Arte e literatura em deslocamento: espaços de diálogo e aprendizagens

 

Art and literature in dislocation: spaces for dialogue and learning

 

El arte y la literatura en movimento: espacios de diálogo y aprendizajes

 

Letícia Lazzari[1]

Universidade de Caxias do Sul (egressa)

 

Izandra Alves2

Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, Campus Feliz

 

Viviane Diehl3

Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, Campus Feliz

 

 

Resumo

Este artigo traz experiências educativas que deslocam a arte e a literatura para além dos muros da escola. Vivemos momentos em que estamos sobrecarregados pela falta de tempo e pelo excesso de informações. Nesse sentido, faz-se necessário ocupar os espaços urbanos com atividades que proporcionem pausas no cotidiano agitado, a fim de que se possa apreciar, desfrutar, sentir e refletir acerca do que nos circunda e de como as constantes modificações da paisagem interferem na vida de cada ser. Assim, ao percorrer ruas, praças, cafeterias e supermercado, proporcionamos aos transeuntes o encontro com poesias em árvores, livros entre frutas e legumes e outras manifestações artísticas que se abriram como possibilidades de transformar as paisagens, por vezes, monótonas, em espaços de aprendizagem, a partir do olhar atento de cada um. A teoria do espaço e da paisagem de Milton Santos em diálogo com os estudos acerca da experiência traça, então, o percurso textual e os resultados positivos de engajamento social que aqui apresentamos.

Palavras-chave: Literatura; Arte; Pausa; Espaço urbano; Aprendizagens.

 

 

Abstract

This article brings educational experiences that move art and literature beyond the school walls. We live in times when we are overwhelmed by lack of time and too much information. In this sense, it is necessary to occupy urban spaces with activities that provide breaks from the hectic daily life so that one can appreciate, enjoy, feel and reflect on what surrounds us and how the constant changes in the landscape interfere in each individual’s life. Thus, when walking through the streets, squares, cafes and a supermarket, we provided passers-by with poetry in trees, books among fruits and vegetables and other artistic manifestations that open up as possibilities to transform landscapes, sometimes monotonous, into learning spaces from the careful look of each person. The theory of space and landscape by Milton Santos in dialogue with studies about experience traces the textual path and the positive results of social engagement that we present here.

Keywords: Literature; Art; Break; Urban space; Learnings.

 

 

Resúmen

Este texto trae experiencias educativas que mueven el arte y la literatura para más allá de las murallas de la escuela. Vivimos en sobrecarga por falta de tiempo y por las muchas informaciones que acumulamos. Así, hace falta que ocupemos las calles con acciones que propongan pausas en el dia a dia de la gente para que puedan mirar, disfrutar, sentir y reflexionar sobre lo que se pasa al alrededor de si mismas y sobre los cambios que ocurren en el paisage y se interponen en nuestra vida. Al caminhar por las calles, plazas, cafés y tiendas, proponemos a los caminantes el encuentro con la poesia puesta en las árboles, con livros entre frutas y legumbres y otras manifestaciones artísticas que se abren como posibilidades de cambiar los paisajes que se hacen siempre las mismas, pero que pueden ser de aprendizajes desde la mirada del outro. La investigación sobre el espacio e el paisage de Milton Santos en diálogo con teorias de la experiencia define, entonces, el trayecto textual y los resultados positivos del compromisso social que aqui presentamos.

Palabras-clave: Literatura; Arte; Descanso; Espacio urbano; Aprendizajes.

 

Introdução

Colocar-se como Marco Polo, de Calvino (1990), sendo observador e desbravador, com o intuito de descrever o território das cidades como força potente e latente de arte e educação, quase sempre invisíveis aos olhos dos apressados que buscam a utilidade das coisas: este é nosso desafio. Educar para o detalhe, para o imperceptível e para aquilo que provoca e desestabiliza não tem sido nada fácil em um momento em que as pessoas se voltam para resultados imediatos; elas não têm tempo para a pausa nem para o necessário e urgente despertar para o ócio criativo (DE MASI, 2000), pois se veem imbuídas a produzir, a gerar números e cifras. Neste cenário, os educadores e demais envolvidos com atividades educativas se sentem desafiados a levantar um importante questionamento: que tempo cada um tem destinado à observação do que está a sua volta?

