Algumas banalidades pedestres: a figura do flâneur e a contemporaneidade

 

Some pedestrian banalities: the figure of the flaneur and contemporaneity

Algunas banalidades peatonales: la figura del flâneur y la época contemporánea

 

 

 

João Guilherme Sorpreso Barbieri[1]

Universidade Estadual de Londrina

Carla Juliana Galvão Alves[2]

Universidade Estadual de Londrina

 

 

Resumo

O presente artigo trata sobre uma forma de vista a respeito do espaço urbano, além das maneiras de ocupar a cidade e se relacionar com o tempo na contemporaneidade e parte do período entendido como moderno da história da arte. Nele ainda é apresentada uma pequena revisão histórica a respeito do flâneur, assim como também estabelece reflexões sobre a experiência e o cotidiano. Por fim, se analisa e relaciona os conceitos apresentados com duas produções cinematográficas brasileiras: Décimo Segundo Andar, 2016 e Viajo porque preciso, volto porque te amo, 2009. Como referencial teórico para a fundamentação do artigo, encontram-se os teóricos: Baudelaire (1988), Certeau (2012), Featherstone (2000) e Larrosa Bondía (2002).

Palavras-chave: Flâneur; Contemporaneidade; Cidade; Relações; Cinema brasileiro.

 

Abstract

This article deals with a way of looking at urban space, in addition to the ways of occupying the city and relating to time in contemporary times and part of the period understood as modern in art history. It also presents a small historical review about the flâneur, as well as establishing reflections on the experience and daily life. Finally, the concepts presented are analyzed and related to two Brazillian cinematographic Productions: Décimo Segundo Andar, 2016 and Viajo porque preciso, volto porque te amo, 2009. As a theoretical reference for the foundation of the article, there are theorists: Baudelaire (1988), Certeau (2012), Featherstone (2000) and Larrosa Bondía (2002).

Keywords: Flâneur; Contemporaneity; City; Relations; Brazilian cinema.

 

Resumen

Este artículo aborda una manera de mirar el espacio urbano, así como las formas de ocupar la ciudad y relacionarse con el tiempo en la época contemporánea y parte del período entendido como moderno en la historia del arte. También presenta una pequeña reseña histórica sobre el flâneur, además de establecer reflexiones sobre la experiencia y la vida cotidiana. Finalmente, se analizan los conceptos presentados y se relacionan con dos producciones cinematográficas brasileñas: Décimo Segundo Andar, 2016 y Viajo porque necesito, vuelvo porque te amo, 2009. Como referencia teórica para la base del artículo, se son los teóricos: Baudelaire (1988), Certeau (2012), Featherstone (2000) y Larrosa Bondía (2002).

Palabras clave: Flâneur; Contemporáneo; Ciudad; Relaciones; Cine brasileño.

 

 

 

Do moderno aos dias atuais

Os assuntos cotidianos chamam a atenção devido à repetição das ações justamente pela existência de uma certa banalidade em relação ao dia a dia. Dentre todas as banalidades, talvez, o caminhar tenha sido a mais comum. Conjugo o verbo passado uma vez que, a aceleração e as mudanças na esfera social deram espaço a novas formas de locomoção. Contudo, não é sobre a contemporaneidade que me proponho a falar neste primeiro momento. É necessário retornar à modernidade do século XIX e ir de encontro ao flâneur, conceito criado por Baudelaire, para então chegarmos à cidade de hoje e às novas formas de entendimento em relação a ela.

Uma das principais características apresentadas pelo poeta francês Baudelaire em relação ao flâneur, é a atitude observadora. A figura andarilha que se apresenta à cidade de maneira poética, calada e observante é nas palavras do poeta: “Homem do mundo, isto é, homem do mundo inteiro, homem que compreende o mundo e as razões misteriosas e legítimas de todos os seus costumes” (BAUDELAIRE, 1988, p. 167). A figura do flâneur está diretamente relacionada ao poeta boêmio, ao artista do século XIX, que faz parte de uma multidão e ainda assim caminha só, atrelado à curiosidade. Em O pintor da vida moderna (1863), Baudelaire relaciona a figura andarilha ao gênio e à criança através da capacidade de transitar entre sensibilidade e razão.

