Quando humanos, c�es e caminhos se encontram: arte, afetos e palavras no movimento potente da vida nas ruas

 

When humans, dogs and paths meet: art, affections, and words in the powerful movement of life on streets

 

Cuando humanos, perros y caminos se encuentran: arte, afectos y palabras en el potente movimiento de la vida en la calle

 

 

Michele Fernandes Gon�alves [1]

Universidade Federal de Santa Catarina

 

 

 

Resumo

Este artigo aposta nas artes, especificamente nas interven��es de rua em formato lambe-lambe e na escrita narrativa, como formas de partilha do sens�vel (RANCI�RE, 2005) e de circula��o de afetos (SAFATLE, 2015; ESPINOSA, 2009) entre humanos e c�es �de rua� quando nela eles se encontram. Parte-se da afirma��o de que h� uma rela��o de poder (FOUCAULT, 2007), sujei��o e assujeitamento entre esses viventes, adota-se a premissa de que � necess�rio romp�-la para acessar as potencialidades n�o hierarquizadas do encontro entre eles e apresenta-se uma discuss�o conceitual sobre como esse encontro pode, pelas sensa��es e sensibilidades que a� se despertam, atuar nesse rompimento, possibilitando aos segundos outras configura��es espaciais e existenciais. Algumas experimenta��es feitas com narrativas e lambe-lambes produzidos como parte de uma pesquisa de mestrado s�o apresentadas.

 

Palavras-chave: C�es �de rua�; Arte; Escrita narrativa; Lambe-lambe; Educa��o.

 

Abstract

This article focuses on the arts, especially on wheat-paste poster urban interventions and narrative writing, as ways of distribution of the sensible (RANCI�RE, 2005) and circulation of affections (ESPINOSA, 2009; SAFATLE, 2015) among humans and stray dogs when they meet each other on the streets. We take as certain the existence of a power and subjection relation among these beings; embrace the premise of an urgency in breaking it up to access the non-hierarchic powers between them; and present a conceptual discussion on how their encounter can act in this rupture through the sensations and sensibilities that are awakened, allowing the stray dogs other spatial and existential configurations. We finally present some experimentation with wheat-paste poster urban interventions and narratives produced as part of the authors� master research project.

 

Keywords: Stray dogs; Art; Narrative writing; Wheat-paste poster; Education.

 

Resumen

Este art�culo apuesta en las artes, concretamente en las intervenciones callejeras en formato pegatina y en la escritura narrativa, como modos de reparto de lo sensible (RANCI�RE, 2005) y de circulaci�n de afectos (SAFATLE, 2015; ESPINOSA, 2009) entre humanos y perros �callejeros' cuando estos all� se encuentran. Se parte de la afirmaci�n de que existe una relaci�n de poder (FOUCAULT, 2007), sujeci�n y sometimiento entre estes vivientes, adopta-se la premisa de que es necesario romperla para acceder a las potencialidades no jer�rquicas del encuentro entre ellos, y se presenta una discusi�n conceptual sobre c�mo este encuentro puede, a trav�s de las sensaciones y sensibilidades que en ello se despiertan, actuar en esta ruptura, permitiendo a los peros otras configuraciones espaciales y existenciales. Algunas experimentaciones hechas con narrativas escritas y pegatinas producidas como parte de un trabajo de investigaci�n son presentados.

 

Palabras clave: Perros 'callejeros'; Arte; Escritura narrativa; Pegatinas; Educaci�n.

 

Introdu��o

Este artigo aborda algumas maneiras sens�veis pelas quais humanos e c�es podem se encontrar nas ruas onde transitam, se cruzam e, �s vezes, habitam. Ele � a continua��o de um trabalho anterior[2] que discutiu, atrav�s de experimenta��es conceituais, esse encontro. Parte-se da afirma��o de que h� um olhar comum, dominante e arraigado para o que se costumou nomear, nas sociedades ocidentais, �humano� e �animal�, e de que tal olhar produz rela��es de sujei��o e assujeitamento entre essas categorias de viventes, gerando rela��es de poder e atitudes autorit�rias, normativas e excludentes de uns sobre outros, em especial de humanos sobre c�es � estes �ltimos, para o que aqui se deseja problematizar, aqueles que vivem nas ruas.

Adota-se a premissa de que � urgente esgotar as concep��es, defini��es e classifica��es hegem�nicas atribu�das aos viventes e ir al�m do pensamento da identidade que, ao ser aplicado �s rela��es �entre-reinos�, muitas vezes serve mais ao especismo que �s singularidades. Afirma-se a necessidade de romper com os utilitarismos e com as recorrentes cristaliza��es na enuncia��o da vida como forma de acessar suas potencialidades n�o hierarquizadas e, para tanto, aposta-se no encontro entre humanos, c�es, ruas, arte e palavras. Humanos e c�es relacionando-se para al�m da sujei��o no espa�o comum das ruas, ambientes de troca e partilha, territ�rios habit�veis e de perman�ncia; arte como possibilidade de fazer dessas ruas esse lugar compartilhado e de encontro, n�o por rela��es hier�rquicas domesticadoras, mas pela sensibilidade e sutileza; palavras como pot�ncias art�sticas narrativas que, ao habitarem as ruas ao lado desses viventes, criam universos sens�veis capazes de abrir outros poss�veis, novas configura��es espaciais e existenciais nas rela��es que eles estabelecem entre si. �

