Caminhar com as cidades: estranhar, conversar e conviver
Walking with Cities: to become a stranger, to converse and to live with
Caminar con las ciudades: extrañar, conversar y convivir
Deisimer Gorczevski[1]
Universidade Federal do Ceará
Laryce Rhachel Martins Santos[2]
Universidade Federal do Ceará
Aline Mourão Albuquerque[3]
Universidade Federal do Ceará
Francisco Feitosa Filho Moura[4]
Universidade Federal do Ceará
Resumo
Este estudo traz inquietações que emergiram, inicialmente, a partir da proposição do caminhar como possibilidade de aprender a conversar e conviver com estranhos. Com a intensificação das deambulações, outras questões com a tríade estranhar, conversar e conviver ́ foram suscitadas como modos de pesquisar e intervir, considerando o caminhar como prática estética e produção de espaços (Careri, 2013, 2017), incendiador de caminhos (Couto, 2009) e dispositivo de processos (trans)formativos, operados com artistas, pesquisadores e educadores do Laboratório Artes e Micropolíticas Urbanas (LAMUR|CNPq, 2013 - 2023). Pensar nesses processos, que acontecem na convivência, é também questionar: o que se inventa ao caminhar com ruas, praças, praias, estações do metrô, campi da universidade? Em andanças foram encontradas algumas pistas afirmando a indissociabilidade entre arte e convívio, a partir de afecções e processos de singularização que resultaram das experimentações Bó Caminhar, Caminhar com Vazios Urbanos, Caminhar e Escutar e Ateliê de Criação: percursos com as Univer|Cidades. Dessa forma, os processos (trans)formativos explicitados nesta escritura, embora singulares, convergem para a criação de redes de convívio e conversações, a partir de convites para a realização de caminhadas coletivas com a universidade, a cidade e seus vazios. Entre as proposições com as deambulações o desejo de inventar descaminhos, suspeitar do que vemos e ouvimos. Foram criados mapas sensíveis e fugazes com intensidades partilhadas e desenhadas por cartografias múltiplas, permeáveis e inacabadas. Nas errâncias, portanto, foi possível se tornar vulnerável às interferências do espaço; a partir da caminhada com ele, sujeito e agenciador de afetos e micropolíticas.
Palavras-chave: Caminhar; Univer|Cidades; Estranhar; Conversar; Conviver.
Abstract
This study sheds light to concerns that emerged, initially, from a proposition of walking as a way of learning to converse and to live with strangers. As these wanderings intensified, other questions were brought up through the triad of becoming a stranger, conversing and living with, as ways to investigate and intervene that consider walking as an aesthetic practice, a production of spaces (Careri, 2013; 2017) of incendiary pathways (Couto, 2009), and as a dispositif of (trans)formative processes enacted by artists, investigators and educators of the Arts and Urban Micropolitics Laboratory (LAMUR|CNPq, 2013 - 2023). Thinking about these processes that happen in conviviality is also to question: What is invented while walking with streets, squares, beaches, vacant spaces, subway stations, and university campuses? In these wanderings, some clues were found to affirm the indissociability between art and conviviality based on affects and processes of singularization that resulted from the experiments Let’s Walk, Walking with Urban Vacant Spaces, Walking and Listening, and Creation studio: routes with Univer|Cities. Therefore, the (trans)formative processes discussed in this writing, although unique, converge in the creation of networks of conviviality and conversations, based on invitations to carry out collective walks with the university, the city and its vacant spaces. Among these propositions of ambulation, the desire to invent detours, and suspect what we see and hear. Sensitive and fleeting maps were created with shared intensities, designed by multiple, permeable and unfinished cartographies. In these wanderings, it was possible to become vulnerable to the interferences of space, walking with it, subject and agent of affects and micropolitics.
Keywords: Walking; Univer|Cities; To become a stranger; To converse; To live with.
Resumen
En este estudio se presentan inquietudes que surgieron, en un principio, a partir de la propuesta del caminar como posibilidad de aprender a conversar y convivir con extraños. A medida que las deambulaciones se intensificaban, se fueron suscitando otras cuestiones entorno a la tríada “extrañar, conversar y convivir” como modos de investigar e intervenir considerándose el caminar como práctica estética y de producción de espacios (Careri, 2013, 2017), un incendiador de caminos (Couto, 2009) y dispositivo de procesos (trans)formativos operados con artistas, investigadores y educadores del Laboratorio Artes y Micropolíticas Urbanas (LAMUR|CNPq, 2013-2023). Pensar en esos procesos, que ocurren en la convivencia, también implica cuestionar: ¿qué se inventa al caminar con calles, plazas, playas, estaciones de metro, campi universitarios? En las diversas andanzas se encontraron algunas pistas indicadoras de la imposibilidad de disociar arte y convivencia a partir de afecciones y procesos de singularización que resultaron de las experimentaciones Bó Caminar; Caminar con Vacíos Urbanos; Caminar y Escuchar; y Atelier de Creación: itinerarios con las Univer|Ciudades. De esta forma, los procesos (trans)formativos explicitados en esta escritura, aunque singulares, convergen hacia la creación de redes de convivencia y conversaciones a partir de invitaciones para la realización de caminatas colectivas con la universidad, la ciudad y sus vacíos. Entre las propuestas con las deambulaciones, el deseo de inventar descaminos, sospechar de lo que vemos y escuchamos. Se crearon mapas sensibles y fugaces con intensidades compartidas y dibujadas por cartografías múltiples, permeables e inacabadas. En las errancias, por lo tanto, la caminata con el espacio posibilitó el volverse vulnerable a las interferencias del espacio, sujeto y agenciador de afectos y micropolíticas.
Palabras clave: Caminar; Univer|Ciudades; Extrañar; Conversar; Convivir.
‘É preciso aprender a falar com estranhos’[5]. É preciso conversar e conviver com estranhos[6].
