Quando humanos, cães e caminhos se encontram: arte, afetos e palavras no movimento potente da vida nas ruas
When humans, dogs and paths meet: art, affections, and words in the powerful movement of life on streets
Cuando humanos, perros y caminos se encuentran: arte, afectos y palabras en el potente movimiento de la vida en la calle
Michele Fernandes Gonçalves [1]
Universidade Federal de Santa Catarina
Resumo
Este artigo aposta nas artes, especificamente nas intervenções de rua em formato lambe-lambe e na escrita narrativa, como formas de partilha do sensível (RANCIÈRE, 2005) e de circulação de afetos (SAFATLE, 2015; ESPINOSA, 2009) entre humanos e cães ‘de rua’ quando nela eles se encontram. Parte-se da afirmação de que há uma relação de poder (FOUCAULT, 2007), sujeição e assujeitamento entre esses viventes, adota-se a premissa de que é necessário rompê-la para acessar as potencialidades não hierarquizadas do encontro entre eles e apresenta-se uma discussão conceitual sobre como esse encontro pode, pelas sensações e sensibilidades que aí se despertam, atuar nesse rompimento, possibilitando aos segundos outras configurações espaciais e existenciais. Algumas experimentações feitas com narrativas e lambe-lambes produzidos como parte de uma pesquisa de mestrado são apresentadas.
Palavras-chave: Cães ‘de rua’; Arte; Escrita narrativa; Lambe-lambe; Educação.
Abstract
This article focuses on the arts, especially on wheat-paste poster urban interventions and narrative writing, as ways of distribution of the sensible (RANCIÈRE, 2005) and circulation of affections (ESPINOSA, 2009; SAFATLE, 2015) among humans and stray dogs when they meet each other on the streets. We take as certain the existence of a power and subjection relation among these beings; embrace the premise of an urgency in breaking it up to access the non-hierarchic powers between them; and present a conceptual discussion on how their encounter can act in this rupture through the sensations and sensibilities that are awakened, allowing the stray dogs other spatial and existential configurations. We finally present some experimentation with wheat-paste poster urban interventions and narratives produced as part of the authors’ master research project.
Keywords: Stray dogs; Art; Narrative writing; Wheat-paste poster; Education.
Resumen
Este artículo apuesta en las artes, concretamente en las intervenciones callejeras en formato pegatina y en la escritura narrativa, como modos de reparto de lo sensible (RANCIÈRE, 2005) y de circulación de afectos (SAFATLE, 2015; ESPINOSA, 2009) entre humanos y perros ‘callejeros' cuando estos allí se encuentran. Se parte de la afirmación de que existe una relación de poder (FOUCAULT, 2007), sujeción y sometimiento entre estes vivientes, adopta-se la premisa de que es necesario romperla para acceder a las potencialidades no jerárquicas del encuentro entre ellos, y se presenta una discusión conceptual sobre cómo este encuentro puede, a través de las sensaciones y sensibilidades que en ello se despiertan, actuar en esta ruptura, permitiendo a los peros otras configuraciones espaciales y existenciales. Algunas experimentaciones hechas con narrativas escritas y pegatinas producidas como parte de un trabajo de investigación son presentados.
Palabras clave: Perros 'callejeros'; Arte; Escritura narrativa; Pegatinas; Educación.
Este artigo aborda algumas maneiras sensíveis pelas quais humanos e cães podem se encontrar nas ruas onde transitam, se cruzam e, às vezes, habitam. Ele é a continuação de um trabalho anterior[2] que discutiu, através de experimentações conceituais, esse encontro. Parte-se da afirmação de que há um olhar comum, dominante e arraigado para o que se costumou nomear, nas sociedades ocidentais, ‘humano’ e ‘animal’, e de que tal olhar produz relações de sujeição e assujeitamento entre essas categorias de viventes, gerando relações de poder e atitudes autoritárias, normativas e excludentes de uns sobre outros, em especial de humanos sobre cães – estes últimos, para o que aqui se deseja problematizar, aqueles que vivem nas ruas.
Adota-se a premissa de que é urgente esgotar as concepções, definições e classificações hegemônicas atribuídas aos viventes e ir além do pensamento da identidade que, ao ser aplicado às relações ‘entre-reinos’, muitas vezes serve mais ao especismo que às singularidades. Afirma-se a necessidade de romper com os utilitarismos e com as recorrentes cristalizações na enunciação da vida como forma de acessar suas potencialidades não hierarquizadas e, para tanto, aposta-se no encontro entre humanos, cães, ruas, arte e palavras. Humanos e cães relacionando-se para além da sujeição no espaço comum das ruas, ambientes de troca e partilha, territórios habitáveis e de permanência; arte como possibilidade de fazer dessas ruas esse lugar compartilhado e de encontro, não por relações hierárquicas domesticadoras, mas pela sensibilidade e sutileza; palavras como potências artísticas narrativas que, ao habitarem as ruas ao lado desses viventes, criam universos sensíveis capazes de abrir outros possíveis, novas configurações espaciais e existenciais nas relações que eles estabelecem entre si.