Falar sobre o flâneur é evidenciar uma figura solitária, em estado de espírito, que caminha em meio à multidão, uma vez que se localiza na cidade. Caminha sem pretensão, apenas atento ao que pode aparecer em seu trajeto, despreocupado com o tempo, receptivo às experiências que podem aparecer. Baudelaire diz que:

 

Para o perfeito Flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e, contudo, sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem não pode definir senão toscamente (BAUDELAIRE, 1988, p. 170).

 

A figura do flâneur, que a linguagem não daria conta de definir é vista por Walter Benjamin, ensaísta e crítico literário, como a figura de essência para o acontecimento urbano moderno. Ele é o detetive que de maneira amadora investiga a cidade. Benjamin diz que:

O flâneur encontra-se ainda no limiar tanto da grande cidade quanto da classe burguesa. Nenhuma delas ainda o subjugou. Em nenhuma delas sente-se em casa. Ele busca um asilo na multidão. [...]. A multidão é o véu através do qual a cidade familiar acena para o flâneur como fantasmagoria (BENJAMIN, 2009, p.47).

 

Percebo que as questões acerca do flâneur, descritas por Walter Benjamin, estão mais atreladas às questões do capital. A figura andarilha ocupa um lugar na cidade e vida moderna que ora está relacionado à negação do consumo, ora estimula-o. Para ele, a modernidade faz com que a intelectualidade do flâneur seja transformada em mercadoria. É inegável que se na modernidade tal caminho começava a ser traçado, na cidade de hoje, com a aceleração, a não ocupação dos espaços e a potencialização dos não-lugares, o tal caminho se potencializou. O autor apresenta o conceito de fantasmagoria, que designa uma espécie de aparição e presença física, mas que na verdade não existe e não passa de uma impressão, dessa forma entende que os acontecimentos no âmbito do andar na cidade se fundem entre realidade e percepção subjetiva que podem vir a se desdobrar em confabulações e pensamentos da ordem da criação imaginária de quem anda e observa o ambiente.

Entretanto, preciso dizer que o que me desperta mais a curiosidade é o indivíduo que caminha, independente de época, e contexto histórico. O sociólogo britânico Mike Featherstone, em um de seus textos, estuda a existência de um flâneur contemporâneo. Ele apresenta reflexões a respeito da existência e novas configurações da contemporaneidade, questionando se ainda seria possível a existência do flâneur. Se pensarmos na transição do moderno para o contemporâneo perceberemos que “[...] falar do flâneur, portanto, levanta uma série de questões sobre a natureza da vida pública contemporânea” (FEATHERSTONE, 2000, p. 190) que se modificou da vida moderna, se transformou mudando vários aspectos, inclusive a arte e a cidade.

Sem dúvidas, a velocidade é um dos aspectos que mais evidencia a transformação da época moderna para a cidade de hoje, com isso o ato de andar despreocupado e com o olhar atento para as coisas tem sido cada vez menos praticado. Mike Featherstone chega a dizer que “[...] o surgimento do automóvel e o estreitamento e desaparecimento de calçadas é visto como marco do fim do passeio despreocupado pela cidade” (FEATHERSTONE, 2000, p. 194).

Entretanto, pensando ainda nos andantes da cidade de hoje, podemos estabelecer uma importante relação com a figura andarilha e boemia definida por Baudelaire, o olhar. Não seria possível a existência de tal figura baseada apenas na capacidade de mobilidade. Mesmo longe de uma resposta concreta sobre a possibilidade de dizer que o flâneur existe ou não atualmente, faz-se necessário apontar as diferenças entre eles. Featherstone diz que:

 

Em contraste com a atitude do olhar cultivado e da desatenção que deixam as sensações flutuarem e se dissiparem diante dos olhos do flâneur urbano enquanto ele caminha pela rua, é a velocidade da capacidade de mudar de locais, a hipermobilidade que gera uma sobrecarga potencial de informação. (FEATHERSTONE, 2000, p. 203).