A estrutura��o do texto se d� como descrito. Primeiramente, discute-se a arte e a pol�tica como formas de partilha sens�vel (RANCI�RE, 2005) e de encontro com afetos (ESPINOSA, 2009) distintos daqueles que comumente circulam no espa�o p�blico urbano, defendendo-se a escrita narrativa como uma das possibilidades de partilhar esse sens�vel. Na sequ�ncia, reflete-se de que maneira as pr�ticas art�sticas, em espec�fico as interven��es urbanas na forma de lambe-lambes, podem promover, nas ruas, o encontro prof�cuo e alegre entre humanos e c�es que nela circulam ou habitam, salientando-se a condi��o comum de marginalidade entre todos eles e defendendo-se essa caracter�stica como potente para incitar d�vidas, estranhamentos e desconfortos nos passantes ou habitantes humanos presentes nesses espa�os. Apresenta-se, ent�o, algumas narrativas produzidas como experimenta��es de um trabalho de mestrado[3], discutindo-se como sua produ��o, disparada pelo caminhar conjunto (literal) de humanos (pesquisadora) e c�es (mat�ria de pesquisa) funciona como um ato criativo que emerge de um processo de afeta��o m�tua. Apresenta-se, tamb�m, experimenta��es em formato lambe-lambe realizadas a partir dessas narrativas e inseridas no espa�o p�blico urbano. Por fim, discute-se como os lambe-lambes podem alargar a experi�ncia sens�vel da exist�ncia dos c�es nas ruas e efetivar a partilha dos afetos entre eles e os humanos que por ela circulam ou que a habitam, sugerindo-se maneiras pelas quais essa experi�ncia pode ser multiplicada quando transformada em propostas de trabalho para professores e alunos. Articula-se, como encerramento, a aposta de se pensar o encontro entre humanos, c�es, ruas e pr�ticas art�sticas como atividades da ordem �dos comuns�, como experi�ncias partilhadas, sem excepcionalidade, no universo sens�vel.

Em conex�es m�ltiplas, arte, palavras, c�es, humanos e ruas engendram-se em propostas de partilhas est�ticas, pol�ticas, sens�veis, po�ticas e comuns: afetos muitos que invadem e se articulam � vida que resiste e insiste no espa�o urbano.

 

O encontro pelo sens�vel e pelos afetos

A arte � mat�ria para encontros que nos fortalecem, nos incrementam e aumentam nossa pot�ncia (CPFL, 2015). Como modo de express�o, � �inven��o de poss�veis� (ROLNIK, 2006, p. 2), for�a de vida que impulsiona a criar o que ainda n�o existe. Pr�ticas art�sticas s�o todas aquelas que t�m o poder de desestabilizar e deslocar os lugares pressupostos para �as coisas�. Seus modos de fazer s�o potentes especialmente quando colocam em jogo a efic�cia de um dissenso, �[...] a suspens�o [...] e a desconex�o entre as significa��es [...] e os efeitos que podem produzir� (RANCI�RE, 2012, p. 58). Esse dissenso se caracteriza pela ruptura da obrigatoriedade de rela��o l�gica entre o que se produz e o que essa produ��o causa no espa�o comum. � por meio dele que a efic�cia do regime est�tico das artes toca a pol�tica, cujo cerne � o pr�prio dissenso se compreendida como pr�tica de reconfigura��o da experi�ncia comum do sens�vel.

Jacques Ranci�re (2005, p. 15) chamou �partilha do sens�vel�, �[...] o sistema de evid�ncias que revela [...] a exist�ncia de um comum [...] e fixa sua partilha em espa�os, tempos e tipos de atividades�, definindo a maneira como uns e outros tomar�o seu lugar nelas. Essa partilha diz respeito � determina��o daqueles que podem ou n�o fazer parte do comum, de acordo com �o que� exercem e �como� o fazem. Ela � est�tica na medida em que determina o recorte dos tempos, dos espa�os e das visibilidades dos cidad�os, ao mesmo tempo em que est� no cerne da pol�tica porque � ela � a pol�tica � que cuida do coletivo, se ocupando �[...] das propriedades desses espa�os e do que se v�, do que pode ser dito sobre o que � visto, e de quem tem compet�ncia para faz�-lo� (RANCI�RE, 2005, p. 16).

Segundo Vladimir Safatle, a pol�tica, muito antes de configurar a circula��o de bens e riquezas, configura os afetos, a maneira como sentimos, vemos e percebemos, al�m de influenciar em como essa maneira �[...] determina o que causa nossa a��o e julgamento� (CPFL, 2015). Esses afetos s�o os efeitos provocados pelos acontecimentos no corpo, as �[...] afec��es pelas quais sua pot�ncia de agir � aumentada ou diminu�da, estimulada ou refreada� (ESPINOSA, 2009). Eles s�o tamb�m as disposi��es desse mesmo corpo � mudan�a, �quilo que pode redesenhar sua experi�ncia sens�vel. A pol�tica, assim, � uma dimens�o de circula��o de afetos, legislando sobre os modos de ver e perceber de uma sociedade, sobre os agentes legitimados a faz�-lo, sobre os comportamentos desses agentes e sobre os tipos de afeta��es produzidas por eles.

A arte como partilha sens�vel � est�tica e pol�tica, definindo e redefinindo, de diferentes maneiras, como se dar� a distribui��o do comum, provocando e produzindo transforma��es subjetivas, tensionando o campo do que � compartilhado em uma sociedade, configurando fazeres e intervindo na distribui��o geral do que circula como afeto, possuindo, por isso mesmo, o poder de modificar essa circula��o. Se tomada n�o como uma aposta de consenso entre o que pretende e aquilo que de fato produz no espa�o sens�vel, mas sim como um dissenso, uma desconex�o que pode embaralhar e transformar os regimes de visibilidade, produz oportunidades bastante singulares de encontro. Esses encontros acontecem entre viventes de qualquer �natureza�, c�es e humanos, por exemplo, dando-lhes a oportunidade de se configurarem segundo par�metros que n�o os j� estipuladas para eles.

Arte e pol�tica, est�tica e afetos, humanos e c�es, t�m, pois, muito a partilhar e modificar no espa�o comum das ruas, l� onde eles se encontram, por vezes habitam, se definem e s�o definidos.