Sair dos limites espaciais da escola e explorar o território da rua, seja através de projetos de ensino, de pesquisa ou de extensão, deve ser um propósito educativo cada vez mais constante, principalmente, para instituições voltadas ao atendimento das necessidades locais, como é o caso dos institutos federais de educação. Trabalhar com o espaço da cidade é seguir um pouco os caminhos já trilhados por Calvino (1990) e alegorizar os sentimentos humanos, atribuindo um caráter filosófico ao narrado. É, também, valer-se dos preceitos de De Masi (2000) e difundir a ideia de usufruir ao máximo dos momentos em que seja possível libertar-se da ditadura do tempo e do relógio, com suas superficialidades, cobranças e pressões, e ocupar a mente com o vazio da experiência que a ociosidade criativa proporciona.

Destacamos que explorar o espaço onde estamos inseridos é dar a conhecer a nós mesmos; é permitir que surjam histórias, memórias e afetos que nos afetam, direta ou indiretamente pois, neste processo, é possível refletir o passado, o presente e projetar o futuro. Neste dar a conhecer, o que se extinguiu pode ser recuperado através das memórias daqueles que participam do processo, mesmo que, geograficamente, seja invisível.

A linguagem utilizada pela arte e pela literatura com o intuito de interferir no espaço da cidade vai muito além de, simplesmente, fazer-se ver. Percebemos um propósito inestimável para edificar a cidade e sua preservação, não em questões visíveis e palpáveis, mas no plano do invisível, do que não se pode ver, mas sentir e despertar. O ato de transformar em narrativas a interferência no espaço, sejam elas visuais ou não, verbais ou não verbais, aponta que o lugar possui presença humana, que há envolvimento, diálogo e, como consequência, interpretação proporcionada pela relação afetiva do ser humano com o espaço em que está inserido. As cidades são edificadas, formadas, arquitetadas por mulheres e homens, assim como a arte e a literatura também o são. O artista, o educador, o escritor, bem como o leitor são elementos importantes dessa produção da edificação; contudo, seus materiais são o imponderável, o indescritível, e englobam a palavra, o movimento, a música, a imagem etc.

Nesse sentido, este texto trabalha com a construção de narrativas a partir de movimentações e rastros deixados no espaço urbano da pequena e interiorana cidade de Feliz/RS a partir de ações de projetos de ensino, pesquisa e extensão do IFRS Campus Feliz[2]. A arte e a literatura traçam voltas no corpo da cidade, exploram seu território, abalam terrenos, trepidam construções sólidas, rabiscam imagens incontestáveis e atravessam terrenos escuros e sombrios em busca de respostas e de aberturas que garantirão o conhecimento do invisível da e na cidade, a partir do olhar de cada um.

 

Desenvolvimento

Educar para a transformação, para a independência e para autonomia requer do educador desvincular-se de métodos e regras pré-estabelecidos. Assim, cabe recuperar o conceito do termo ‘educação’: “conduzir para fora, fazer sair, intimar, produzir, exaltar, elevar, criar” (DICIONÁRIO ACADÊMICO, 2008, p. 154). Por conta dessa característica libertadora, a arte e a literatura reforçam seu propósito de estar ativamente em contato com ações que visem o despertar das possibilidades individuais dos estudantes em suas distintas formas de aprender. E esse processo dialoga com a abertura e a expansão do espaço geográfico e cultural da escola. Saltar os muros escolares é metaforizar a abertura para um espaço real, onde circulam os diferentes, sem regramentos e disciplinas; e onde se colocam em prática os conceitos teóricos e acadêmicos, por mais complexos que possam ser, mesmo para aqueles que foram/são impossibilitados de ocupar o espaço murado destinado aos saberes acadêmicos.

