“Vai rolar festa na escola!”
Cotidianos escolares: arte, estética e coletivo
"There's going to be a party at school!"
School daily life: art, aesthetics and the collective
“¡Va a pasar la fiesta en la escuela!”
Cotidianos escolares: arte, estética y colectivo
Aldo Victorio Filho[1]
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Edivan Carneiro de Almeida[2]
Secretaria de Educação da Bahia
Este artigo trata do conhecimento da vida escolar em suas relações com as Artes e demais manifestações culturais nas quais a energia estética é predominante. Consideramos estas relações no panorama ampliado dos trânsitos dentro/fora escola/cidade. A escola na qual se deu a pesquisa se destaca tanto nas semelhanças quanto nas diferenças meio ao universo escolar e em sua singularidade nas relações com a cidade. Como tantas, porosa e receptiva a tudo que acontece na cidade mundo, a despeito de marcas precisas – pública e de uma cidade do interior - floresce em seus modos de fazer, modos de existência cotidiana absolutamente em sintonia com a atualidade das culturas juvenis. A proposta investigativa aplicada, pesquisa do e com os cotidianos escolares, evidencia seus protagonistas, os discentes e a dedicação de seus docentes, na invenção cotidiana da escola em seus fundamentais aspectos poéticos.
Palavras-chave: Escola; Cotidianos; Arte; Estética; Cidade.
Abstract
This article addresses the knowledge of school life in its relations with the Arts and other cultural manifestations in which aesthetic energy is predominant. We consider these relationships in the broader picture of transits in/out of school/city. The school where the research took place stands out both in its similarities and differences in the school universe and in its singular relations with the city. Like so many, porous and receptive to everything that happens in the world city, in spite of precise marks - public and from a country town – it flourishes in its ways of doing, ways of daily existence absolutely in tune with the contemporary youth cultures. The investigative applied research proposal of and with the school daily life, highlights its protagonists, the students and the dedication of its teachers, in the daily invention of the school in its fundamental poetic aspects.
Keywords: School; Daily Life; Art; Aesthetics; City.
Resumen
Este artículo se trata del conocimiento de la vida escolar en sus relaciones con las Artes y además manifestaciones culturales en las cuales la energía estética es predominante. Consideramos estas relaciones en panorama extendido de los tránsitos dentro/fuera escuela/ciudad. La escuela en el cual ocurrió la encuesta se destaca tanto en las semejanzas cuanto en las diferencias a medias al universo escolar y en su singularidad en las relaciones con la ciudad. Como tantas, porosa y receptiva a todo que ocurre en la ciudad mundo, a despecho de huellas precisas – pública y de una ciudad de interior - florece en sus modos de hacer, modos de existencia cotidiana absolutamente en sintonía con la actualidad de las culturas juveniles. La propuesta investigativa aplicada, encuesta del y con los cotidianos escolares, evidencia sus protagonistas, los estudiantes y la dedicación de sus docentes, en la invención cotidiana de la escuela en sus fundamentales aspectos poéticos.
Palabras clave: Escuela; Cotidianos; Arte; Estética; Ciudad.
Toda vida cotidiana pode ser considerada uma obra de arte. Em função, certamente, da massificação da cultura, mas também porque todas as situações e práticas minúsculas constituem a terra fértil sobre as quais crescem cultura e civilização[3].
O processo investigativo do qual decorre este artigo foi voltado para o aprofundamento do conhecimento da vida escolar em suas relações com as Artes e demais manifestações culturais nas quais a energia estética é predominante. Para tanto, foi imperativo considerar estas relações no panorama da escola no campo ampliado dos trânsitos dentro/fora de seus espaços oficiais. A escola que acolheu a pesquisa guarda tantas semelhanças com as demais escolas, quanto diferenças e singularidades. Uma instituição, como tantas, porosa e receptiva a tudo que acontece na cidade mundo. Uma escola singular, como todas, que a despeito de marcas precisas - pública e de uma cidade do interior - floresce em seus modos de fazer, modos de existência cotidiana absolutamente em sintonia com a atualidade das culturas juvenis. São seus protagonistas, os discentes do Ensino Médio e o empenho interessado de seus docentes.
Em sintonia com a eloquência da cultura visual contemporânea, tão íntima dos jovens, a pesquisa se assentou na produção de uma cartografia audiovisual[4] das experiências de criação artística, de fruição e produção estética na escola. Tendo como ponto central de observação os eventos de cunho artísticos e culturais periodicamente realizados que envolvem toda a comunidade escolar, quando muitas experiências artísticas de modalidades diversas são produzidas. Vídeos, mostras de pinturas, apresentação de poesias, canções etc.
