Gambiarras: uma pequena coleção de gestos recolhidos em percurso

 

Gambiarras: a small collection of gestures collected in route

 

Gambiarras: una pequeña colección de gestos recogidos en el camino

 

 

Eduardo Silveira[1]

Instituto Federal de Santa Catarina

 

 

 

Resumo

O ensaio apresenta uma pequena coleção de gestos capturados em percursos por diferentes cidades e experiências pedagógicas.Qual a entrega e disponibilidade necessária para que pequenos gestos possam insinuar-se em meio à atribulação da vida? O corpo com o qual se caminha pela cidade na tentativa de encontrar pequenos gestos é o mesmo que caminha na vida cotidiana? Qual a qualidade de presença necessária para que se veja o que se esconde na sombra dos detalhes? Estas são algumas das questões surgem nesses percursos compartilhados. Gestos e percursos se imbricampara compor movimentos de gambiarra. A gambiarra aqui é entendida como um movimento de composição para pensar em questões que atravessam processos pedagógicos investigativos e vai se construindo no encontro com a cidade e por meio de movimentos de escrita. Em cada gesto e percurso, aos poucos, vão se sobrepondo rastros de experiências que trazem material para que se componham novas camadas em relação à pesquisa em educação e sobre práticas pedagógicas.

Palavras-chave: Gesto; Gambiarra; Ficção; Escrita.

 

 

Abstract          

The essay presents a small collection of gestures captured during routes through different cities and pedagogical experiences. What is the commitment and availability necessary for small gestures to insinuate themselves amidst the tribulation of life? Is the body that walks through the city in an attempt to find small gestures the same as the one that walks in everyday life? What is the required quality of presence to see what is hidden in the shadow of details? These are some of the questions that arise in these shared journeys. Gestures and journeys intertwine to compose gambiarra movements. The gambiarra here is understood as a compositional movement to reflect on issues that permeate investigative pedagogical processes and is constructed through encounters with the city and through writing movements. In each gesture and journey, traces of experiences gradually overlap, providing material to compose new layers in relation to education research and pedagogical practices.

Keywords: Gesture; Gambiarra; Ficction; Writing.

 

 

Resumen

El ensayo presenta una pequeña colección de gestos recogidos en rutas por diferentes ciudades y experiencias pedagógicas. ¿Qué dedicación y disponibilidad se necesita para que pequeños gestos puedan insinuarse en medio de la agitación de la vida? ¿El cuerpo con el que se camina por la ciudad buscando encontrar pequeños gestos es el mismo con el que se camina en la vida cotidiana? ¿Qué calidad de presencia se necesita para ver lo que se esconde en la sombra de los detalles? Estas son algunas de las preguntas que surgen en estas rutas compartidas. Gestos y caminos se entrelazan para componer movimientos de gambiarra. La gambiarra aquí se entiende como un movimiento de composición para pensar cuestiones que atraviesan procesos pedagógicos investigativos y se construye en el encuentro con la ciudad y a través de movimientos de escritura. En cada gesto y ruta, poco a poco, se superponen huellas de vivencias que aportan materia para componer nuevas capas en relación a la investigación en educación y sobre las prácticas pedagógicas.

Palabras-clave: Gesto; Gambiarra; Ficción; Escrita.

 

 

Primeiro percurso

Decido iniciar esse ensaio pela descrição de uma caminhada. Gosto muito de caminhar e me perder por entre ruas apinhadas de gente ou por cantos ermos e silenciosos. Em uma cidade desconhecida, dificilmente me privo de simplesmente caminhar. Olhar para pessoas e paisagens tentando tatear, na novidade que habita o desconhecido, a potência de pequenos gestos, detalhes improváveis e esquecidos a sussurrar suas precárias vidas.

            Nesse dia em questão, lembro de ter decidido cruzar o centro de Florianópolis até uma papelaria que costumo frequentar, em busca de materiais diferenciados com um preço acessível. Era um fim de tarde abafado e pessoas com toda sua reserva de novidade pareciam brotar no chão. Iam e vinham de forma intensa. Cada uma em seu universo próprio de movimento, pulsação e desejo. Umas desanimadas, outras velozmente. Na feição dos rostos, a profusão de sentimentos e mistérios únicos proliferava. De repente, um corpo se destaca. Na realidade, mais que um corpo: um sutil gesto corporal se desprende desse coletivo confuso e espasmódico.

