Uma cidade em variações compositivas errantes

 

A city created in wandering variations

 

Una ciudad creada en variaciones errantes

 

 

Leandro Belinaso 1

Universidade Federal de Santa Catarina

 

 

 

Resumo

O ensaio se cria nas margens de um conjunto de artefatos culturais composto em caminhadas por uma metrópole costurada por rios, pontes, portas, ruas, gentes e histórias. Sonoridades, palavras e imagens são construídas em deslocamento pelo tecido urbano. O ensaio é o resultado do encontro do autor com uma profusão de textualidades. O texto desdobra três questões que colocam em cena indagações relativas à alteridade, aos processos de escrita e à vida dos rios. Sem produzir um fim, o ensaio deixa espaço para novas perguntas a serem tecidas por um corpo errante em caminhadas pelas cidades.

 

Palavras-chave: Estudos Culturais; Escrita; Cidade; Caminhar.

 

 

Abstract

This essay is created on the border of a set of cultural artifacts composed through walking in a big city, in its rivers, bridges, doors, streets, people and stories. Sounds, words and images are created by walking through an urban city. The essay results in a meeting between the author and these textualities. The text discusses three topics: otherness, writing and the life of rivers. Without producing an end, the essay opens space so that other questions can be created during walking around a city.

 

Keywords: Cultural Studies; Writing; City; Walking.

 

 

Resumen

Este ensayo fue creado en la frontera de un conjunto de artefactos culturales compuesto por el caminar en una gran ciudad, por sus ríos, puentes, puertas, calles, gentes y historias. Los sonidos, las palabras y las imágenes se crean al caminar. El ensayo resulta en un encuentro entre el autor y las narrativas. El texto aborda tres temas: la alteridad, la escritura y la vida de los ríos. Sin producir un final, el ensayo abre espacio para que otras preguntas puedan ser creadas durante el caminar por una ciudad y por un texto.

 

Palabras clave: Estudios Culturales; Escritura; Ciudad; Caminar.

 

Uma palavra nunca chega sozinha, Marcel Bénabou

 

 

Como ler o que chega do outro em uma vasta, múltipla, heterogênea, colorida, caixa de presentes embalados, um a um, carinhosa e alegremente? Quando a caixa se abre, saltam de dentro dela, para tocar a superfície porosa da pele do corpo de quem lê, palavras, imagens, sons, colagens, texturas, ficções de uma cidade. Recife. Cidade-mangue, como cantou Chico Science, como nos enlameou Sheila Hempkemeyer (2021) em sua Tese, na qual o próprio manguezal nos conta um pouco das histórias e dos seus sentimentos sobre a cidade.

Eu só tenho a agradecer à multidão do Grupo de Pesquisa em Estudos Culturais, Arte/Educação (GPECAE), especialmente à professora Ana Paula Abrahamian da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), por me convidar a ver, ler e ouvir uma miríade de artefatos produzidos a partir de caminhadas por Recife, pelo entorno do rio Capibaribe. Neste conjunto de materiais proliferam histórias mínimas, impossíveis de virem ao mundo se não houvesse em cena um gesto pedagógico de caminhar com a atenção da presença e sem uma velocidade atroz a atropelar corpos frágeis e sensíveis.

Alessandra Klug (2020), artista visual e professora de artes na educação básica, conta que nos acostamentos de ruas e avenidas “o caminhar como forma de habitar o espaço [expõe] a fragilidade da existência humana na cidade” (p. 64). Sem caminhar por um trajeto, sustenta a pesquisadora, jamais o compreendemos. “Existem lugares que precisam ser vividos para serem vistos” (p. 65). O caminhar no seu processo de pesquisa foi um meio para sentir no corpo camadas variadas da cidade e de si mesma. Naquele caminho, em suas margens, a cidade se apresentou à autora como uma “ruína da floresta”, conceito-chave operado em sua Tese. Caminhando foi possível perceber a força dos não humanos. Eles insistem em brotar por entre as fissuras dos concretos e em indicar os modos possíveis de existência em lugares nos quais foram praticamente proibidos de estar. Alessandra nos oferece uma chave de leitura da cidade intimamente conectada com um caminhar por entre ruínas, se perguntando, em suas andanças, pela floresta que a cidade já foi e pelos jardins que ela ainda pode gerar.

Fabiane Secches (2021), a partir do livro Para ler como um escritor de Francine Prose, diz a respeito do ato da leitura que “se pudermos reduzir a velocidade e nos autorizar a operar em outra marcha, também se torna possível passar pelo texto com mais atenção e mais presença” (p. 28).