A estruturação do texto se dá como descrito. Primeiramente, discute-se a arte e a política como formas de partilha sensível (RANCIÈRE, 2005) e de encontro com afetos (ESPINOSA, 2009) distintos daqueles que comumente circulam no espaço público urbano, defendendo-se a escrita narrativa como uma das possibilidades de partilhar esse sensível. Na sequência, reflete-se de que maneira as práticas artísticas, em específico as intervenções urbanas na forma de lambe-lambes, podem promover, nas ruas, o encontro profícuo e alegre entre humanos e cães que nela circulam ou habitam, salientando-se a condição comum de marginalidade entre todos eles e defendendo-se essa característica como potente para incitar dúvidas, estranhamentos e desconfortos nos passantes ou habitantes humanos presentes nesses espaços. Apresenta-se, então, algumas narrativas produzidas como experimentações de um trabalho de mestrado[3], discutindo-se como sua produção, disparada pelo caminhar conjunto (literal) de humanos (pesquisadora) e cães (matéria de pesquisa) funciona como um ato criativo que emerge de um processo de afetação mútua. Apresenta-se, também, experimentações em formato lambe-lambe realizadas a partir dessas narrativas e inseridas no espaço público urbano. Por fim, discute-se como os lambe-lambes podem alargar a experiência sensível da existência dos cães nas ruas e efetivar a partilha dos afetos entre eles e os humanos que por ela circulam ou que a habitam, sugerindo-se maneiras pelas quais essa experiência pode ser multiplicada quando transformada em propostas de trabalho para professores e alunos. Articula-se, como encerramento, a aposta de se pensar o encontro entre humanos, cães, ruas e práticas artísticas como atividades da ordem ‘dos comuns’, como experiências partilhadas, sem excepcionalidade, no universo sensível.
Em conexões múltiplas, arte, palavras, cães, humanos e ruas engendram-se em propostas de partilhas estéticas, políticas, sensíveis, poéticas e comuns: afetos muitos que invadem e se articulam à vida que resiste e insiste no espaço urbano.
O encontro pelo sensível e pelos afetos
A arte é matéria para encontros que nos fortalecem, nos incrementam e aumentam nossa potência (CPFL, 2015). Como modo de expressão, é “invenção de possíveis” (ROLNIK, 2006, p. 2), força de vida que impulsiona a criar o que ainda não existe. Práticas artísticas são todas aquelas que têm o poder de desestabilizar e deslocar os lugares pressupostos para ‘as coisas’. Seus modos de fazer são potentes especialmente quando colocam em jogo a eficácia de um dissenso, “[...] a suspensão [...] e a desconexão entre as significações [...] e os efeitos que podem produzir” (RANCIÈRE, 2012, p. 58). Esse dissenso se caracteriza pela ruptura da obrigatoriedade de relação lógica entre o que se produz e o que essa produção causa no espaço comum. É por meio dele que a eficácia do regime estético das artes toca a política, cujo cerne é o próprio dissenso se compreendida como prática de reconfiguração da experiência comum do sensível.
Jacques Rancière (2005, p. 15) chamou ‘partilha do sensível’, “[...] o sistema de evidências que revela [...] a existência de um comum [...] e fixa sua partilha em espaços, tempos e tipos de atividades”, definindo a maneira como uns e outros tomarão seu lugar nelas. Essa partilha diz respeito à determinação daqueles que podem ou não fazer parte do comum, de acordo com ‘o que’ exercem e ‘como’ o fazem. Ela é estética na medida em que determina o recorte dos tempos, dos espaços e das visibilidades dos cidadãos, ao mesmo tempo em que está no cerne da política porque é ela – a política – que cuida do coletivo, se ocupando “[...] das propriedades desses espaços e do que se vê, do que pode ser dito sobre o que é visto, e de quem tem competência para fazê-lo” (RANCIÈRE, 2005, p. 16).
Segundo Vladimir Safatle, a política, muito antes de configurar a circulação de bens e riquezas, configura os afetos, a maneira como sentimos, vemos e percebemos, além de influenciar em como essa maneira “[...] determina o que causa nossa ação e julgamento” (CPFL, 2015). Esses afetos são os efeitos provocados pelos acontecimentos no corpo, as “[...] afecções pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada” (ESPINOSA, 2009). Eles são também as disposições desse mesmo corpo à mudança, àquilo que pode redesenhar sua experiência sensível. A política, assim, é uma dimensão de circulação de afetos, legislando sobre os modos de ver e perceber de uma sociedade, sobre os agentes legitimados a fazê-lo, sobre os comportamentos desses agentes e sobre os tipos de afetações produzidas por eles.
A arte como partilha sensível é estética e política, definindo e redefinindo, de diferentes maneiras, como se dará a distribuição do comum, provocando e produzindo transformações subjetivas, tensionando o campo do que é compartilhado em uma sociedade, configurando fazeres e intervindo na distribuição geral do que circula como afeto, possuindo, por isso mesmo, o poder de modificar essa circulação. Se tomada não como uma aposta de consenso entre o que pretende e aquilo que de fato produz no espaço sensível, mas sim como um dissenso, uma desconexão que pode embaralhar e transformar os regimes de visibilidade, produz oportunidades bastante singulares de encontro. Esses encontros acontecem entre viventes de qualquer ‘natureza’, cães e humanos, por exemplo, dando-lhes a oportunidade de se configurarem segundo parâmetros que não os já estipuladas para eles.
Arte e política, estética e afetos, humanos e cães, têm, pois, muito a partilhar e modificar no espaço comum das ruas, lá onde eles se encontram, por vezes habitam, se definem e são definidos.