Ao encontro desse diálogo, Gert Biesta (2013) acrescenta, ainda, que a educação, em qualquer nível etário, é sempre caracterizada pela intervenção na vida de alguém, e que essa intromissão fará com que, de alguma maneira, essa vida seja melhor, mais completa e humana. Nesse sentido, intrometer-se no espaço urbano através de processos educativos que têm a arte e a literatura como condutores é, também, pensar nesse conceito; é esperar, é querer que o outro possa ser educado para a liberdade através da mediação e, com isso, promover alguma mudança em suas vidas, para além do individual, mas que afete toda a coletividade.

No que diz respeito ao campo da arte e da literatura, é preciso destacar, muito além do que se consolida pelo senso comum como artístico e literário – o belo, o harmonioso, o deleite, o prazer, etc. - deve-se pensar e fortalecer o que estes campos carregam e promovem de estranhamentos, provocações, desestabilizações e incertezas. Assim, enquanto professoras dessas áreas, sentimos o compromisso de provocar estudantes e comunidade a perceber que as formulações que surgem pelo contato com as obras literárias e artísticas, em geral, não são verdades absolutas, mas, sim, elaborações que permitem alargamentos para outras leituras, outras caminhadas e percursos.

É deste modo que arte e literatura, enquanto imprescindíveis caminhos para o processo de inserção do sujeito no mundo em que habita, ampliam seu horizonte de expectativas, seguindo os preceitos da estética da recepção a serem considerados ainda hoje por Wolfgang Iser (1979). Isso porque, ao contatar com obras artísticas e literárias e com elas estabelecer algum tipo de relação, seja estranhamento ou conexão, já se torna dispensável a presença do autor/artista em benefício do texto/produto, pois ocorre a comunicação estética – da mensagem da obra e do leitor/espectador enquanto decodificador intencional e privilegiado da mensagem. A ênfase dada a estas duas categorias do sistema literário/artístico representa uma assimetria, chamada por Iser (1979) de interação. É visando esse processo interacional que arte e literatura precisam habitar os espaços e as pessoas, entrelaçando vínculos para além do concreto, das grades e dos muros.

Também é necessário que se esclareça que toda produção feita pelo homem, seja ela uma edificação que forma a arquitetura da cidade, seja uma obra de arte, um livro, uma canção está inscrita na história e, portanto, constitui-se memória coletiva, capaz de interferir na vida de uma sociedade. Assim, dar abertura para que as histórias das comunidades venham à tona é resgatar identidades e possibilitar ressignificações.

Se o que nos move neste texto é habitar os caminhos da cidade pelo viés da arte e da literatura, cabe visitar a obra do geógrafo Milton Santos (2012), com o intuito de diferenciar ‘paisagem’ de ‘espaço’. A relevância consiste em esclarecer os conceitos porque, se habitamos o espaço urbano, vamos, de alguma forma, interferir nele. Diz o autor, então, que no que diz respeito ao termo ‘paisagem’, sua significação é ampla, leva em consideração as modificações históricas e situa-se no plano da abstração, ocupando, assim, parte do espaço. Ela exprime, ainda, heranças que representam as relações atemporais entre homem e natureza; é transtemporal no sentido de que une passado e presente em uma construção transversal. Já, o espaço, é sempre horizontal, situação única; refere-se ao geográfico e social, é o hoje; representa as diferentes formas que as paisagens ocupam.

Nesse sentido, Santos (2012) reforça que o espaço sem a ação humana seria paisagem, pois é o homem quem anima as formas espaciais, conferindo-lhes conteúdo. As intervenções artísticas, então, quando ocupam os espaços urbanos, contribuem para que leituras sejam feitas, para que recados sejam dados, para que conhecimentos sejam disseminados e discutidos, mas, principalmente, para que as provocações surjam e despertem nos sujeitos, nos habitantes, motivos outros para movimentar; para fazer acontecer a transformação na paisagem.