Nesta escrita, a intenção é trazer a proposição de ‘estranhar’, ‘conversar’ e ‘conviver’ como modos de pesquisar e intervir que acontecem com o caminhar, como prática estética e produção de espaços (Careri, 2013, 2017), incendiador de caminhos (Couto, 2009) e dispositivo de processos transformativos que foram operados com artistas, pesquisadores e educadores do Laboratório Artes e Micropolíticas Urbanas (LAMUR, 2013 a 2023)[7].
Algumas pistas para propor a tríade de verbos|ações surgiram desde as primeiras caminhadas com as ruas, becos, praças e praias do Titanzinho, no bairro Serviluz, em Fortaleza, iniciadas em 2011. Caminhadas estas que, ao longo dos anos, tomaram a forma de cortejos, passando a acontecer em todo o bairro, a partir da criação de uma Mostra AudioVisual anual, chegando na sua décima edição, em 2023, e um cineclube itinerante. A partir destas deambulações, seguiu-se a criação de ações performativas, realizadas em 2012 e 2013 e instigadas pela proposição: “É preciso aprender a falar com estranhos”, materializada em um pequeno carimbo, criado pela artista e pesquisadora Fernanda Meirelles (2013) e espalhados em cartas, postais, em muros e em tantas outras superfícies, na cidade de Fortaleza.
Ao propor as caminhadas como possibilidades de “aprender a falar com estranhos", as experimentações suscitaram ainda mais inquietações em torno dos sentidos presentes na palavra-plural ‘estranhos’ que, muitas vezes, aproxima-se do que entendemos por ‘estrangeiro’ e, em nossa proposição, apresenta-se na ação de estranhar, no estranhamento, na estranheza, muito próximo do sentido proposto por Didi-Huberman (2017), para quem:
O estrangeiro, assim como a estranheza, tem como efeito lançar uma dúvida sobre toda realidade familiar. Trata-se, a partir deste questionamento, de recompor a imaginação de outras relações possíveis na própria imanência dessa realidade. É ainda isto, distanciar: fazer aparecer toda coisa como estranha, como estrangeira, depois tirar disto um campo de possibilidades inauditas (Didi-Huberman, 2017, p.67).
Entre as experimentações que instigaram as estranhezas com o bairro, chamou a atenção o fato de, no mapa da cidade, o Serviluz não estar presente com esse nome, reconhecido pelos moradores. Como dito por Nogueira (2015, p. 143), historiador e morador do bairro: “Oficialmente, essa comunidade não existe como bairro na Administração Pública Municipal”. Aparece como Cais do Porto.
Em estudos anteriores, Nogueira (2006, p. 11) descreveu a trajetória andarilha dos moradores: “O nômade transforma o lugar que habita. Assim, à medida que chegavam, os habitantes configuravam o Serviluz”. Um bairro que vive, desde a sua formação, com a incerteza da permanência de suas casas, inicialmente, feitas de taipa, sendo ameaçadas por políticas de remoções[8]. Modos de existência acostumados com a impermanência, aprendem diariamente a lidar com o inusitado reunindo mais condições de compreender, em consonância com o pensamento de Preciado (2020, p.32), que "a travessia é o lugar da incerteza, da não evidência, do estranho. E isso não é uma fraqueza, é uma potência”.
Nesses trajetos com o bairro, todos foram tomados pelo gosto por deambular com as ruas, praças, praias, pelos vazios urbanos, com pessoas, as sonoridades, as plantas, o vento, o calor, o suor que verte em nossos corpos e com eles estranhar, inclusive, esse gosto que passamos também a interrogar. Por meio das leituras da obra O Incendiador de Caminhos, de Mia Couto (2009), foi possível encontrar algumas respostas na própria história[9], principalmente como caminhantes nômades, coletores, caçadores e semeadores que sobreviveram como “eternos errantes, caçadores de acasos, visitantes de lugares que estavam ainda por nascer” (Couto, 2009, 76).
Dessa forma, como acontece a relação entre o nômade e o sedentário que habita em todos? Aqui, o caminhar e o conviver estão muito próximos ao que propôs Careri (2017, p. 126) com o “caminhar espaciando", afinal, a convivência solicita a produção de espaços e tempos, bem como o fluir em uma rede de conversação[10]. Assim, a proposição de Careri (2017, p.7), em: “Encarar o parar como parte do caminhar”, possibilita diferentes leituras, entre elas o autor sugere: “[...] tomar uma posição, quanto ao cuidar de um lugar e assumir uma responsabilidade ética e estética do momento de parar”.
Nessas pesquisas e experimentações artísticas foi possível construir os atravessamentos entre o ‘estranhar’, o ‘conversar’ e o ‘conviver’ com o Serviluz, pensando o bairro muito próximo ao que Halley (2014, p. 44) define “como um lugar de vivência íntima, demarcado e consagrado afetivamente por seus moradores em profundas e duradouras relações de parentesco, vizinhança e compadrio”. Esse modo de conceber o bairro torna ainda mais contundentes as palavras de Maturana (1999 p. 121), ao visualizar todos os seres humanos acoplados a alguma rede de conversação[11], a saber: “o humano é vivido no conversar, no entrelaçamento do linguajar e do emocionar que é o conversar”.
Nesse sentido, pensar o ´conversar´, além de fazer lembrar sua etimologia ‘dar voltas com’ (em latim: cum versare), alude aos encontros com o autor, em Santiago do Chile, em meados de 2001, os quais iniciavam sempre com perguntas, algumas delas também presentes em seus escritos, entre elas: “O que ocorre no ‘dar voltas juntos’ dos que conversam, e o que acontece aí, com a emoção, a linguagem, a razão?” (Maturana, 1999, p. 36). O autor provoca um afastamento das dualidades, ainda tão presentes nas ciências clássicas, ao propor a indissociabilidade entre o emocionar e o linguajar, existente nos modos de viver e conhecer, também indissociáveis.