 

Ele ainda diz que:

Outro contraste encontra-se na escala e no âmbito do universo que o flâneur habita. De um lado, temos a finitude da cidade, com suas ruas e edifícios, não obstante a capacidade natural da cidade industrial de gerar sensações e experiências novas e a cidade da informação [...] A cidade industrial estava sempre expandindo seu traçado físico, com prédios sendo derrubados e reconstruídos. Era também uma cidade da informação, no sentido de que a paisagem urbana era continuamente inscrita e reinscrita com informações, com significados culturais nas fachadas estilizadas dos edifícios, anúncios, letreiros de neon, outdoors (FEATHERSTINE, 2000, p. 203-204).

 

Entendo a cidade industrial citada pelo autor mais próxima à cidade da informação, também apresentada por ele. Enquanto a primeira se industrializa, expande em termos arquitetônicos e geográficos se reconstrói fisicamente, modificando a paisagem, a segunda por sua vez, nos informa e atrai pela quantidade de coisas expostas em vitrines e pela maneira como tais coisas nos alcançam, contudo ambas as cidades estão em função de um determinado território geográfico, um limite municipal, sua invenção e reinvenção acontecem dentro da própria cidade. Mas Mike Featherstone nos apresenta ainda um terceiro conceito de cidade, que se distingue das demais por ser “infinitamente reconstruível” (FEATHERSTONE, 2000, p.204). A cidade de dados é aquela que está inteiramente ligada à tecnologia e ao excesso de informação, é a cidade do ciberespaço. Uma das principais características é a capacidade de transitar rapidamente entre web páginas e a forma veloz como novas páginas e sites surgem ao longo dos dias, a cidade da informação, mas ao invés das propagandas estarem nas vitrines, ruas e outdoors, estão nas telas, nas redes sociais, ao alcance da maioria da população a qualquer momento via internet. Para Featherstone:

 

Em determinado nível, a internet fornece uma cidade de dados, no sentido que quase podem evocar imagens e textos que possuem princípios de organização e modos de classificação, os quais apresentam alguma semelhança com a ordem e a desordem da cidade física (FEATHERSTONE, 2000, p. 204).

 

Dessa forma, é possível dizer que o fato de andar pela cidade, tanto na de hoje quanto na moderna, e até mesmo na cidade de dados, implica em novos modos de construção de subjetividade. Uma espécie de via de mão dupla, enquanto o que nos chama a atenção na cidade e na paisagem são ressignificados por nós, também ajudam a construir nossa visão de mundo e gostos. Para a professora e pesquisadora em artes visuais, Lilian Amaral:

 

Gozar da liberdade de circular pelas ruas é ocupar um espaço onde a condição é ver e ser visto para adquirir identidade. Para existir e ser reconhecido nesse espaço urbano é preciso estar nele ancorado. É necessário viver a vertigem do tempo/ espaço, do trânsito de veículos, indivíduos e inputs – como fragmentos de dança/ movimento numa coreografia insana, somente perceptível quando se é espectador. (AMARAL, 2007, p. 1432).

 

Contudo, se faz necessária a passagem pela experiência e pelo cotidiano. Instâncias entendidas como fundamentais para o processo de investigação, produção e entendimento da cidade de hoje.

 

A rua que se abre à experiência cotidiana

É na cidade que a vida acontece, na locomoção, no limiar entre pausa e movimento. É na rua que as possibilidades de encontro e desencontro acontecem. Para a geógrafa Ana Fani Alessandri Carlos a rua é o ambiente espacial que proporciona as relações sociais nos mais diversos momentos históricos. Pensar a rua, vai muito além de um ambiente de passagem, de uma possibilidade de ir e vir.  Ana Carlos dirá que:

 

Na rua encontra-se não só a vida, mas os fragmentos de vida, é o lugar onde o homem comum aparece ora como vítima, ora como figura intransigente e subversiva. No movimento da rua encontra-se o movimento do mundo [...](CARLOS, 2007, p. 51).