O encontro pelas palavras – nas ruas
As palavras são práticas expressivas do humano, uma das maneiras pelas quais eles se encontram ou se desencontram. Elas também são formas de partilhar o sensível, especialmente quando tomam a materialidade da escrita e se transformam em um “experimento político [...], uma nova maneira que a política tem de fazer-se sentida e de afetar” (RANCIÈRE, 2004, p. 13, tradução nossa). Por meio da escrita, o comum, o visível e aqueles autorizados a partilhá-los são enunciados. Tomá-la como força de encontro, portanto, é apostar em sua potência de reconfiguração desse comum, bem como na experiência de afecção e ficção por ela inaugurada.
A ficção produz dissenso, “[...] muda quadros, escalas ou ritmos, construindo relações novas entre a aparência e a realidade, o singular e o comum, o visível e sua significação” (RANCIÈRE, 2012, p. 64). Ela não se presta à mera representação ou apenas à criação de mundos imaginários em completa oposição ao real, mas também a artimanhas e estratégias para mudar os referenciais do visível, assim promovendo “rupturas intencionais na percepção e na dinâmica dos afetos” (RANCIÈRE, 2012, p. 64). Por meio da ficção, por exemplo, é possível problematizar e dar a ver a potência da relação entre humanos e cães, sem incitar discursos moralistas e hierarquizantes dos primeiros sobre os segundos. A escrita pensada a partir da ficção pode produzir o alargamento da partilha sensível e da circulação de afetos distintos entre eles, o que só pode acontecer no plano material das ruas onde esses viventes efetivamente se encontram como os eternos desconhecidos que são – desconhecimento este que as relações de domesticação que acontecem ‘em casa’ fazem questão de esconder.
“A rua continua matando substantivos, transformando a significação dos termos, impondo aos dicionários as palavras que inventa” (RIO, 2012, p. 20). Muito além de espaço geográfico, ela é “[...] esfera de ação social, província ética [...], domínio cultural [...] capaz de despertar emoções” (DA MATTA, 1997, p. 15). Nela “[...] experimenta-se, sobretudo, uma estranha movência nas coisas” (GODOY, 2013, p. 2), é lá que nos encontramos com o outro de maneira radical, tendo a chance de produzir enfrentamentos – o primeiro deles, talvez, o de pensá-la como um lugar onde acontece o “processo de habitar” (KASPER, 2006, p. 7), isto é, a criação de um “[...] conjunto de constrangimentos e de recursos a partir dos quais devem ser construídas as bases materiais e simbólicas da existência” (KASPER, 2006, p. 7). Entendendo esse habitar no sentido heideggeriano, de cultivar e construir uma edificação de si no mundo, de “[...] ser e estar sobre a terra, [...] ser na medida em que se habita” (HEIDEGGER, 1951), é também nesse espaço que surgirão outras “[...] práticas [...] do Mesmo e do Outro” (FOUCAULT, 2007, p. ix), novos olhares para os que ali vivem, para além do abandono e da invisibilidade, da falta ou da tristeza (DERRIDA, 2002).
Mas é na rua | em movimento [...] em meio aos mais violentos enfrentamentos e aos mais suaves e delicados encontros, que somos arrancados de nós mesmos e nos tornamos outra coisa [...] e as pequenas permanências que surgem [...] são o suficiente para que fabulemos uma outra terra desde um outro corpo que não o habitual. (GODOY, 2013, p. 2).
Estar nas ruas é lidar com a efemeridade da movência que lhes é inerente. Tudo o que nelas se faz nelas mesmas se desfaz: essa é a beleza das conexões ali criadas. As ações que se inscrevem nas ruas são passageiras e sua potência está justamente em produzir “[...] espaços de encantamento, suspensão e desvios [...] que fazem com que o sutil, o efêmero, apareça em gotas na cidade acelerada” (PORO, 2011, p. 7). Desse modo, para que a escrita, nas ruas, possa criar oportunidades outras para a partilha sensível entre humanos e cãs, é necessário que ela seja praticada ‘com’ eles e não ‘sobre’ eles, carregando a mesma movência que lhes é inerente quando habitam esses espaços. É nesse sentido que as palavras escritas durante o encontro entre esses viventes pode ultrapassar a representação, descrição ou interpretação de uns pelos outros – obviamente, de cães por humanos. Mais que apenas ‘escritas-sobre’, elas podem ser aberturas para a ‘criação-com’, a partir da afecção mútua entre esses viventes.
Palavras, humanos e cães
Cães e humanos se encontram, nas ruas, o tempo todo. Alguns desses humanos, entretanto, resolvem, literalmente, seguir os cães ‘de rua’ para discutir as possibilidades desse encontro. Em um trabalho de mestrado – como o que origina este artigo – isso se chamada ‘trabalho de campo’. Escrever, no campo, é um ato sempre ligado à concretude da experiência do pesquisador e da matéria – vulgo ‘objeto’ – da pesquisa. Em outras palavras, é ato intrínseco à prática de estar em movimento e de embalar o pensamento, a sensibilidade e as sensações na constante movência em que esses atores estão imersos. Esse fazer mobiliza, ao mesmo tempo, elementos e acontecimentos outros, conceituais, metodológicos e provenientes de tempos para além do instante em que acontece. Todas essas motivações se somam em uma escrita ‘de campo’ que, se assim desejar o pesquisador ou a pesquisadora, pode acontecer ‘com’ ele, propondo modificar-se conforme a experiência sensível de cada momento em que fazeres e pensares são, ambos, práticas de vida.