 

Gesto 1: sobre ir    

Os antebraços permanecem quase esticados perpendiculares ao corpo. Ele próprio, o corpo, sente os sinais do tempo em suas articulações. Elas sussurram cansaço e arqueiam. As costas formam uma curva elíptica. A cabeça, pesada, pende de um pescoço que quase não a sustenta mais. A bacia se projeta para frente, na tentativa de mover o conjunto, com muito esforço, um passo à frente. As pernas se revezam, suaves no movimento de ir. Uma… e outra, uma… e outra... Cansadas de repetir o mesmo gesto por sabe-se lá quantas décadas. Mas é preciso seguir. O bonequinho vermelho pisca apressado indicando que o tempo se esgota e ainda restam algumas faixas no chão. A boca entreabre. Os olhos expressam medo, talvez até pavor.

 

Segundo percurso

 

‘Capturar um gesto corporal, domesticá-lo em seu corpo e escrever sobre esse processo’. A proposta foi uma das que lançamos como um exercício no Seminário (suprimido para manter o anonimato) e tinha relação direta com a discussão de dois textos literários de César Aira e Alejandro Zambra,escritores latino-americanos (argentino e chileno) contemporâneos. O livro ‘A trombeta de vime’ de Aira é composto por inúmeras prosas curtas, em sua maioria sem título, cuja principal característica é a fragilidade e precariedade em sua estrutura. Em cada uma delas o que se lê são narrativas que se constroem de forma tão proliferativa que parecem não se sustentar. Uma escritura que opera na lógica da gambiarra.

            Na prosa ‘Eu não me importo’ (AIRA, 2002), em determinado momento o narrador diz:

Eu não me importo de correr riscos, pois o pior que pode me acontecer é morrer, e sinto que, depois de tudo, bem ou mal, muito ou pouco, já vivi. Por isso não me cuido especialmente. Eu o faria, e acho que muito, se fosse outro, isto é, se me transformasse em outro. Se de repente eu me encontrasse em outro corpo, eu o cuidaria como um tesouro de valor incalculável [...] (AIRA, 2002, p.89).

            A partir desse trecho a pergunta lançada na proposição do exercício foi pensar: ‘O que você seria/faria se, de improviso, ou mediante uma transfusão se encontrasse em outro corpo?’.

             Essa pergunta se relacionava com outra proposta a partir da leitura de um trecho do livro ‘Formas de voltar para casa’ de Zambra, um romance que se constrói no volume do sussurro. Zambra é dono de um estilo de narrar delicado e preciso que acaricia o leitor, mesmo quando trata de questões duras e difíceis, como a memória da infância vivida durante a ditadura militar chilena, a passagem do tempo e o ofício de escrever – temas do romance. Em determinado momento o narrador diz:

 

Ela me mostrou seus desenhos recentes e no entanto não aceitou que eu lesse para ela as primeiras páginas de meu livro. Me olhou com um gesto novo, um gesto que não sou capaz de precisar. É impressionante como o rosto de uma pessoa amada [...] é bonito e, de certo modo, é terrível saber que até esse rosto pode liberar de repente, inesperadamente, gestos novos (ZAMBRA, 2014, p.58).

 

            Juntamente com a pergunta anterior, na leitura desse trecho a questão seria pensar: ‘como encontrar esses gestos novos em nosso corpo-próprio-outro e como habitá-los?’.

            Retorno então, ao gesto capturado. Aquele simples gesto corporal me arrebatou. Ele escapava com simplicidade de um débil corpo idoso. Capturei-o em meio a dezenas de corpos que cruzavam a movimentada avenida enquanto os veículos, obrigados a parar, tossiam sua ansiedade. Busquei por algum tempo domesticá-lo em meu corpo onde parecia não caber [as articulações reclamavam]. Tentei mais um pouco e a forma de mantê-lo vivo dentro de meu corpo-próprio-outro foi compor uma narrativa ficcional, ainda em processo.

