Espaços abandonados na cidade: apropriação e ressignificação

 

Abandoned spaces in the city: appropriation and reinterpretation

 

Espacios abandonados en la ciudad: apropiación y resignificación

 

 

Milena Rubin Magoga[1]

Universidade Federal de Santa Maria

Josicler Orbem Alberton[2]

Universidade Federal de Santa Maria

Verônica Garcia Donoso[3]

Universidade Federal de Santa Maria

 

 

 

 

Resumo

Este artigo aborda a questão dos espaços abandonados no tecido urbano e explora as possibilidades de intervenção e apropriação desses locais. O objetivo é ampliar a discussão teórica sobre o tema, apresentando exemplos de intervenções no espaço urbano que estimulam novas formas de habitar a cidade. O trabalho está dividido em três partes principais. Primeiro, reflete-se sobre a presença de arquiteturas abandonadas no espaço urbano e a importância da arte e da educação no processo de ressignificação e as experiências que surgem desse encontro. Em seguida, são identificados diferentes tipos de intervenções e apropriações desses locais. Por fim, são apresentados casos de intervenções que surgem a partir de práticas não-hegemônicas, coletivas e/ou artísticas, buscando reativar os espaços de maneira orgânica. Em conclusão, destaca-se o papel fundamental da arte e da cultura nos processos de ressignificação do espaço urbano, como fomentadoras de novas formas de habitar e refletir sobre a cidade.

Palavras-chave: Espaços Abandonados; Apropriação; Experiência; Arte.

 

Abstract

This article addresses the issue of abandoned spaces in the city and explores the possibilities of intervention and appropriation of these locations. The aim is to broaden the theoretical discussion on the subject by presenting examples of interventions in urban spaces that encourage new ways of inhabiting the city. The work is divided into three main parts. Firstly, it reflects on the presence of abandoned architectures in urban spaces and the importance of art and education in the process of re-signification and the experiences that arise from this encounter. Next, different types of interventions and appropriations of these places are identified. Finally, cases of interventions that emerge from non-hegemonic, collective, and/or artistic practices are presented, seeking to reactivate the spaces in an organic manner. In conclusion, the fundamental role of art and culture in the processes of re-signifying urban space is highlighted as promoters of new ways of inhabiting and reflecting upon the city.

Keywords: Abandoned Spaces; Appropriation; Experience; Art.

 

Resumen

Este artículo aborda el tema de los espacios abandonados en el tejido urbano y explora las posibilidades de intervención y apropiación de estos lugares. El objetivo es ampliar la discusión teórica sobre el tema, presentando ejemplos de intervenciones en el espacio urbano que estimulen nuevas formas de habitar la ciudad. El trabajo se divide en tres partes principales. En primer lugar, reflexiona sobre la presencia de arquitecturas abandonadas en el espacio urbano y resalta la importancia del arte y la educación en el proceso de resignificación y en las experiencias que surgen de este encuentro. A continuación, se identifican diferentes tipos de intervenciones y apropiaciones de estos lugares. Finalmente, se presentan casos de intervenciones que emergen de prácticas no hegemónicas, colectivas y/o artísticas, buscando reactivar los espacios de manera orgánica. En conclusión, se destaca el papel fundamental del arte y la cultura en los procesos de redefinición del espacio urbano, como promotores de nuevas formas de habitar y reflexionar sobre la ciudad.

Palabras clave: Espacios Abandonados; Apropiación; Experiencia; Arte.

 

 

 

Espaços abandonados, novos (re)começos

Na paisagem das cidades, é constante a presença de terrenos vazios e subutilizados, construções inacabadas ou em ruínas, lugares esquecidos no tecido urbano. Os espaços abandonados surgem em um contexto de crise urbana, instabilidade econômica e/ou nas alterações de fluxos e ideais. Além de refletir a relação entre o ser humano e suas criações no tempo presente, exemplificam a forma como as relações socioeconômicas interferem diretamente na arquitetura e no ambiente construído (GHISLENI, 2017).