Ser afetado pelo campo – pela matéria da pesquisa, pelo território onde ela acontece, pelas relações que ali se estabelecem – é uma experiência de habitar um lugar desconhecido, de permitir-se tomar pelas intensidades singulares desse habitar e de ser habitado por esse lugar (FAVRET-SAADA, 2005; NETO, 2012). No contexto do trabalho de campo, a escrita em formato narrativo, por se permitir compor de modos diversos entre conceitos, experiências, reflexões, práticas e intuições, pode se configurar como uma potência de encontro, criando oportunidades de produção e circulação de afetos e partilhas. No caso do trabalho de campo a que se refere este artigo, esses afetos e partilhas, pela escrita narrativa, se dão na relação entre humanos e cães ‘de rua’.
As narrativas supõem “[...] selecionar [...] para, em seguida, montar [...] uma composição” (URIARTE, 2013, p.131), muitas vezes se associando “[...] a uma prática espacial, ao movimento, [...] ao simples andar pela cidade” (JACQUES, 2013, p.14). Elas são “[...] uma maneira de fazer textual [que] cria um espaço de ficção” (CERTEAU, 1990, p. 153), assim produzindo dissensos e desvios capazes de desordenar e rearranjar a experiência sensível. Partindo dos afetos, a escrita narrativa subtrai, dela mesma, a necessidade de ser única e fiel a uma ideia de ‘real’, tornando-se múltipla, incorporando-se à singularidade dos viventes ‘com’ os quais escreve, abrindo-se àquilo que pulsa neles, à sua potência imanente, se transformando em “[...] uma escrita a n-1” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 13).
Nesse processo de abertura, a escrita narrativa passa a ser o ato inventivo através do qual aqueles destinados ao visível e ao invisível, ao dizível e ao indizível, à territorialização e à desterritorialização são embaralhados, confundidos e despossuídos de suas determinações. A partir daí, seus territórios artificiais –demarcados não por eles, mas pelo regime sensível que os encarcera – podem ser redefinidos e repartilhados através de lógicas outras que não a da exclusão ou hierarquização. É assim que a escrita narrativa dá a ver outro tipo de território, um ‘território existencial’ definido pelo alcance espacial e pela constância temporal das características que definem as assinaturas dos viventes no espaço (DELEUZE; GUATTARI, 2012). Em outras palavras, “[...] não um meio [...], mas um ato [expressivo] que afeta os meios [...], que os territorializa” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 127).
Intervenções urbanas
A arte urbana e, mais propriamente, as intervenções artísticas ‘de rua’ – como um desdobramento contemporâneo das práticas artísticas –, são capazes de “[...] provocar e produzir transformações [...] num mundo marcado pela desterritorialização, pela desertificação e pelo empobrecimento tanto dos territórios geográficos como dos existenciais” (GORCZEVSKI, 2015, p. 10). As intervenções urbanas atuam “[...] no âmbito do enunciável – o sensível partilhado –, [...] são gestos ordinários que circulam anonimamente e [...] em uma frequência menor – bem abaixo da estridência da mídia, um pouco acima do rumor indistinto da cidade” (PORO, 2011, p. 33). Quando pensadas pelo dissenso, são potentes justamente porque não se obrigam a nenhuma correlação com a expectativa, podendo produzir efeitos desconhecidos que vão muito além de ações informativas, especulativas ou conscientizadoras.
Em dissenso, nas ruas, essas intervenções são capazes de devolver às próprias ruas seu caráter ao mesmo tempo territorial e fluido, de permanência e passagem, móvel sem ser estéril. Ao existirem nesses espaços, dão a ver e compartilham seu movimento e nomadismo, assim como também o fazem os cães e humanos que ali vivem ou transitam. A partir dessa condição comum, o encontro de humanos com cães ‘de rua’ propiciado pelas intervenções urbanas é potente para criar, nos primeiros, blocos de sensação que permitam, aos segundos – e em sua relação com o olhar dos ‘outros’ – ganhar outras configurações existenciais, uma vez que é nesses blocos que se apreende as formas em sua condição não representacional, de campo de forças capazes de afetar (ROLNIK, 2006). Esse movimento de encontro e afetação é derradeiro: não apenas porque leva a percepção ao limite e, com isso, força à recusa de qualquer distinção moralista, mas porque permite experimentar uma materialidade que “[...] imprime ao movimento ritmos disparatados” (GODOY, 2013, p. 2).
É nesse disparate, no terreno movediço das ruas, que a potência da relação entre humanos e cães pode se instaurar em sua faceta mais desconcertante, anárquica e mobilizadora, constituindo uma partilha sensível que afirme a existência conjunta desses viventes, nesses espaços, através de intervenções que cavem intervalos no pensar, que situem humanos e cães em um mesmo horizonte, que os façam se encontrar e se olhar cara-a-cara sem que os primeiros reneguem, aos segundos, a condição de abandono ou inferioridade por ali estarem. Se a rua “[...] nasce, como o homem, do soluço, do espasmo” (RIO, 2012, p. 20), intervir no senso comum sobre o que sai e o que entra nela a partir da criação, em seu cotidiano apressado, de murmúrios que possam se utilizar das mesmas ordens que ditam a exclusão – as palavras – para dizer da permanência, é fundamental para configurá-la segundo lógicas menos alheias às formas de vida que por ali circulam. Reiterar as presenças dos cães nesses espaços que, a priori, são destinados unicamente a humanos – e não a qualquer tipo deles, mas ‘apenas’ aos que estão de passagem –, utilizando-se, para isso, do “[...] discurso dos poetas ou profetas, em situação de poesia ou profecia, que confessam tomar para si a destinação que o animal lhes endereça” (DERRIDA, 2002, p. 34) é uma maneira de propiciar relações mais potentes e menos hierarquizadas entre esses viventes.