Da mesma forma que Santos (2012) vê o espaço vincular-se ao funcional, ao para quê, todas as ações e interferências artístico-literárias que realizamos nos espaços públicos da cidade são dotadas de intencionalidade, por isso, possuem estreita relação com a funcionalidade. Elas precisam ser, ao mesmo tempo, impactantes, marcantes e claras quanto aos seus objetivos. Embora essas ações se voltem para elementos técnicos são, na maioria das vezes, emotivas e simbólicas, pois estão relacionadas ao imponderável ligado à arte e à literatura. Assim, ao caminhar pela praça, o transeunte se depara com poemas que desafiam sua compreensão acerca do fragmentado e do não linear de seu mundo. Logo, o cidadão que adentra espaços públicos como um supermercado, por exemplo, e vê livros entre frutas, verduras e materiais de limpeza é tomado pela surpresa; isso o desestabiliza e faz pensar sobre se realmente existe lugar definido para as coisas, ou mesmo, como as coisas assumem outros lugares, no contexto das cidades, quando o olhar atento do caminhante performa descobertas.

Ocupar os espaços urbanos e interferir, para além da paisagem

 Os espaços urbanos estiveram, durante a pandemia do coronavírus, em muitos momentos, mais horizontais do que nunca, ou seja, não recebiam movimentações, intervenções humanas na constância em que ocorriam até então; era como se tivessem se transformado, rapidamente, em paisagens estáticas. Assim, logo que foram liberados para a circulação, tornou-se urgente habitar esses espaços com arte e literatura com o intuito de fazer movimentar e desestatizar o que precisava voltar a ser lugar de encontros e de provocações que desestabilizam e fazem crescer.

Uma das formas que escolhemos para fazer com que estudantes (ainda em aulas remotas) pudessem dialogar com a comunidade externa à instituição e fazer chegar até o maior número possível de pessoas a palavra em forma de arte que deveria ocupar as ruas da cidade foi gravar áudios com vozes de professores e estudantes lendo poesias. Assim, cards coloridos com o título da ação denominada “Poéticas de Primavera” continham QR Codes que direcionavam a áudios poéticos (Figura 1). Vários estabelecimentos comerciais e departamentos, públicos e privados, do Vale do Caí/RS foram acolhedores da atividade que, durante aproximadamente um mês, fez com que esses lugares fossem habitados por poesias lidas por diferentes vozes, que compuseram o repositório disponibilizado.

Figura 1 - Card da ação “Poéticas de Primavera” com QR Code.

Fonte: Arquivo das pesquisadoras.

Através de relatos dos que abrigaram os cards em seus estabelecimentos e também da contagem dos acessos via QR Codes, percebemos que a ação teve grande êxito. Através dela, melodias e ritmos foram espalhados pela cidade, pelas redes invisíveis que conectam pessoas a sentimentos, memórias e afetos. A primavera poética chegou levando cor, leveza, provocações e possibilidades àqueles que acessaram os códigos. A experiência com os textos verbais ou não verbais que habitam os espaços urbanos são maneiras de dar a perceber à comunidade que, como defende Petit, a “transmissão cultural é uma forma de tornar o mundo habitável” (PETIT, 2006, p. 1). Essa possibilidade em diferenciar-se que o espaço passa a ter, a partir do que define a autora, diz respeito a um lugar que aceite o diferente, que se abre a todas as manifestações culturais e, por isso, seria bom para habitar, para morar, para viver.

A interferência artístico-literária no espaço das cidades forma, primeiramente, uma narrativa visual que abraça e enreda edificações, plantas, águas, pássaros e pessoas. No entanto, a partir do contato com os sujeitos que habitam e transitam pelos lugares, essas narrativas transcendem o material e irracional do coletivo e invadem o individual, o campo das memórias e dos afetos. Essa invasão é ainda mais forte quando chega despretensiosamente, quando não tem objetivo de chegar e de tocar, mas atinge, faz pulsar e vibrar: é o caso da ação intitulada “Puxe-poesia” (Figura 2). Trata-se de envelopes com pequenos textos poéticos que foram pendurados em árvores da praça e do parque municipal da cidade de Feliz/RS, durante um final de semana, no verão ainda pandêmico de 2020.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura 2 - Registro da ação intitulada “Puxe-poesia”.

Fonte: Arquivo das pesquisadoras.