 

Gesto 2: Dona Jandira

 

            Eu acho que a cada ano a Jandira entendia menos seu corpo. Tudo começou nos olhos. O astigmatismo e a hipermetropia causavam uma confusão tremenda. Já não sabia se precisava colocar o folheto da missa mais perto ou mais longe dos olhos. Se confundia toda nesse processo. Resulta que sempre se frustrava porque perdia a hora de responder as palavras certas [arrumar].

            Depois foi o joanetes, que encavalou todos os seus dedos. Ela nunca mais caminhou sem olhar para os pés. Ficava tentando entender como aquela confusão, que havia se tornado o seus dedos, conseguia mantê-la firme no chão.

            Quando estava se acostumando com os novos desafios de ser ela, surgiu aquela história de apneia.

[continua...]

            Quantas vidas cabem na história de um gesto coletado assim, em um lampejo do cotidiano?

 

Terceiro percurso

 

            Caminho em Belém, Pará. É a segunda vez que visito essa cidade que me seduz de uma forma um tanto incompreensível. Já passa do meio da tarde e o céu prepara um peso incalculável para logo desaguar sem piedade. O calor é grande. Já visitei o Theatro da Paz e o Museu Emilio Goeldi. Agora retorno ao Hotel com o passo acelerado, prevendo um banho imprevisto. Durante toda a caminhada, meus olhos percorrem o chão na busca de folhas caídas. Grandes, pequenas, verdes, amareladas. Algumas são apenas partes daquilo que já deixaram de ser. Coleto algumas, fotografo outras: meu fascínio pelas folhas. Faltam apenas três quarteirões e já sinto os pingos grossos descerem decididos. Começo a quase correr tentando manter o foco nas diferentes folhas que um vento quente movimenta ali na base daquela grande árvore. Essas deixo para trás, nenhuma delas me conta uma história. Sigo e consigo chegar seco. Uma pena.

 

Gesto 3: com areia e sangue

 

            Não posso dizer que escolhi essa profissão. Desde pequeno eu me lembro de ter uma tendência à morbidade. Sempre gostei daquilo que sangra, escorre, cheira mal. A primeira vez foi na escola. Aquela menininha bonita. Ela tinha a pele lisinha, o cabelo bem preto, encaracolado – uma peste. Era sua vez no balanço e ela balançou, balançou e pulou lá no alto. Caiu com a fuça no chão. Levantou e parou ao meu lado, próximo do gira-gira. Foi instantâneo. O supercílio rasgou e brotou aquele sangue vermelhinho e bem grosso. Ele descia pela lateral do rosto e se juntava ao outro sangue misturado com ranho que descia pelo nariz e circulava a boca arregaçada em um choro sentido, amedrontado. Fixei, fascinado, o sangue escorrendo e transbordando por todo seu rosto. Logo as professoras chegaram e a levaram para a enfermaria. Eu fiquei brincando na areia. Aquela areia misturada com o sangue que formou uma pocinha logo em frente a mim.

            Legista do cotidiano. Responsável por categorizar pequenas mortes, silenciosas e inexpressivas. Sou eu quem faz esse nobre trabalho. Você por acaso já parou para pensar em quantas histórias e caminhos guardam essas vidas indigentes que já deixaram de ser? Pequenos seres invisíveis que, para a lógica do mundo, não existem. No entanto, eles são minha motivação de vida. Existe um protocolo muito rígido de registro: local do encontro do indivíduo, possível causa mortis, estado de decomposição do corpo com graus de laceração evidente ou aparente, tempo estimado de putrefação do cadáver, observações específicas. Cada indivíduo recebe uma ficha que é encaminhada junto do corpo para arquivamento. Os corpos passam por um meticuloso processo de preparação e recebem, por fim, o encaminhamento adequado. Oficialmente, o procedimento é esse. Para mim, aqui inicia o fascínio de ressuscitar esses corpos. Unir suas partes, remendar seus vazios e fazer vibrar seus silêncios. Adoro o que faço. É como brincar com areia e sangue.