Intervenções em palavras, em narrativas impressas em lambe-lambes, dispostas nas ruas onde circulam e, por vezes, habitam humanos e cães: disso trata este artigo. Intervir nesses espaços espalhando, neles, palavras que não ditam ordens ou vomitam definições e delimitações escolhidas de antemão, mas que partem justamente de seu fim, de seu resto, daquilo que as assemelha a esses viventes: os rastros deixados pela vida nas ruas. Rastros de palavras que dizem não sobre o humano e o cão, suas relações de subordinação, a piedade de uns sobre os outros, mas de sua potência quando juntos, daquilo que os singulariza como viventes de “existência rebelde a todo conceito” (DERRIDA, 2002, p. 26). Rastros que ‘lambem’ as ruas, infestam-nas de palavras impressas em papel jornal a se proliferar pelo cotidiano urbano, trazendo à tona, com esse ato, a dimensão da marginalidade dos cães ‘de rua’ e dos próprios humanos a habitar prolongadamente esses locais.
Narrativas e ‘lambidas’ pelas ruas de humanos e cães
As palavras e, especificamente, no que condiz aos interesses deste artigo, a escrita narrativa, são capazes de abrir possibilidades de reconfiguração da experiência de afetação, constituindo-se como parte das práticas artísticas e políticas que produzem a partilha sensível. Os lambe-lambes são uma forma potente de problematizar e embaralhar, nas ruas, essa partilha. Quando juntos, espalhados pela cidade acelerada, criam espaços de respiro, propondo um tempo outro no cotidiano apressado. Esse tempo não obedece às lógicas da percepção ‘sobre’ as coisas, mas às sensações que emergem ‘com’ as coisas, diversas daquelas que comandam o dia a dia sufocado pelo trânsito, pelo barulho e pelas imposições sociais. Afetos distintos dos comumente circulados no espaço urbano contagiam o movimento dos corpos e os olhares, por vezes banalizados, para alguns desses corpos – corpos não humanos que ali também se movimentam. Ao voltarem-se para os cães que habitam as ruas, esses olhares talvez possam concebê-los como potências vivas a ocupar um local que também lhes diz respeito, fazendo com que sua vitalidade, desvelada nas palavras que habitam essas ruas, seja a expressividade necessária para que passem a ser vistos como pertencentes a esses espaços.
Lambe-lambes e narrativas, nas ruas, partilham um sensível capaz de devolver a essas mesmas ruas os cães ‘de rua’, agora na altura dos olhos dos que ali transitam, apressados. Essas intervenções os trazem das ruas para as ruas, não como abandonados, amedrontados ou alheios à cidade, mas como ‘outridades significantes’ (HARAWAY, 2003), existências singulares a partilhar, em igual condição, o mesmo espaço dos humanos. Apostando que narrar inventivamente pode produzir efeitos que desconcertam as maneiras de ser, ver, perceber, sentir e dizer dos humanos na sua relação com esses cães; e investindo na proposta de que essas narrativas, espalhadas em lambe-lambes pela cidade, afirmam sua existência e permanência nesses espaços, abrindo às ruas a possibilidade de serem concebidas como um local onde se possa habitar, apresenta-se, a seguir, três narrativas produzidas durante o trabalho de campo com cães ‘de rua’ realizado ao longo do desenvolvimento do projeto de mestrado já aqui anteriormente referido. Essas narrativas foram nomeadas ‘narrativas de cães’. Apresenta-se, também, algumas experimentações em lambe-lambes feitas a partir delas (Figuras 1, 2, 3, 4 e 5). As intervenções foram espalhadas pela cidade de Sorocaba, interior do estado de São Paulo, no ano de 2016.
(De)certo cão
Um cão
acuado por entre os carros mostra os dentes. Um cão magrelo, proibido de
circular no espaço privado, sem cartão de morador, vaga na garagem ou cadastro
de digitais – agora entra por debaixo da cancela e é descoberto, não pode mais
circular pelo estacionamento e, interceptado, mostra os dentes. Cão acossado que
se revela cão. Corre em volta da piscina, entra na academia, rascunha as portas,
late, anda o quanto pode até ser coibido a dizer não. Cão solto que atrapalha o
passeio dos cães ‘de coleira’, avança na sacola de comida das senhoras, sacode as
pulgas no jardim, infringe as regras do estatuto do condomínio e por isso
mostra os dentes. Será? Cão desajustado e cercado por não possuir identificação:
sorri raivoso e é cão. Um senhor sobre patas e quatro homens de paus e
correntes nas mãos, os dentes rangendo, uns de medo, outros de provocação.
Quais? O cão lambe os dentes, os humanos os arreganham e todos disputam as
regras, a fome, o tempo, a territorialização. Pelo que competem os senhores
circundando os carros em busca dos ossos de um parco cão? Polícia e ladrão a
brincar de medir armas e o cão cerra os dentes, não se entrega, nenhuma
hesitação. O dócil ‘rascunhador’ de portas, feroz rangedor de nãos, abusado comedor
de sacolas, indomado, sai pelo portão: sem credenciais e digno de seu corpo de
paus, pedras, fome e insubordinação. E quem, ao final, termina vão?