Ao (re)direcionar o olhar a esses espaços, é possível reavaliá-los como locais com potencial transformador, ao serem (re)utilizados e ressignificados, proporcionando assim diversas oportunidades. Através dessa abordagem, a reflexão sobre o uso e valor dos lugares subutilizados dentro da cidade estimula o pensamento crítico sobre como o espaço urbano é planejado e organizado. O que pode ser facilmente descartável e o que é valorizado.

Nesse contexto, pretende-se compreender e ampliar uma reflexão teórica sobre a temática através de exemplos de intervenções no espaço abandonado, que suscitam outros modos de habitar a cidade. Dessa forma, o desenvolvimento do artigo divide-se em três momentos principais: (i) No diálogo com autores relevantes, reflete-se sobre os espaços abandonados e as experiências e percepções que surgem do contato do indivíduo com a arquitetura, além de compreender a potência da arte e da educação no processo de ressignificação dos mesmos; (ii) Em seguida identifica-se tipos de intervenções e apropriações em espaços abandonados; (iii) Por fim, são apresentados dois casos de intervenções que partem de práticas não-hegemônicas, coletivas e/ou artísticas para reativar os espaços de forma orgânica: o Movimento Ocupe Estelita, e o Laboratório Efêmero de São Luiz.

O procedimento adotado foi o método de pesquisa bibliográfica. Esse tipo de pesquisa trouxe aporte teórico para o desenvolvimento do tema, a partir de contribuições científicas e múltiplos pontos de vista (GIL, 1991). Realizou-se uma busca relevante na literatura ao que diz respeito à temática apresentada, em trabalhos acadêmicos e intelectuais. Além disso, a análise de exemplos de apropriações que dialogam com a explanação realizada. Por fim, destaca-se o papel da arte e da cultura nos processos de ressignificação do espaço urbano, como promotoras de outros modos de habitar e refletir sobre a cidade.

 

Espaços esquecidos na cidade?

Vazios urbanos, espaços residuais, arquiteturas abandonadas, brownfields[4], frichesindustrielles ou terrain vague[5]. As expressões utilizadas para caracterizar e teorizar sobre os espaços urbanos abandonados ou subutilizados variam entre diversas traduções e aplicações. Entretanto, todos remetem a locais em desuso, que não estão sendo aproveitados ou utilizados. São prédios industriais, terrenos baldios, estações de trem abandonadas, entre outros. Inutilizados por diferentes motivos, como mudanças econômicas, degradação física ou planejamento urbano inadequado.

Os espaços abandonados surgem em um contexto de crise urbana, instabilidade econômica e/ou nas alterações de fluxos e ideais. Além de refletir a relação entre o ser humano e suas criações no tempo presente, exemplificam a forma como as relações socioeconômicas interferem diretamente na arquitetura e no ambiente construído (GHISLENI, 2017).

Dessa forma, os espaços abandonados, tratados neste artigo, dizem respeito às arquiteturas que restaram, presentes e visíveis na paisagem. Espaços que foram preteridos, deixados de lado por alguns, e muitas vezes reivindicados por outros (imagem 1).

Imagem 1 – Abandono Urbano.

Fonte: Acervo pessoal.

 

No meio urbano existem uma série desses espaços subutilizados que não exercem sua função social, e que transmitem sensações e provocam experiências que transitam entre a dor e a angústia por tudo que representam. Segundo Rocha (2010), "Arquiteturas do abandono compreendem desde edificações desabitadas, ruínas, restos de construção, até mesmo favelas, resíduos e sujeitos excluídos, são corpos e lugares considerados resíduos urbanos" (ROCHA, 2010, p.245). Essas estruturas negligenciadas são testemunhas da exclusão e desigualdade presente na cidade, vistas como rejeitos que perturbam a ordem e harmonia idealizada (Imagem 2).

Imagem 2– Antiga Estação Férrea Abandonada.

Fonte: Acervo pessoal.

 

Mesmo assim, diversas histórias e memórias ecoam silenciosamente nas paredes desgastadas e janelas quebradas da desarmonia construída. Para Paul Ricoeur (2002), a narrativa é uma forma fundamental de organização e interpretação da experiência humana, permitindo dar sentido aos eventos e situá-los em um contexto temporal. Dessa forma, a temporalidade pode ser encarada como uma dimensão intrínseca à própria narrativa. A esta elaboração teórica, o autor inclui a arquitetura como narrativa, que está para o espaço assim como um texto está para o tempo.