Para honrar estes gestos de lentidão, resolvi, inspirado por Sheila Hempkemeyer (2021), ler como um errante, “desacelerando os espaços [para] perceber a heterogeneidade dos territórios habituais” (p. 166). A errância, conceito apreendido por Sheila, sobretudo, nos trabalhos ensaísticos da arquiteta Paola Berenstein Jacques, faz o corpo estar implicado na leitura, na escrita, nas andanças, escapando das overdoses dos excessos. A experiência errática acontece de forma desorientada e lenta no corpo, neste corpo tão nosso e tão amalgamado às culturas do tempo presente.

Como ler de uma forma errante os artefatos artísticos e pedagógicos do GPECAE construídos ao longo do ano de 2022? Este desafio esteve comigo durante a preparação deste ensaio. E posso ter falhado neste propósito. De todo modo, procurei apreciar os detalhes, os ritmos, as formas, as cores, os sentidos em estado de germinação. É importante, acredito, ensaiar um movimento de leitura que passe pouco, quase nada, pelo julgamento e, sim, um sim afirmativo sem o aprisionamento dos rótulos, pela apreciação da jornada, pela fruição, por um deixar-se levar, por um caminhar junto. De novo cito Fabiane Secches (2021): “quando lemos prestando atenção apenas ao que uma história conta, e não a como se conta, uma parte significativa da experiência de leitura se perde” (p. 28). Eu diria que os modos como os fragmentos ficcionais de Recife me foram presenteados, mostrados, criados, diz mais do que os próprios assuntos que proliferam.

E as “gambiarras inventivas”, termo sugerido pelo próprio Grupo, compostas nas caminhadas diurnas e ensolaradas por Recife, estão disponíveis fragmentariamente à leitura. No meu percurso com os artefatos, faço junções improváveis, me acomodo nos interstícios em branco dos materiais, nos lapsos de tempo propiciados pela passagem por cada fragmento. Marcel Bénabou (2018), autor da epígrafe do ensaio, me ajuda a pensar nas maneiras como escrevo sobre/com as inventividades do GPECAE. Evito entrar com violência nos espaços vazios proporcionados pelos textos e pelas imagens. Acaricio as palavras, as fotografias, as colagens. Deixo aberta a possibilidade de outros chegarem e se alojarem, com suas interpretações e seus sentimentos, nas margens das páginas aqui pintadas com palavras.

Para conseguir escrever, levo à sério uma sugestão do autor marroquino e crio algumas restrições para não me deparar com a imensidão de um horizonte sem fim, para não ficar situado dentro da pequenez narcísica das minhas emoções.

Construo perguntas a partir do meu primeiro encontro com os artefatos. Elas me levam a eleger os fragmentos a serem comentados a partir das notas que teço. São palavras, frases extraídas dos fragmentos, marcas das sensações, dos pensamentos em seus estados inaugurais. É um gesto restritivo, este de compor uma pergunta e com ela revisitar a anotações de leitura, um tanto quanto impreciso e demasiadamente aberto. Eu sei. Mas foi com ele que consegui escrever este ensaio.

Eu percorri lentamente as rotas dispostas no site compartilhado comigo pelo Grupo. Em cada rota, fragmentos compositivos estão presentes. Como já anunciei, são imagens, colagens, textos, músicas, mapas. Primeiramente, caminhei pelos artefatos. Em papeis soltos fui tomando notas das primeiras impressões. Há uma numeração identificadora de cada fragmento. Então vou marcando a rota (se é a primeira ou a segunda ou a terceira) e o número dos fragmentos comentados. As perguntas formuladas servem de guia para o meu reencontro com as anotações e revisita dos materiais. Consegui dar conta de apenas três indagações. As outras eu apaguei ou rasguei o papel que as continha. Foram embora, nunca mais as encontrei. 

Fui compondo este ensaio, portanto, a partir das perguntas que em breve anunciarei. Indo e voltando ao site. Indo e voltando às minhas anotações. Indo e voltando nesta escrita. Cheguei ao dia da conversa do Grupo comigo sem ter finalizado o texto. Mas como venho aprendendo com muitos colegas das artes, da educação, da psicologia social, dos estudos culturais, que fazem da cartografia um modo de existência em pesquisa, o que importa, mesmo, é o percurso, o que dele/nele foi possível experimentar, ler e escrever. Sigo relendo e reescrevendo. Agora, é a minha vez de deixar este texto como um presente a vocês de Recife e a vocês leitores e leitoras de todos os lugares.