 

Quarto percurso

            ‘Fotografar inutilidades pela cidade e escrever um microconto com a imagem (uma ou uma série ou). Trazer para o encontro imagem e microconto impressos, também no corpo, no.’. Esta foi outra proposta lançada no seminário já mencionado e teve relação direta com o microconto ‘A Marquise’, do escritor mineiro Marcílio França Castro, que compõe o livro ‘Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse’. O microconto em questão descreve uma marquise e todos os elementos improváveis que habitam esse espaço: "as coisas vão sendo jogadas dos andares de cima e caem na marquise. Papel de bala, chicletes, caco de vidro. Lata, pilha, saco plástico, moeda. [...]" (CASTRO, 2011, p. 145). Além do microconto, a série fotográfica ‘Pendurados’ de Marcelo Prates[2] e o texto de Tamíris Vaz ‘Devir-descarte: habitar transbordamentos’, também foram disparadores para o exercício.

            Inutilidades que na forma de gambiarras, compõe, no encontro com corpos que vivenciam o cotidiano das cidades, pequenos e potentes gestos.

 

Gesto 4: com areia e sangue

 

 

 

 

 

 

Imagem 1 – Primeiro corpo

Fonte: acervo do autor

 

 

Imagem 2 – Segundo corpo

Fonte: acervo do autor

 

 

 

Imagem 3 – Terceiro corpo

Fonte: acervo do autor

 

 

Imagem 4 – Quarto corpo

Fonte: acervo do autor

 

 

 

 

 

Imagem 5 – Quinto corpo

Fonte: acervo do autor

 

Imagem 6 – sexto corpo

Fonte: acervo do autor

 

Imagem 7 – Sétimo corpo

Fonte: acervo do autor

 

Imagem 8 – Oitavo corpo

Fonte: acervo do autor

Imagem 9 – Nono corpo

Fonte: acervo do autor

 

Imagem 10 – Décimo corpo

Fonte: acervo do autor

Quinto percurso

 

Qual a entrega e disponibilidade necessária para que pequenos gestos possam insinuar-se em meio à atribulação da vida? Quanto eles permitem encontrar caminhos para pensar a pesquisa em educação e processos pedagógicos inventivos? O corpo com o qual se caminha pela cidade na tentativa de encontrar pequenos gestos é o mesmo que caminha na vida cotidiana? Qual a qualidade de presença necessária para que se veja o que se esconde na sombra dos detalhes?São questões ecoam por aqui.

Em seu livro ‘Como funciona a ficção’, James Wood dedica um capítulo ao detalhe. Em determinado momento ele diz que “na vida e na literatura, navegamos por entre a estrela dos detalhes. Usamos o detalhe para enfocar, para gravar uma impressão, para lembrar. Nos prendemos a ele” (WOOD, 2017, p.70). No entanto, Wood pontua uma diferença entre o detalhe na vida e na literatura: “a literatura é diferente da vida porque a vida é cheia de detalhes, mas de maneira amorfa, e raramente ela nos conduz a eles, enquanto a literatura nos ensina a notar [o detalhe]” (WOOD, 2017, p.70). Já há algum tempo a leitura e a escrita ficcional têm se tornado centrais em meus movimentos de docência no ensino de biologia e na pesquisa em educação. Tenho tateado essas outras vozes em encontros com romances, contos, poesias na tentativa de aprender a ver os detalhes e fazê-los protagonistas nos processos pedagógicos e investigativos.

Em 1974, Georges Perec, instalou-se por três dias seguidos na praça Saint-Sulpice, em Paris. Ali, em vários momentos, ele anotou tudo o que via. Acontecimentos banais da vida cotidiana, carros, animais, nuvens, etc. Fez listas e descreveu as situações, mesmo aquelas mais insignificantes. A coleta destes gestos deu origem ao livro ‘Tentativa de esgotamento de um local parisiense’. Na abertura do livro, Perec (2016, p.11) diz que seu propósito foi o de descrever “aquilo que em geral não se nota, o que não tem importância: o que acontece quando nada acontece, a não ser o tempo, as pessoas, os carros e as nuvens”.

O que se vê é o desfiar dos dias, do movimento orgânico e proliferante da vida. No texto de prefácio, Ricardo Silva sugere que nosso ato de ver a Cidade [grafada assim, em maiúscula], está condenado ao condicionamento mercadológico e espetacular. “Vemos o mundo com olhos objetivos, mecanizados, procuramos e decodificamos apenas o funcional e utilitário” (SILVA, 2016, p.7). O que Perec faz é narrar a realidade que nos escapa, dando valor ao infraordinário, ao inútil. Nesse processo o que se suscita, é uma “atitude que nos solicita ‘enxergar’ a Cidade. Um ato consciente. Ato que deveria ser realizado à exaustão. Forçar o corpo ao seu limite, o lugar ao seu limite [...]. Retirar tudo, até não sobrar nada. Esgotar o lugar” (SILVA, 2016, p. 9).