 

O encontro pelas palavras � nas ruas

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As palavras s�o pr�ticas expressivas do humano, uma das maneiras pelas quais eles se encontram ou se desencontram. Elas tamb�m s�o formas de partilhar o sens�vel, especialmente quando tomam a materialidade da escrita e se transformam em um �experimento pol�tico [...], uma nova maneira que a pol�tica tem de fazer-se sentida e de afetar� (RANCI�RE, 2004, p. 13, tradu��o nossa). Por meio da escrita, o comum, o vis�vel e aqueles autorizados a partilh�-los s�o enunciados. Tom�-la como for�a de encontro, portanto, � apostar em sua pot�ncia de reconfigura��o desse comum, bem como na experi�ncia de afec��o e fic��o por ela inaugurada.

A fic��o produz dissenso, �[...] muda quadros, escalas ou ritmos, construindo rela��es novas entre a apar�ncia e a realidade, o singular e o comum, o vis�vel e sua significa��o� (RANCI�RE, 2012, p. 64). Ela n�o se presta � mera representa��o ou apenas � cria��o de mundos imagin�rios em completa oposi��o ao real, mas tamb�m a artimanhas e estrat�gias para mudar os referenciais do vis�vel, assim promovendo �rupturas intencionais na percep��o e na din�mica dos afetos� (RANCI�RE, 2012, p. 64). Por meio da fic��o, por exemplo, � poss�vel problematizar e dar a ver a pot�ncia da rela��o entre humanos e c�es, sem incitar discursos moralistas e hierarquizantes dos primeiros sobre os segundos. A escrita pensada a partir da fic��o pode produzir o alargamento da partilha sens�vel e da circula��o de afetos distintos entre eles, o que s� pode acontecer no plano material das ruas onde esses viventes efetivamente se encontram como os eternos desconhecidos que s�o � desconhecimento este que as rela��es de domestica��o que acontecem �em casa� fazem quest�o de esconder.

A rua continua matando substantivos, transformando a significa��o dos termos, impondo aos dicion�rios as palavras que inventa� (RIO, 2012, p. 20). Muito al�m de espa�o geogr�fico, ela � �[...] esfera de a��o social, prov�ncia �tica [...], dom�nio cultural [...] capaz de despertar emo��es� (DA MATTA, 1997, p. 15). Nela �[...] experimenta-se, sobretudo, uma estranha mov�ncia nas coisas� (GODOY, 2013, p. 2), � l� que nos encontramos com o outro de maneira radical, tendo a chance de produzir enfrentamentos � o primeiro deles, talvez, o de pens�-la como um lugar onde acontece o �processo de habitar� (KASPER, 2006, p. 7), isto �, a cria��o de um �[...] conjunto de constrangimentos e de recursos a partir dos quais devem ser constru�das as bases materiais e simb�licas da exist�ncia� (KASPER, 2006, p. 7). Entendendo esse habitar no sentido heideggeriano, de cultivar e construir uma edifica��o de si no mundo, de �[...] ser e estar sobre a terra, [...] ser na medida em que se habita� (HEIDEGGER, 1951), � tamb�m nesse espa�o que surgir�o outras �[...] pr�ticas [...] do Mesmo e do Outro� (FOUCAULT, 2007, p. ix), novos olhares para os que ali vivem, para al�m do abandono e da invisibilidade, da falta ou da tristeza (DERRIDA, 2002).

Mas � na rua | em movimento [...] em meio aos mais violentos enfrentamentos e aos mais suaves e delicados encontros, que somos arrancados de n�s mesmos e nos tornamos outra coisa [...] e as pequenas perman�ncias que surgem [...] s�o o suficiente para que fabulemos uma outra terra desde um outro corpo que n�o o habitual. (GODOY, 2013, p. 2).

 

����������� Estar nas ruas � lidar com a efemeridade da mov�ncia que lhes � inerente. Tudo o que nelas se faz nelas mesmas se desfaz: essa � a beleza das conex�es ali criadas. As a��es que se inscrevem nas ruas s�o passageiras e sua pot�ncia est� justamente em produzir �[...] espa�os de encantamento, suspens�o e desvios [...] que fazem com que o sutil, o ef�mero, apare�a em gotas na cidade acelerada� (PORO, 2011, p. 7). Desse modo, para que a escrita, nas ruas, possa criar oportunidades outras para a partilha sens�vel entre humanos e c�s, � necess�rio que ela seja praticada �com� eles e n�o �sobre� eles, carregando a mesma mov�ncia que lhes � inerente quando habitam esses espa�os. � nesse sentido que as palavras escritas durante o encontro entre esses viventes pode ultrapassar a representa��o, descri��o ou interpreta��o de uns pelos outros � obviamente, de c�es por humanos. Mais que apenas �escritas-sobre�, elas podem ser aberturas para a �cria��o-com�, a partir da afec��o m�tua entre esses viventes.

 

Palavras, humanos e c�es

 

C�es e humanos se encontram, nas ruas, o tempo todo. Alguns desses humanos, entretanto, resolvem, literalmente, seguir os c�es �de rua� para discutir as possibilidades desse encontro. Em um trabalho de mestrado � como o que origina este artigo � isso se chamada �trabalho de campo�. Escrever, no campo, � um ato sempre ligado � concretude da experi�ncia do pesquisador e da mat�ria � vulgo �objeto� � da pesquisa. Em outras palavras, � ato intr�nseco � pr�tica de estar em movimento e de embalar o pensamento, a sensibilidade e as sensa��es na constante mov�ncia em que esses atores est�o imersos. Esse fazer mobiliza, ao mesmo tempo, elementos e acontecimentos outros, conceituais, metodol�gicos e provenientes de tempos para al�m do instante em que acontece. Todas essas motiva��es se somam em uma escrita �de campo� que, se assim desejar o pesquisador ou a pesquisadora, pode acontecer �com� ele, propondo modificar-se conforme a experi�ncia sens�vel de cada momento em que fazeres e pensares s�o, ambos, pr�ticas de vida.