Colaboram também com a proposição da tríade alguns escritos colaborativos, entre eles: ´ConversAções: encontros entre as artes, a cidade e a universidade´ (Gorczevski, Lima, 2017), o dossiê Arte e Convívio[12] e, respectivamente, o artigo que propôs outra tríade de verbos ´Pesquisar, Intervir e Inventar com Cidades´ (Gorczevski, Albuquerque, Lima, 2022). Consideramos também as potentes aproximações das pesquisas: Escutar e Caminhar: Modos de Experimentar e Inventar com a cidade[13] e Sítio Tunga: Cartografando os Pagamentos e Catando Permanências[14].
Nossas travessias entre o ‘estranhar’, o ‘conversar’ e o ‘conviver’ acontecem por afecções[15] e afetos, como convites feitos e/ou aceitos nos percursos como pesquisadores, artistas, educadores, implicados em processos (trans)formativos. Nos estudos de Paulo Freire (2020), bell hooks (2013) e Humberto Maturana (1991, 1993) foi possível aprender em coletividades, criando espaços de convivência. Nas palavras de Maturana (1993):
A tarefa do educador é criar um espaço de convivência para o qual se convida o outro, de modo que o outro esteja disposto a conviver conosco, por um certo tempo, espontaneamente. E nessa convivência, ambos, educador e aprendiz, irão transformar-se de maneira congruente (Maturana, 1993, p.32).
Assim, pensar os processos (trans)formativos que acontecem na convivência é também questionar: o que se inventa ao caminhar? Nessas andanças, foi possível encontrar algumas pistas afirmando a indissociabilidade entre arte e convívio, a partir das afecções, afetos e processos de singularização que resultaram das pesquisas e intervenções poéticas e políticas[16]. Nesse sentido, Gonçalves; Oliveira; Gorczevski (2022) afirmam as Artes e o Convívio como ato político que deseja:
[...] impulsionar a vida, a vida da pesquisa em artes, a vida das pessoas livres e lúdicas e acionar processos democráticos em que todes estão aptos a participar. Sabemos que os problemas que envolvem a sociedade brasileira não podem ser resolvidos em sua complexidade por proposições artísticas, no entanto, podem gerar afetos e criar outros espaços-tempos que, por sua vez, podem ampliar a partilha, fortalecer o convívio e reinventar a vida com proposições artísticas, sociais e políticas (Gonçalves, Oliveira, Gorczevski, 2022, p.10).
O gosto por caminhar com as cidades e a universidade, ao longo dos anos, foi intensificado. Bó Caminhar, Bó Passiá, Caminhar e Conversar, ConversAções, Basquianas, Oficinas, Caminhar e Escutar, Descadastramento, Vazios Urbanos, Ateliê de Criação foram alguns dos processos (trans)formativos e intervenções artísticas que foram realizados, no Laboratório Artes e Micropolíticas Urbanas (LAMUR|CNPq), amparado no Programa de Pós Graduação em Artes (PPGArtes), na Universidade Federal do Ceará (UFC), em diferentes espaços e tempos com a cidade de Fortaleza.
Neste trabalho, a escolha foi partilhar os processos (trans)formativos: `Bó Caminhar?`, Caminhar com Vazios Urbanos, Caminhar e Escutar e Ateliê de Criação: Percursos com as Univer|Cidades[17] por trazerem o ‘estranhar’, o ‘conversar’ e o ‘conviver’ como modos de pesquisar e intervir com a cidade e a universidade, bem como serem proposições dos autores, envolvendo diferentes espaços|tempos com a cidade e o campus da Universidade Federal do Ceará, que sedia o Instituto de Cultura e Artes e, respectivamente, o PPGArtes-UFC, em Fortaleza.
`Bó Caminhar?`
Para começos de ciclo, o entusiasmo do corpo que anima a mente. Assim, com a frase de Nietzsche “Corpo é entusiasmo” (Nietzsche, 1985, p. 99) que foi enunciado no convite para a caminhada, em uma atividade de abertura do PPGArtes-UFC, em março de 2015. Situado no Campus do Pici[18], o jovem programa recebia, então, sua terceira turma, e o convite a caminhar instigava à aventura pelo espaço misterioso de mata que se abre aos estudantes que frequentam o Instituto de Cultura e Arte, e que termina no grande açude que banha o campus, a fim de estranhar o habitual como um convite ao encantamento. Sobre o sotaque de nosso chamado, segue breve relato de João Miguel Lima, pesquisador e companheiro de muitas caminhadas:
[...] "Bó” é uma corruptela de Vamos embora - Vambora - Simbora - Rumbora - Bora - Bó! é um convite à coletivização, dito no falar local. Bó! Vamos todos, alguns, muitos, poucos, nunca um só. Bó! é um convite às Fortalezas de cada um intimamente e de todos, coletivamente. Quem aceita o convite, parte do desejo de conhecer e inventar (Trecho do Relato. João Miguel Lima, 20 out. 2015).
Para compor o convite, foi utilizada a imagem do registro do trabalho de Richard Long A line made by walking (1967), em português, “uma linha formada pelo caminhar”. Long é um artista da land art, cuja prática constitui-se na relação com a natureza, o espaço, o tempo que nos instiga enquanto artistas pesquisadores com as micropolíticas. O artista caminhou de tal modo que seus passos desenharam uma linha sobre um campo de grama. O entusiasmo do seu gesto modificou o espaço ao redor. Sobre sua prática, Long afirma: “Escolhi fazer arte caminhando, utilizando linhas e círculos, ou pedras e dias” (Long apud Careri 2013, p.110). A ação realizada pelo artista, assim como o texto O incendiador de caminhos, de Mia Couto, contribuem para a compreensão do caminhar como uma prática transformativa, ao permitir a invenção de rotas e trilhas com as experimentações, abrindo espaços no mundo e em modos de pensar. Nesse sentido, Couto (2009) assevera que:
[...] a verdade é que o incendiador de caminhos é um cartógrafo e está desenhando na paisagem a marca da sua presença. Escreve com fogo essa narrativa que é o seu itinerário. Não porque tenha medo de se perder. Mas porque ele quer que a geografia venha beber na sua mão. Eis o que o incendiador de caminhos diz: ‘Eu sou dono do fogo. O meu gesto faz e desfaz paisagens. Não existe horizonte onde me possa perder. Porque eu sou um criador de caminhos [...] (Couto, 2009, p.79).
