre as relações entre práticas artísticas e pedagógicas na formação docente em Artes Visuais, área em que atuo. A partir do método da cartografia[3], a investigação tem indicado que essas relações estão implicadas e intervêm na construção da subjetividade docente na formação inicial. Porém, a partir das pistas indicadas pela pesquisa, embora não aparecesse o bordado, (re)encontrei-o em meus guardados como forma disruptiva, o que me levou a olhar a formação como algo instável e diferente. Portanto, nesta parte do texto, busco trazer, no fazer artístico do bordado, uma linha heterogênea em ruptura com a tradição e o fundamento exigidos nesta prática.

Meu interesse pelo bordado surgiu depois de muitos anos como professora, quando, em contato com o bordado livre na arte contemporânea, percebi a potencialidade deste gesto para repensar minha incompreensão sobre o bordado tradicional, adquirida durante minha formação. Minha primeira aula, à época Educação Artística, hoje compreendida como área de Artes, foi o bordado. Naquele período, a experiência com o fazer do bordado exigia uma perfeição que eu não estava em condições de alcançar.

Na superfície do pano, surgia a linha bordada pelo suor que gotejava e molhava o pano por não saber bordar. Algo que persiste ainda hoje, e comecei a interessar-me pelo bordado livre, pela imperfeição do seu avesso e pelas coisas mínimas que o gesto de bordar faz aparecer. Gesto menor que escapa de um saber bordar, como na literatura menor em Kafka para Deleuze e Guattari. Assim, como comentam os autores:

Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior. Mas, a primeira característica, de toda maneira, é que, nela, a língua é afetada de um forte coeficiente de desterritorialização. Kafka define nesse sentido o impasse que barra aos judeus de Praga o acesso à escrita, e faz de sua literatura algo de impossível: impossibilidade de não escrever, impossibilidade de escrever em alemão, impossibilidade de escrever de outro modo [...] (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 35).

 

Essa impossibilidade de escrever de outro modo – para Kafka e minha impossibilidade de bordar com perfeição – levou-me à surpresa pelo acontecimento que surgia na superfície bordada, não pela exatidão do ponto, mas por sua inexatidão, e foi o que me impulsionou a continuar a pesquisar e caminhar como pesquisadora com o gesto do bordar. Gesto que permite [trans]bordar pelas bordas e que interroga todas as formas perfeitas, algo também exigido em uma formação docente para, talvez, ver a beleza deste gesto em uma espécie de reversão naquilo que, antes, compreendia como bordado e como formação.

A formação, tal qual o bordado, só pode ser empreendida como algo que se experimenta em constante elaboração, nunca como uma representação, mas como algo que se constitui no devir, tal qual um gesto que borda a superfície do pano, sempre único e inapreensível. É como um gesto aberrante em uma lógica irracional, como diz Lapoujade (2015) sobre a filosofia de Gilles Deleuze. Gesto de abertura para a experimentação em uma formação que borda conexões com a vida que pulsa freneticamente no ambiente universitário.

No entanto, a formação docente é povoada por representações, como se existisse um fundamento em sua função legisladora do que deveria ser um(a) bom(a) ou mau(á) professor(a). A diferença, nesse caso, é submetida a uma ideia concebida como modelo ideal, sendo que, “residindo num passado imemorial, a Ideia subordina a linha do tempo ao Mesmo; o tempo se vê curvado num círculo em que cada presente que passa é julgado em suas pretensões a partir das alturas da Ideia” (LAPOUJADE, 2017, p. 49).

A identidade docente se funda sobre algo preexistente, em que a diferença só pode se subordinar às semelhanças que elas mantêm entre si ao longo de uma ideia do que seria ser professor(a). Como reverter essa ideia ou realizar uma reversão? Assim, buscar o avesso do bordado foi o que me potencializou para outro modo de ver a formação.

 

Imagem 2 – Seu avesso

4b.jpg

Fonte: Da autora, pesquisa de campo.

 

Ao avesso, incorporo a formação em um estado de desequilíbrio permanente, não algo estático, mas como um emaranhado de fios que, num jogo de forças, se afetam mutuamente na construção da professoralidade, termo apropriado de Pereira, que diz:

 

[...] a professoralidade não é uma identidade que um sujeito constrói ou assume ou incorpora, mas, de outro modo, é uma diferença que o sujeito produz em si. Vir a ser professor é vir a ser algo que não se vinha sendo, é diferir de si mesmo. E, no caso de ser uma diferença, não é a recorrência a um mesmo, a um modelo ou padrão. Por isso, a professoralidade não é, a meu ver, uma identidade: ela é uma diferença produzida no sujeito. E, como diferença, não pode ser um estado estável a que chegaria o sujeito (2013, p. 35).