Ao perambularmos e sermos afetados pelos fragmentos das imagens-sons-memórias-expressões dessas experiências, produzidas pelos estudantes, percebemos como elas fluem e transbordam, especialmente em momentos intensos de afetação e envolvimento coletivo, como a realização desses e demais eventos festivos permeados por forças dionisíacas (DIAS, 2011) tão familiares aos universos juvenis e, portanto, presentes nos cotidianos da escola. Sobretudo, quando e onde ocorre a partilha do gozo e do prazer, evidenciando a vida que brota com maior intensidade e, assim, reanima a existência e as práticas dos estudantes, professores e demais pessoas envolvidas.
Atentando para esse aspecto, procuramos rememorar outros momentos festivos da escola, recuperando a memória de um dos autores deste artigo durante o período que nela habitou, desde quando lá estudou, durante nove anos, no ensino fundamental, médio e técnico, até a atualidade, quando soma quase três décadas como professor. Uma longa trajetória na qual vivenciou o quanto a festa esteve presente nos cotidianos da escola. Presença que reflete a alegria, prazer e exaltação como inerentes à vida humana que, em maior ou menor grau, caracterizam tessituras culturais específicas. Naquele ambiente específico, oferece indícios que apontam para a identificação do povo brasileiro como festeiro. Festa que sempre atravessou e demarcou os espaçostempos da vida desta escola e da cidade, como tantas escolas, em tantas cidades, são atravessadas pelos calendários festivos em todo o país.
Relembramos, então, a grande festa ocorrida em 2018 celebrando os 50 anos[5] de existência da escola. Dentre as tantas atividades celebrativas ocorreram apresentações artísticas dos estudantes, destacando-se a produção de um site[6], também criado por eles, com imagens da escola ao longo de sua existência, e de um filme[7] com depoimentos de alguns professores e estudantes sobre a história da instituição. Nessas imagens e nas falas dos professores e estudantes foram destacados os eventos festivos realizados pela escola, dentre os quais os desfiles cívicos e a festa junina, momentos que reuniam pessoas da comunidade e, até mesmo, de fora da cidade, para apreciar as performances dos estudantes. A escola, sobretudo nesses momentos, evidencia não ter fronteiras que a separem da cidade a qual pertence. Desfrutar de seus eventos é desfrutar da energia da população que a habita e a preserva. A festa junina, por exemplo, ocorre até hoje como um momento de muita expectativa para os estudantes, de envolvimento na organização, desde o planejamento até a realização da ornamentação, na organização e ensaios da quadrilha e de apresentações como o casamento caipira, na alvorada e, mais recentemente, na apresentação da banda estudantil CACOS do Forró[8].
Os acontecimentos de intensa força estética/feérica, para além da oficialidade do calendário autorizado, sugerem outro modo de perceber a história da escola. Sequência de acontecimentos que explicitam a relevância dessa específica história, muitas vezes estranha ou distante da história das políticas públicas para a Educação, das teorias e dos teóricos da Educação, mas que oferece, entretanto, uma complementação para estas fontes tradicionais. Os cotidianos, fonte de saberes sobre os espaços praticados das escolas, sempre que investigados, em sua fugacidade e suposta repetição oferecem, a seu modo, subsídios que conferem vigor ao passado e ao presente do que é e pode ser a Educação brasileira.
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1 - Fotografias dos desfiles cívicos em várias épocas da escola investigada
Fonte: acervo do Site CEACO Memórias.
As imagens narram encontros da escola em efemérides de sua cidade, permitem perceber que as relações entre a escola e as ruas se dão, também, nos festivais criados pelos seus sujeitos, em notável intercâmbio a partir do qual, se pode perceber que a escola é a cidade e a cidade é a escola.
Professores e estudantes fazem da escola os equipamentos culturais que a cidade não dispõe. Em sua vocacionada plasticidade, o CEACO, como a maioria das instituições escolares, realiza em seus espaços também o que falta à cidade. Outras escolas de cidades que dispõem de recursos e equipamentos culturais, mas que, nem sempre são acessíveis ou desfrutados pelos estudantes, se desdobram em teatros, cineclubes, salões de festa, galerias para exposições etc. É sabido como o espaço escolar público é utilizado de muitas formas em atendimento às necessidades da comunidade na qual se localiza. Como abrigo nos casos de catástrofes climáticas, postos de vacinação, votação etc. No caso da escola sujeito da pesquisa, destacamos as relações com a cidade, no âmbito cultural, que se consolidaram em um calendário específico no qual os destaques são as obras artísticas e seus autores, todos estudantes e filhos da cidade. Evidentemente, o sempre necessário aparato cultural se faz nas realizações efêmeras dos festivais, fruto das operações de caça (CERTEAU, 2012) meio às negociações entre as escolas que habitam o mesmo espaço, as escolas dos estudantes e a dos docentes.