É possível compreender, assim, que cada espaço abandonado no tecido urbano, como uma narrativa, tem uma história própria e carrega vestígios do passado como um testemunho de um tempo que já passou. Logo, habitar a cidade também é conviver e interpretar tais vestígios que, no abandono, parecem conter uma temporalidade estagnada.

A cidade e seus elementos construídos devem ser encarados como elementos passíveis de mutabilidade e movimento. A arquitetura responde e reflete às necessidades e desejos dos indivíduos em cada época, não é para sempre uma materialidade estática. Mesmo após o abandono, um edifício pode ter seu significado reinterpretado e reabilitado em um novo contexto. Podem ser renovados, expandidos, transformados ou, até mesmo, demolidos e substituídos por novas estruturas.

Nesse contexto, é importante reconhecer o valor dos espaços esquecidos e negligenciados na cidade, como forma de preservar a memória e a diversidade cultural, além de promover um diálogo crítico sobre a história, o futuro e o habitar da cidade. É a partir de experimentações positivas e coletivas que os espaços vazios e abandonados podem ser resgatados e modificados.

O sujeito constrói sua realidade no encontro com o outro e com o mundo e tais encontros, como acontecimentos, podem qualificar experiências. A experiência envolve sensações, percepções e concepções que surgem diante do espaço, portanto, experiências positivas podem modificar a percepção do sujeito perante o espaço abandonado (TUAN, 1983; LARROSA, 2015).

A experiência implica movimento e interação com o espaço externo. Trata-se de uma ação na qual o indivíduo aprimora sua habilidade de aprender por meio de vivências pessoais. Consequentemente, a memória e a intuição desencadeiam e recriam impactos sensoriais, sentimentos, emoções, pensamentos e recordações (TUAN, 1983). Experienciar demanda um movimento de interrupção, um gesto que se torna quase inalcançável nos tempos atuais. Demanda tempo para refletir, parar para sentir, parar para ouvir e observar com mais calma e maior atenção (LARROSA, 2015).

Nessa perspectiva, quando o sujeito se expõe à experiência, deve estar aberto à transformação durante o encontro e a relação com aquilo que é experimentado. O conhecimento adquirido por meio da experiência é também singular e pessoal, já que é vivido de forma específica por cada indivíduo, sendo impossível reproduzi-lo ou transmiti-lo adiante. Dessa forma, a vida no contexto urbano, ampara uma variedade de experiências individuais, mas também as conecta em formas de experiência coletiva (LARROSA, 2015).

Uma vez que é a ação que dá sentido à materialidade, no espaço de experimentação, a arte e a coletividade surgem como instrumentos para a invenção e intervenção. Ativar um lugar é transformá-lo em um território vivenciado e socializado. As práticas artísticas e coletivas cotidianas podem alterar a percepção e devolver a funcionalidade de espaços ociosos propondo outros sentidos e modos de habitar. Dessa forma, existem alternativas no conjunto de ações humanas artísticas e coletivas, iniciativas que ecoam e fazem vibrar de outro modo o solo urbano, capaz de reivindicar, transformar e se apropriar do espaço abandonado.

Para Pallasmaa (2017), habitar e experienciar uma arquitetura ou o espaço urbano vai além de simplesmente ocupar um elemento físico: trata-se de uma experiência multissensorial e emocional. Na qual os sentidos, o corpo e a memória estão diretamente envolvidos. Muitas vezes, os abandonos estão tão distantes de quem os encontra que não é possível sentir, ouvir, tocar ou se relacionar com o lugar (Imagem 3). Nesse contexto, as diferentes apropriações e intervenções podem auxiliar na reestabilização de uma conexão desses lugares com a sociedade.

 

Imagem 3 – Arquiteturas inacessíveis.

Fonte: Acervo pessoal.

 

A aproximação humana com o objeto abandonado surge com diversos desafios, que passam por questões como propriedade privada, segurança, legalidade, etc. Entretanto, no encontro imprevisível com o desconhecido e na busca de formas não-hegemônicas de reivindicar um território, o espaço pode se tornar o lugar do possível, de experiências positivas e únicas. Repensar e preservar uma arquitetura significa também valorizar e revisitar o passado e a história de uma comunidade.