Figura 1 – Experimentação em lambe-lambe
Fonte: arquivo pessoal. Foto: Tatiana Plens Oliveira. Lambe: Michele Fernandes Gonçalves.
Figura 2 – Experimentação em lambe-lambe
Fonte: arquivo pessoal.
Foto: Tatiana Plens Oliveira. Lambe: Michele Fernandes Gonçalves.
‘Lobocão’
Um lobo-descendente e um grande pedaço de carne.
Uma rua movimentada e sacolas de lixo reviradas.
Um cão de caça.
Figura 3 – Experimentação em lambe-lambe
Fonte: arquivo pessoal. Foto: Tatiana Plens Oliveira. Lambe: Michele Fernandes Gonçalves
Figura 4 – Experimentação em lambe-lambe
Fonte:
arquivo pessoal. Foto: Tatiana Plens Oliveira. Lambe: Michele Fernandes
Gonçalves
O cão do 275
Rastros. O cão que dormiu em frente ao 275 vagou ao sol e deixou rastros. Em uma manhã pós-carnaval, ele fez festa com o lixo da rua, cheirou papéis no chão, demarcou árvores, cambaleou ofegante como um folião. Juntos, vagamos por quinze minutos. Ele delimitando meus passos, sua falta de raça lhe garantindo pelos longos e desuniformes, corpo achatado e esticado, patas curtas, rabo grande. ‘Dreds’ imensos e insuficientes para impor respeito aos colegas ‘de casa’ que encontramos, eu mais assustada que ele. Eram quatro, ditavam os latidos da rua, cada qual em frente ao seu portão, descansavam na sombra, afugentavam os forasteiros – o quinto cão e sua humana a habitar, por segundos, sua região. O ducentésimo septuagésimo quinto cão passou depressa, não era local que se pudesse marcar. Agora se deleitava em seu descanso. Em frente ao portão 275 ele reinava, absoluto e obsoleto, seus traços como que compondo uma paisagem selvagem: portão de pintura devedora ao tempo, calçada apedregulhada, rua esburacada e habitada por criaturas musgolentas que sobre si sentiam o cão em uma manhã quente de pós-libertação. Uma rua sem saída, um córrego não esquecido, a sombra da mata que deu ao portão 275 um sono-cão. Pelos emaranhados e também eles demarcados, pelo sangue sugado, urina envelhecida, odor de um corpo que há muito se sabe cão. Um fio de movimento, um cruzamento no começo da rua se contrapondo à calmaria de um cão, um ruído intenso subindo ao largo do 275 e ele lá, impassível ao urbanismo da cidade. Apenas lá.
Figura 5 – Experimentação em lambe-lambe
Fonte:
arquivo pessoal. Foto: Tatiana Plens Oliveira. Lambe: Michele Fernandes
Gonçalves.
O foco das problematizações propostas pelas ‘narrativas de cães’ são os processos pelos quais humanos e cães territorializam sua existência nas ruas. O cheiro da urina, o ranger dos dentes, o sono e os latidos são as expressividades que definem o território existencial (DELEUZE; GUATTARI, 2012) desses cães, da mesma maneira que o cheiro do córrego, o calor do asfalto, o som dos automóveis e o sorriso dos homens são as expressividades que definem, nas mesmas ruas habitadas pelos cães, o território existencial humano. Os rastros deixados por esses viventes lhes conferem a expressão de seu território, e ele está constantemente em disputa. Ao serem sublinhadas através das narrativas, pretende-se que essas expressividades causem sensações e sensibilidades que tomem parte na ordenação comum em que esses viventes são vistos e legitimados, produzindo a circulação de fetos que, para além de engendrar forças opressoras de uns sobre os outros – de humanos sobre cães –, baguncem as existências ensimesmadas dos segundos e libertam as potências reprimidas dos primeiros.
As narrativas exteriorizam o processo de afecção, contaminação e elaboração da experiência do encontro da pesquisadora com o campo de pesquisa – com os cães, o espaço físico das ruas e os elementos lá existentes. Elas também colocam em jogo sua bagagem conceitual, metodológica e sensível, mostrando as relações por ela traçadas entre esses dois universos. Por fim, elas possibilitam que a experiência do encontro com os cães ‘de rua’ seja retomada e reelaborada pelos passantes, aqueles que não foram a campo ‘seguir cães’, mas, através das palavras dispostas nos lambe-lambes, têm a oportunidade de se encontrar com eles nos mesmos locais onde, outrora, a pesquisadora os encontrou. Pesquisadora, matéria de pesquisa, espaço onde ela acontece e conceitos, reflexões, sensações e afetos são mobilizados em um tipo de escrita que não nega nem afirma fatos ou histórias, narrando e, por esse próprio ato, ficcionando e produzindo dissensos que tentam provocar reconfigurações espaciais, temporais e existenciais entre esses viventes.