 

Sexto percurso

 

Caminho pelas ruas de Curitiba, minha cidade natal. Habitei seu corpo por vinte e seis anos. Embora já não viva mais seu cotidiano, sinto meu corpo ainda ligado a ela. O fluxo de vida que pulsa nas ruas é o mesmo que circula dentro dos vasos sanguíneos que me constituem. Meu pai segue vivendo na mesma casa em que cresci. A casa que guarda as memórias de uma vida, sussurra momentos, encontros e dores. Frequentemente, após vencer os quase trezentos quilômetros que separam a minha casa da do meu, tenho por hábito refazer percursos, caminhar por rotas que levam meu corpo [ainda se mantêm presas aos músculos] sem que eu precise racionalizar por onde ir. O caminhar acontece como dança e tento enxergar a Cidade pelos movimentos de vida de outros, não humanos, que a habitam. Nessa dança, ensaio gestos de coleta, friccionando meu corpo ao de folhas que caem, também em dança com o vento: meu fascínio pelas folhas caídas. Sorrateiramente vejo algumas delas mais entusiasmadas. Me aproximo e percebo que já são idosas. Estão planejando uma viagem nos fluxos de ar.

 

Gesto 5: a dança das folhas

 

 

 

 

 

 

 

Imagem 12 – As folhas viajantes

Fonte: acervo do autor

 

Sétimo percurso

 

Erin Manning (2018), na Conferência ‘Toward a PoliticsofImmediation’ sugere que a docência e a prática pedagógica se constituem fundamentalmente por meio de gestos de mediação. Mediam-se os encontros, o contato com o conhecimento, a forma de se produzir conhecimento. Nessa lógica imperativa, a mediação não é nem mais questionada. Seria possível, em um contexto pedagógico, ensaiar movimentos de escrita por fora da lógica da mediação? Ou, ao menos, em que a única mediação fosse aquela do corpo? É nesse sentido que surgem experimentos de escrita a partir dos encontros entre corpo e Cidade e com os gestos nela coletados. Escritas que resistem à mediação, que se compõe pelo inusitado e pelo inútil. Escritas sem fundo.

O livro ‘Ainda escrever: 58 combates para uma política do Texto’, de Luciano Bedim da Costa, parece ser um bom exemplo dessa lógica proposta por Perec, funcionando por dentro, pelo meio, das palavras. Da escrita. São 58 fragmentos nos quais ele tenta circunscrever uma ideia do que possa ser uma política do Texto. Na apresentação do dispositivo que faz funcionar o livro, ele sugere que “pensar a escrita e a leitura enquanto gestos de resistência implica em [...] instaurar-lhes vacúolos de silêncio, zonas de dispersão e desvio que possam fazê-los tomar outros cursos, ex/cursionar” (COSTA, 2017 p.18).

Em outro recorte, no potente ensaio ‘Escrever’, Marguerite Duras vai compondo camadas sobre sua relação com a escrita: “Tudo escrevia quando eu escrevia na casa. A escrita estava por toda parte” (DURAS, 2021, p.34); sobre o labor com a escrita: “escrever assim mesmo, apesar do desespero. Não: com o desespero. Que desespero, não sei dizer, não sei o nome disso” (DURAS, 2021, p.38). É um transe entre escritor, escrita, corpo e mundo: “Não podemos escrever sem a força do corpo. É preciso ser mais forte que si mesmo para abordar a escrita, é preciso ser mais forte que aquilo que se escreve” (DURAS, 2021, p.34). Escrever os encontros, os pequenos gestos, a coleta.

 

Oitavo percurso

 

Já faz algum tempo que a noção de gambiarra tem se tornado uma chave importante para pensar processos investigativos e pedagógicos em meus movimentos de docência[3]. A noção de gambiarra como procedimento, aponta para a transitoriedade, a precariedade dos meios, a improvisação, a inventividade e o inacabamento (ROSAS, 2008). Ao mesmo tempo, e talvez justamente por operar com esses elementos, processos ‘gambiarrísticos’ sejam tão potentes.