 

Intervenções e apropriações realizadas em espaços abandonados

O território abandonado carrega o incômodo causado pela decadência da edificação, resultando na preferência por sua destruição, uma vez que a civilização não suporta assistir seu envelhecimento (ROCHA, 2010). Entretanto, em alguns casos, o espaço resiste à demolição, podendo ser apropriado de forma espontânea ou planejada.

As intervenções e apropriações no espaço urbano representam modificações sobre a cidade tradicional e sobre uma realidade presente. Segundo Ghisleni (2017) essas ações “são motivadas pela própria abstenção da sociedade diante dos escombros que os deixa abertos a uma livre apropriação” (GHISLENI, 2017, pg. 33). Para a autora, as intervenções surgem com o desejo de reavaliar a presente proposta de planejamento e revelar seus fracassos, a partir da idealização de um novo propósito para um território renunciado e subjugado.

Os diferentes tipos de intervenções emergem da tentativa de ressignificar e rever o abandono a partir de outros enfoques e outras perspectivas, transformando-o para atender as necessidades do tempo presente. As potencialidades dos abandonos surgem do conflito inerente, da ambiguidade de significados e símbolos que ele carrega, transcendendo as noções de útil e inútil.

Durante a investigação exposta nesse artigo, primeiro, as intervenções nos espaços abandonados foram identificadas no Quadro 1 como permanentes ou efêmeras.

Quadro 1 -Tipos de intervenções no espaço abandonado.

Intervenções Permanentes

São intervenções que têm como objetivo criar mudanças duradouras e de longo prazo em áreas urbanas. São concebidas para se tornarem parte permanente do ambiente urbano.

Intervenções Efêmeras

São ações temporárias e de curta duração. Geralmente são realizadas por artistas, designers, arquitetos ou grupos comunitários, como uma forma de transformar e revitalizar espaços urbanos. São estruturas facilmente mutáveis, flexíveis, reversíveis e muitas vezes imprevisíveis.

 

As intervenções e apropriações permanentes abrangem uma série de projetos e iniciativas, como a construção de edifícios, praças, parques, infraestruturas, etc. São construções que geralmente exigem planejamento e investimentos significativos. Nos espaços abandonados e em construções pré-existentes, como antigas fábricas, indústrias desativadas ou em locais onde o uso anterior já não atende mais às necessidades urbanas atuais, o espaço ganha novas formas para atender uma variedade de necessidades.

Edifícios considerados icônicos para a arquitetura nacional foram frutos de intervenções construídas em espaços abandonados. O Sesc Pompeia (Imagem 4), em São Paulo, foi projetado pela arquiteta Lina Bo Bardi, que transformou uma antiga fábrica abandonada em um centro cultural multifuncional, utilizando e readaptando os edifícios pré-existentes.

 

Imagem 4 – Sesc Pompéia.

Fonte: Pedro Kok, 2013; Romullo Fontenelle, 2022.

 

Outro exemplo é o Parque da Juventude (Imagem 5), também na cidade de São Paulo, projetado pela arquiteta e urbanista Rosa Kliass. Consistiu na reurbanização da área do antigo Complexo Penitenciário do Carandiru, local onde ocorreu o Massacre do Carandiru. O projeto é dividido em três setores; Parque Esportivo, Parque Central e Parque Institucional (BIANCHINI, 2018).

 

Imagem 5Parque da Juventude.

Fonte: Katarina Holanda; Matheus Pereira.

 

Já as intervenções efêmeras ou temporárias podem ter objetivos distintos: como chamar a atenção para questões sociais ou ambientais, promover o diálogo e a interação entre os habitantes de uma cidade, questionar a forma como se utiliza e vivencia o espaço urbano, ou simplesmente alterar de alguma maneira o cotidiano de um espaço. Podem existir na forma de instalações artísticas, performances, exposições temporárias, projeções de vídeo, festivais culturais, entre outras. Elas são caracterizadas pela sua natureza transitória, pois são projetadas para existir por um período limitado de tempo, geralmente variando de alguns dias a algumas semanas.