O gesto que instigou o convite traz o errar e a errância, duas palavras que etimologicamente têm a mesma origem, e cujos sentidos encontram a compreensão do que seja o fazer artístico, implicado no mundo, que deseja interferir, transformar, ‘estranhar’, ‘conversar’, ‘conviver’. Seja vaguear, perambular, perder-se, enganar-se, distrair-se, `errar é humano`. Assim, a potência política do caminhar se dá no pacto que o artista faz com o mundo. "Eu só amo aqueles que sabem viver como que extinguindo, porque são esses os que atravessam de um para outro lado [...] São setas do desejo ansiosas pela outra margem" (Nietzsche, 1984, p. 25-26).
Do espaço físico `limitado` e `seguro` da sala de aula onde acontecem os encontramos para o espaço aberto aos sentidos: muito calor, mangueiras frondosas, insetos, lama, cajueiros de troncos acolhedores, abelhas, sofás abandonados, flores, frutos, sementes e um mundo todo de ‘desimportâncias’ imprescindíveis para a sensibilização, a atenção, a invenção, a desaceleração, a fabulação, a poesia. Dessa forma, o corpo que ocupa as salas de aulas da universidade sobe nas árvores, afunda os pés na lama, produz ciência no encontro com o coletivo, é parte da natureza. Sobre esta experiência coletiva, importa trazer o relato de Raísa Christina, mestra do programa, o qual remete à tríade de verbos escolhidos para guiar a abordagem aqui proposta para o caminhar, a saber: ‘estranhar’, ‘conversar’, 'conviver'.
[...] Movidos por uma breve conversa inicial [...] acerca do caminhar como prática poética e de referências de artistas caminhantes, boa parte de minha turma do mestrado resolve caminhar juntos. Foi uma maneira muito especial de conhecermos o Campus e de nos conhecer melhor, enquanto passeávamos juntos pelas áreas verdes [...] conversando sobre a imensidão que é aquele lugar; as plantas, os gatos, os cachorros e as lagartas que habitam a área úmida próxima à lagoa. Essa ação me parece tão simples e tão rica. Gostaria bastante que houvesse outras edições do Bó Caminhar em lugares da cidade que nos interessam, mas que ainda resistimos a nos aventurar por eles (Trecho do relato da caminhada.Raísa Christina, 6 mar. 2016).
Como “setas do desejo ansiosas pela outra margem” (Nietzsche, 1984, p.26), o espaço ao redor é transformado, o qual sempre esteve aberto, convidando para a aventura, em um lugar experimentado, tateado, sentido, lugar que passa a ser, assim, denominado por hoje existir em nossa lembrança, como se a vivência fosse a linha desenhada sobre a grama, ainda que apenas na memória.
Figura 1. Bó Caminhar com a Universidade. Fonte. Acervo do LAMUR|CNPq.
Figura 2. Caminhar com os vazios urbanos. Fonte. Acervo do LAMUR|CNPq.
Caminhar com os vazios urbanos
O LAMUR, em uma proposição de construir saberes de maneira colaborativa, ofertou no segundo semestre de 2022, um grupo de estudo intitulado `Escrituras com os vazios urbanos`, que realizou uma visita ao Sítio Tunga, um vazio urbano de 20,3 hectares, localizado no bairro Luciano Cavalcante, em Fortaleza-CE, o qual tem passado por uma série de intervenções urbanísticas que transformará o local de uma área predominantemente verde, com cursos d’água, repleta de vegetação e fauna nativa para um condomínio residencial de alto padrão.
A proposta consistiu em reunir pessoas com o desejo de caminhar-conversar com um vazio urbano, construindo escrituras com e a partir desse espaço. Os presentes, que desconheciam o local, foram instigados a caminhar com o Sítio Tunga, como uma forma de prática estética de escrever com o vazio urbano, como propõe Careri (2013) e como apresenta Mia Couto (2009), da maneira que caçadores lidam ao caçar:
[...] implica ler sinais da paisagem, escutar silêncios, dominar linguagens e partilhar códigos. Implica aprender brincando como fazem os felinos, implica ganhar o gosto e o medo pelo susto, implica o domínio da arte da surpresa e do jogo do faz-de-conta. Nós produzimos a caça mas foi, sobretudo, a caça que nos fabricou como espécie criativa e imaginativa (Couto, 2009, p. 76).
A partir dessas orientações, todos seguiram a deambular pelo espaço; fotografando o que os afetava; escutando a paisagem sonora; conversando com os habitantes do Tunga; catando objetos, pedras, sementes, plantas; em suma, qualquer fragmento que durante a caminhada produzisse estranhamento e que incitava a parar, explorar as materialidades presentes; encontrar e deixar rastros; partilhar impressões e afetações; conversar; construir poesias com e a partir do espaço. Estabelecemos que faríamos uma pausa para que fosse compartilhada comida à beira do açude. Francisco Moura, como caminhante-propositor do grupo de estudo, traçou um percurso e elegeu locais para expor algumas proposições artísticas que desenvolveu, ao longo de sua pesquisa no local, as quais pudessem exemplificar esta escritura com o vazio urbano. Essas proposições artísticas serviram para atiçar as pessoas presentes, agora artistas, a catar seus significantes nas mais diversas mídias, por meio da convivência com o vazio urbano.