Ser afetado pelo campo � pela mat�ria da pesquisa, pelo territ�rio onde ela acontece, pelas rela��es que ali se estabelecem � � uma experi�ncia de habitar um lugar desconhecido, de permitir-se tomar pelas intensidades singulares desse habitar e de ser habitado por esse lugar (FAVRET-SAADA, 2005; NETO, 2012). No contexto do trabalho de campo, a escrita em formato narrativo, por se permitir compor de modos diversos entre conceitos, experi�ncias, reflex�es, pr�ticas e intui��es, pode se configurar como uma pot�ncia de encontro, criando oportunidades de produ��o e circula��o de afetos e partilhas. No caso do trabalho de campo a que se refere este artigo, esses afetos e partilhas, pela escrita narrativa, se d�o na rela��o entre humanos e c�es �de rua�.

As narrativas sup�em �[...] selecionar [...] para, em seguida, montar [...] uma composi��o� (URIARTE, 2013, p.131), muitas vezes se associando �[...] a uma pr�tica espacial, ao movimento, [...] ao simples andar pela cidade� (JACQUES, 2013, p.14). Elas s�o �[...] uma maneira de fazer textual [que] cria um espa�o de fic��o� (CERTEAU, 1990, p. 153), assim produzindo dissensos e desvios capazes de desordenar e rearranjar a experi�ncia sens�vel. Partindo dos afetos, a escrita narrativa subtrai, dela mesma, a necessidade de ser �nica e fiel a uma ideia de �real�, tornando-se m�ltipla, incorporando-se � singularidade dos viventes �com� os quais escreve, abrindo-se �quilo que pulsa neles, � sua pot�ncia imanente, se transformando em �[...] uma escrita a n-1� (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 13).

Nesse processo de abertura, a escrita narrativa passa a ser o ato inventivo atrav�s do qual aqueles destinados ao vis�vel e ao invis�vel, ao diz�vel e ao indiz�vel, � territorializa��o e � desterritorializa��o s�o embaralhados, confundidos e despossu�dos de suas determina��es. A partir da�, seus territ�rios artificiais �demarcados n�o por eles, mas pelo regime sens�vel que os encarcera � podem ser redefinidos e repartilhados atrav�s de l�gicas outras que n�o a da exclus�o ou hierarquiza��o. � assim que a escrita narrativa d� a ver outro tipo de territ�rio, um �territ�rio existencial� definido pelo alcance espacial e pela const�ncia temporal das caracter�sticas que definem as assinaturas dos viventes no espa�o (DELEUZE; GUATTARI, 2012). Em outras palavras, �[...] n�o um meio [...], mas um ato [expressivo] que afeta os meios [...], que os territorializa� (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 127).

 

Interven��es urbanas

 

A arte urbana e, mais propriamente, as interven��es art�sticas �de rua� � como um desdobramento contempor�neo das pr�ticas art�sticas �, s�o capazes de �[...] provocar e produzir transforma��es [...] num mundo marcado pela desterritorializa��o, pela desertifica��o e pelo empobrecimento tanto dos territ�rios geogr�ficos como dos existenciais� (GORCZEVSKI, 2015, p. 10). As interven��es urbanas atuam �[...] no �mbito do enunci�vel � o sens�vel partilhado �, [...] s�o gestos ordin�rios que circulam anonimamente e [...] em uma frequ�ncia menor � bem abaixo da estrid�ncia da m�dia, um pouco acima do rumor indistinto da cidade� (PORO, 2011, p. 33). Quando pensadas pelo dissenso, s�o potentes justamente porque n�o se obrigam a nenhuma correla��o com a expectativa, podendo produzir efeitos desconhecidos que v�o muito al�m de a��es informativas, especulativas ou conscientizadoras.

Em dissenso, nas ruas, essas interven��es s�o capazes de devolver �s pr�prias ruas seu car�ter ao mesmo tempo territorial e fluido, de perman�ncia e passagem, m�vel sem ser est�ril. Ao existirem nesses espa�os, d�o a ver e compartilham seu movimento e nomadismo, assim como tamb�m o fazem os c�es e humanos que ali vivem ou transitam. A partir dessa condi��o comum, o encontro de humanos com c�es �de rua� propiciado pelas interven��es urbanas � potente para criar, nos primeiros, blocos de sensa��o que permitam, aos segundos � e em sua rela��o com o olhar dos �outros� � ganhar outras configura��es existenciais, uma vez que � nesses blocos que se apreende as formas em sua condi��o n�o representacional, de campo de for�as capazes de afetar (ROLNIK, 2006). Esse movimento de encontro e afeta��o � derradeiro: n�o apenas porque leva a percep��o ao limite e, com isso, for�a � recusa de qualquer distin��o moralista, mas porque permite experimentar uma materialidade que �[...] imprime ao movimento ritmos disparatados� (GODOY, 2013, p. 2).

� nesse disparate, no terreno movedi�o das ruas, que a pot�ncia da rela��o entre humanos e c�es pode se instaurar em sua faceta mais desconcertante, an�rquica e mobilizadora, constituindo uma partilha sens�vel que afirme a exist�ncia conjunta desses viventes, nesses espa�os, atrav�s de interven��es que cavem intervalos no pensar, que situem humanos e c�es em um mesmo horizonte, que os fa�am se encontrar e se olhar cara-a-cara sem que os primeiros reneguem, aos segundos, a condi��o de abandono ou inferioridade por ali estarem. Se a rua �[...] nasce, como o homem, do solu�o, do espasmo� (RIO, 2012, p. 20), intervir no senso comum sobre o que sai e o que entra nela a partir da cria��o, em seu cotidiano apressado, de murm�rios que possam se utilizar das mesmas ordens que ditam a exclus�o � as palavras � para dizer da perman�ncia, � fundamental para configur�-la segundo l�gicas menos alheias �s formas de vida que por ali circulam. Reiterar as presen�as dos c�es nesses espa�os que, a priori, s�o destinados unicamente a humanos � e n�o a qualquer tipo deles, mas �apenas� aos que est�o de passagem �, utilizando-se, para isso, do �[...] discurso dos poetas ou profetas, em situa��o de poesia ou profecia, que confessam tomar para si a destina��o que o animal lhes endere�a� (DERRIDA, 2002, p. 34) � uma maneira de propiciar rela��es mais potentes e menos hierarquizadas entre esses viventes.