Caminhar pelo parque à tardinha ganhou outra significação naquele final de semana. As pessoas encontraram os envelopes e, ao puxarem a fita, viam o poema que saía de dentro e se apresentava como um presente em forma de palavras. Crianças, jovens e adultos curiosos e sedentos por encontrarem a sua poesia favorita, ou aquela que lhe diria algo que precisasse ouvir, puxavam os papéis, liam e, em muitas situações, levavam consigo os textos. Os envelopes depositados nas árvores, que foram o habitat dos textos poéticos naquele final de semana, deram forma ao espaço modificado pela ação humana (SANTOS, 2012) e este foi socialmente ampliado por conta do respaldo que é dado por essa contribuição de espalhar leitura por entre bancos, plantas, flores, brinquedos, quadras e lago.

Buscar parceiros que acreditem na potência da arte e da literatura e contribuir para que elas ocupem poeticamente todo e qualquer lugar em que possam caber é um dos propósitos dos projetos que levam, para além dos muros da escola, a provocação das palavras em forma de arte. Assim, durante a pandemia, em 2021, as cafeterias da cidade de Feliz/RS receberam textos poéticos escritos por estudantes do IFRS Campus Feliz, escritos em embalagens de porta-talheres que eram distribuídos aos clientes (Figura 3). Palavras ressignificadas pelos estudantes ganharam novas versões e sentidos e eram distribuídas em forma de afeto poético àqueles que buscavam um lanche ou uma forma de adoçar seu dia.

 

Figura 3 - Registro da ação nas cafeterias.

Fonte: Arquivo das pesquisadoras.

Os lugares enquanto parte e modificadores sociais do espaço urbano se permitem, também, acolher a arte. A experiência inusitada de unir doces, salgados, cafés, sucos e textos poéticos em um mesmo lugar marca um propósito que se afirma e reafirma como uma necessidade de continuação, pois

cada cliente que frequentou os locais que abrigaram a ação, naquele setembro de 2021, pôde contemplar a palavra cotidiana em sua dimensão poética ou, então, sentir-se provocado a também ressignificar termos corriqueiros de seu dia a dia e que podem, sim, ser pensados a partir das experiências vividas, que sempre nos convidam a nos formar e (de)formar, constantemente. (ALVES et.al., 2022, p. 23)

O sentido de colocar-se em evidência, na vitrine e em contato com o público transeunte e/ou ocupante dos espaços urbanos reforça o caráter plurissignificativo de ações como estas. As palavras e frases expostas em cada envelope vão além de representações de vivências: são “simbologias criadas para representar a si mesmos e seus mundos que não deixam de ser também os da coletividade” (ALVES et. al., 2022, p. 24). Isso porque os estudantes e o público em geral estiveram ativos no processo, lado a lado construindo o que virá a ser a paisagem formada das relações entrelaçadas dia a dia, através das experiências culturais.

Experiências significativas também se construíram quando os estudantes puderam observar as diferentes paisagens na expedição fotográfica ao parque urbano da cidade. O caminhar com olhar atento produziu relações atemporais com o cenário e com as diferentes formas que ocupam o espaço urbano. Os registros produzidos pelos estudantes compuseram um diário fotográfico da expedição, o qual movimentou a poética da criação e reverberou nas paisagens imaginadas a partir da exploração de ferramentas digitais (Figuras 4 e 5).

 

Figuras 4 e 5 – Registro da ação “Paisagens imaginadas”.

Fonte: Arquivo das pesquisadoras.

Assim, as ações extramuros da escola que se destinam à comunidade em geral, provocaram, ainda, o efeito surpresa no público frequentador do maior supermercado da cidade de Feliz/RS com a atividade proposta pelos projetos que coordenamos em parceria com a administração desse comércio local, em uma gelada manhã de sábado. “Você tem fome de quê?” foi o nome da ação que dispôs - em meio a frutas, verduras, grãos, bebidas e pães - aproximadamente 50 livros em prateleiras, esperando serem levados pelos leitores (Figuras 6 e 7). Cada livro possuía um bilhete explicativo sobre o projeto e sobre a devolução dos volumes, assim que o leitor terminasse a leitura.

 

Figura 6 - Registro da ação “Você tem fome de quê?”.