 

A saturação do bordado produz essa diferença em gestos mínimos que transformam e produzem deslocamentos, os quais revertem qualquer sentido do bordado tradicional, aquele que é operado pela perfeição de seu fundamento. Da mesma maneira, na formação, satura-se o conhecido, para buscar, em outras linhas, outras forças capazes de produzir um novo quadro, pois a saturação é um estado-limite, em termos de intensidade, de uma composição, seja docente ou artística. Uma composição que não cessa de se proliferar em variáveis infinitas.

 

Seguir pela orla = rastrear a borda

 

Escrevo porque preciso, e caminho porque respiro melhor na margem da borda que beira o mar. Ao seguir o contorno das linhas que sobressaem em relevo rastros de um percurso indomável, irrepetível das ondas do mar, sigo rastreando a borda, ouvindo o marulho, sentindo a maresia, buscando indícios para começar a escrever. Por onde começar é sempre um caos, porque a tendência é achar que tudo a dizer não tem valia. O bloqueio faz a sua parte tão bem, que fica difícil encontrar uma brecha em que palavras e ideias podem estar vindo do emaranhado formado em meio a pensamentos desconexos, memórias e guardados.

Mas ali, pisando onde a água gela os pés e o céu está limpo e aberto sobre minha cabeça, formam-se conexões entre as existências mínimas que atraem meu olhar e o que desperta interesses adormecidos em minha pesquisa. “São as artes que tiram sua pluralidade das diversas maneiras de fazer existir um ser, de promover uma existência ou de torná-la real” (LAPOUJADE, 2017, p. 16). Procuro o menor, aquilo que é imperceptível, ou mesmo insignificante para muitas pessoas, e vou registrando em fotografias. Muitas delas ficam esquecidas no Google Fotos, até que as (re)visito, observo e encontro rastros do vivido que já havia esquecido, ou sequer percebido. São minhas referências pulsando desejos de aparição.

Durante a caminhada pela superfície arenosa, adiante de cada passo, corre o olhar como uma câmera de vídeo perseguindo um encontro, no início, a busca por um encontro qualquer. Na continuidade das vagarosas passadas, de repente, um acontecimento inesperado no encontro esperado. “Gosto do caminhar porque ele é lento e desconfio que a mente, à semelhança dos pés, funciona a uns cinco quilômetros por hora” (SOLNIT, 2016, p. 30). É surpreendente, pois parece que “existe uma espécie de cumplicidade necessária entre esses trajetos do vagar e o encontro do acaso” (DELIGNY, 2018, p. 10).

Uma parada, o corpo se curva, o corpo “nos empurra para o mundo” (LAPOUJADE, 2017, p. 30). “Com o corpo entramos no mundo das coisas” (ibidem, p. 31). Olhos e mãos atentos observam os detalhes, uma vontade irresistível de recolher aquela mínima coisa que está dizendo tanto do que muitos consideram um nada, algo menor, de pouca valia. Natureza. Será possível às pessoas perceberem os sinais das existências mínimas? Será possível elas se darem conta dos fenômenos da Natureza?

O status fenomênico é provavelmente, entre todos os status existenciais, o mais evidente, o mais manifesto. Manifesto tanto em sua existência quanto em sua essência (que são inseparáveis), ele é, talvez, o manifesto em si.

Ele é presença, fulgor, o dado que não se pode rejeitar. Ele é e se diz pelo que é. Podemos decerto trabalhar para exorcizá-lo dessa irritante qualidade de “presença de si”. Podemos denunciá-lo como tênue, lábil e fugaz. Mas não seria isso, simplesmente, a confissão de derrota frente a uma existência pura, de um só modo? Podemos postular, a propósito do fenômeno e por trás dele o estável, o subsistente, o suporte. É ele que atesta esse suporte. Não somente o atesta, mas o coroa e o recompensa. Ele é sanção existencial, a mais desejada de todas. Uma técnica do fazer-aparecer, que instrui dialeticamente tanto a experiência do físico quanto a do místico, é uma arte de acoplar ao fenômeno uma ôntica qualquer. Assim, de manifesto o fenômeno se torna manifestação; de aparência, aparição. Todavia, isso ocorre quando o fenômeno compartilha a si mesmo com o seu suporte, quando lhe confere o que tem de indubitável patuidade (patuité). Tal é a generosidade do fenômeno (SOURIAU, 2020, p. 51-52).