Interven��es em palavras, em narrativas impressas em lambe-lambes, dispostas nas ruas onde circulam e, por vezes, habitam humanos e c�es: disso trata este artigo. Intervir nesses espa�os espalhando, neles, palavras que n�o ditam ordens ou vomitam defini��es e delimita��es escolhidas de antem�o, mas que partem justamente de seu fim, de seu resto, daquilo que as assemelha a esses viventes: os rastros deixados pela vida nas ruas. Rastros de palavras que dizem n�o sobre o humano e o c�o, suas rela��es de subordina��o, a piedade de uns sobre os outros, mas de sua pot�ncia quando juntos, daquilo que os singulariza como viventes de �exist�ncia rebelde a todo conceito� (DERRIDA, 2002, p. 26). Rastros que �lambem� as ruas, infestam-nas de palavras impressas em papel jornal a se proliferar pelo cotidiano urbano, trazendo � tona, com esse ato, a dimens�o da marginalidade dos c�es �de rua� e dos pr�prios humanos a habitar prolongadamente esses locais.

 

Narrativas e �lambidas� pelas ruas de humanos e c�es

 

As palavras e, especificamente, no que condiz aos interesses deste artigo, a escrita narrativa, s�o capazes de abrir possibilidades de reconfigura��o da experi�ncia de afeta��o, constituindo-se como parte das pr�ticas art�sticas e pol�ticas que produzem a partilha sens�vel. Os lambe-lambes s�o uma forma potente de problematizar e embaralhar, nas ruas, essa partilha. Quando juntos, espalhados pela cidade acelerada, criam espa�os de respiro, propondo um tempo outro no cotidiano apressado. Esse tempo n�o obedece �s l�gicas da percep��o �sobre� as coisas, mas �s sensa��es que emergem �com� as coisas, diversas daquelas que comandam o dia a dia sufocado pelo tr�nsito, pelo barulho e pelas imposi��es sociais. Afetos distintos dos comumente circulados no espa�o urbano contagiam o movimento dos corpos e os olhares, por vezes banalizados, para alguns desses corpos � corpos n�o humanos que ali tamb�m se movimentam. Ao voltarem-se para os c�es que habitam as ruas, esses olhares talvez possam conceb�-los como pot�ncias vivas a ocupar um local que tamb�m lhes diz respeito, fazendo com que sua vitalidade, desvelada nas palavras que habitam essas ruas, seja a expressividade necess�ria para que passem a ser vistos como pertencentes a esses espa�os.

�Lambe-lambes e narrativas, nas ruas, partilham um sens�vel capaz de devolver a essas mesmas ruas os c�es �de rua�, agora na altura dos olhos dos que ali transitam, apressados. Essas interven��es os trazem das ruas para as ruas, n�o como abandonados, amedrontados ou alheios � cidade, mas como �outridades significantes� (HARAWAY, 2003), exist�ncias singulares a partilhar, em igual condi��o, o mesmo espa�o dos humanos. Apostando que narrar inventivamente pode produzir efeitos que desconcertam as maneiras de ser, ver, perceber, sentir e dizer dos humanos na sua rela��o com esses c�es; e investindo na proposta de que essas narrativas, espalhadas em lambe-lambes pela cidade, afirmam sua exist�ncia e perman�ncia nesses espa�os, abrindo �s ruas a possibilidade de serem concebidas como um local onde se possa habitar, apresenta-se, a seguir, tr�s narrativas produzidas durante o trabalho de campo com c�es �de rua� realizado ao longo do desenvolvimento do projeto de mestrado j� aqui anteriormente referido. Essas narrativas foram nomeadas �narrativas de c�es�. Apresenta-se, tamb�m, algumas experimenta��es em lambe-lambes feitas a partir delas (Figuras 1, 2, 3, 4 e 5). As interven��es foram espalhadas pela cidade de Sorocaba, interior do estado de S�o Paulo, no ano de 2016.

 

(De)certo c�o

Um c�o acuado por entre os carros mostra os dentes. Um c�o magrelo, proibido de circular no espa�o privado, sem cart�o de morador, vaga na garagem ou cadastro de digitais � agora entra por debaixo da cancela e � descoberto, n�o pode mais circular pelo estacionamento e, interceptado, mostra os dentes. C�o acossado que se revela c�o. Corre em volta da piscina, entra na academia, rascunha as portas, late, anda o quanto pode at� ser coibido a dizer n�o. C�o solto que atrapalha o passeio dos c�es �de coleira�, avan�a na sacola de comida das senhoras, sacode as pulgas no jardim, infringe as regras do estatuto do condom�nio e por isso mostra os dentes. Ser�? C�o desajustado e cercado por n�o possuir identifica��o: sorri raivoso e � c�o. Um senhor sobre patas e quatro homens de paus e correntes nas m�os, os dentes rangendo, uns de medo, outros de provoca��o. Quais? O c�o lambe os dentes, os humanos os arreganham e todos disputam as regras, a fome, o tempo, a territorializa��o. Pelo que competem os senhores circundando os carros em busca dos ossos de um parco c�o? Pol�cia e ladr�o a brincar de medir armas e o c�o cerra os dentes, n�o se entrega, nenhuma hesita��o. O d�cil �rascunhador� de portas, feroz rangedor de n�os, abusado comedor de sacolas, indomado, sai pelo port�o: sem credenciais e digno de seu corpo de paus, pedras, fome e insubordina��o. E quem, ao final, termina v�o?

Figura 1 � Experimenta��o em lambe-lambe

Texto preto sobre fundo branco

Descri��o gerada automaticamente

Fonte: arquivo pessoal. Foto: Tatiana Plens Oliveira. Lambe: Michele Fernandes Gon�alves.