 

Como escapar de si, caminhando?

 

Para desdobrar esta primeira pergunta, imagino, nas rotas traçadas pelo GPECAE, caminhadas lentas e matutinas por porções de Recife, em uma velocidade ditada pelo ritmo do corpo. E, como argumenta Marguerite Duras (2021), “não podemos escrever sem a força do corpo” (p. 34).

Outro dia, eu participei de uma oficina de escrita online tecida a partir do livro Pagu no Metrô, de Adriana Armony (2022). A escritora Sabina Anzuategui, mediadora da oficina, depois de termos conversado um pouco sobre o livro, nos pediu um texto tecido a partir de um deslocamento. E indicou aos moradores de prédios, como eu, que deixassem seu apartamento e caminhassem até o elevador ou a escada e escrevessem sobre este trajeto tão banal, tão corriqueiro, como se fôssemos estrangeiros, como se o trajeto se apresentasse estranhamente a nós. No romance inspirador da proposição, a autora escreve em deslocamento, escreve caminhando, passo a passo, no ritmo lento e veloz do corpo, no ritmo de um corpo estrangeiro em Paris. Um corpo aventuroso em sua busca por pistas sobre o tempo em que por lá viveu Patrícia Galvão (Pagu) nos anos 1930 para, com elas, escrever uma história. Um livro-gambiarra das vidas e dos tempos entrelaçados entre Pagu e a narradora-autora do romance-ensaio. Voltando ao exercício. Seria possível escrever, evidentemente, sobre o corredor, o elevador, o trajeto, acionando memórias, se valendo da imaginação sobre o deslocamento. Mas o intuito era escrever com o corpo, com o gesto de caminhar, com a respiração sutilmente alterada, com as texturas do lugar que se apresentam de outros modos simplesmente porque nos colocamos a caminhar em uma condição estrangeira.

Com o exercício ensaiamos um escape de nós mesmos, para nos deixar afetar pelas paredes, pelos sinais, pelos passos, pela respiração, pelas luzes, pelos cheiros, pelas estruturas metálicas dos elevadores (são dois), pelas vozes do lado de lá das portas. Tal como Adriana Armony se deixou tocar por Paris, pelos lugares da cidade visitados em busca dos vestígios de Pagu, pelas pessoas que encontrava nos trajetos; os integrantes do GPECAE caminharam e se deixaram afetar pelo rio Capibaribe, por Recife, pelas gentes, pontes, ruínas, portas, cores, sons, pela profusão de elementos que atravessam o corpo pelo caminho em uma cidade inebriante, viva.

O livro de Adriana Armony sobre Pagu em Paris nos anos 1930 e sobre ela mesma, sobre sua viagem em busca dos rastros desta encantadora e enigmática personagem, também me faz recordar da Tese de Tânia Aversi (2021). Em suas “pedagogias do deslocamento”, Tânia caminha por Recife desejando encontrar vestígios da existência de Paulo Freire na metrópole. Das narrativas sobre as andanças da pesquisadora pelas ruas da cidade, sobretudo, pelo bairro da Casa Amarela, lembro da espessura do tempo de sua permanência em sebos e bibliotecas, locais onde preciosidades são achadas e perdidas.

A respeito do caminhar, Frédéric Gros (2021) nos diz que “a ilusão da velocidade consiste em acreditar que ela faz ganhar tempo” (p. 41). Mas, diz o autor, os dias que caminhamos lentamente nos fazem viver mais tempo. Caminhar lentamente nos faz aderir ao tempo, “gota a gota, como uma chuva leve sobre a pedra. Esse estiramento do tempo aprofunda o espaço [grifos do autor]” (p. 42).

Em uma série de imagens de Marcus Flávio publicadas na rota 1, fragmentos 30, 31 e 32 (imagem 1), é possível sentir as texturas dos lugares, das coisas, dos chãos, das paredes. Um escapar de si para se deixar tocar pelas texturas da cidade?

Imagem 1 – Recife em fragmentos

Fonte: Fotografias de Marcus Flávio, cedidas pelo autor

 

 

Uma parede em ruína, monocromática, se mostra espessa quando sua superfície se apresenta carcomida pelo tempo, pelo vento, pela chuva, pelas mãos, pelos corpos que a tocam, arranham, perfuram. Ao focar a roda de uma bicicleta, se sente a rugosidade do chão que massageia pés descalços e patas desnudas. No ladrilho da calçada, um desconforto provoca nosso olhar a sair de seu sono profundo. Um homem dorme. A placa, imensa no canto esquerdo da imagem, grita avisando o tempo máximo de permanência no lugar. A quem ela se endereça? Aos carros, aos caminhantes, aos que dormem na profusão sonora da cidade amanhecida?