É isso que ocorre, por exemplo, com as experimentações do coletivo Gambiologia[4], que desde 2008 propõe iniciativas que articulam arte, tecnologia, educação e inovação. A gambiologia envolve para além do uso e produção de gambiarras, o aprendizado sobre o que constitui as coisas. Em uma entrevista para a revista V!rus, Fred Paulino (2012) diz que a proposta do coletivo parte do princípio de se deixar influenciar por ‘intervenções espontâneas sobre o cotidiano’, possíveis de se observar nas metrópoles, principalmente em países emergentes, que contam com menos recursos. Nesse sentido, as produções do coletivo se propõem a incorporar ideias provenientes de camelôs, vendedores ambulantes, sistemas de som, catadores de sucatas, artistas de rua, reservatórios de um tipo de criatividade muito espontânea e potente.

No mesmo princípio se baseia Ernesto Oroza, artista cubano que produziu um inventário fotográfico das gambiarras presentes no território cubano. Em Cuba, como consequência dos bloqueios econômicos, situações de restrição material se tornaram comum ao longo dos anos. Assim, surge o que Oroza chama de “desobediências tecnológicas”, ou seja, processos que buscam adentrar o corpo dos objetos, desconstruindo sua identidade: “depois de tanto abri-los, repará-los, fragmentá-los e utilizá-los como bem entendem, acabaram por descartar os signos que fazem dos objetos ocidentais uma unidade fechada ou uma identidade (OROZA, 2012).Procedimentos que fazem a identidade dos objetos variar.

Em outra abertura, a dançarina Carolina Camargo de Nadai (2017) investiga a gambiarra como um modo do corpo operar dispositivos para a composição em dança, algo que ela denomina ‘gambiarração’. Na dança, a criação que tem como base a  ‘gambiarração’, pressupõe:

descobrir no fazer, mesmo que sempre de modo incompleto, o que pode o corpo a partir daquilo que o corpo disponibiliza para o ambiente e este para o corpo.  Entendendo que o corpo que dança também é um ambiente onde muitas relações e composições se dão e que ambiente é algo que também toma corpo (NADAI, 2017, p.26).

 

            Nesses três procedimentos envolvendo a lógica da gambiarra como princípio de criação, o que se percebe é um movimento que entrelaça corpo e ambiente e escuta e cidade e disponibilidade e atravessamento e… em inumeráveis articulações compositivas.

 

Gesto 6: a dança das folhas

 

Querido amigo,

 

Preciso te dizer que esse ano tem sido intenso para mim. Eu me vejo no olho do furacão, tudo se movendo rapidamente e de forma caótica ao meu redor. As fortes rajadas de vento vêm... e vão. Levando e trazendo um pouco de tudo. Isso não é bom nem ruim, só é. Como você sabe, estou passando uns dias em Curitiba, visitando meu pai. Como você também sabe, gosto muito de me perder pela cidade. Nesse dia ventava muito – coisa que tem sido comum por aqui. Sabe aquele vento frio e cortante que sopra com força remexendo coisas há muito paradas? Pois é... Foi em uma dessas rajadas. Eu caminhava contemplando a vida que existe nas coisas, enquanto dançam em meio ao vendaval (Você lembra daquela cena da sacola dançando ao vento no filme Beleza Americana?).

            Foi em um fluxo de ar mais forte que nos trombamos ali na Praça Santos Andrade, bem pertinho do Teatro Guaíra. Eram seis. Super bem humoradas, gargalhavam em meio a uma dança tão singela... Você precisava ver! Com a trombada elas caíram no chão e pediram desculpas. Eu disse que tudo bem, mas fiquei instigado com a disposição delas, afinal eram todas senhoras já idosas. Um pouco receoso por ser intrometido perguntei para onde elas iam com toda aquela alegria. Disseram que como agora estavam aposentadas, tinham organizado uma visita a Belém para ver a floração das sumaúmas da Amazônia. Achei fantástica toda aquela energia e bom humor. Conversamos mais um pouco, eu disse que conhecia Belém e tinha feito algumas amigas folhas quando estive por lá. Também falei de ti, enquanto admirava seus corpos marcados pelo tempo. Quantas experiências não existiriam em todas aquelas cicatrizes, cortes e irregularidades? Quanta vida não pulsara naqueles vasos que agora marcavam forte a superfície de suas peles? Rapidamente cada uma delas se tornou, a seu modo, especial para mim. Seja por sua contraditória potência travestida de fragilidade, ou pela serenidade paciente que a idade parecia lhes brindar.