 

Falar da rua, da cidade, de espaço, é falar de possibilidades, de alteridade, ao andar pela rua é possível encontrar e esbarrar em diversas histórias, temporalidades e destinos, é estar inserido nas práticas cotidianas. Para Michel de Certeau, “as práticas cotidianas estão na dependência de um grande conjunto, difícil de delimitar e que, a título provisório, pode ser designado como o dos procedimentos” (CERTEAU, 2012, p. 103), ou seja, as práticas cotidianas estão diretamente ligadas ao modo de fazer, a maneira de agir e de realizar as atividades que se repetem ao longo dos dias. Ainda para Certeau, “[...] os caminhantes obedecem aos cheios e vazios de um “texto” urbano que escrevem sem poder lê- lo. Esses praticantes jogam com espaços que não veem” (CERTEAU, 2012, p. 159).

A rua nos dá pistas e evidencia uma série de coisas. Então, é mais do que necessário saber olhar, é preciso sentir as várias possibilidades com que a rua pode nos alcançar uma vez que a rua não é apenas um lugar de passagem, é um espaço que evidencia o cotidiano de nossas vidas e nos lança a possibilidades de encontros e até mesmo de desencontros. Mas voltemos a falar da experiência, modificada pela contemporaneidade. O professor de filosofia da educação, Jorge Larrosa Bondía diz que:

 

A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece (BONDÍA, 2002, p. 21).

 

Se a experiência é o que nos passa, fica evidente o caráter subjetivo para o acontecimento de tal experiência. O que pode vir a ser experiência para um, pode não se desdobrar de maneira semelhante para o outro. Contudo, vivemos na época da informação e esse é um dos pontos pelos quais Larrosa dirá que a experiência é cada vez mais rara. Nas palavras do autor: “[...] a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da experiência [...] a informação não faz outra coisa que cancelar nossas possibilidades de experiência” (LARROSA, 2002, p. 21-22). Para ele, a primeira coisa que precisamos fazer na tentativa mínima de voltarmos a ter experiências consideráveis é separá-las das informações. Outro ponto defendido por Larrosa como motivo para a perda da experiência é a falta de tempo. “Tudo o que se passa, passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa” (LARROSA, 2002, p. 23). É nessa pressa que se encontra nosso cotidiano, nossas ações e forma de ver o mundo, a velocidade tomou conta de nossas vidas. Para Larrosa:

 

A velocidade com que nos são dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade, pelo novo, que caracteriza o mundo moderno, impedem a conexão significativa entre acontecimentos. Impedem também a memória, já que cada acontecimento é imediatamente substituído por outro que igualmente nos excita por um momento, mas sem deixar qualquer vestígio (BONDÍA, 2002, p. 23).

 

Ainda sobre a experiência, Larrosa elenca mais dois pontos que ajudam a potencializar sua perda: o excesso de opinião e de trabalho. O primeiro está diretamente relacionado ao fato do excesso de informação que nos atinge, e à necessidade de opinar de maneira incontrolável sobre qualquer coisa que esteja à nossa volta e que julgamos entender do assunto. Já o excesso de trabalho por sua vez é entendido e confundido com a experiência em si, uma vez que se tem muito vigente a ideia de que a experiência vem de uma prática do fazer físico, de produção, do trabalho braçal. É no todo da cidade do hoje, que nossas experiências ora se potencializam, ora perdem-se, ora encontram-se mais próximas ao flâneur moderno, ora se aproximam dessa nova maneira apressada de andar, ver e perceber.

A velocidade se instalou em nosso cotidiano e é justamente a vida cotidiana, compartilhada, que se faz responsável pela produção e reprodução do mundo urbano. “O mundo urbano pressupõe uma trajetória, ou seja, um caminho de realização, por isso está preenchido de processos históricos não lineares [...]”. (NÓBREGA, 2017, p. 27) ora individuais, ora coletivos, assim vamos tecendo a vida. Para o geógrafo e professor Pedro Ricardo da Cunha Nóbrega:

           

O cotidiano se apresenta como repetição, a burocratização da vida do homem comum, com ele emerge um roteiro, um programa que imobiliza e neutraliza a capacidade de reprodução como espontaneidade. [...]. O cotidiano surge como um projeto do tempo moderno e reflexo de um modo de vida urbano, reflexo de uma organização social imposta pelo espaço e pelo tempo do capital e só pode ser entendido na experiência vivida (NÓBREGA, 2017, p.31-32).