Nos meses que antecederam a realização do grupo de estudo, a urbanização avançou e o Sítio Tunga foi completamente cercado. Dona Maria - caseira do sítio há 40 anos - contou que os donos da empresa aumentaram a segurança e expulsaram os frequentadores do Tunga. Foi compreendido que, ao invés de ser considerado só mais um grupo, entre tantos que partilhavam publicamente o local aos sábados, talvez fosse o último grupo a conviver no Sítio Tunga.
Na data marcada, todos se encontraram no Parque da Longevidade Fernando Dias Macêdo, nome do primeiro dono do Tunga, ao todo 18 (dezoito) pessoas. O local foi o primeiro espaço urbanizado do Tunga. Circulam fotos da área antes da reforma - com árvores adensadas, vegetação herbácea, riacho não canalizado - e durante a reforma - com algumas árvores derrubadas, aterramento, planagem de solo e materiais de construção. A partir desse contraste percebido nas fotos, imagens do que era, com o observar do parque ao vivo, a conversa girou em torno dos processos de transformação das zonas especiais de interesse social e zonas de interesse ambiental e como essas regras são flexibilizadas, quando são do interesse do grande capital.
Logo, todos seguiram para a casa da anfitriã, Dona Maria, que estranhou a presença de tanta gente que entrou em seu terreiro. Conversaram um pouco, ela respondeu algumas perguntas sobre o Tunga e sobre a expectativa de receber uma casa da construtora, como prometeram, visto que as obras pareciam começar de vez.
Todos decidiram ir em direção ao açude, conversando por uma estrada de paralelepípedos e, aos poucos, o som da urbe foi sendo substituído pelo da floresta. Cigarras tocaram seus timbales[19] convidando ao silêncio para melhor ouvir as boas-vindas. Pêpe reparou em um ipê amarelo do lado esquerdo com uma quantidade enorme de flores no chão, apanhou uma delas e enfeitou o cabelo. Expostos nas colunas do que antes era um salão de festas, havia fotos das construções que foram realizadas no local: deck, salão de festas e casa-grande, como chamava Dona Maria, além de esculturas de Corbiniano Lins e Vicente do Rego Monteiro. Nas poucas construções que restam no local, foram observadas várias `pixações`, mensagens de boas-vindas e frases escritas provocando a polícia que utilizava o local para treinamento, sendo possível observar marcas de balas nas paredes.
Sentamos no chão sob a copa de um cajueiro, todos compartilhavam o alimento e conversavam sobre temas diversos que foram disparados até então. Um ou outro artista movimentava-se e explorava os espaços, quando, de repente, um homem de moto identificou-se como segurança do local e policial, perguntou o que fazíamos ali e foi explicado que se tratava de um grupo de estudos da UFC, que havia sido enviado um e-mail para a empresa explicando a ação. Ele falou que aquela área estava perigosa, que passou a ser ponto de droga e que os policiais tiveram muito trabalho para “tirar os vagabundos de lá”. Por último, aconselhou que todos fossem embora, por uma questão de segurança. O conselho, quase em tom de ameaça, frustrou uma parte do trajeto que pretendia margear o riacho, afluente do Cocó, até a extremidade do terreno. A única mediação possível foi dizer que todos sairiam, mas que iriam pela trilha, só para ver algumas árvores.
Na trilha, o grupo, em fila, adentrou a mata fechada, quando se deparou com uma oiticica utilizada como suporte para expor as materialidades coletadas por Francisco, durante suas andanças: fotos, um crânio de mamífero não identificado, pena de ave, duas mudas de orquídea, sacos para mudas, uma pá e logo ao lado mais orquídeas. Letícia Moreira e Márjory Garcia pegam as pás e os sacos e transplantam as orquídeas, levando com elas um pedaço do material genético que habitava o Tunga, que estava fadado ao concreto.
Ao saírem da trilha, foram em direção ao riacho, passaram por um terreno bem encharcado, movediço, formado por folhas largas, em sua maioria de cajueiros, coaçus e embaúbas, ações de decomposição e recomposição, acúmulo de matéria orgânica e inorgânica que geram o chão da floresta e possibilita caminhar e sentir um leve afundar-se no solo. O barulho do caminhar coletivo pelas folhas passou a disputar com a intensidade sonora dos sons dos pássaros. Um dos artistas observava como a imersão sonora perto do riacho era deslumbrante, com inúmeras camadas: coaxar de sapos, sons guturais, pássaros, insetos, ranger de troncos, farfalhar de folhas, passos de humanos.
Ao retornar à trilha e caminhar em direção a uma grande árvore repleta de fungos entre suas raízes aéreas, percebeu-se que além de sustentar e nutrir a planta servia de suporte para pendurar fotos de um ensaio fotográfico realizado sob a árvore. Todos conversaram sobre os fungos e as bactérias que conectam as plantas em uma grande rede florestal capazes de compartilhar nutrientes de árvore a árvore e conversar, enviando sinais de ameaças umas às outras. Como se não existisse uma árvore, era tudo um grande emaranhado de seres que conviviam entre si, uma planta ligada a um fungo, ligado a uma bactéria, ligado a um outro fungo, ligado a uma raiz de outra árvore, de forma interdependente, um auxiliando a existência do outro.
De volta ao terreiro de Dona Maria, todos se despediram dela, uns dos outros, do Tunga, dos seres viventes que convivem coabitando e partilhando os recursos disponíveis no espaço e, mesmo que tenham seu período de vida contados, eles ensinam a conversar entre si, partilhar, con-viver, um viver com, viver uns com os outros.