Fonte: Arquivo das pesquisadoras.

 

 

 

 

 

 

Figura 7 - Registro da ação “Você tem fome de quê?”.

Fonte: Arquivo das pesquisadoras.

Para nossa surpresa, em menos de dez horas, 85% dos livros tinham sido levados pelos consumidores do supermercado, o que mostra o sucesso da proposição. Ao longo das semanas seguintes, os volumes foram devolvidos e colocados em uma caixa que deixamos na entrada do supermercado para que fossem depositados. É por situações como esta que defendemos o propósito de que a palavra em forma de arte e as demais manifestações artísticas ocupem permanentemente os espaços urbanos. É preciso reforçar que qualquer lugar pode ser lugar para arte e literatura, e que elas podem servir como estratégia para que as pessoas possam valer-se da suspensão do tempo e do espaço, a fim de voltarem seus olhares sobre si mesmas: questionarem-se, revisitarem-se e, talvez, transformarem-se (LARROSA, 2003).

Essa experiência é apenas uma das muitas que as trocas entre os grupos humanos proporcionam e que contribuem para o processo de humanização, tão defendido por Antonio Candido (2011). Ao defender o direito à literatura como um bem incompressível, o autor diz que somos todos responsáveis por fazer da prática da leitura uma atividade de valorização da vida. Distribuir livros e leituras é uma das possibilidades, contudo, ela, por si só, não basta. As políticas públicas devem também voltar-se a essa valorização para que não sejamos pontos isolados em meio à multidão. Encontrar livros em meio a produtos alimentícios, de higiene e limpeza é inusitado, sim, mas é uma forma de chamarmos a atenção para frearmos a correria diária e nos atermos aos detalhes que instigam, desestabilizam, acalmam ou provocam, a fim de nos mover ou comover a mudanças de perspectivas.

O que cada ação realizada tem reforçado é que, da mesma forma que na escola, os espaços públicos deveriam ser tomados pela arte, seja ela da imagem, da performance, da palavra, pela delicadeza do verso, pela harmonia das rimas e/ou pela perspicácia de narradores inteligentes e envolventes. No entanto, se mesmo no espaço escolar está difícil para os mediadores encontrarem estratégias para colocar a arte e o texto literário no centro do debate, imagine-se em espaços não formais, onde o relógio gira cada vez mais rápido, e cada marcação representa dígitos e cifrões altos, que contribuem para que poucos ganhem e muitos percam. Diante deste cenário, então, cabe discutir estratégias de mediação de leitura e arte em espaços tanto escolares como não escolares, que saiam da trivialidade do trabalho com o texto e a imagem em seu caráter utilitário. Para tanto, ações extensionistas que coloquem a arte, os livros e o público em contato direto, viabilizando experiências significativas com imagens e textos, são muito importantes para a formação estética de uma comunidade.

Considerações finais

            Atividades de ensino e extensão são, sem dúvida, possibilidades de as instituições federais cumprirem com uma das suas funções sociais: atender às necessidades de suas comunidades. No caso das ações que aqui destacamos, mesmo que não sejam atividades voltadas a questões que atendam a imediatas primordialidades, são, a médio e longo prazos, o que farão a diferença na construção de espaços mais democráticos e de formação de cidadãos mais conscientes de sua importância na sociedade. Isso porque dar tempo à leitura e demais manifestações da arte em meio à correria do dia a dia, proporcionar encontros entre pessoas de gerações diferentes ou entre grupos que pertencem à mesma faixa etária, mas encontram-se em situações de vida muito distintas, contribui para desacelerar o pensamento, colocar-se no lugar do outro e vivenciar experiências que, talvez, possam (trans)formar cada um.