 

A vida e a cidade se misturam, se completam, e em alguns momentos se estranham. Penso a experiência e a cidade como irmãs do cotidiano, e percebo uma relação complexa e quase da ordem do problemático entre os três, que ora se transforma em uma relação de ajuda, construção, possibilidade e unidade. Encontro nas  palavras de Nóbrega uma definição precisa, que descreve e explica a relação acima evidenciada por mim, para ele:

 

O cotidiano guarda em si, contudo, a possibilidade de descobrir coisas, de desvendar ações, de registrar movimentos, trajetórias, tendências, fluxo, movimento; o cotidiano se equivale à sucessão de acontecimentos. O cotidiano, acontecimento em movimento, é resultado, em última instância, da banalidade e banalização da vida no urbano, materializada pelo ritmo da cidade; apresenta-se como uma imagem, uma representação da cidade (NÓBREGA, 2017, p. 32).

 

A vida cotidiana, na cidade de hoje, nos mostra indivíduos que perderam a capacidade de experienciar, “toda experiência é superficial e apressada” (NÓBREGA, 2017, p.32) e acontece sempre de maneira incompleta e pouco tocante. Ao pensar a respeito da vida cotidiana e do cotidiano que se apresenta como um conjunto de práticas banais, me recordo de dois filmes brasileiros, que de alguma maneira sintetizam de forma poética e sensível tais questões. São eles, o curta-metragem: Décimo Segundo Andar (2016)[3], e Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009)[4], que serão abordados na sequência do artigo.

 

 

O som do meu carro só toca músicas que me fazem pensar no horizonte

           

Ambas as produções cinematográficas analisadas se relacionam com o cotidiano e a experiência, ou com a ausência dela. Em Décimo Segundo Andar, temos a narrativa da história de um jovem, que representa o homem comum que ocupa o espaço da cidade, vivendo o cotidiano. A história se inicia com o jovem que acabou de se demitir do trabalho e sempre anda pelas ruas da cidade com um cigarro. As cenas que trazem cortes noturnos e diurnos focam na banalidade do dia a dia, na vida acontecendo. As personagens não são apresentadas nominalmente a nós, o que ajuda a manter um caráter de anonimato na história. Nas palavras da própria personagem:

Nesse meio tempo criei o hábito de andar pela cidade para me distrair. Sei lá, olhar ao meu redor. Não tinha nada de mais nisso, carros passavam toda a hora, pessoas andavam com pressa, algumas esperavam algum ônibus, algumas discutiam na rua, outras demonstravam afeto. A graça era esperar que algo de diferente e interessante acontecesse (ANDAR, 2016).

 

Um dia, em suas andanças pelas ruas da cidade, o personagem repara em uma moça que, do outro lado da rua, leva uma rotina muito parecida com a dele, também é observadora e fuma um cigarro enquanto espera seu ônibus.

 

 

 

 

 

 

 

 

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Imagem 1 – Frame do curta-metragem: Décimo Segundo Andar, 2016. Direção de Deivid Almeida.

Fonte: Imagem retirada do filme.

 

 

As andanças do personagem principal do curta continuam, agora, sempre à espera do encontro com a moça, ao longo dos dias. Eles sempre se encontram no mesmo lugar, um ponto de ônibus, cada um do seu lado da rua. Ela à espera do ônibus e ele fumando um cigarro observando a paisagem. Nem um deles se atreve à possibilidade de atravessar a rua para conversar e interagir. Nosso personagem andarilho cogita a ideia de um diálogo, se questiona a respeito de como será a visão dela sobre a cidade, mas joga com o acaso e a possibilidade de um outro momento.