As intervenções efêmeras podem ser instrumentos criativos para práticas educacionais e culturais na cidade. Muitas vezes demandam poucos recursos e podem ser realizadas de forma espontânea e coletiva. Como a ação que ocorreu no Edifício Cauduro, na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. 

O Edifício Cauduro, antigo Hotel Jantzen, foi construído entre 1939 e 1941, com características ArtDecó, é um dos edifícios mais icônicos da cidade, por sua importância histórica e patrimonial. Desde 1993, após o encerramento das atividades do hotel, o prédio é ocupado apenas no térreo por salas comerciais (LEÃES, 2020). O restante do edifício permaneceu abandonado e sem utilização, até início de 2020, quando os proprietários iniciaram um processo para reformá-lo.

Durante o período em que permaneceu em desuso, o antigo hotel permaneceu vivo na memória dos santamarienses. São histórias, lembranças e momentos que remontam uma outra época. Diante do sentimento de insatisfação e também curiosidade que o edifício provocava nos cidadãos da cidade, em agosto de 2015 foi realizada uma ação efêmera, intitulada “Lugares do Abandono”, coordenada pelo Projeto de Extensão “Caminhadas Urbanas”, do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Maria (ALCÂNTARA et al., 2019). 

As intervenções foram organizadas em 3 cenas, de acordo com as questões que os idealizadores pretendiam provocar. A primeira cena foi chamada de “Visão, Audição e Aproximação”, e permitiu que os participantes pudessem experimentar o espaço, observando e sentindo as sensações causadas pelo aspecto físico de degradação. Na segunda cena “Evocação e Imaginação”, algumas intervenções artísticas foram realizadas. Imagens foram projetadas nas paredes internas, e ocorreram apresentações teatrais ao longo dos corredores. Na terceira cena “Reflexão e Discussão”, os participantes foram convidados a discutir em rodas de conversa e interagir. Cartazes e canetas foram espalhados pelo chão, permitindo que todos pudessem expressar as suas impressões durante o passeio (ALCÂNTARA et al., 2019).

Dessa forma, a intervenção efêmera e artística no Edifício Cauduro promoveu uma nova ocupação do espaço abandonado e, por alguns momentos, preencheu os corredores, com novas vidas e vozes, criando outras experiências positivas diante do abandono.

Tanto as intervenções efêmeras quanto às intervenções permanentes desempenham papéis significativos na transformação e no enriquecimento dos espaços abandonados, cada uma com suas características e propósitos distintos. Planejadas ou não, dão vida e imaginação ao lugar.

Nesse cenário, o ser humano, ou a própria natureza, pode adaptar e se apropriar do espaço de diversas formas e com objetivos distintos. Na busca de trabalhos, teses e dissertações que dialogassem sobre a temática, a partir de diferentes perspectivas, identificou-se quatro formas principais de apropriação, apresentadas no Quadro 2.

 

Quadro 2 -Tipos de apropriações no espaço abandonado.

Apropriação natural:

Apropriação insurgente:

É a ação do tempo sobre o espaço abandonado, quando a arquitetura perde sua funcionalidade e é submetida aos processos naturais e entrópicos de degradação (ROCHA,2014).

São reivindicações realizadas no espaço abandonado, práticas consideradas insurgentes e subversivas, como pichação ou grafite, ocupação para moradia e abrigo, ocupação para prática ilegal (ROCHA, 2010).

Imagem 6: Exemplo de apropriação natural.

Imagem 7: Ocupação Manoel Aleixo.

Fonte: Acervo pessoal;

Fonte: Jorge Ferreira

Apropriação artística:

Apropriação construída:

Ocupação artística e organizada sobre o espaço, efêmera, móvel e mutável. Representam intervenções experimentais no espaço. Eventos culturais, circuitos independentes, eventos diversos ou ocupações culturais organizadas por coletivos de artistas. (GHISLENI, 2017).

Recuperação do espaço abandonado a partir de nova construção, reintroduzindo a ordem no funcionamento do edifício readequando-o às necessidades e valores atuais. São projetos de restauração, refuncionalização, reabilitação, revitalização, requalificação, retrofit (IAOCHITE, 2005).