 

Fenômeno que ocorre no encontro de matérias que põem em evidência, através da imagem fotográfica, ele mesmo e o solo que o acomoda por um instante, perpetuando um espaço-tempo que, na realidade, seria contabilizado em segundos efêmeros (imagem 3).

 

Imagem 3

Fonte: Da autora, pesquisa de campo.

 

Segundos efêmeros que provocam o sentido do assombro da sombra, das linhas que se curvam e ampliam a dimensão daquele galho por estarem se projetando sobre as elevações causadas pelo movimento das marés. Não é incrível se dar conta que, de repente, um galho seco, quase reto, é transformado visualmente e virtualmente num galho curvilíneo, numa integração entre a coisa e o fenômeno?

A coisa, o galho, “presença indiferente à situação aqui ou ali em um universo estendido e ordenado segundo o espaço e o tempo” (SOURIAU, 2020, p. 63). O fenômeno irrompe ou surge a partir da sombra do galho na superfície da areia na sublimidade daquele instante. “Há uma ‘alma’ do fenômeno, espécie de assinatura ou de tonalidade própria, assim como falamos da alma de uma paisagem” (LAPOUJADE, 2017, p. 19).

Mais abaixo (imagem 4), o oposto se dá; galhos curvilíneos projetam linhas quase retas criando um desenho dinâmico entre curvas e retas sobressaindo ao solo visivelmente menos alterado pelos movimentos das marés. Fragmentos de instantes, ou um entretempo dos acontecimentos que vibram em profundidade numa efervescência de virtualidades, as quais afetam a forma de sua aparição na superfície da areia.

O que vemos é a expressividade em sombras. Desenhos de sombras. “Uma arquitetura instantânea que lhe dá tonalidade e brilho singulares” (LAPOUJADE, 2017, p. 29).

“O pretenso encontro com um fenômeno seria então a passagem da existência manifesta: uma conflagração, uma incandescência espiritual do ser” (ibidem, p. 52).

 

Imagem 4

Fonte: Da autora, pesquisa de campo.

 

Os pequenos organismos viventes das margens arenosas rendilham-se na superfície (imagens 5 e 6). Desenhos que parecem bordados formam relevos intocáveis, uma vez frágeis naquele espaço. Desenhos como bordados em um gesto livre, somente protocolos de experiência, “constituída por conteúdos e expressões formalizadas em graus diversos como por matérias não formadas que nela entram, dela saem e passam por todos os estados” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 17).

Nas imagens, prevalece a metamorfose de uma intensidade capturada no tempo do instante sem interpretação, nem significância, encarnando modos de existir.

 

Imagem 5

Fonte: Da autora, pesquisa de campo.

Imagem 6

Fonte: Da autora, pesquisa de campo.

 

A cada grão soprado, uma imperceptível alteração no solo, uma inefável aparição. Uma coisa “em uma permanência através do espaço-tempo. “Essa é a base da existência. Como arte de existir, é a conquista e a realização, a posse efetiva dessa presença indiferente à situação ‘(DME[4], 123)’ ” (LAPOUJADE, 2017, p. 30).

 

[In]completude

 

‘Incompletude’ foi o termo que escolhemos para concluir nosso ensaio, porque, em uma das pesquisas, escapam imagens captadas em superfícies arenosas que aparecem ao longo de caminhadas, como uma espécie de assombração, ou seja, a da ‘obra ainda a ser feita’. Pois a imagem que é capturada pela pesquisadora, naquele instante, é assombrada por seu encontro com a imagem ‘final’ do olhar da pesquisadora, ou então daquilo que será feito por ela. Portanto, a existência instaura-se no caminho, pois a cena ainda era de impermanência por sua incompletude existencial. Para o seguinte autor,

 

Nada, nem mesmo nós, nos é dado a não ser em um tipo de meia-luz, uma penumbra na qual se esboça o inacabado, em que nada possui nem plenitude de presença, nem patuidade evidente, nem total completude, nem existência plena (SOURIAU, 2020, p. 158).

 

Nesse processo, o que se renova para Souriau é a própria vida, pois se trata de uma renovação da metáfora arte e vida. A instauração da obra a ser feita é o mesmo da vida a ser vivida, pois o exercício de fazê-la ou torná-la obra corresponde, para Souriau, à incompletude da existência.

Por sua vez, na outra pesquisa, o bordado aparece como desprovido de qualquer fundamento, em um gesto que desfaz e refaz linhas que estão por vir, anunciando outros modos possíveis para viver e bordar. Pois escrevemos com o que escapa, com um grão de areia soprado ao vento na paisagem, ou com aquilo que o bordado tradicional ignora. O que se impôs, para nós, nesse momento, foi apenas o desejo, uma vez que precisamos partir do não sentido da linguagem, totalmente assignificante.