 

Figura 2 � Experimenta��o em lambe-lambe

IMG_9466.JPG

Fonte: arquivo pessoal. Foto: Tatiana Plens Oliveira. Lambe: Michele Fernandes Gon�alves.

�Loboc�o�

Um lobo-descendente e um grande peda�o de carne.

Uma rua movimentada e sacolas de lixo reviradas.

Um c�o de ca�a.

 

Figura 3 � Experimenta��o em lambe-lambe

cao de caca

Fonte: arquivo pessoal. Foto: Tatiana Plens Oliveira. Lambe: Michele Fernandes Gon�alves

 

Figura 4 � Experimenta��o em lambe-lambe

IMG_9429.JPG

Fonte: arquivo pessoal. Foto: Tatiana Plens Oliveira. Lambe: Michele Fernandes Gon�alves

O c�o do 275

Rastros. O c�o que dormiu em frente ao 275 vagou ao sol e deixou rastros. Em uma manh� p�s-carnaval, ele fez festa com o lixo da rua, cheirou pap�is no ch�o, demarcou �rvores, cambaleou ofegante como um foli�o. Juntos, vagamos por quinze minutos. Ele delimitando meus passos, sua falta de ra�a lhe garantindo pelos longos e desuniformes, corpo achatado e esticado, patas curtas, rabo grande. �Dreds� imensos e insuficientes para impor respeito aos colegas �de casa� que encontramos, eu mais assustada que ele. Eram quatro, ditavam os latidos da rua, cada qual em frente ao seu port�o, descansavam na sombra, afugentavam os forasteiros � o quinto c�o e sua humana a habitar, por segundos, sua regi�o. O ducent�simo septuag�simo quinto c�o passou depressa, n�o era local que se pudesse marcar. Agora se deleitava em seu descanso. Em frente ao port�o 275 ele reinava, absoluto e obsoleto, seus tra�os como que compondo uma paisagem selvagem: port�o de pintura devedora ao tempo, cal�ada apedregulhada, rua esburacada e habitada por criaturas musgolentas que sobre si sentiam o c�o em uma manh� quente de p�s-liberta��o. Uma rua sem sa�da, um c�rrego n�o esquecido, a sombra da mata que deu ao port�o 275 um sono-c�o. Pelos emaranhados e tamb�m eles demarcados, pelo sangue sugado, urina envelhecida, odor de um corpo que h� muito se sabe c�o. Um fio de movimento, um cruzamento no come�o da rua se contrapondo � calmaria de um c�o, um ru�do intenso subindo ao largo do 275 e ele l�, impass�vel ao urbanismo da cidade. Apenas l�.

 

 

Figura 5 � Experimenta��o em lambe-lambe

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Fonte: arquivo pessoal. Foto: Tatiana Plens Oliveira. Lambe: Michele Fernandes Gon�alves.

O foco das problematiza��es propostas pelas �narrativas de c�es� s�o os processos pelos quais humanos e c�es territorializam sua exist�ncia nas ruas. O cheiro da urina, o ranger dos dentes, o sono e os latidos s�o as expressividades que definem o territ�rio existencial (DELEUZE; GUATTARI, 2012) desses c�es, da mesma maneira que o cheiro do c�rrego, o calor do asfalto, o som dos autom�veis e o sorriso dos homens s�o as expressividades que definem, nas mesmas ruas habitadas pelos c�es, o territ�rio existencial humano. Os rastros deixados por esses viventes lhes conferem a express�o de seu territ�rio, e ele est� constantemente em disputa. Ao serem sublinhadas atrav�s das narrativas, pretende-se que essas expressividades causem sensa��es e sensibilidades que tomem parte na ordena��o comum em que esses viventes s�o vistos e legitimados, produzindo a circula��o de fetos que, para al�m de engendrar for�as opressoras de uns sobre os outros � de humanos sobre c�es �, baguncem as exist�ncias ensimesmadas dos segundos e libertam as pot�ncias reprimidas dos primeiros.

As narrativas exteriorizam o processo de afec��o, contamina��o e elabora��o da experi�ncia do encontro da pesquisadora com o campo de pesquisa � com os c�es, o espa�o f�sico das ruas e os elementos l� existentes. Elas tamb�m colocam em jogo sua bagagem conceitual, metodol�gica e sens�vel, mostrando as rela��es por ela tra�adas entre esses dois universos. Por fim, elas possibilitam que a experi�ncia do encontro com os c�es �de rua� seja retomada e reelaborada pelos passantes, aqueles que n�o foram a campo �seguir c�es�, mas, atrav�s das palavras dispostas nos lambe-lambes, t�m a oportunidade de se encontrar com eles nos mesmos locais onde, outrora, a pesquisadora os encontrou. Pesquisadora, mat�ria de pesquisa, espa�o onde ela acontece e conceitos, reflex�es, sensa��es e afetos s�o mobilizados em um tipo de escrita que n�o nega nem afirma fatos ou hist�rias, narrando e, por esse pr�prio ato, ficcionando e produzindo dissensos que tentam provocar reconfigura��es espaciais, temporais e existenciais entre esses viventes.