Por conter elementos que problematizam, de maneira dissensual, o contexto e a condição desses cães nas ruas, assim como suas próprias definições e suas relações com os humanos que lá também circulam, os lambes formulam e reformulam questões, territorializam e desterritorializam esses viventes, abrindo espaço às múltiplas convivências possíveis, nas ruas, entre eles. A proposta dessas intervenções é fazer pensar, mas, também, permitir o adentrar a sensações e afetos. Ao dizerem das vidas que habitam as ruas, sua intenção é a de fazê-las durar naqueles espaços, produzindo instantes atemporais que escapem à necessidade de representá-las, desestabilizando as ordenações dominantes do universo sensível comumente partilhado entre humanos e cães, lançando os cães a espaços desabitados de significados e lhes possibilitando, assim, outras significações. Ao partilhar a vida vivida, vida rebelde a qualquer destinação que não seja ela própria em sua forma ‘selvagem’, as narrativas desejam ampliar a experiência sensível do mundo dos humanos, agora diferentemente povoado pelos cães. Inserir, nas ruas, palavras como restos da experiência sensível do encontro com viventes alheios a qualquer determinação tem a pretensão de trazê-los de volta à essas mesmas ruas por vias outras que não a de sua imagem fidedigna. Os restos de palavras, em locais tão excedidos de informações, orientações e deliberações, partilham o sensível pela pausa, pela desconexão, pelo suspiro de poéticas e políticas menos óbvias e hierárquicas na relação com esses viventes.
A marginalidade dos cães é também a da própria intervenção que os reinsere nas ruas. O lambes são eternos marginais, sua potência está na efemeridade e na descontinuidade entre suas formas sensíveis de produção e apropriação. Há intencionalidade na problematização daquilo que incomoda e pede passagem, mas há também as linhas de indeterminação e fuga pelas quais os sentidos estão sempre abertos a reconfigurações ilimitadas de pensamento e sensibilidade. Partilhar o sensível se torna, nesse caso, compartilhar a estética de uma arte marginal que incita afetos por vislumbres, feixes de fulguração breves e momentâneos em um local onde quase nada pode permanecer por muito tempo – nem mesmo a vida. À altura do nomadismo e do dissenso, rastros de cães em palavras impressas em lambe-lambes causam sensações pela desconexão que propiciam, pela não hierarquização ou homogeneização de sentidos e pelos entrelaçamentos multidirecionais que provocam. Neles, ruas, humanos e cães se encontram e reencontram, despertando rupturas no cotidiano das cidades.
Políticas de vida no encontro entre humanos e cães
Expressões artísticas (a)firmam, no encontro, muitas existências. Nas ruas, afirmam a possibilidade de permanência e convivência de viventes diferentes e em conexão, fluxo, movimento: afirmam uma rua onde se pode habitar e fazer circular os afetos que modificam a experiência sensível. Habitar a rua é configurar uma nova política dos afetos, aceitar a transitoriedade, experimentar a possibilidade de não estar só. É ser multidão, existir de outros modos e, ainda assim, coexistir no espaço comum, no ‘entre’ dos tantos modos possíveis da experiência. ‘Lamber a rua’; distribuir, nela, intervenções artísticas em formato lambe-lambe é criar “[...] deslocamentos mínimos e sutis, vestígios no limiar entre o ver e o não ver” (PORO, 2011, p. 33) – porosidades no concreto de uma existência comum.
A partilha sensível revela o comum e, ao fazê-lo, também determina o que não é partilhado, ou seja, o exclusivo. Ela é estética ao delimitar e posicionar atores e palavras no espaço, e constitui a base da política ao cuidar do comum e, consequentemente, do que não é comum. Os afetos também são políticos ou a política é feita de afetos uma vez que é a partir de nossa afecção, da maneira como sentimos os estímulos do mundo, que se dá nossa ação e julgamento sobre ele. É pelos afetos que definimos nossa atividade política e, portanto, o sensível a ser partilhado. A arte, na sua forma gráfica imagética ou escrita, partilha o sensível ao se colocar como dispositivo atuante no que é comum. Se a política enuncia e cuida da partilha e se a arte – e, portanto, também a escrita – participa ativamente e concretiza essa enunciação, os afetos por elas provocados ativam e definem o comum e o exclusivo a serem enunciados.
Partilhar o sensível é compartilhar afetos e, nesse sentido, tanto arte quanto política se confundem, implicando-se como práticas humanas com capacidade de reconfigurar o comum, o que se vê, o que se diz, o que se sente, os espaços autorizados e não autorizados ao ‘habitar’, os atores neles permitidos e não permitidos, as formas de vida visíveis e risíveis e aquelas invisíveis e irrisíveis. Arte e política são forças de afirmação da existência que “[...] rompem a evidência sensível da ordem natural que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou à obediência, à vida pública ou privada” (RANCIÈRE, 2012, p. 60). Elas desestabilizam as ordens pré-estabelecidas e possibilitam a recuperação da diferença para além da desigualdade, garantindo que as singularidades e as especificidades dos viventes não sejam massacradas, assim reposicionando-os na ocupação de espaços físicos e conceituais a eles originalmente não dirigidos.
Se os afetos definem o comum partilhado, reconfigurá-los passa por produzir novos afetos que reanimem as existências paulatinamente apagadas no decorrer dos processos autoritários de definição de como e quais viventes serão vistos, permitidos, respeitados. Nesse contexto, a arte de rua em formato lambe-lambe e a escrita narrativa atuam, quando de seu encontro entre si e com humanos e cães, nas ruas, na disputa pelas visibilidades e na afirmação de modos plurais de existir para esses viventes, ampliando as enunciações de uns sobre outros e suas ‘permissões’ para circular e habitar determinados espaços. Produzir embaralhamentos e alterações nesses espaços – lá onde ocorrem as designações do visível e do invisível – alarga a experiência sensível ao mostrar todos os corpos ocultos sob uma ideia dada de comum e todos os afetos tristes (ESPINOSA, 2009) intencionalmente vinculados a essa ideia.