Logo pensei que poderia oferecer a elas uma carona junto à carta que enviaria pra você. Elas toparam na hora! Adoraram a ideia de ter uma guia na cidade e também disseram que embora estivessem dispostas a ir dançando até aí, uma ajudinha no transporte seria bem-vinda.

            Se você topar eu também ficaria muito agradecido. Penso que você vai adorar passar um tempo com elas. São muito queridas e super divertidas! Para fazer as devidas mediações, agora te apresento cada uma delas: Linda, Flora, Ticiana, Iara, Luana e Valquíria. Para ficar mais fácil de saber quem é quem, envio uma singela imagem que fiz de cada uma delas. Elas vão num envelopinho separado, para oferecer mais conforto e segurança.

Se você aceitar essa empreitada e quiser me contar na sequência como foi o passeio de vocês, vou ficar feliz em receber sua resposta.

Meu afeto,

Curitiba, fevereiro de 23.

 

Nono percurso

 

César Aira (2007), no texto, ‘A utilidade da arte’, sugere que cada vez mais vivemos entre caixas-pretas que ninguém sabe como desmontar ou como funcionam: “hoje vivemos num mundo de caixas-pretas. ninguém se assusta por não saber o que acontece dentro do mais simples dos aparelhos de que nos servimos para viver” (AIRA, 2007, p.50). A essa realidade ele contrapõe a época (até a década de 1950) em que o papel dos bricoleurs ainda era relevante: “os bricoleursde vila ou de bairro não se limitavam aos carros, trabalhavam com qualquer tipo de máquinas: relógios, rádios, bombas d’água, cofres” (AIRA, 2007, p.49). Ao apresentar essa relação, na verdade, o argumento é de que a prática da arte seria justamente aquilo que no contemporâneo, entre caixas-pretas, consegue escapar: “a arte continua sendo o melhor campo para a prática e experimentação da velha inteligência, que se impunha o objetivo de saber como funcionam as coisas e como funcionava o mundo” (AIRA, 2007, p.52). Isso seria possível, justamente pelo fato de que artistas são capazes de desmontar aquilo que utilizam como material de trabalho, ou seja, a linguagem, e montá-la de novo, seguindo outras premissas. Desmontar a linguagem, bricolar sentidos, compor séries improváveis: fazer gambiarras.

A escrita vai se compondo pelos encontros inusitados que o espaço da cidade e seus acontecimentos infinitos oferecem continuamente. Mais uma vez: no friccionar entre corpo, cidade e movimento é que vão surgindo os percursos e gestos aqui transformados em escrita. Não se sabe bem o que é, nem para que serve. Mas há algo que se movimenta. É como a 'Máquina de pensar em Gladys', conto curtíssimo do escritor uruguaio Mario Levrero. No conto, o narrador se prepara para dormir e antes faz um percurso pela casa para garantir que tudo esteja em ordem: a janela do banheiro pequeno, ao fundo, estava aberta para que a camisa de poliéster que seria usada no dia seguinte secasse. A torneira da pia que pingava, foi fechada. Enfim, ações precisas, definidas, que demandam gestos já conhecidos e cotidianos para sua realização. No entanto, em determinado momento, o narrador traz um detalhe desconcertante. Ele diz que a máquina de pensar em Gladys “estava ligada e produzia o suave ronronar habitual”[5] (LEVRERO, 2016). Nada se explica sobre a máquina. Mais ao final, o narrador finaliza dizendo que pela madrugada acordou inquieto, um barulho incomum lhe causa um sobressalto: “me enrolei na cama e me cobri com travesseiros, coloquei as mãos na nuca e esperei o fim de tudo aquilo com o nervos em tensão: a casa estava desmoronando”[6] (LEVRERO, 2016, p.10).