Caminhar e escutar
A pesquisa, acerca da qual serão apresentados os pormenores, surgiu a partir da convivência com o LAMUR|CNPq e do envolvimento com os processos (trans)formativos e as intervenções artísticas urbanas do coletivo, com o desejo de experimentar e inventar sonoridades que permeiam Fortaleza.
Inicialmente, à medida em que as caminhadas aconteciam entre as ruas, as praças e o sistema metroviário a fim de cartografar os sons, o caminhar e a escuta coegendravam-se como uma maneira de habitar o território. O espaço, por sua vez, tornou-se “um sujeito ativo e pulsante, um produtor autônomo de afetos e de relações” (Careri, 2013, p. 79 - 80). Portanto, no primeiro semestre de 2019, todos os pesquisadores passaram a deambular coletivamente. A primeira delas, era formada por três artistas - Marcos Paulo, Thiago Torres e Yanaêh Vasconcelos.
Em reunião, no início da tarde, na Biblioteca de Ciências Humanas, no Campus Benfica da UFC, foram discutidos possíveis trajetos, momento em que os artistas foram questionados se haviam experimentado o metrô. Como dois deles, Marcos Paulo e Yanaêh, afirmaram que não conheciam o transporte, foi sugerida uma deriva pelas estações, o que foi prontamente aceito.
Em direção à Estação Benfica, a chuva, com seus diversos timbres, repousou sobre a superfície dos telhados, dos carros estacionados, das folhas das árvores e do chão – surpreendendo a todos. Somando-se às sonoridades da chuva foi possível escutar a interação do vento com as folhas das árvores, e, ao longe, os sons do trânsito. Todavia, na medida em que atravessavam o campus, aproximando-se da rua, os timbres da chuva, do vento e das árvores foram sendo subsumidos pela força da massa sonora dos veículos, dos vendedores ambulantes e dos passantes. A mudança do cenário sonoro, embora gradual, surpreendeu Yanaêh, que escreveu em seu diário de bordo:
Chegamos à Avenida da Universidade. O sinal abre. Que competição! Qual veículo chega primeiro? Não sei. Sei que, nos meus ouvidos, todos eles chegaram iguais. O susto. O desconforto. Queria ficar mais tempo com o farfalhar das folhas e com os pássaros. O trânsito engole minha experiência. Me assusta. Me ensurdece. A conversa precisa mudar de tom. Thiago precisa falar mais alto que o trânsito. Eu preciso ficar cada vez mais calada tentando ouvir a água. Não consigo! Tudo vira uma mistura, tudo é mecânico. A conversa continua no nosso grupo... e num grupo de pessoas que vem atrás de mim. O rapaz vem tão próximo de mim que consigo ouvir claramente sua voz e sentir seu cheiro. Motos, carros, motores, vozes. Onde está a água? Onde está a natureza? A água retorna aos meus ouvidos: um carro passa por uma poça e quase nos molha. Eu ouvi a água. (Trecho do relato do percurso. Yanaêh Vasconcelos, 7 fev. 2019).
De modo análogo ao estranhamento de Yanaêh, Marcos Paulo comentou: “Argh, tenho raiva desse barulho de ônibus. É violento! Eu penso que os motoristas vão jogar o ônibus em cima de mim”[20]. Cansados de competir com a sonoridade do trânsito, todos realizaram o restante do trajeto em silêncio.
A Estação Benfica é subterrânea, portanto, é possível acessá-la por meio de uma escada rolante. Paulatinamente, a massa do trânsito, o som dos automóveis sobre as poças d’água, da chuva fina e da interação entre os passantes cedeu, emergindo um eletrizante silêncio, carregado com sonoridades tecnológicas, tais como: a reverberação do som da escada rolante no ambiente fechado, o bip da catraca, o rádio comunicador dos guardas, a voz eletrônica que orienta como devem ser as nossas ações.
A estação é um espaço rigidamente regulado e tal percepção impactou de uma maneira que, inconscientemente, as ações foram controladas e a intensidade das vozes de todos diminuiu.
Na plataforma de embarque, Marcos Paulo partilhou suas percepções: “É... Fortaleza, realmente, é uma cidade grande, estamos em outro mundo. É outra cidade aqui em baixo”. Interrompendo o fluxo da conversa com o artista, um crescente rumor surgiu. Thiago, impostando a voz proferiu: “Acho a cara desse som de…filme de ficção científica …”; contudo, a aproximação do metrô é intransigente, sua sonoridade metálica subjuga todos os outros sons. Quando repousou na plataforma, todos embarcaram, e logo questionaram para onde seriam transportados.
O ambiente acústico do interior do vagão remeteu todos para o início da tarde, quando refletiram sobre as singularidades timbrísticas da chuva. Isto porque, a sonoridade que circunda o interior do vagão remeteu a ela. Discutindo sobre a fonte sonora desse som, foi suscitada a possibilidade de provir de um sistema de refrigeração. Cabe ressaltar, inclusive, que éramos umas das poucas pessoas que conversavam. Talvez, devido ao horário, havia poucos passageiros, que não interagiam entre si - alguns com fones de ouvidos e outros manipulando o celular.
Durante o percurso, as vozes foram interrompidas diversas vezes pelo sistema de voz metroviário que comunicava o nome das estações e regulava as ações dos passageiros. Retomando o diálogo, foram mencionadas as singularidades do metrô, como a ausência de vendedores ambulantes, caixas de som portadas pelos usuários, pixações, dentre outras interferências que são percebidas, ao utilizar o ônibus, por exemplo.[21]
Desse modo, caminhando, escutando e conversando, chegou o final da Linha Sul, a Estação Carlito Benevides, uma estação de superfície, onde foi possível a conexão com a brisa do vento e com o som dos pássaros. Com a experimentação, de permitir-se ser guiado pelo espaço e pelos ouvidos, foi possível inventar com os sentidos do corpo outras maneiras de conviver com a cidade; de estranhar os eventos cotidianos que, por vezes, passam despercebidos; e de produzir subjetividades coletivamente, por meio do conversar e da arte do conviver.