Imagem 8: Ocupação Ouvidor 63.

Imagem 9: Parque das Ruínas.

Fonte:acaoeducativa.org.br.

Fonte:Bruno Oliveira.

 

Na dissertação intitulada “Arquitectura entrópica, entre a matéria e o tempo”, Rocha (2014), apresenta uma reflexão sobre o processo transformador da arquitetura com o passar do tempo. Ao ser abandonado, o espaço arquitetônico passa por várias fases entrópicas de degradação, consequência do descaso e falta de manutenção dos responsáveis. Dessa forma, a vegetação se apropria da construção abandonada, o meio externo funde-se ao ambiente interno, expondo a estrutura rígida e imutável à vulnerabilidade diante dos processos do tempo. A natureza toma a frente diante do descaso humano (ROCHA, 2014).

As apropriações representam modificações sobre a cidade tradicional e sobre uma realidade presente. Segundo Ghisleni (2017) “as apropriações do abandono são motivadas pela própria abstenção da sociedade diante dos escombros que os deixa abertos a uma livre apropriação” (GHISLENI, 2017, pg. 33). Para a autora, as intervenções surgem com o desejo de reavaliar a presente proposta de planejamento e revelar seus fracassos, a partir da idealização de um novo propósito para um território renunciado e subjugado. Os diferentes tipos de intervenções emergem da tentativa de ressignificar e rever o abandono a partir de outros enfoques e outras perspectivas

O abandono também pode ser abrigo e refúgio dos abandonados, pessoas sem moradia, artistas de rua, pichadores e outros indivíduos considerados marginais diante da sociedade. A atividade ilícita, à deriva da ordem social estabelecida, como a venda e consumo de drogas, uso para esconderijo de objetos furtados e outras atividades que fogem da conduta usual, alimenta uma imagem negativa constantemente associada ao medo e ao perigo (ROCHA, 2010).

Por outro lado, a falta de barreiras na divisão entre público e privado, fechado e aberto, incita uma apropriação que parte de diversos grupos, a partir de uma tentativa de retomar e reivindicar espaço na cidade. As ocupações artísticas subversivas, pichações ou grafites, surgem de uma tentativa de resistência e acolhimento diante do esquecimento (GHISLENI, 2017). 

As transformações por ação cultural ou construída, representam as ações humanas que procuram intervir a partir de uma necessidade ou expectativa de traçar uma nova ordem, um novo ponto de vista sobre o território abandonado. As intervenções artísticas sobre a construção abandonada normalmente surgem da inquietação do artista ou coletivo, a necessidade de dar novos significados, usos e causar outras sensações. Parte principalmente da necessidade de se apropriar do espaço, devolvê-lo ao tecido urbano, à comunidade e à coletividade. A atuação dos coletivos parte de experiências positivas na interação com a comunidade e da participação popular, cultivando cultura e educação urbana (GHISLENI, 2017).

As arquiteturas abandonadas podem passar também por processos de restauração, refuncionalização, reabilitação, revitalização, requalificação, retrofit, ou seja, um conjunto de intervenções com o objetivo de restituir a integridade física ou readequar um edifício a um novo uso. Esse tipo de intervenção construída visa devolver ao espaço sua integridade física, cultural e social (IAOCHITE, 2005). Entretanto, existe uma preocupação diante das intervenções construídas em pré-existências, uma vez que, segundo Santos (1986), a renovação urbana só é aceitável se for realizada em ritmo gradual, respeitando a interação entre espaço/população/atividades compatíveis. 

Independente da finalidade, escala ou motivação, existem vantagens e desafios nas apropriações e intervenções em espaços abandonados. As apropriações artísticas e insurgentes, na maioria das vezes, procuram ocupar os espaços de forma criativa e coletiva, ressignificando o território e promovendo outras maneiras de habitar a cidade.

 

Ressignificando espaços: o caso do Movimento Ocupe Estelita e o Laboratório Efêmero de São Luís

As possibilidades de intervenções e ações positivas realizadas diante dos espaços abandonados são várias e devem ser realizadas de acordo com as especificidades de cada local para que tenham condições de uso novamente. Foram coletados alguns exemplos de projetos e apropriações de arquiteturas abandonadas em diferentes escalas de apropriação, que serão apresentadas com maior profundidade a seguir.