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2 - Festa junina - casamento caipira, quadrilhas
Fonte: acervo do Site CEACO Memórias.
Dentre os eventos nos quais “rola festa na escola” estão as festas de confraternização, especialmente no fim do ano, quando se dão as cerimônias de conclusão de curso, as comemorações do “Dia e a Semana do Estudante”, o “Dia do Professor”, os halloweens, os desfiles cívicos, os seminários com apresentações culturais, os concorridos shows de calouros etc. Todos esses eventos festivos abrem a escola ao público e alguns são promovidos pela escola com o empenho e dedicação dos estudantes dos quais partem as iniciativas. A escola, então, como considerado anteriormente, se afirma como importante equipamento cultural da comunidade.
As festas mencionadas movimentam intensa produção e decorrente experimentação estética que energiza a ornamentação do ambiente, o preparo e, posteriormente, o consumo de comidas e bebidas, a produção e a realização de performances artísticas com a música, as danças, as encenações teatrais etc. Um aspecto destacável é como, por meio dessas criações e participações, os estudantes contribuem e até influenciam não só a composição curricular da escola e a movimentação de seus cotidianos, mas, também, a extensão de suas práticas e ações à toda cidade.
Muitas dessas festas, a exemplo do Arraiá da escola, além de constantes, são tão significativas para a cidade que passaram a compor o seu imaginário, tornando-se uma tradição. Mesmo que, em alguns momentos de discussão interna entre gestores e professores emerja a preocupação sob alguns aspectos dionisíacos do evento, por se tratar de uma festa noturna de afluência juvenil, o inevitável consumo de bebidas alcoólicas sempre arrisca implicações legais por se tratar de uma instituição escolar pública. Contudo, os estudantes resistem e fazem com que a festa aconteça com “tudo a que eles têm direito” nas demais festas da comunidade, como as “festas juninas”: comidas, bebidas, dança, música, beijos, namoro etc. Assim, a conclusão do primeiro semestre letivo com a festa junina passou a marcar o calendário e agitar os cotidianos da escola inseparável dos cotidianos da cidade. Conforme ressalta o sociólogo Maffesoli (2005, p. 26),
[...] pode-se dizer que numa visão de conjunto (o holismo ou aquilo que chamei de unicidade) pode existir sinergia entre a ética e a estética. Isso pode evitar, ao mesmo tempo, o formalismo da arte pela arte do esteticismo e o dogmatismo moralizador do puritanismo político. Nesse sentido, é possível observar inúmeras atitudes, experiências e situações como sendo, para retomar uma expressão de Foucault, maneiras de “produzir assim mesmo como sujeito ético”. Vê-se todo o interesse sociológico dessa perspectiva: muitas atitudes sociais consideradas frívolas ou imorais, podem ser reconhecidas, fora de qualquer juízo normativo, como técnicas de autoconstrução, ou que têm uma função é “ethopoética”.
Portanto, as práticas festivas permitem dimensionar a magnitude dos espaçostempos dionisíacos da escola, tomando como inspiração as considerações de Rosa Dias (2011) sobre as relações entre vida e arte no pensamento de Nietzsche (1992). Espaçostempos nos quais as Artes transbordam os limites disciplinares para afirmar outras abrangências curriculares das Artes, espaçostempos de gozo estético e fruição do estar junto que, ostensiva ou discretamente, estão presentes em todas as dimensões sociais. Em uns momentos mais sutis e clandestinos, noutros mais evidentes e transgressivos.
A escola, sob perspectiva de certa tradição ortodoxa, ainda é, mas, não exclusivamente, uma organização social destinada ao ensino como transmissão de conhecimentos científicos centrada na formação do pensamento racional. Assim, na projeção de um sonho/imaginário de sociedade que pretende tornar realidade em cada indivíduo que educaria, estaria assentado o regramento e controle dos corpos, de modo a ser facilmente vista como tributária dos princípios apolíneos como base da vida humana e da arte. Contudo, longe da oposição, a complementariedade entre Apolo e Dionísio permite superar o equívoco da redução de qualquer escola aos aspectos basais da regulação. A percepção atenta, comum à investigação dos cotidianos, rapidamente constata que, sob o rigor normativo, há sempre a imaginação como dimensão irredutível da liberdade e criação a contrapor, acompanhar e contrastar com as idealizações e demais movimentos reguladores. Como destaca Dias (2011, p. 86-87), também a partir de Nietzsche,
O sonho é a força artística que se projeta em imagens e produz o cenário das formas e figuras. Apolo é o nome grego para a faculdade de sonhar; é o princípio da luz, que faz surgir o mundo a partir do caos originário; é o princípio ordenador que tendo domado as forças cegas da natureza, submete-as a uma regra. Símbolo de toda aparência, de toda energia plástica, que se expressa em formas individuais, Apolo é o magnífico quadro divino do princípio de individuação e a mais bela expressão do repouso do homem em seu invólucro de individualidade.
