Derivas entre a ciência, a vida e a educação: modos de aprender em movimento

 

Drifts between science, life and education: ways of learning in motion

 

Tiago Amaral Sales [1]

Universidade Federal de Uberlândia

Fernanda Monteiro Rigue [2]

Universidade Federal de Uberlândia

 

Resumo

O presente ensaio visa evidenciar como a educação pode acontecer entre as ciências e a vida, em movimentos do corpo e do pensamento. Para tanto, por meio de tómo-vacúolos, emergem escritas fabulativas que se enredam entre as ciências da natureza, a vida e a educação. São tangenciadas sete escritas que se fizeram a partir de experiências ficcionadas, as quais maquinam o individual e o coletivo, o singular e o múltiplo. Emerge desse movimento a potência do exercício da escrita fabulativa na docência, assim como a urgência de inaugurarmos espaços de vida nas práticas formativas em educação em ciências da natureza.

Palavras-chave: Educação em movimento; Escritas fabulativas; Educação em Ciências; Escola; Universidade.

 

Abstract

This essay aims to show how education can happen between the sciences and life, in body and thought movements. To this, through tomo-vacuoles, fabled writings emerge that are entangled between the sciences of nature, life and education. Seven writings that were made from fictional experiences are touched on, which machine the individual and the collective, the singular and the multiple. From this movement emerges the power of the exercise of fabulative writing in teaching, as well as the urgency to inaugurate spaces of life in formative practices in education in natural sciences.

Keywords: Education in motion; Fabulous writings; Science Education; School; University.

 

 

Lampejos iniciais

O presente ensaio intenta dar vazão a tomos-vacúolos[3] de experiências-fabulações que engendram ciências da natureza, vida e educação enquanto palavras-máquina, mobilizando aprendizagens[4] possíveis a partir do deslocamento do corpo e do pensamento, em derivas intensivas. Por intermédio das afecções[5] que emergem da relação que estabelecemos com elas nas experiências mundanas, engendramos narrativas-alianças e, quem sabe, convites capazes de dizer, pensar e cocriar ciências, vida e educação pelas derivas por nós – educadores/educadoras e eternos aprendizes – traçadas.

Nesta aposta de pensar em aprendizagens afectivas que aconteçam em derivas, as misturas e metamorfoses (COCCIA, 2020) são propulsoras que congregam os nossos corpos. Como afirma Adriana Azevedo (2020), “Quando nos ocupamos do modo como um corpo se apresenta em sua capacidade singular de afetar e ser afetado, nos aproximamos desta multiplicidade de modos de existir que precisam ter suas histórias ouvidas e narradas” (p. 153). Em decorrência disso, percebemos que ciências da natureza, vida e educação são heterogeneidades que nos constituem, pelas múltiplas formas de habitação que elas nos permitem viver no/com/pelo mundo.

Por intermédio de contágios (DIAZ, 2020) incessantes, as ciências da natureza, a vida e a educação se entrelaçam em nossas práticas cotidianas – tanto por nossas formações acadêmicas, interesses de aprendizados e engajamentos de vida –, demandando de nós – educadores/as – composição, experimentação, estranhamento, relação, comunicabilidade e tensionamento. Seres-e-coisas-do-mundo pedem passagem e envolvem os nossos corpos multifacetados em todos os terrenos que perambulamos. Dentro e fora se misturam e emergem como possibilidades outras de viver, de caminhar, de sentir o mundo e de se constituir, como na produção artística caminhando, de Lygia Clark, narrada por Suely Rolnik (2018) em suas notas para uma vida não cafetinada. Somos arrebatados pelas revelações de aprendizados inesgotáveis, inescapáveis e imponderáveis da/com/em meio à vida.

Caminhar pelos diferentes espaços, sentindo as suas modulações. Perceber que eles não são todos iguais: variam em intensidades e composições. Ora lisos, ora estriados. Para Gilles Deleuze e Félix Guattari (2008) espaço liso e espaço estriado não provém de uma mesma natureza. Ambos são marcados por oposições e diferenciações, contudo, não se pode deixar de mencionar que ambos os espaços existem graças às misturas que engendram. Em educação, por exemplo, é recorrente a fruição de dinâmicas lisas e estriadas, tanto no que tange estratégias educacionais, quanto aprendizagens. Logo, espaços lisos e estriados são rachados por brechas, possíveis devaneios na criação de possibilidades.

Nos colocamos nesse fluido movimento pois confiamos nos processos que dispomos a tecer no mundo. Como escreve Lapoujade (2017), a confiança é vital, seu sentimento “[...] faz da experiência um campo de experimentação” (p. 87). Logo, “Confiar é antecipar e ter esperança” (LAPOUJADE, 2017, p. 86), o que permite com que arrisquemos à indeterminação.

Na condição de atentos[6], cuidadosos e lúcidos às surpresas que possam emergir ao habitar um mundo em ruínas (TSING, 2019), juntamente dos tomos-vacúolos aqui mobilizados, é que propomos entrelaçar narrativas que, como escreve Isabelle Stengers (2015), estão inspiradas no gosto pelo pensamento e pela experimentação. Pensar que:

Da perspectiva ética do exercício do pensamento a qual rege as ações do desejo no polo ativo, pensar consiste em “escutar” os afetos, efeitos que as forças da atmosfera ambiente produzem no corpo, as turbulências que nele provocam e a pulsação de mundos larvares que, gerados nessa fecundação, anunciam-se ao saber-do-vivo; “implicar-se” no movimento de desterritorialização que tais gérmens de mundo disparam; e, guiados por essa escuta e implicação, “criar” uma expressão para aquilo que pede passagem, de modo que ganhe um corpo concreto (ROLNIK, 2018, p. 91).