Há alguns aspectos relevantes sobre a estrutura da narrativa, principalmente quando pensa-se sobre a lógica da gambiarra. A representação de uma casa com suas lógicas, seus espaços e sua rotina de definida. Todo um ecossistema de gestos, movimentos e processos já definidos. Em algum momento surge a máquina de pensar em Gladys, ligada e produzindo o suave ronronar habitual. O que é esta máquina? Que suave ronronar é este? Quais seus mecanismos, sua lógica de funcionamento? As questões ficam em suspenso, disponíveis para que cada leitor/a a construa, de acordo com suas lógicas, compondo suas próprias gambiarras. No conto, a máquina de pensar em Gladys surge como um corte no sentido e na lógica esperada. O funcionamento da máquina, durante a noite, causa um distúrbio na lógica, na rotina de movimentosda casa e da vida comum. Enfim, a casa desmorona.

            Instaurar, por movimentos de gambiarra envolvendo corpo, disponibilidade, inventividade, máquinas de pensar em Gladys. Máquinas capazes de desmoronar as lógicas vigentes no olhar para o mundo, para o cotidiano, para as práticas investigativas e para os gestos docentes.

 

REFERÊNCIAS

 

AIRA, César. A trombeta de vime. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Iluminuras, 2002. 126p.

AIRA, César. A utilidade da arte. In: Pequeno manual de procedimentos. (Org.): MARQUARDT, Eduardo e CHAGA, Marco Maschio. Trad. Eduardo Marquardt. Curitiba: Arte & Letra, 2007. p.49-54

CASTRO, Marcílio França. Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse. Rio de Janeiro: 7 letras, 2011. 171p.

COSTA, Luciano Bedim da. Ainda escrever: 58 combates para uma política do Texto. São Paulo: Lumme Editor®, 2017. 73p.

DURAS, Marguerite. Escrever. Trad. Adriana Lisboa, Luciene Guimarães de Oliveira. Belo Horizonte: Relicário, 2021. 133p.

LEVRERO, Mario. La máquina de pensar em Gladys. Montevideo: Criatura editora, 2016. 142p.

MANNING, Erin. Toward a Politics of Immediation. ClimaCom, Campinas, ano.5, n.11. abr.2018. Disponível em: <http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/?p=9144>. Acesso em: 15 mar. 2023

NADAI, Carolina Camargo de. Gambiarração: poéticas em composição coreográfica. 2017. 428 f. Tese (Doutorado em Teoria e Prática do Teatro) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.

OROZA, Ernesto. Desobediência Tecnológica. 2012. Disponível em:<http://www.ernestooroza.com/desobediencia-tecnologica-de-la-revolucion-al-revolico>. Acesso: 21 mai. 2023.

PAULINO, Fred; MAFRA, Lucas. Gambiólogos: do digital, do analógico e de elementos da cultura. Entrevista. V!RUS, São Carlos, n. 7, jun. 2012. Disponível em: <http://www.nomads.usp.br/virus/virus07/?sec=2&item=1&lang=pt>. Acesso em: 25 Mai. 2023.

PEREC, Georges. Tentativa de esgotamento de um local parisiense. Trad. de Ivo Barroso. São Paulo: GustavoGili, 2016. 62p.

ROSAS, Ricardo. Gambiarra: alguns pontos para se pensar uma tecnologia recombinante. GAMBIARRA, v. 1, n. 1, p. 19-26, 2008. Disponível em: <https://periodicos.uff.br/gambiarra/article/view/29620/17166>. Acesso em: 19 mai. 2023.

SILVA, Ricardo Luiz. In: PEREC GEORGES. Tentativa de esgotamento de um local pariesiense. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Gustavo Gili, 2016. 7-11p.

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[1]Graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: eduardosilveira@ifsc.edu.br

[2] Disponível em: https://piseagrama.org/pendurados/

[3] Nota suprimida para garantir o anonimato.

[4] Criado por Fred Paulino, Lucas Mafra e Paulo Henrique Pessoa [Ganso], em Belo Horizonte. Cf: https://www.gambiologia.net/

[5] No original: “estabaenchufada y producíael suave ronroneo habitual”

[6] No original: “me ovillé em la cama y me cubrí com lasalmohadas y me puselas manos em la nuca y espere el final de todo aquello com losnervios em tensión: la casa se estabaderrumbando”.