Por outro lado, de modo antagônico, simultâneo e subterrâneo, conforme ainda destaca a autora (2011), outros aspectos impulsionam a vida humana referentes à dimensão dionisíaca, a embriaguez:
[...] o estado que destrói, despedaça, abole o finito e o individual. Nela, desfazem-se os laços do princípio de individuação, rasga-se o véu das ilusões para deixar aparecer uma realidade mais fundamental: a união do homem com a natureza. Sob o mundo das aparências, das formas, da beleza, da justa medida, está o espaço de Dioniso — o nome grego para o êxtase. Dioniso é o deus do caos, da desmesura, da deformidade, da noite criadora do som, é o deus da música, mãe de todas as artes. Nascido da fome e da dor, perseguido e dilacerado pelos deuses hostis, Dioniso renasce a cada primavera e aí cria e espalha a alegria. (DIAS, 2011, p. 87).
De uma perspectiva relativamente superficial, mas, em muitos aspectos, pertinente, a educação formal afirmada nas políticas públicas e insistentemente reforçada por muitos gestores e professores não teria como prioridade o desenvolvimento de práticas que favoreçam o afloramento das emoções e dos desejos. Aspirações das mais simples às mais íntimas, impulsos espontâneos em direção (e direito) ao prazer e gozo coletivo são evitadas e reprimidas, talvez, não só por serem consideradas sem importância face à dimensão apolínea da vida humana, mas, pela oposição dolosa que as emoções e demais manifestações dionisíacas imporiam ao percurso dos programas e rotinas definidas com prioridades precípuas da escola. Contudo, a vida em qualquer ambiente habitado e ou atravessado pelas juventudes pulsa em ritmo sempre surpreendentemente descontrolado e incontrolável.
Nos movimentos cotidianos dos protagonistas das escolas se dão os seus encontros, marcados por suas identificações e diferenças. Encontros e adesões que propiciam saberes, sabores e cores específicas aos muitos ambientes escolares, como se dá nas deambulações e derivas pelas cidades. Seus desejos, prazeres, emoções, rebeldias e alegrias se afirmam, criando breves escapatórias nas contenções que seus fluxos de desejos, interesses e emoções tentaria represar ou, ilusoriamente, formatar. São resistências criativas nas quais estão implicados os espaços para a fruição, experimentação e expressão estética intensa que, em muitos instantes, diluem a individualidade e reconectam os coletivos à esfera comunitária, redimensionando o pertencimento ao corpo coletivo/social.
Foi no terreno movediço da festa, atentos à dimensão dionisíaca, em que buscamos compreender os processos de criação artística, de produção e fruição estética coletiva semeados nas fissuras do piso impermeável da institucionalidade de uma escola pública. Objetivamente, nas ocasiões de realização de oficinas de criação artística e saraus, festivais e exposições de projetos e obras poéticas. Atividades propostas e coordenadas por alguns professores e alunos meio aos concorridos espaçostempos comuns à dimensão formal e das práticas disciplinares da escola, estas atividades, de expresso interesse dos alunos, muitas vezes colidia com a citada dimensão disciplinar face ao peso do planejamento curricular. Os eventos, ao concorrerem com a lógica programática convencional, revelam alguns paradoxos importantes. Embora de vivo interesse para a maior parte dos alunos, embora incentivados por muitos professores e pelos gestores escolares, embora acolhidos pela comunidade externa e valorizados no calendário social da pequena cidade a qual pertence a escola e, mesmo, por se tratar de projetos fomentados pela Secretaria de Educação da Bahia, a negociação pelos espaços e tempos escolares os remete a segundo plano, na medida em que a produção e vivência cultural, artística e/ou estética não são reconhecidas no plano curricular, e mesmo epistemológico, como elementos formativos como são consideradas as disciplinas, ainda que enclausuradas nos “nada originais” diagramas curriculares oficiais. De tal modo que, a despeito do evento ser contemplado no calendário escolar, era preciso investir na operação diplomática de contornar e negociar com a programação outorgada da escola, ou seja, com os convencionais espaçostempos das aulas.