No entanto, como afirma Lapoujade (2015, p. 144, grifo no original), “não se trata, em momento algum, de liquidar a noção de sentido, assim como não se trata de negar o papel determinante da linguagem em proveito apenas da noção de fluxo”. Trata-se apenas de não se submeter a uma estrutura que reconduz o objeto à sua significação. Por isso, o que escapa não se submete ao que se quer dizer, pois o plano do real é sempre do não sentido, porque não se dispõe a interpretações profundas. Tudo está dado na superfície e não deixa nada fora de si. Portanto, o não sentido ou o novo plano de composição que se dispõe na superfície da areia ou do pano do bordado segue suas variações e intensidades.

Não há nada o que narrar ou representar, já que as linhas no bordado e os movimentos na superfície arenosa se desprendem das exigências da representação, pois se trata de sensações, ou seja, de intensidades em um continuum infinito de graus de sensação, o que percebemos a partir de nossas micropercepções, uma vez que não apreendemos o mundo em sua totalidade. Como diz Furtado,

 

[...] cada percepção é composta por uma série infinita de micropercepções. Portanto, a percepção é resultado de um cálculo diferencial entre partes heterogêneas, que entram em uma relação diferencial que determinará uma singularidade, a diferença. É por isso que, para Deleuze, a intensidade é a diferença. Deleuze encontra as fontes da intensidade, ou seja, a intensidade é a condição da experiência real (2008, p. 72).

 

Por isso, afirmamos que percebemos as imagens como experiência real, isto é, fora dos limites da representação, quando tempo e espaço tornam-se grandezas intensivas como uma energia em devir, e o que resta é caminhar com o que escapa de nossas pesquisas.

 

 

REFERÊNCIAS

DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Rio de Janeiro, 1995.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 2004.

DELIGNY, Fernand. O aracniano e outros textos. São Paulo: n-1 edições, 2018.

FURTADO, Beatriz. O intensivo como ato de resistência. In: FURTADO, Beatriz; LINS, Daniel. (Org.). Fazendo rizoma: pensamentos contemporâneos. São Paulo: Hedra, 2008.

LAPOUJADE, David. As existências mínimas. São Paulo: n-1 edições, 2017.

LAPOUJADE, David. Deleuze: os movimentos aberrantes. São Paulo: n-1 edições, 2015.

PELBART, Peter Pál. A potência de não. In: FURTADO, Beatriz; LINS, Daniel. (Org.). Fazendo rizoma: pensamentos contemporâneos. São Paulo: Hedra, 2008.

PEREIRA, Marcos Villela. Estética da professoralidade: um estudo crítico sobre a formação do professor. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2013.

ROLNIK, Suely. Geopolítica da cafetinagem. In: FURTADO, Beatriz; LINS, Daniel. (Org.). Fazendo rizoma: pensamentos contemporâneos. São Paulo: Hedra, 2008.

SOLNIT, Rebecca. A história do caminhar. São Paulo: Martins Fontes – selo Martins, 2016.

SOURIAU, Éthienne. Diferentes modos de existência. São Paulo: n-1 edições, 2020.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)



[1] Professora da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, no Centro de Artes, Design e Moda – CEART, Departamento de Artes Visuais, Graduação e Pós-Graduação na Linha de Pesquisa Ensino das Artes Visuais. Coordena o Grupo de Pesquisa [compor] UDESC/CNPq, em experimentações com a filosofia da diferença, a arte e a educação. E-mail: s.elaine@gmail.com

2 Professora da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, no Centro de Artes, Design e Moda – CEART, Departamento de Artes Visuais, Graduação e Pós-Graduação na Linha de Pesquisa Processos Artísticos Contemporâneos, com ênfase em Gravura. Integra o Grupo de Pesquisa Articulações Poéticas CNPq/UDESC. E-mail: sandra.favero@gmail.com

[2] Efeito que um corpo produz sobre o outro, segundo Espinosa. “As afecções não são separáveis de um movimento pelo qual nos fazem passar a uma perfeição maior ou menor (alegria e tristeza), conforme a coisa encontrada se componha conosco, ou, ao contrário, tenda a decompor-nos [...]” (DELEUZE, 2002, p. 27).

[3] Princípio do rizoma que atesta sua força pragmática, ou seja, princípio “inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 21).

[4] Livro em francês citado por Lapoujade de Éthienne Souriau: DME: Les Différents modes déxistence, PUF, 1943, reedição 2009, col. “Métaphysiques”.