As iniciativas, apresentadas a seguir, utilizam a arte e a cultura como elementos centrais nas discussões e reflexões sobre as arquiteturas abandonadas. O primeiro exemplo, o Movimento Ocupe Estelita, é uma intervenção considerada insurgente por seu caráter de ocupação e protesto. Representa as disputas e reivindicações que ocorrem no tecido urbano, como também demonstra a luta pelo direito à cidade, inerente à dinâmica do espaço abandonado. O segundo exemplo é o Laboratório Efêmero de São Luís, uma intervenção artística e efêmera, que integrou a comunidade local, artistas, poder público e interessados em refletir sobre espaços subutilizados do Centro Histórico.

 

Movimento Ocupe Estelita

A área onde está posicionado o Cais José Estelita, na Região Central de Recife (PE), onde estão presentes os antigos galpões do Cais, configura-se como um fricheindustrielle, por tratar-se de um conjunto de construções portuárias (Imagem 10). O terreno apresenta uma área total de 10,1 hectares que fora comprada por empreiteiras para construção de um condomínio empresarial-residencial-comercial.

O Movimento Ocupe Estelita (Imagem 11) é uma ação popular iniciada no ano de 2012, contrária à construção do empreendimento privado que prevê a concepção de 12 torres no terreno do antigo Cais José Estelita. O projeto causou intensa movimentação contrária por parte de arquitetos, urbanistas, e população local. Os manifestantes permaneceram acampados cerca de 50 dias no terreno ou nas imediações (CARDOSO; NASCIMENTO, 2018; GOMES, et. al., 2015). Entretanto, após anos de disputas, parte do conjunto dos armazéns foi demolida e a construção das torres já está em andamento.

 

Imagem 10 – Cais José Estelita.

Imagem 11 – Movimento Ocupa Estelita.

Fonte: Eulália Giles, 2019

Fonte: Luna Markman/ G1, 2015.

 

O Movimento, se configura como uma ação efêmera, insurgente e artística, se coloca como criador de um sentimento de estreitamento e busca, por meio de sua comunicação.Como também pode ser visto como um proponente de uma cidade possível e mais democrática ao fomentar a participação popular sobre as decisões que envolvem espaços com importância histórica e que integram o imaginário do cidadão.

 

Laboratório Efêmero de São Luiz

Durante os dias 27 de agosto e 17 de setembro de 2018, aconteceu o Laboratório Urbano Efêmero de São Luís, nos Galpões do Complexo Santo Ângelo, localizados no Centro Histórico da cidade de São Luís, Maranhão.  O LabSLZ, como foi intitulado pelo coletivo autônomo TransLAB.URB, de Porto Alegre - RS, responsável por realizar a ação, teve o objetivo de promover e desenvolver o sentimento de pertencimento da comunidade local, permitindo a compreensão das aspirações e interesses coletivos diante do centro histórico da cidade. Dessa forma, durante 21 dias, os Galpões deixaram de ser inacessíveis para a maioria da população, para se transformarem em espaços de experimentação juntamente com os moradores do centro histórico (TRANSLAB.URB, 2018).

Vale ressaltar que, anteriormente à intervenção, os edifícios, não estavam totalmente abandonados, haviam alguns artistas e artesãos ocupando esses lugares e desenvolvendo atividades relacionadas com suas produções. Portanto, já exercendo intervenções artísticas e insurgentes nos edifícios, que pertencem à prefeitura, mas não estavam sendo utilizados para atividades institucionais (TRANSLAB.URB, 2018).

O propósito central da iniciativa, que teve apoio da prefeitura de São Luís e do Laboratório de Cidades, da Divisão de Habitação e Desenvolvimento Urbano do BID, for reavaliar o espaço com base na perspectiva da cidadania, onde a participação dos cidadãos foi fundamental para conceber e promover as dinâmicas participativas. Dessa forma, a comunidade pode se envolver nas decisões sobre a utilização e restauração dos edifícios (TRANSLAB.URB, 2018).

 

            Imagem 12 – Espaço vazio x espaço ocupado

Fonte: Martin Echenique.