Por conter elementos que problematizam, de maneira dissensual, o contexto e a condi��o desses c�es nas ruas, assim como suas pr�prias defini��es e suas rela��es com os humanos que l� tamb�m circulam, os lambes formulam e reformulam quest�es, territorializam e desterritorializam esses viventes, abrindo espa�o �s m�ltiplas conviv�ncias poss�veis, nas ruas, entre eles. A proposta dessas interven��es � fazer pensar, mas, tamb�m, permitir o adentrar a sensa��es e afetos. Ao dizerem das vidas que habitam as ruas, sua inten��o � a de faz�-las durar naqueles espa�os, produzindo instantes atemporais que escapem � necessidade de represent�-las, desestabilizando as ordena��es dominantes do universo sens�vel comumente partilhado entre humanos e c�es, lan�ando os c�es a espa�os desabitados de significados e lhes possibilitando, assim, outras significa��es. Ao partilhar a vida vivida, vida rebelde a qualquer destina��o que n�o seja ela pr�pria em sua forma �selvagem�, as narrativas desejam ampliar a experi�ncia sens�vel do mundo dos humanos, agora diferentemente povoado pelos c�es. Inserir, nas ruas, palavras como restos da experi�ncia sens�vel do encontro com viventes alheios a qualquer determina��o tem a pretens�o de traz�-los de volta � essas mesmas ruas por vias outras que n�o a de sua imagem fidedigna. Os restos de palavras, em locais t�o excedidos de informa��es, orienta��es e delibera��es, partilham o sens�vel pela pausa, pela desconex�o, pelo suspiro de po�ticas e pol�ticas menos �bvias e hier�rquicas na rela��o com esses viventes.

A marginalidade dos c�es � tamb�m a da pr�pria interven��o que os reinsere nas ruas. O lambes s�o eternos marginais, sua pot�ncia est� na efemeridade e na descontinuidade entre suas formas sens�veis de produ��o e apropria��o. H� intencionalidade na problematiza��o daquilo que incomoda e pede passagem, mas h� tamb�m as linhas de indetermina��o e fuga pelas quais os sentidos est�o sempre abertos a reconfigura��es ilimitadas de pensamento e sensibilidade. Partilhar o sens�vel se torna, nesse caso, compartilhar a est�tica de uma arte marginal que incita afetos por vislumbres, feixes de fulgura��o breves e moment�neos em um local onde quase nada pode permanecer por muito tempo � nem mesmo a vida. � altura do nomadismo e do dissenso, rastros de c�es em palavras impressas em lambe-lambes causam sensa��es pela desconex�o que propiciam, pela n�o hierarquiza��o ou homogeneiza��o de sentidos e pelos entrela�amentos multidirecionais que provocam. Neles, ruas, humanos e c�es se encontram e reencontram, despertando rupturas no cotidiano das cidades.

 

 

 

Pol�ticas de vida no encontro entre humanos e c�es

 

Express�es art�sticas (a)firmam, no encontro, muitas exist�ncias. Nas ruas, afirmam a possibilidade de perman�ncia e conviv�ncia de viventes diferentes e em conex�o, fluxo, movimento: afirmam uma rua onde se pode habitar e fazer circular os afetos que modificam a experi�ncia sens�vel. Habitar a rua � configurar uma nova pol�tica dos afetos, aceitar a transitoriedade, experimentar a possibilidade de n�o estar s�. � ser multid�o, existir de outros modos e, ainda assim, coexistir no espa�o comum, no �entre� dos tantos modos poss�veis da experi�ncia. �Lamber a rua�; distribuir, nela, interven��es art�sticas em formato lambe-lambe � criar �[...] deslocamentos m�nimos e sutis, vest�gios no limiar entre o ver e o n�o ver� (PORO, 2011, p. 33) � porosidades no concreto de uma exist�ncia comum.

A partilha sens�vel revela o comum e, ao faz�-lo, tamb�m determina o que n�o � partilhado, ou seja, o exclusivo. Ela � est�tica ao delimitar e posicionar atores e palavras no espa�o, e constitui a base da pol�tica ao cuidar do comum e, consequentemente, do que n�o � comum. Os afetos tamb�m s�o pol�ticos ou a pol�tica � feita de afetos uma vez que � a partir de nossa afec��o, da maneira como sentimos os est�mulos do mundo, que se d� nossa a��o e julgamento sobre ele. � pelos afetos que definimos nossa atividade pol�tica e, portanto, o sens�vel a ser partilhado.� A arte, na sua forma gr�fica imag�tica ou escrita, partilha o sens�vel ao se colocar como dispositivo atuante no que � comum. Se a pol�tica enuncia e cuida da partilha e se a arte � e, portanto, tamb�m a escrita � participa ativamente e concretiza essa enuncia��o, os afetos por elas provocados ativam e definem o comum e o exclusivo a serem enunciados.

Partilhar o sens�vel � compartilhar afetos e, nesse sentido, tanto arte quanto pol�tica se confundem, implicando-se como pr�ticas humanas com capacidade de reconfigurar o comum, o que se v�, o que se diz, o que se sente, os espa�os autorizados e n�o autorizados ao �habitar�, os atores neles permitidos e n�o permitidos, as formas de vida vis�veis e ris�veis e aquelas invis�veis e irris�veis. Arte e pol�tica s�o for�as de afirma��o da exist�ncia que �[...] rompem a evid�ncia sens�vel da ordem natural que destina os indiv�duos e os grupos ao comando ou � obedi�ncia, � vida p�blica ou privada� (RANCI�RE, 2012, p. 60). Elas desestabilizam as ordens pr�-estabelecidas e possibilitam a recupera��o da diferen�a para al�m da desigualdade, garantindo que as singularidades e as especificidades dos viventes n�o sejam massacradas, assim reposicionando-os na ocupa��o de espa�os f�sicos e conceituais a eles originalmente n�o dirigidos.

Se os afetos definem o comum partilhado, reconfigur�-los passa por produzir novos afetos que reanimem as exist�ncias paulatinamente apagadas no decorrer dos processos autorit�rios de defini��o de como e quais viventes ser�o vistos, permitidos, respeitados. Nesse contexto, a arte de rua em formato lambe-lambe e a escrita narrativa atuam, quando de seu encontro entre si e com humanos e c�es, nas ruas, na disputa pelas visibilidades e na afirma��o de modos plurais de existir para esses viventes, ampliando as enuncia��es de uns sobre outros e suas �permiss�es� para circular e habitar determinados espa�os. Produzir embaralhamentos e altera��es nesses espa�os � l� onde ocorrem as designa��es do vis�vel e do invis�vel � alarga a experi�ncia sens�vel ao mostrar todos os corpos ocultos sob uma ideia dada de comum e todos os afetos tristes (ESPINOSA, 2009) intencionalmente vinculados a essa ideia.