A pesquisa buscou recuperar as experiências dos eventos culturais da escola e sua sintonia com o contexto comunitário. Localizada em um município no interior da Bahia e com menos de seis mil habitantes, a atuação da escola, nas ditas atividades extra curriculares, ganha relevo diferenciado quando emerge como equipamento cultural ativo e dinâmico, como mostram os registros das várias edições do evento.
De início alertamos que os percursos desta pesquisa foram fortemente marcados por leituras, conversas e escritas desenvolvidas em meio aos transtornos, tensões, confusões, convulsões e (im)possibilidades provocadas pela pandemia de Covid-19 ou a partir dela, nos últimos três anos. Vivemos intensamente a experiência da perplexidade frente aos desafios impostos pelo vírus mais letal que afetou a humanidade nos últimos cem anos, mas também pela absurda onda neofacista e negacionista que se instalou-espalhou os últimos anos e afetou boa parte do nosso país, liderada por um governo cuja mais forte marca foi a promoção da necropolítica. Ação que selou o destino de muitos, fazendo com que o direito à vida fosse privilégio de poucos e acentuando as desigualdades, sofrimentos e a exploração, infelizmente ativas nos últimos cinco séculos da história do país.
Um período em que as escolas e universidades tiveram suas portas fechadas pela necessidade de se proteger a vida e cuja existência foi fortemente questionada, discutida e deturpada. Sua finalidade, enquanto produtora/socializadora de conhecimentos foi, muitas vezes, interpelada e rotulada como espaços de doutrinação, relegados à disputa de interesses partidários e/ou de narrativas ideológicas, como forma de desqualificar e destruir o debate e aprofundamento dos conhecimentos, razão precípua das universidades e escolas.
Contudo, também foi um período de reexistência, de reinvenção, de produção de novos conhecimentos e tecnologias, especialmente na área da saúde com os estudos sobre o enfrentamento da pandemia, tanto no desenvolvimento de cuidados para proteger e recuperar a vida quanto na criação de vacinas para prevenir e interromper o ciclo letal da doença. Assim, ocorreu a produção de novos conhecimentos e modos de reexistência em todos os campos de atuação e produção da vida na sociedade, de modo especial com uso das tecnologias digitais de comunicação para assegurar a continuidade do funcionamento da sociedade e suas instituições, a produção de bens e serviços necessários à vida, assegurando o trabalho de parte essencial das instituições públicas e privadas, a exemplo de órgãos governamentais como hospitais, escolas, universidades etc. e muitas empresas de diversos ramos. No que tocou às escolas, realidades antes superficialmente conhecidas tornaram-se evidentes, pois a lógica do ensino remoto, satisfatória como recurso emergencial, chocou-se com as condições materiais e domiciliares de estudantes e professores. A disponibilidade de equipamentos e espaços adequados ao acompanhamento das atividades remotas não era a mesma para todos, surgindo, até, como privilégio de poucos.
Tragados por esse furacão sanitário e sociopolítico-econômico-cultural, a maior certeza que temos agora é a de que sobrevivemos! Porém, mais de 700 mil brasileiros, infelizmente, não.
Por um período desafiador “o vírus nos roubou os abraços”[9] (Gabriel o Pensador, 2020), a possibilidade do encontro físico, o contato, a presença corporal, até então indispensável à maioria das pesquisas, sobretudo as que têm os cotidianos como campo central. A exemplo da investigação que nos levou a esse trabalho sobre as experiências de criação artística nos cotidianos de uma escola pública. Experiências estéticas antes impensáveis de serem vividas sem o encontro de corpos, desde as oficinas de criação até os festivais-saraus-exposições. Inimaginável também, até aquele momento, seria a realização das oficinas previstas na pesquisa sem a presença física dos estudantes. Mas, toda a turbulência pandêmica foi também marcada por invenções, como sempre acontece em todos os espaçostempos cotidianos.
Depois de uma tensa pausa em suas atividades, ou seja, um intervalo cheio de incerteza e muitas buscas por alternativas, as universidades e as escolas se reinventaram garantindo que os encontros fossem retomados e seguissem seu curso, recorrendo às tecnologias digitais de comunicação, mesmo de modo remoto e precário devido à inexperiência e carência de recursos para docentes e discentes. Assim mesmo, vimos que aos poucos o mundo foi sendo reorganizado, as escolas e as pesquisas construíram caminhos possíveis à sua continuidade. No caso específico desta pesquisa, depois que a escola retomou remotamente às suas atividades, começamos a imaginar como seguir o mesmo fluxo, apesar de que as conversas e inquietações nunca foram completamente interrompidas, nem na escola, nem na pesquisa.