Ateliê de Criação: percursos com as Univer|Cidades
A proposição da disciplina de Ateliê de Criação V, no primeiro semestre de 2019, foi pensada como desdobramento de um conjunto de ações realizadas em experimentações com o LAMUR|CNPq, coordenado pela professora Deisimer Gorczevski, ministrante da disciplina. Com aproximações nos estudos de Marisa Flórido César (2002), interessou o conceito de ateliê expandido e sua compreensão ao afirmar que a natureza do ateliê é ambígua, ou ainda, uma passagem:
[...] um entre, uma trama que articula e confunde os universos que deveria delimitar: um intervalo e um trânsito entre o sagrado e o profano, a arte e a vida, a arte e o mundo, o íntimo e o público, o centro e a periferia (César, 2002, p. 18).
Com o Ateliê de Criação, foram realizadas experimentações com as “questões” de pesquisas em devir (Deleuze, 1997), enfatizando tanto a partilha dos processos de criação individuais como a proposição de processos coletivos e singulares. Os artistas e pesquisadores foram instigados a escolherem ‘algo’ de suas pesquisas, criando certo estranhamento com o que se apresenta como familiar, um exercício de “estar na sua própria língua como um estrangeiro” (Deleuze; Guattari, 2003, p. 54), criando encontros com espaços distintos da cidade, fazendo convites para que algo fosse realizado conjuntamente, um convite à convivência. A partir de Freire (2020, p. 74), compreendeu-se que os primeiros saberes aos que desejam que “sua presença se vá tornando convivência, que [nosso] estar no contexto vá virando estar com [...] é o saber do futuro como problema e não como inexorabilidade [...]. O mundo não é. O mundo está sendo”.
Os convites e as experimentações com a estranheza foram tomando corpo, ao longo de nove encontros, e provocando contatos mais intensos com os algos de cada pesquisa e com os espaços da cidade partilhados em coletividade. Estes encontros produziram desejos e acontecimentos em um espaço-tempo outro que fez caminho sem se guiar pela linha do tempo, mas, ao contrário, foi possível extrair do espaço-tempo as linhas que tecem um devir Univer|Cidades.
Entre as orientações aos processos de criação, iniciados com a escolha dos algos e do “caminhar espaciando” com a cidade, foram incitadas algumas ‘desorientações’, oferecidas por Lazzaratto (2012):
Para experimentar vista-se de não senso. Abandone a cronologia e habite o tempo que flui no movimento de pensar. Opte por seguir pelas passagens de novos sentidos e faça do absurdo a matéria do pensamento. Crie palavras para acolher os afetos que se produzem neste percurso. Deixe o método, a explicação e a interpretação desamparados (Lazzaratto, 2012, p. 101).
As experimentações no Ateliê de Criação também foram instigadas por exercícios de criar palavras-chave, produzidas com os percursos. Os participantes foram convidados a compor até cinco palavras-chave para cada um dos algos, após a realização dos nove encontros. Com as palavras e os percursos trilhados, foi criado um `Mapagrafia´ tecido com os aprendizados das estranhezas nas redes de conversações e inspirados nos “mapas nômades” presentes na abordagem de Careri (2013, p. 42), onde “[...] O espaço nômade é sulcado por vetores, por setas instáveis que são mais conexões passageiras que traçados [...]”. Percursos entrelaçados com palavras que tateiam gestos de afeto com a cidade e a universidade, propiciando outros modos de pensar as artes e o convívio.
Como visto nos estudos de Maturana (1999), no conversar, o emocionar e o linguajar estão incorporados à ação. E, ao considerar a potência dos encontros e as redes de conversação que emergem com a convivência, é possível observar a intensidade da invenção coletiva – a exemplo do processo de criação coletivo, aberto a partir dos encontros que produziram desejos de mais encontros, como desdobramentos da disciplina, no PPGArtes-UFC. Assim, surgiu o projeto de escrita do livro Entre Artes: Percursos Poéticos com Fortaleza[22], que recebeu o acolhimento da Editora Reticências, com uma aliança editorial dos laboratórios vinculados ao programa: Laboratório Artes e Micropolíticas Urbanas (LAMUR), Laboratório de Investigação em Corpo, Comunicação e Arte (LICCA) e o Laboratório de Investigação em Poéticas e Políticas do Corpo da Cena (LabCenas)[23].
Não somos daqueles que só pensam em meio aos livros e cuja ideia aguarda os estímulos das páginas para nascer, nosso êthos é pensar ao ar livre, andando, pulando, subindo, dançando, de preferência nas montanhas solitárias ou à beira mar, onde até mesmo os caminhos ficam meditativos (Nietzsche, 2001, §366).
Um livro “entre” artes que, nas palavras dos organizadores “se propõem como um convite para o desencontrar e encontrar a si num tempo que não necessariamente precisa ser o agora, memórias” na perspectiva de mapear os agenciamentos entre texto e contexto, assim como as marcas e intensidades nos modos de habitar espaços e tempos com as Univer|Cidades.
Caminhos e Descaminhos
O que se pode inventar ao caminhar com ruas, praças, praias, vazios urbanos, estações do metrô, campus da universidade? Ao final desta escrita, com essa pergunta inquietante que traz a tríade de verbos no infinitivo - estranhar, conversar e conviver - como parte constitutiva do caminhar com as cidades, compreende-se que pesquisar e intervir se dão com a experimentação que se faz ´com´ as multiplicidades que constituem os espaços e tempos urbanos.
O caminhar e o parar, desde as primeiras andanças com o bairro Serviluz, operaram um processo de estranhar as relações cotidianas, de desnaturalizar a lógica de organização dos espaços, de pensar desvios e modos de desfazer caminhos institucionalizados, de inventar descaminhos, de suspeitar do que vemos e ouvimos.