A verdade é que o personagem anda pelas ruas de maneira despreocupada com o caminho, sem se preocupar com os riscos. Contudo, as preocupações da vida e de ordem subjetiva acompanham-no pelo percurso. O filme sintetiza a ação cotidiana descrita por Nóbrega, para quem a vida cotidiana não calcula os riscos nem teme as ações prováveis, mas tal questão se faz como característica padrão da época em que vivemos. Ainda para o geógrafo, “[...]as dimensões da vida cotidiana são múltiplas, a cidade e a vida se tornam caleidoscópicas, tudo se transforma tão rápido e tão constantemente que os referenciais são perdidos” (NÓBREGA, 2017, p. 43). É possível perceber tal confusão no início do filme, os motivos que levam o personagem para a rua, após pedir demissão do trabalho. Nossos personagens ocupam o lugar em que a vida cotidiana acontece, estão compartilhando um território de múltiplas realidades. Em uma de suas andanças noturnas para espairecer, desatento ao derredor, o personagem andarilho acaba esbarrando na moça que sempre está do outro lado da rua, se desculpam e  seguem seus caminhos sem se reconhecerem, mesmo após muitas trocas de olhares. Pouco depois estão frente a frente, no mesmo lugar de sempre, cada um de um lado da rua. Ele pensa em atravessar, mas como já era tarde decide ir para casa, renuncia à oportunidade da experiência e passa o restante da noite cogitando o que poderia ter acontecido a partir do possível encontro.

O filme conquista minha atenção justamente pelo fato de a cidade aparecer como palco da vida cotidiana. Pela forma como ambas as personagens não se arriscam e negam seu desejo enquanto a vida acontece. Os fragmentos da cidade, apresentados no curta, que alternam entre dia e noite, entregam a passagem do tempo e consequentemente, mesmo que de maneira lenta, a vida se encaminhando para o fim, tudo está passando e ao mesmo tempo permanece igual. Outro ponto chave do filme é a potencialidade do olhar, mesmo que desatento, mas que se apresenta curioso; é evidência e valida a existência de ambas personagens.

 

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Imagem 2 – Frame que representa os segundos anteriores ao esbarrão das personagens. Décimo Segundo Andar, 2016.

Fonte: Imagem retirada do filme.

 

 

O segundo filme que trago para este artigo chama-se Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009) e é construído de maneira que nos fazer adotar a mesma perspectiva de visão do personagem principal, José Renato. A produção inicia-se com a partida dele da cidade grande para estudar e fazer um levantamento das fontes de água no interior do sertão nordestino. Tudo ali, naquela viagem é novo para José Renato, em termos de espaço e território geográfico, mas durante todo o percurso da viagem ele não deixa de pensar em sua amada, chamada por ele de Galega. Com o passar dos dias a personagem central vai se entregando à melancolia e à solidão.

Ao longo do filme, vamos sendo apresentados à história de José Renato por ele próprio. Carregado de saudade de sua amada e acompanhado de músicas que dialogam diretamente com sua história, os dias parecem não passar e ele se revela deixado por sua amada. Em suas próprias palavras:

 

Com o passar dos dias, tudo vai ficando ainda mais difícil. Nada muda, as rochas perderam o sentido, as flores, que tu tanto ama, aparecem repentinamente à minha frente mesmo nesse deserto inóspito. Não há ninguém. O som do meu carro só toca músicas de amor, maravilhosas que me faz lembrar de quem eu menos deveria pensar. Não agüento nem ouvir os refrões porque a dor da distância de quem se ama é monstruosa. Não porque não te ame mais, pelo contrário. O meu ódio por mim mesmo por ainda amá-la, mesmo depois de ter sido acachapado sem esperar é mortal. Um pé na bunda é inesquecível, ainda mais quando sentimos que amor cresce quando o perdemos. Ou quando perdi o juízo por amar mais você do que a mim mesmo. Ai... é amor... é amor... Música desgraçada. Amor é o cacete. Mas agora a verdade é que Viajo Porque Preciso, Não Volto Porque Ainda te Amo, sua vaca (AMO, 2009).

 

 

Gustavo Vieira de Moraes, formado em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal de Goiás – UFG, diz que José Renato é a representação do homem comum, que

 

[...]se diferencia dos outros protagonistas de filmes nacionais por ser um personagem que não carrega o glamour dos mocinhos da telenovela e do cinema tradicional, também não é o herói que traz a salvação para uma comunidade, não passa por situações extraordinárias que só acontecem nas narrativas irreais que estamos acostumados[...] trata-se do retrato de um homem ordinário adjetivo tão maltratado na língua portuguesa e que carrega um sentido pejorativo, como se fosse vulgar ou grosseiro, quando na verdade não ultrapassa o valor do comum. (MORAES, 2013, p.4)