Assim como em outras atividades sociais, a escola, as oficinas de criação artística e as oficinas da pesquisa se utilizaram das mesmas possibilidades e tecnologias virtuais para retomarem suas práticas e movimentos e seguiram, lentamente, em direção à realização dos encontros virtuais, híbridos, semipresenciais e, novamente, presenciais, após a melhoria das condições sanitárias resultantes da vacinação em massa, mesmo que aos solavancos, da população. Vivos, reavivamos a escola, os Projetos Artísticos e a própria pesquisa, o encontro coletivo, já que todas essas atividades existem em função da vida, para gerar mais vida, produzir modos de existência assinalados pela dignidade, igualdade, diversidade, ética, liberdade e felicidade.
Dessa maneira, contando com o interesse e solidariedade, das recordações, memorália e imaginário dos estudantes, efetivamos a produção de uma cartografia audiovisual. E, a partir desta operação poética coletiva foi possível entrelaçar alguns fios-fluxos de pensamentos e considerações fundamentais à recuperação dos significados e importância das vivências poéticas, das relações com a arte e de suas possibilidades como uma das faces formativas mais importantes da escola. Considerações, avaliações e ponderações sempre inacabadas, pois a vida escolar reafirma o caráter sempre intercambiante, relativo, temporal e histórico dos conhecimentos produzidos, em qualquer área do saber. Sobretudo, quando as novas gerações realçam ou demandam elementos atualizadores das práticas escolares, o que resulta por pautar toda avaliação da pertinência deste ou daquele saber ou prática pelo contínuo questionamento de seus interesses e regimes de verdade, ou seja, a um interminável processo de recriação de práticas, discursos e afetações.
As oficinas e os saraus-festivais-exposições foram e são espaçostempos inventados que movimentaram os cotidianos da escola pública. Em que pese serem atividades propostas por Projetos Artísticos da Secretaria de Educação do estado, os professores com seus estudantes realizarampensaram atividades que possibilitaram experiências de fruição-criação-fruição, artística e estética, embriagadas num clima festa-alegria-diversão-prazer que envolveu muitos jovens estudantes da escola, motivando-os a assumirem o protagonismo na produção poética de uma ação pública, aberta e interessada na cidade.
Tais experiências criativas movimentaram os pensamentos, percepções e desejos dos envolvidos, resultando em produções artísticas diversas que ressoaram dentrofora da escola, proporcionando visibilidade às suas produções-performances não apenas na vida intestina da escola, mas, como produção cultural afeta a cidade e a região, visto que nos eventos, na etapa regional, acorre público de outros municípios. Uma experiência de expressão pública mais ampla que implica no convívio e troca de experiências com estudantes de outras escolas públicas, bem como projeta a atuação dos professores e da escola para além dos limites geográficos e institucionais a que ela estaria circunscrita. Mas, qual escola seria contida em tais limites?
As experiências de criação artística-estética impulsionaram os estudantes a pensar sobre si e sobre o mundo em que vivem e, tendo a vida como matéria prima e sua ampliação e diversificação como possibilidade aberta a criar a partir das condições de existência em que emergem seus corpos, realizando experimentações individuais e coletivas, ao mesmo tempo. Experiências que afetaram suas percepções, gostos, escolhas, definições e modos de vida, suas atuações pessoal, acadêmica, profissional e política, resultando, também, em novas maneiras de se relacionar com a arte, com o conhecimento e com a própria escola. Experiências que afetaram, também, os seus professores ao realizarem e refletirem sobre as atividades de fruição e criação artística-estética, possibilitando outras maneiras de compreender os diversos temas envolvidos nas produções e, de maneira especial, de saber lidar, cada vez mais, com a necessidade e a efetivação dos processos de criação. Modalidades artísticas, modos de acontecimento poético implicados trouxeram, junto com a aspiração juvenil, novos conhecimentos para todos os envolvidos.