Em outro momento, já na rota 3, fragmento 55, Alcidesio Junior, escreve: “cada movimento meu é pensado para disfarçar o quão movediço eu sou”. Buscando modos de pensar e fazer pesquisa, Fabiana Vidal, pintou pedaços de Recife a partir de encontros formativos remotos anteriores às caminhadas pela cidade (imagens 2 e 3). A pesquisadora traça com cores e formas os caminhos e nos faz sentir movediços.


 

Imagem 2 – Das águas que me atravessam

Fonte: Pintura de Fabiana Vidal, cedida pela autora

Técnica: Aquarela sobre papel canson

 

 

 

 


 

Imagem 3 – A/r/tografia de pensamentos: caminho, caminhar, peregrinar

Fonte: Pintura de Fabiana Vidal, cedida pela autora

Técnica: Nanquim sobre papel canson

 

Como sentir um rio como uma entidade viva e múltipla?

 

 Recife, nos lembra Sheila Hempkemeyer (2021), revela uma cidade das águas. Diz a pesquisadora: “além do mar, os rios Capibaribe, Beberibe, Tijipió me hidratam, delineando tortuosos contornos da cidade. Os rios carregam consigo histórias de vários sistemas vivos (...). Todo rio nasce com desejo de contar histórias” (p. 169).

Logo no segundo fragmento das “gambiarras inventivas” do GPECAE, escutamos na voz de Marcus Flávio os versos inaugurais do livro O Rio, publicado em 1953 pelo poeta pernambucano, nascido em Recife em 1920, João Cabral de Melo Neto. O livro-poema presta homenagem ao rio Capibaribe, à viagem feita por suas águas desde a nascente até Recife. Destaco a seguir estes versos iniciais da obra.

 

Sempre pensara em ir

caminho do mar.

Para os bichos e rios

nascer já é caminhar.

Eu não sei o que os rios

têm de homem do mar;

sei que se sente o mesmo

e exigente chamar.

 

Recife é narrada nestas textualidades visitadas, nos materiais do GPECAE e nas Teses citadas, muito mais por seus rios, suas urbanidades, do que por suas praias. O mar, a praia, a areia, estão ligeiramente silenciados. Entretanto, como lemos acima, o mar é evocado logo nas primeiras linhas do livro-poema de João Cabral de Melo Neto dedicado ao rio Capibaribe.

Em um livro delicioso, uma espécie de ensaio misturado com relatos autobiográficos e criações ficcionais, o escritor argentino Alan Pauls (2023) vai nos bridando com uma análise singular sobre a vida que se passa descalço na areia da praia em dias escaldantes de verão. Em certa passagem do livro, o autor comenta sobre um amigo que não gosta de praia. À beira-mar, de frente para o oceano, naquela faixa de território em que só se nota e se sente o sol, o sal, a areia, a água, os cremes protetores e hidratantes da pele, as pessoas e os ruídos, não se consegue “imaginar uma biblioteca em nenhum lugar” [grifos do autor], (p. 73).

Eis a chave que, para mim, explica as quase nulas andanças do Grupo pela areia das praias recifenses. Ao menos elas pouco aparecem nos vestígios das imagens e dos textos. Além de caminharem, possivelmente, calçados e inapropriadamente vestidos para um banho de mar, na praia não se encontrariam as variações, as miudezas, as artes urbanas, as muitas gentes, inscrições e histórias ofertadas à leitura pelas ruas e pelas margens dos rios. É na cidade afastada da praia que encontramos bibliotecas à céu aberto.

Desde 2018, na disciplina de Metodologia de Ensino de Ciências e Biologia, que ministro no Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina, logo na primeira semana de aulas eu trabalho com um ensaio do biólogo e escritor moçambicano Mia Couto publicado no livro E se Obama fosse africano? Desfio o texto em seis linhas e as faço funcionar como metáforas que tecem a trama pedagógica da disciplina. Uma das linhas tem a ver com os rios.