 

 

Zé sofre dos “problemas do coração”, saudade, incerteza. Em algum momento do filme, Zé diz que quer voltar, mas não tem para onde. O tempo tarda a passar e por vezes o barulho dos carros na estrada é seu único companheiro. Para Moraes:

 

Até mesmo o silêncio ganha importância na construção de “Viajo porque preciso, volto porque te amo”. Muitos dos planos que José Renato registra durante sua viagem são completados pelo silêncio da paisagem, quanto mais se escuta o som dos caminhões e dos carros que trafegam pelas rodovias que o protagonista cruza para avaliação da região (MORAES, 2013, p. 7).

 

Um ponto que chama bastante a atenção no filme são as imagens que o compõem, as paisagens e estradas, a ideia de não parar e busca de algum destino potencializam minha memória e meu interesse pelo andar, estar em movimento, acompanhadoda paisagem.

 

Imagem 3 – Frame de Viajo porque preciso, volto porque te amo, 2009.

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Fonte: Imagem retirada do filme.

 

As sequências fílmicas, de carater documental, se intercalam entre paisagens e relatos das personagens que nosso geólogo encontra durante a viagem. Para a doutora em literatura, roteirista e diretora Camila Gonzatto da Silva: “[...]as imagens e ideias do filme andam juntas, complementando [...] as sensações de solidão e melancolia do filme (SILVA, 2011, p. 63).

 

Imagem 4 – Frame de Viajo porque preciso, volto porque te amo, 2009.

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Fonte: Imagem retirada do filme.

 

José Renato é representado de maneira que parece que o mundo mora e cobe em seu peito, no lugar do coração. Narra sua viagem e trabalho como uma espécie de diário de viagem, está ao dispor da possibilidade, do que pode acontecer. A estética do filme é bastante cara, uma vez que me suscita memórias e afetos que reconheço em mim quando viajo. Mike Featherstone diz que “viajar é uma atividade que essencialmente moderniza a experiência [...] a viagem compartilha da flânerie[5] há muito tempo”.

 

Imagem 5 – Frame de Viajo porque preciso, volto porque te amo, 2009.

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Fonte: Imagem retirada do filme.

 

Penso em José e o personagem anônimo de Décimo Segundo Andar, como figuras contemporâneas que se aproximam do flâneur na medida em que se relacionam com a experiência e com o cotidiano. Ambos personagens são observadores – uma das caracteristicas principais do flâneur –, além de estarem desacompanhados em seus percursos. Se é na rua que encontramos fragmentos da vida, como diz Ana Carlos, nossos personagens estão no ambiente certo.

Se pensarmos que nossas práticas e atitudes criam e fazem uma espécie da manutenção do cotidiano poderemos notar que enquanto o homem comum, não identificado nominalmente, ocupa a rua como forma de distração em um cotidiano já existente, José Renato se lança à estrada por motivos de trabalho, quebrando com o cotidiano vivido. Em Décimo Segundo Andar as personagens são engolidas pelo cotidiano da cidade, podemos observar tal fato através dos recortes de caminhadas e esperas de ônibus, momentos em que nossos personagens se encontram, a caminhada faz parte do cotidiano da personagem. Já em Viajo porque preciso, volto porque te amo, a personagem principal tem uma perda de seu cotidiano, aquele vivido junto à sua galega. Passa a inventar um novo cotidiano à medida que rememora o anterior. Os encontros que acontecem ao longo da viagem colocam-no em contato com nossas possibilidades e situações, contudo, as memórias são sua principal companhia. 

Se pensarmos, agora, sobre a questão da experiência em relação às produções cinematográficas, podemos notar que no curta-metragem, a personagem central está o tempo todo à espera de algo novo, uma nova experiência, contudo não se arrisca. Já em Viajo porque preciso, volto porque te amo, José Renato vive novas experiências à medida em que vai encontrando novas pessoas e lugares que estão fora do habitual, mas que permeiam uma nova realidade geográfica e cotidiana. Nossa personagem está desacompanhada de grandes tecnologias e com uma grande demanda de tempo, pilares fundamentais para a existência da experiência, como vimos com Larrosa Bondía.  Dessa forma, podemos dizer que Décimo Segundo Andar está para o cotidiano, enquanto Viajo porque preciso, volto porque te amo, está para a experiência.   