As produções poéticas que compuseram o conjunto de imagens, sons, músicas e textos entrelaçaram histórias, vidas, práticas, pensamentos e perspectivas sobre os mais diversos temas, desejos e acontecimentos nos cotidianos da escola. Nesse espaço expansível cabia a cidade/mundo onde os estudantes vivem, sonham, imaginam e projetam desejos, modos de vida e mundos possíveis. A franca relação com os aspectos sensíveis da cultura, da arte e do imaginário estético propiciou, a cada edição dos festivais e mesmo no encontro para se tratar de suas memórias, experiências enervadas pelo sentimento de satisfação e afeição coletiva. A saudade também foi um dos aspectos preciosos registrados nos corpos-memórias dos estudantes e dos seus professores, e na história da escola ao longo de quase uma década e meia de agenda voltada para o incentivo da criação e da fruição artística-estética.
As atividades específicas de arte e encontro produziram vínculos afetivos, o desenvolvimento de amizades entre os estudantes de diferentes turmas e turnos participantes das oficinas, seus professores e artistas colaboradores. Afetividade que beneficia as relações e motiva, ainda mais, a participação nas oficinas e nos saraus-festivais-exposições. Amizades que proporcionam autoconfiança e confiança mútua, crença nas potencialidades individuais, descoladas da competição, cooperativismo, solidariedade, companheirismo, apoio e compreensão do significado da troca de apoio para enfrentar as dificuldades comuns aos processos de criação poética, como a timidez, a ausência momentânea de ideias, a instabilidade emocional e insegurança durante os ensaios e as apresentações públicas.
Afetividade e solidariedade, relevâncias pouco enfatizadas no acontecimento escolar, emergem, então, por vezes, ostensivamente, muitas outras, discretamente, promovendo e permitindo se enfrentar as situações nas quais a competição e a disputa são lugar comum, bem como favorecer a superação da segregação e da hierarquização entre os estudantes. Ainda que na culminância da realização dos Projetos Artísticos, possa ocorrer a seleção dos melhores resultados, a colaboração mútua predomina no ambiente das atividades de criação, das oficinas aos saraus-festivais-exposições.
O reconhecimento dos vínculos afetivos se evidenciou necessário ao trabalho coletivo, à busca por estabelecer e realizar interesses e objetivos comuns, na realização de produções artísticas e demais atividades. Na realização dos Projetos Artísticos, as cartografias de memórias afetivas mostraram como as amizades têm colaborado na criação de redes de trocas de experiências, na coletivização de saberes e na expansão das atuações dentrofora da escola, envolvendo professores, estudantes, ex-alunos e artistas da comunidade. A formação dessas redes com a participação da comunidade amplia e intensifica o interminável e inevitável encontro coletivo, que dá movimento aos cotidianos da escola, encontro que do fazer juntos, da criação coletiva, leva a novos enredamentos da escola com a comunidade.
Os eventos pautados pela criação, apreciação e divulgação das artes constituíram práticas singulares, táticas de apropriação e reinvenções (CERTEAU, 2012). Suas organizações contaram com o envolvimento espontâneo de membros de toda a comunidade escolar e formaram uma rede na qual ex-alunos e artistas da comunidade foram conectados e tiveram participações decisivas. Ações distintas e descoladas das disciplinas, e aparentemente distantes dos conhecimentos elencados no currículo oficial, não representam o alcance de uma felicidade monolítica, nem se apartam, necessariamente, do andamento formativo escolar. Contudo, apontam caminhos possíveis de serem trilhados para o êxito da educação escolar contemporânea, espraiada em um universo de singularidades de toda ordem. Certamente que em um mundo de novidades diárias, de fluxos de informações superficiais e enganadoras cujos incipientes são, quase sempre, a sedução dos sentidos, a relação sincera com a participação da dimensão estética na vida humana e seus laços sociais, exigem urgência, tempo e atenção. Nada que fira a vocação da escola, em seu leque de diferenças e em sua, também, sutil e vigorosa semelhança.
As singularidades das práticas tornam os cotidianos da escola irrepetíveis, pois ocorrem face às necessidades decorrentes de condições imprevistas que se entrecruzam no dia a dia escolar. São frutos de acontecimentos únicos, produzidos no encontro coletivo dos seus sujeitos em condições e sob condicionantes diversos. Exemplos foram relatados ao longo dos relatos e reflexões que compõem esse texto. Os enfrentamentos das imposições da pandemia, as invenções e modos de existir diante da secura de um currículo e programação convencional e anacrônica via a Arte em sintonia com a atualidade da cidade mundo; a união de docentes e discentes na realização de uma escola voltada para a fruição e produção estética etc.