As interven��es em lambe-lambes contendo as �narrativas de c�es� aqui apresentadas intencionam esse embaralhamento como forma de alargar a partilha sens�vel entre eles e os humanos. Atrav�s dos lambes, pretende-se pluralizar a experi�ncia do comum pelo dissenso, tanto quando do encontro entre pesquisadora, campo e mat�ria de pesquisa, atrav�s da escrita narrativa, quando do encontro entre todos eles e o �p�blico�, atrav�s de sua instala��o no espa�o urbano da rua. A ideia � a de multiplicar a partilha: ao deslocarem o olhar de compadecimento que comumente cerca os c�es �de rua�, afirmando-a como local onde se possa habitar, essas interven��es evidenciam exist�ncias plurais, sugerindo que uma nova rua, por onde caminhem, sem distin��o de condi��es de acesso e perman�ncia, humanos e c�es, � poss�vel.

 

Educar pelos fazeres comuns

Tomando parte e partilhando o sens�vel, arte e pol�tica s�o, antes de reservadas a artistas e pol�ticos, pr�ticas da ordem do comum e �dos comuns�, do que � pr�prio aos coletivos de viventes que recebem muitos nomes, dentre eles, os �humanos�. Em se tratando destes �ltimos, elas s�o atividades de enuncia��o e anuncia��o, experi�ncias repartidas no universo sens�vel, sem excepcionalidade na sua produ��o ou distribui��o, o que as aproxima do campo do trabalho no sentido de um fazer tipicamente �nosso�. Como pr�tica est�tica, a arte se insere em um regime sens�vel de produ��o de heterog�neos, implodindo �[...] a barreira que distingue as maneiras de fazer arte das outras maneiras de fazer e que separa suas regras das outras ocupa��es sociais� (RANCI�RE, 2005, p. 34). Ao se aproximar de outras pr�ticas humanas, esse regime �[...] afirma a absoluta singularidade da arte, mas destr�i, ao mesmo tempo, todo o car�ter pragm�tico dessa singularidade� (RANCI�RE, 2005, p. 34). �

�O culto da arte sup�e uma revaloriza��o das capacidades ligadas � pr�pria ideia de trabalho [...] e � uma recomposi��o da rela��o entre o fazer, o ser, o ver, o dizer� (RANCI�RE, 2005, p. 68). A partir de sua desobriga��o com hierarquias de qualquer esp�cie, seus caminhos imbricam-se na distribui��o das maneiras de ser e das ocupa��es no espa�o, fazendo com que o �[...] ordin�rio do trabalho e a excepcionalidade art�stica� (RANCI�RE, 2005, p. 68) se encontrem. Para ser parte da experi�ncia coletiva como atividade humana sem excepcionalidade ou obriga��o representativa, o regime de efic�cia est�tico das artes se estrutura pelo dissenso. Nesse contexto, tanto as interven��es urbanas de rua quanto a escrita narrativa podem constituir-se como pr�ticas art�sticas dos viventes �comuns�, aqueles que partilham afetos sem, necessariamente, se colocarem baixo a uma Institui��o. Uma vez que �[...] as pr�ticas art�sticas n�o constituem uma exce��o �s outras pr�ticas, [mas] representam e reconfiguram as partilhas dessas atividades� (RANCI�RE, 2005, p.68), � como trabalho que a arte pode �[...] adquirir o car�ter de atividade exclusiva� (RANCI�RE, 2005, p. 69). Junto com a pol�tica, nesse caso, ela figura justamente no campo daquilo que iguala, e n�o do que diferencia, os �humanos�: o of�cio. �

� pensando-se a partir dessa proposta que a experi�ncia de multiplica��o da partilha sens�vel organizada e efetuada pelos regimes est�ticos da arte e da pol�tica pode funcionar como aposta de trabalho de uma pesquisadora com c�es �de rua�. E � a partir dessa mesma ideia que essa partilha pode ir ainda mais longe: afetar humanos n�o apenas pelo encontro casual com lambe-lambes espalhados nas ruas, e que colocam em jogo suas rela��es com c�es �de rua�, mas pelo convite ativo a esse encontro, atrav�s de pr�ticas art�sticas da ordem �dos comuns� realizadas �com� esses humanos. Esse convite poderia ent�o ser pensado como o alargamento de uma experi�ncia de pesquisa, agora levada ao �mbito educativo. Um �retorno ao campo� com o objetivo de produzir um novo encontro: entre alunos, educadores e c�es.

Arte e pol�tica, nesse caso, se articulariam no trabalho de campo e no trabalho docente como pr�ticas de todos, sem excepcionalidade. As pr�ticas art�sticas � de escrita, de confec��o de lambes, de fotografar os c�es � seriam tomadas n�o em sua express�o consagrada institucionalmente, mas em sua ordem corriqueira, comum, cotidiana. Como pot�ncia sens�vel, elas seriam tidas como pr�ticas concretas de todos que, a partir do afetar e do ser afetado no encontro com os c�es nas ruas, decidissem expressar-se, sendo um instrumento de apropria��o da enuncia��o de um mundo outro, menos autorit�rio e predat�rio, mais compartilhado entre viventes de distintas materialidades. �

 

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[1]Professora Doutora da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: carpe_mizinha@hotmail.com

[2] Intitulado �O Encontro entre humanos, c�es, ruas e arte: aproxima��es e experimenta��es conceituais� e escrito em parceria com Ana Godoy. Informa��es completas nas refer�ncias.�

[3]Intitulado �Quando c�es, humanos e ruas se encontram: pensamento, movimento e sensa��o por entre vidas, afetos, arte e palavras� e realizado na Universidade Federal de S�o Carlos, Campus Sorocaba. Informa��es completas nas refer�ncias.