Concluindo, podemos dizer, grosso modo, que estar no espaço físico e em movimento nos centros urbanos e ruas é uma forma de incentivo à pesquisa em artes visuais, se partirmos do ponto de que arte não é só o que acontece em museus e galerias. Outro ponto importante a se destacar é o cotidiano e as relações existentes na cidade e no movimento como parte do processo criativo na esfera das artes. Dessa forma, vão se amarrando os segmentos: arte, vida, cotidiano e experiência, possibilitando e incentivando uma forma mais ativa e artística de estar e ocupar o mundo, a cidade e a rua.

 

 

REFERÊNCIAS

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BAUDELAIRE, Charles. A modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

 

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.

 

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. Tradução: João Wanderley Geraldi. Rio de Janeiro, RJ, p. (20-28), janeiro, 2002. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZKcYVspCNspZVDxC/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 27 maio 2023.

 

CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/do mundo. São Paulo: FFLCH, 2007.

 

DÉCIMO segundo andar. Direção: Deivid Almeida. Produzido por: Deivid Almeida. Brasil: Dave Almeida, 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=J-XCK3uddDA>. Acesso em: 27 maio 2023.

 

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012.

 

FEATHERSTONE, Mike. O Flâneur, a cidade e a vida pública virtual. In: ARANTES, Antônio A. O espaço da diferença. Campinas, SP: Papirus, 2000. p. (186-207).

 

MORAES, Gustavo Vieira de. O homem comum em “viajo porque preciso, volto porque te amo”. Revista Anagrama: revista científica interdisciplinar da graduação. São Paulo, SP, p. (01-16), set-nov, 2013. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/anagrama/article/view/68191>. Acesso em: 28 maio 2023.

 

NÓBREGA, Pedro Ricardo da C. Leituras sobre o cotidiano, a cotidianidade e a centralidade do estudo da vida cotidiana na reprodução do urbano. Revista Rural & Urbano. Recife, v. 02, n.02, p. (26-46), 2017. Disponível em: <file:///C:/Users/sorpr/Downloads/241047-140525-1-PB.pdf>. Acesso em: 28 maio 2023.

 

SILVA, Camila Gonzatto da. Viajo porque preciso, volto porque te amo – entre a arte e o cinema, a opção pelo cinema. Sessões do Imaginário. Porto Alegre, RS, v. 01, n, 25, p. (60-65), 2011. Disponível em: <https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/%20famecos/article/view/9111>. Acesso em: 28 maio 2023.

 

VIAJO porque preciso, volto porque te amo. Direção: Marcelo Gomes e Karim Aïnou. Produzido por: João Vieira Jr. e Daniela Capelato. Brasil: Espaço Filmes, 2009.Disponível em: <https://www.netflix.com/br/title/81380260?trackId=13752289&trackIdTrailer=13752289&dpRightClick=1&trackIdEpisode=13752289&trackIdJaw=13752289>. Acesso em: 28 maio 2023.

 

 

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[1] Graduação em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Londrina. E-mail: sorpresobarbieriguilherme@gmail.com.

[2] Possui graduação em Licenciatura Em Educação Artística pela Universidade Estadual de Londrina (1991), mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (2005) e doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (2015). Atualmente é Professora Associada da Universidade Estadual de Londrina. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Formação de professores, atuando principalmente nos seguintes temas: História da Arte, ensino de artes visuais, formação de professores e pesquisa Educacional Baseada em Arte. Atua tambérm como avaliadora do INEP/MEC. E-mail: carlagalvao@uel.br.

[3]Filme dirigido por Deivid Almeida. Produzido por: Deivid Almeida. Brasil: Dave Almeida, 2016. Brasil

[4]Filme dirigido por Marcelo Gomes e Karim Aïnou. Produzido por: João Vieira Jr. E Daniela Capelato. Brasil: Espaço Filmes, 2009. Brasil

[5]Grosso modo: termo utilizado para designar passeio, andança.