Situações fruto das reapropriações das condições que são oferecidas/impostas à população escolar, ou a seus praticantes, os levando a realizarcriar a escola possível e os currículos que desejam, escola e currículos praticadospensados (OLIVEIRA, 2012) em consonância com suas possibilidades, necessidades e objetivos. A escola na qual se deu a pesquisa, reiteramos, é, como qualquer uma outra, uma escola diversa, que comporta várias escolas (VICTORIO FILHO; SILVA; NASCIMENTO; SILVEIRA, 2017) no mesmo espaçotempo e pode ser compreendida como resultado da constante negociação entre diferentes perspectivas, interesses e modos de existência dos corpos que nela habitam/atuam, bem como das diferentes maneiras de conceber as suas atividades, enquanto instituição pública democrática, portanto, aberta à cidade mundo que a atravessa, seduz, envolve e transporta.
As reflexões produzidas neste trabalho refletem o intento que outras cartografias sejam produzidas para ampliar o que se sabe sobre as relações entre a escola e a cidade. E que outras imagens/imaginários da relação pública – escola – arte – cidade – escola – sejam produzidas a partir das realizações estéticas para além dos critérios legitimadores do que seria arte, cultura e suas práticas. Critérios definidos pelos sistemas tributários aos modos e interesses do capital. O êxito das experiências artísticas encontradas na escola reside, portanto, na amalgama relacional com a cidade e seus habitantes, não necessariamente por atender às ordenações do que deveria ser a arte e as formas de produção e apreciação, ainda definidas por padrões coloniais. Constatamos, então, que sob a rede contrastante de atravessamentos entre as tradições locais e tudo que chega do mundo aos jovens, prevalece a produção de modos poéticos de existência que fazem dos seus encontros, do estar junto na escola uma “obra de arte” em permanente construção coletiva, assim como se dá com a cidade onde habitam estudantes, professores e a própria escola, física e imaginariamente, e que, por esta, são habitados.
REFERÊNCIAS
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DIAS, Rosa. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
MAFFESOLI, Michel. O mistério da conjunção: ensaios sobre comunicação, corpo e sociedade. Porto Alegre: Sulina, 2005.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O nascimento da tragédia, ou Helenismo e pessimismo. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Currículos e pesquisas com os cotidianos. In: FERRAÇO, Carlos Eduardo; CARVALHO, Janete Magalhães (org.). Currículos, pesquisas, conhecimentos e produção de subjetividades. Rio de Janeiro: DP et Alii, 2012, p. 47-70.
VICTORIO FILHO, Aldo.; SILVA, Pâmela Souza da; NASCIMENTO, Rodrigo Torres do; SILVEIRA, Victor Junger. Alunos ensinam professores a ser professores na escola que não é mais escola. Educação. Santa Maria. v. 42, n. 3, p. 597-614, set./dez. 2017.
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[1] Graduado em Gravura pela Escola de Belas Artes UFRJ e Licenciado em Educação Artística. Mestre e Doutor em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. E-mail: avictorio@gmail.com
[2] Professor da Rede Pública Estadual da Bahia, no município de Ichu – BA e Doutor em Educação pelo PROPED – UERJ, 2023, Brasil. E-mail: edivan.ichu@gmail.com
[3] MAFFESOLI, Michel. O mistério da conjunção: ensaios sobre comunicação, corpo e sociedade. Porto Alegre: Sulina, 2005.
[4] Composta por vídeos produzidos por estudantes envolvidos em oficinas e saraus-festivais-exposições de criação artística numa escola pública do interior da Bahia, por meio das oficinas de uma pesquisa de doutorado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.criarteceaco.pictures/.
[5] Como já foi mencionado no início desse trabalho, o CEACO é uma escola estadual criada em 2000, mas que teve origem em uma escola comunitária, ligada a uma associação de atuação nacional, a Campanha Nacional de Escolas na Comunidade (CENEC), uma espécie de associação que funcionava com mensalidades relativamente acessíveis por contar com apoio, ou convênios, dos poderes públicos municipal e estadual.
[6] Site “CEACO Memórias” produzido através de uma pesquisa de Iniciação Científica envolvendo um grupo de estudantes da escola, em 2018, em que fizeram uma campanha na cidade, nas redes sociais, para coletar e digitalizar fotografias da escola junto a ex-alunos e professores. Disponível em: https://www.ceacomemorias.com/.
[7] Filme CEACO 50 anos, momento em que fala das festas. Disponível em: https://youtu.be/DLr2VYjNTyQ.
[8] Imagens da Banda CACOS. Disponível em: https://www.criarteceaco.pictures/cacos-do-forr%C3%B3.
[9] Verso da canção “A cura tá no coração” de Gabriel o Pensador, lançada em 2020, sobre a pandemia de Covid-19. Disponível em: https://youtu.be/cGlCalnE8EQ. Acesso em: 08 jun. 2023.