As intervenções em lambe-lambes contendo as ‘narrativas de cães’ aqui apresentadas intencionam esse embaralhamento como forma de alargar a partilha sensível entre eles e os humanos. Através dos lambes, pretende-se pluralizar a experiência do comum pelo dissenso, tanto quando do encontro entre pesquisadora, campo e matéria de pesquisa, através da escrita narrativa, quando do encontro entre todos eles e o ‘público’, através de sua instalação no espaço urbano da rua. A ideia é a de multiplicar a partilha: ao deslocarem o olhar de compadecimento que comumente cerca os cães ‘de rua’, afirmando-a como local onde se possa habitar, essas intervenções evidenciam existências plurais, sugerindo que uma nova rua, por onde caminhem, sem distinção de condições de acesso e permanência, humanos e cães, é possível.
Educar pelos fazeres comuns
Tomando parte e partilhando o sensível, arte e política são, antes de reservadas a artistas e políticos, práticas da ordem do comum e ‘dos comuns’, do que é próprio aos coletivos de viventes que recebem muitos nomes, dentre eles, os ‘humanos’. Em se tratando destes últimos, elas são atividades de enunciação e anunciação, experiências repartidas no universo sensível, sem excepcionalidade na sua produção ou distribuição, o que as aproxima do campo do trabalho no sentido de um fazer tipicamente ‘nosso’. Como prática estética, a arte se insere em um regime sensível de produção de heterogêneos, implodindo “[...] a barreira que distingue as maneiras de fazer arte das outras maneiras de fazer e que separa suas regras das outras ocupações sociais” (RANCIÈRE, 2005, p. 34). Ao se aproximar de outras práticas humanas, esse regime “[...] afirma a absoluta singularidade da arte, mas destrói, ao mesmo tempo, todo o caráter pragmático dessa singularidade” (RANCIÈRE, 2005, p. 34).
“O culto da arte supõe uma revalorização das capacidades ligadas à própria ideia de trabalho [...] e é uma recomposição da relação entre o fazer, o ser, o ver, o dizer” (RANCIÈRE, 2005, p. 68). A partir de sua desobrigação com hierarquias de qualquer espécie, seus caminhos imbricam-se na distribuição das maneiras de ser e das ocupações no espaço, fazendo com que o “[...] ordinário do trabalho e a excepcionalidade artística” (RANCIÈRE, 2005, p. 68) se encontrem. Para ser parte da experiência coletiva como atividade humana sem excepcionalidade ou obrigação representativa, o regime de eficácia estético das artes se estrutura pelo dissenso. Nesse contexto, tanto as intervenções urbanas de rua quanto a escrita narrativa podem constituir-se como práticas artísticas dos viventes ‘comuns’, aqueles que partilham afetos sem, necessariamente, se colocarem baixo a uma Instituição. Uma vez que “[...] as práticas artísticas não constituem uma exceção às outras práticas, [mas] representam e reconfiguram as partilhas dessas atividades” (RANCIÈRE, 2005, p.68), é como trabalho que a arte pode “[...] adquirir o caráter de atividade exclusiva” (RANCIÈRE, 2005, p. 69). Junto com a política, nesse caso, ela figura justamente no campo daquilo que iguala, e não do que diferencia, os ‘humanos’: o ofício.
É pensando-se a partir dessa proposta que a experiência de multiplicação da partilha sensível organizada e efetuada pelos regimes estéticos da arte e da política pode funcionar como aposta de trabalho de uma pesquisadora com cães ‘de rua’. E é a partir dessa mesma ideia que essa partilha pode ir ainda mais longe: afetar humanos não apenas pelo encontro casual com lambe-lambes espalhados nas ruas, e que colocam em jogo suas relações com cães ‘de rua’, mas pelo convite ativo a esse encontro, através de práticas artísticas da ordem ‘dos comuns’ realizadas ‘com’ esses humanos. Esse convite poderia então ser pensado como o alargamento de uma experiência de pesquisa, agora levada ao âmbito educativo. Um ‘retorno ao campo’ com o objetivo de produzir um novo encontro: entre alunos, educadores e cães.
Arte e política, nesse caso, se articulariam no trabalho de campo e no trabalho docente como práticas de todos, sem excepcionalidade. As práticas artísticas – de escrita, de confecção de lambes, de fotografar os cães – seriam tomadas não em sua expressão consagrada institucionalmente, mas em sua ordem corriqueira, comum, cotidiana. Como potência sensível, elas seriam tidas como práticas concretas de todos que, a partir do afetar e do ser afetado no encontro com os cães nas ruas, decidissem expressar-se, sendo um instrumento de apropriação da enunciação de um mundo outro, menos autoritário e predatório, mais compartilhado entre viventes de distintas materialidades.
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[1] Professora Doutora da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: carpe_mizinha@hotmail.com
[2] Intitulado ‘O Encontro entre humanos, cães, ruas e arte: aproximações e experimentações conceituais’ e escrito em parceria com Ana Godoy. Informações completas nas referências.
[3]Intitulado ‘Quando cães, humanos e ruas se encontram: pensamento, movimento e sensação por entre vidas, afetos, arte e palavras’ e realizado na Universidade Federal de São Carlos, Campus Sorocaba. Informações completas nas referências.