 

Durante três semanas foram realizados momentos de discussão, atividades artísticas, mapeamentos coletivos, oficinas, conversas com movimentos sociais e urbanos, artistas, músicos, empreendedores e integração com universidades. De acordo com o Coletivo TransLAB.URB (2018), 2500 pessoas circularam pelo espaço e participaram das atividades do Laboratório, reaproximar a população do território dos Galpões, criando perspectivas possíveis para o futuro. Por fim, foram criadas diretrizes espaciais, que poderão ser adequadas e utilizadas para intervenções permanentes tanto no interior dos edifícios quanto no entorno (TRANSLAB.URB, 2018).

 

Considerações Finais

Apesar de constituírem territórios excluídos da dinâmica da cidade e inacessíveis para a maioria da população, os espaços abandonados fazem parte da paisagem urbana, como elementos distintos e singulares. Não obstante, as reflexões apresentadas ressaltam as fragilidades, mas também potencialidades diante do uso e apropriação do lugar subutilizado.

As arquiteturas abandonadas podem apresentar grande potencial de uso e apropriação, seja pela localização em áreas com infraestrutura bem consolidada, ou por apresentarem estruturas construídas que possibilitam a reutilização. São ambientes muitas vezes dotados de memórias, histórias e laços afetivos. Percebe-se então a importância da revalorização destas áreas abandonadas (IAOCHITE, 2005).

Ao adotar uma abordagem participativa, os projetos nos espaços abandonados envolvem a comunidade local na transformação desses ambientes, permitindo que os moradores se tornem agentes ativos na construção de novos sentidos e significados para esses espaços. A apropriação e as experiências positivas, possibilitam a criação de laços emocionais e identitários entre as pessoas e o local, fortalecendo os laços sociais e promovendo um senso de pertencimento.

As intervenções realizadas nos espaços expõem a necessidade humana de se apropriar dos territórios na cidade, habitando-a. Os exemplos apresentados demonstram a diversidade de possíveis ações que levam em consideração as necessidades da população, criando locais que impactam positivamente a região e o entorno em que estão inseridos. Por fim, destaca-se que as interpretações realizadas nesta pesquisa podem ser amplificadas em trabalhos futuros, abrangendo outras formas de caracterização e outros enfoques analíticos sobre os espaços abandonados.

 

REFERÊNCIAS

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BIANCHINI, Douglas Alves. Do Carandiru ao Parque da Juventude: reconstrução da paisagem urbana. Dissertação (Mestrado em arquitetura e urbanismo), Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2018.

CARDOSO, Marianna Lira; NASCIMENTO, Anamaria Melo do. Ocupar, Resistir: o movimento Ocupe Estelita na cidade do Recife. Revista Três [...] Pontos.  v. 15, n. 1, Belo Horizonte, 2018.

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IAOCHITE, Juliana Cristina. Apropriação e revalorização do espaço urbano: análise da ocorrência de brownfields no município de Americana – SP. Dissertação (mestrado), Universidade Estadual Paulista, Programa de Pós-Graduação em Geografia, Rio Claro, 2005.

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[1]Atualmente cursando mestrado no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura Urbanismo e Paisagismo da Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: milena.magoga@acad.ufsm.br

[2]Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria/UFSM (2021), Mestre em Arquitetura e Urbanismo (2006) pela Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC e Arquiteta e Urbanista pela UFSC (2003). E-mail: josicler.alberton@ufsm.br

[3]Doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (2017). Tem Mestrado em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (2011). Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (2007). E-mail: veronica.donoso@ufsm.br

[4]Brownfields são edifícios ou áreas industriais abandonadas,que apresentam desafios para o seu reuso sem intervenção devido à possível contaminação ambiental resultante de suas atividades anteriores(MARTINS, 2015).

[5]Frichesindustrielles" e "Terrain vague" são termos franceses. O primeiro refere-se a áreas ou instalações industriais abandonadas ou desativadas. Já "Terrain vague" foi um termo popularizado por Solà-Morales, que o utilizou para descrever áreas urbanas desocupadas e negligenciadas que não estão definidas por uma função ou uso específico(MENDONÇA, 2001; SOLÀ-MORALES, 2003).