Com a intensificação das deambulações, emergem diversos processos (trans)formativos, associados aos sentidos que nos impulsionam à vida, à criação, à invenção de si e do mundo. Tais processos, explicitados nesta escritura, embora singulares, convergem na criação de redes de convívio e conversações, a partir de convites para a realização de caminhadas coletivas com a universidade, a cidade e seus vazios. Foram inventados mapas sensíveis e fugazes com intensidades partilhadas e desenhadas por cartografias múltiplas, permeáveis e inacabadas. Nas errâncias, foi possível tornar-se vulnerável às interferências do espaço; além de caminhar com ele, sujeito e agenciador de afetos e micropolíticas.
REFERÊNCIAS
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[1] Doutora em Ciências da Comunicação pela Unisinos. Brasil. (2007). Professora e pesquisadora no Instituto de Cultura e Arte, na Universidade Federal do Ceará (UFC), E-mail: deisimer@ufc.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7433-8798.
[2] Mestra em Artes pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Licenciada em Música pela UECE.
E-mail: rhachel.martins5@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0009-0003-3635-9760.
[3] Mestra em Artes pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Coordenadora de linguagens - Escola de Formação e Criação do Ceará - Porto Iracema das Artes. Fortaleza CE. Brasil. E-mail: alialbu@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8956-204X.
[4] Graduado em Cinema e AudioVisual, na Universidade Federal do Ceará (UFC). Assistente em Administração - Biblioteca Central do Campus do Pici/UFC. Fortaleza-CE-Brasil. E-mail: moura@ufc.br. Orcid: https://orcid.org/0009-0007-5620-372X.
[5] Frase criada pela artista Fernanda Meireles (2013) inspirada pelo poeta Paulo Leminski.
[6] Agradecemos ao João Miguel Diógenes Lima, pesquisador do LAMUR | CNPq por sua colaboração na composição deste trabalho e em muitas caminhadas.
[7] Acervo digital do Laboratório Artes e Micropolíticas Urbanas (LAMUR|CNPq). Disponível em: https://www.lamur-ufc.com/. Acessado em 10.05.2023.
[8] Na cidade de Fortaleza, quase metade de seus dois milhões e seiscentos mil habitantes vivem em assentamentos que apresentam o mais variado grau de precariedade de moradia (UNIFOR, 2019). Desde o Plano Diretor Participativo de Fortaleza, de 2009, o Serviluz e outros territórios da cidade foram denominados Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), devendo receber atenção prioritária para obras e serviços.
[9] Nas palavras de Couto (2009, p.76) “se aceitarmos que nascemos como subespécie há 250 mil anos, temos 12 mil anos de sedentarização para 240 mil de nomadismo. Quase noventa por cento do nosso tempo fomos caçadores, deambulando pelas savanas de África”.
[10] Uma das referências para pensar em “redes de conversação” foram os estudos de Humberto Maturana, nesse caso, principalmente, sua teoria denominada Biologia do Conhecer (1999; 2001; 1995-1996).
[11] “[...] e, na possibilidade de se validar essas proposições, concorda-se que existam distintas modalidades de conversação, sendo que estas dependem das emoções, envolvidas, das ações coordenadas e dos domínios operacionais da práxis do viver em que têm lugar” (Gorczevski, Lima, 2017, p. 103-104).
[12] Publicado na Revista Paralelo 31, vinculada ao Programa de Pós Graduação em Artes da UFPEL. O dossiê abriga experimentações singulares que ocorreram no entre das universidades e em diferentes comunidades: indígenas, assentados, quilombolas, mulheres, entre outras (Gonçalves, Oliveira, Gorczevski, 2022)
[13] Dissertação realizada por Laryce Rhachel Martins Santos, no Programa de Pós Graduação em Artes, na UFC, em 2020.
[14] Trabalho de Conclusão de Curso de Francisco Moura, no Curso de Cinema e AudioVisual, na UFC.
[15] Segundo Deleuze (2002, p. 56) “Afecção remete a um estado do corpo afetado e implica a presença do corpo afetante, ao passo que o afeto remete à transição de um estado a outro, tendo em conta variação correlativa dos corpos afetantes”.
[16] Pesquisas realizadas no LAMUR|CNPq, entre 2013 e 2023. Mais detalhes acesse o link do site: https://www.lamur-ufc.com/pesquisas.
[17] A composição da palavra Universidade com Cidade foi apresentada com detalhes em Gorczevski; Lima, 2017.
[18] Campus do Pici (212 hectares), onde se encontram o Centro de Ciências; Centro de Ciências Agrárias; Centro de Tecnologia; Pró-Reitoria de Graduação; Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação; Instituto de Cultura e Arte; Instituto de Educação Física e Esportes; Instituto UFC Virtual; Biblioteca Universitária; Superintendência de Tecnologia da Informação; núcleos e laboratórios diversos, além de área para a prática de esportes.
[19] Estruturas presentes no abdômen das cigarras que ao bater das asas emite o som característico do inseto.
[20] A experimentação foi registrada em áudio, assim como as inferências dos artistas. Seus comentários são transcrições.
[21] Estas singularidades são evidentes, pois o sistema metroviário possui regulações. Caso estas regras sejam descumpridas, torna-se inviável a utilização do transporte. O guia do passageiro está disponível em: <https://www.metrofor.ce.gov.br/guia/>. Acesso em: 23 de mai. de 2023.
[22] O livro, primeiramente, foi acolhido pela Editora ETC. Rapadura tendo o pré lançamento durante o I Encontros Movências Poéticas, em 2019, mas com a notícia do fechamento da Editora, em 2020, precisou atrasar o lançamento encontrando uma nova editora.
[23] A previsão de lançamento é para o segundo semestre de 2023.