O que ações como estas nos ensinam é que a universidade/instituição pública de ensino precisa caminhar com seus estudantes e sua comunidade. Caminhar no sentido de explorar a cidade juntamente com sua população/seus habitantes, fazendo-lhes perguntas a fim de que cada um explore suas potencialidades ao máximo. É preciso que a instituição se disponha ao encontro com o seu meio, com a sua comunidade, em um tempo que extrapole o cronológico, o cronometrado, que vigia e tolhe as aprendizagens. O tempo que se demora é aquele que se abre a conversações, a observações, a trocas e a aprendizagens significativas. Estas ações que, inspiradas em Calvino (1990), se propõem a redescobrir as potencialidades dos lugares, precisam estar em consonância com os propósitos educativos que devem ver no mestre, aquele que, segundo Walter Omar Kohan (1998), sai do seu lugar e que leva consigo a academia para se expor, junto a seus estudantes, à arbitrariedade dos caminhos da cidade.

Arte e literatura propõem encontros pelos espaços da cidade porque acreditam na educação como provocadora de práticas de atenção para tornar o mundo verdadeiro ou real, para que o mundo fale às pessoas de outra forma. Acreditamos que atividades como estas possibilitam aos participantes estarem presentes no presente, em seu próprio tempo, através de exercícios que explorem o espaço e os percursos da cidade mediante linhas traçadas de modo arbitrário. Nesse sentido, cada um pode manter-se sempre atento, participativo, atuante e sujeito de suas vivências, conduzindo seus próprios trajetos.

Saltar muros da escola, estourar as bolhas da pseudointelectualidade e desbravar o espaço urbano como possibilidade de diálogos, trocas e experiências educativas fazem com que sejamos construtores de narrativas que nos colocam como sujeitos ativos. Seja através de caminhadas para olhar a cidade, de processos fotográficos, de áudios poéticos em meio à pandemia, de poemas que caem de árvores no meio do parque ou da praça, de microtextos em embalagens de talheres, ou, ainda, de livros em supermercados permitimos que os espaços da cidade deixem de ser invisíveis e que eles possam fazer parte da construção das narrativas poéticas que cada um pode tecer por meio dos encontros que ressignificam saberes e vidas.

A aproximação entre o espaço urbano e seus habitantes, mediada por distintos modos da arte, é a concretização do que acreditamos ser a construção bem edificada, que consolida a palavra, o movimento, o olhar, a presença etc. como elementos que compõem a engrenagem da vida. Por fim, cabe ainda destacar que a arte e a literatura trabalham com o imponderável e, dessa forma, os resultados, na grande maioria das vezes, não podem ser medidos por tabelas, gráficos ou números; mas sim, por olhares, palavras ditas ou sufocadas, por traços no papel, pela moldagem da argila, entre outras inutilidades, como diria Nuccio Ordine (2016). Ainda, o andar que olha, que observa, que se atenta ao detalhe colhe signos e significados que, guardados na memória, serão em algum momento usados, assim como fez Marco Polo ao apresentar ao grande imperador Kublai Khan o resultado de suas viagens. Este material que reunimos enquanto transeuntes, desbravadores ou viajantes do espaço urbano compõe a cidade da memória, dos sonhos, dos desejos que residem em cada um de nós e que passaremos adiante, para os futuros imperadores Kublai Khan que estarão dispostos a nos ouvir.

 

REFERÊNCIAS

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BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. São Paulo: Autêntica, 2013.

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

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LARROSA, Jorge. La experiencia de la lectura. México: FCE, 2003.

ORDINE. Nuccio. A utilidade do inútil: um manifesto. Tradução de Luiz Carlos Bombassaro. 1a ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

PETIT. Michèle. Un arte que se transmite. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo, RS, v. 2, n. 1, p. 99-116, jan./jun. 2006.

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica, Razão e Emoção. 4 Ed. São Paulo: Edusp (Editora da USP), 2012.

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[1] Mestra em Letras, Cultura e Regionalidade pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), atua como professora particular de inglês, revisora e tradutora de textos EN-PT. E-mail: letilazzari@gmail.com

2 Professora Doutora do Curso de Licenciatura em Letras Português e Inglês do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Campus Feliz. E-mail: izandra.alves@feliz.ifrs.edu.br

3 Doutora, educadorartista em Artes/Cerâmica nos cursos do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) - Campus Feliz. E-mail: viviane.diehl@feliz.ifrs.edu.br

[2] Projetos apoiados com fomento do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (PROEX e PROPPI) por meio dos editais do ano de 2022.