Diz Mia Couto que os rios são entidades vivas, vastas e múltiplas. Fui menino criado no interior, nascido em uma pequena cidade do noroeste gaúcho, Catuípe, de oito mil habitantes, próxima à fronteira com a Argentina, cortada por um rio e circundada por um outro mais caudaloso de nome Ijuí. Os rios se mostraram diversos nos meus tempos de meninice. Por vezes calmos demais, em outras, um pouco mais nervosos, mas jamais oceânicos. Esta dimensão múltipla das suas existências eu já sentia desde a infância. Fui criado gente em uma outra cidade pequena, Assis, embora dez vezes menos minúscula do que Catuípe, localizada no oeste paulista. Nela, levado por meu pai, eu brincava nas margens de um lago formado artificialmente a partir de um rio. Para mim, os rios sempre tiveram margens visíveis e tangíveis. Porém, quando visitei a cidade de Belém no estado do Pará, já feito homem, professor de Universidade, Silvia Chaves me levou a Mosqueiro, cidade próxima à capital. Por lá, pude testemunhar a existência de um rio oceânico, com ondas medianas a fortes, com um fim feito miragem, um rio travestido de mar. Só pude silenciar próximo a um pé de Tucumã, cravado de frutos maduros, envolvido por uma mistura de odores com pouquíssima presença do sal no ar, na pele, na língua.

As lembranças narradas acima se produziram pela pergunta deixada pela rota 1, fragmento 12, sobre qual a minha (a sua) primeira lembrança de infância. Fui buscar as memórias tecidas com os rios.

“A cidade desloca a retina”, diz um lambe-lambe fotografado e exibido através do fragmento 16, da rota 1.  Os rios em volta dos quais muitas e muitas e muitas cidades se criam, quando escutados, nos deslocam por inteiro. Eles encharcam nossos olhos, nos tocam a pele nem que seja com uma lufada de brisa úmida nos dias quentes de verão. Ficar impassível aos rios é um esforço imenso de uma brutal insensibilidade.

Nenhum rio, diz Mia Couto, é apenas um curso de água. Os rios compreendem “as margens, as áreas de inundação, as zonas de captação, a flora, a fauna, as relações ecológicas, os espíritos, as lendas, as histórias. É uma rede de entidades vivas” (p. 53).  Tal como é a vida pulsante que brota das “gambiarras inventivas” do GPECAE.

 

Como finalizar algo sem fim?

 

Este ensaio permanece em aberto, pois é possível colar mais um fragmento a partir de uma outra pergunta e mais outra e outra. Aliás, as colagens presentes no conjunto de artefatos foram momentos deliciosos de descanso, de parada, de celebração dos encontros, da vida que se coletiviza em um Grupo de Pesquisa.

As portas, mais ainda do que as janelas, são passagens. Todas servem para sair e para entrar, diz o fragmento 42 da rota 2. O GPECAE manteve suas portas abertas e por elas pude entrar e sair inúmeras vezes, sem pressa, sem pressão. Espero que este texto também permita entrar ar e gente e rio. Portas estiveram muito presentes nos materiais, sobretudo através das fotografias. Portas destrancadas são como pontes. Nos convidam a uma travessia. Nos abrem ao imprevisível e ao improvável dos encontros tecidos pelos caminhos, pelas passagens.

Parto com vontade de me banhar um pouco mais de rio, de rua, de árvore, de arabesco, de grafite, de Recife lançando suas redes e nos pescando.

 

REFERÊNCIAS

ARMONY, Adriana. Pagu no metrô. São Paulo: Editora Nós, 2022.

AVERSI, Tânia. Pedagogias em deslocamento no cotidiano da (in)diferença: narrativas desde uma revisita à perspectiva Freire(e)Ana. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de Sorocaba (UNISO), 2021.

BÉNABOU, Marcel. Por que não escrevi nenhum de meus livros? Tradução de Ana de Alencar. Rio de Janeiro: Tabla, 2018.

COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

DURAS, Marguerite. Escrever. Tradução de Luciene Guimarães de Oliveira. Belo Horizonte: Relicário, 2021.

GPECAE – Grupo de Pesquisa em Estudos Culturais, Arte/Educação. Rotas - Experiências no Recife, 2022.

GROS, Frédéric. Caminhar: uma filosofia. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Ubu Editora, 2021.

HEMPKEMEYER, Sheila. Errâncias pedagógicas na cidade. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), 2021.

KLUG, Alessandra. Entre ruínas e jardins: a cidade através dos deslocamentos de uma professora-artista-pesquisadora. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Santa Catarina, 2020.

PAULS, Alan. A vida descalço. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.

SECCHES, Fabiane. Para ler como um escritor. Rascunho. Edição 256, agosto de 2021.

 

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