 

Com escritas fabulativas – que ganham um corpo concreto, misturamos o vivível com o ficcional, desejos com sonhos, vontades com medos, experiências do passado com perspectivas de futuros, habitando, assim, espaços do entre: colocamo-nos em movimentos de criar narrações singulares que arregimentam distintos corpos e existências, estando estas a serviço da afirmação da vida e ativação do viver. Envolver-se com o mundo, como afirma Ailton Krenak (2020), ao invés de desenvolver-se.

Ao percebermos que escrever é inseparável da criação, estabelecemos, portanto, uma ética do encontro (CORRÊA, 2014) pela singularidade e envolvimento das nossas experiências, por aquilo que nos passa (LARROSA, 2011). Cocriamos linhas que fabulam como elementos que unem arte e educação, vivência e ficção, materialidades, sonhos, desejos, em caminhos e deslocamentos do corpo e do pensamento.

Assim, comecemos com as paisagens possíveis de serem acessadas por intermédio dos tomo-vacúolos, escritos no singular-plural. Distribuídos na seção que segue, estão sete escritas fabulativas que emergiram de nossas vivências que, do singular e pessoal, extrapolam para o plural e coletivo, percebendo que, como defende Audre Lorde (2020), o pessoal é político. São narrativas que, em suas sutilezas, buscam evidenciar a dimensão do vivível na educação junto das ciências.

 

Narrativas em movimento

            Escrever para movimentarmo-nos. Agenciar linhas para, com elas, devir. Criar narrativas a partir das nossas experiências. Devir-com (HARAWAY, 2022) os tantos seres, tempos e espaços que percorremos e que se fazem junto de nossas presenças. Mapear os nossos territórios de vida, as nossas linhas traçadas no trabalho cotidiano de educar e, também, de aprender. Eis o ensejo deste texto que, sobretudo, materializa-se nos tomos-vacúolos que se seguem: criar escritas que incorporem fragmentos da vida na docência em ciências, da formação, da escola, da universidade, das telas, das lutas diárias, das burocracias sufocantes, e… e… e…

            Esperamos que tais narrativas fabulativas – portanto, ficcionadas – sejam mais do que a materialização de vivências transcriadas, mas também convites à deriva, agenciando movimentos e permitindo, quiçá, deslocamentos com o pensamento e a imaginação nas ciências da natureza.

 

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O que pode a escola?

Após madrugar e atravessar a cidade, chego às 6:45 horas da manhã na escola e, entre incontáveis burocracias e cansativas jornadas de trabalho, sou devorado por uma multidão de pequenos humanos que me abraçam e englobam com os seus desejos de comunicar entre si. Sabem eles/as, estudantes, que, naquele dia, terão aula de ciências da natureza – e, mesmo assim, fazem questão de perguntar que horas acontecerá o nosso encontro de classe. Apesar do clima estar ainda fresco e do sol se apresentar calmamente pelo céu, não será tão cedo para desembarcamos em um território de aula na educação básica?

Quem sabe, as minhas aulas poderiam começar às 13 horas com uma turma de ensino médio de física, química ou biologia, enquanto os/as adolescentes com os hormônios à flor da pele me interpelam com as suas questões que envolvem a vida, os desejos, as ânsias e as angústias dentro e fora da escola. Eles e elas muito esperam de mim e de nós, professores/as de ciências da natureza. Em diversos momentos percebo-me ignorado por aqueles/as estudantes em decorrência das avalanches de emoções e atravessamentos que compõem as suas existências. Nós, no ápice de nossos egocentrismos professorais, demandamos o máximo de atenção focalizada possível, até compreender que a escola é, apenas, parte da vida daqueles seres que a compartilham conosco.

Se chego às 19 horas naquele mesmo espaço escolar, os jovens e adultos (e idosos e…?) que me recebem querem tirar as suas dúvidas transgeracionais acerca da vida, do saber, do mundo, na vontade de tapar os – para eles – buracos do tempo advindos da ausência de oportunidades de habitar tal lugar quando eram mais novos. Às vezes, sinto-me responsável (até demais) por suas vidas. Em outros momentos, percebo que o que está ao meu – e nosso – alcance com a docência é possibilitar caminhos, estimular pensamentos, articular encontros – ações sutis, singulares, micropolíticas, mas que carregam potências de abrir caminhos, de criar vidas, de forjar novos mundos.

            São muitos os trajetos possíveis de serem forjados e fechados pela educação escolar. Ao sair da escola – seja dia ou seja noite –, me deparo com um mundo lá fora. Ele é caótico, complexo, desigual – assim como o lá dentro (Da escola? De nós?). Dentro e fora se borram, e os chãos educacionais mostram-se, paradoxalmente, como espaços de possíveis reflexões (acerca) da sociedade, de conexão e de sonho de criação de outros mundos possíveis.

Eu, como professor/a, me percebo lá inserido/a, sentindo a amplitude do que se espera de mim. Sei que isto se reverbera em todos/as nós que imergimos na profissão magistral. Sabemos que o nosso trabalho, além de planejar aulas por meio de um arcabouço epistemológico-pedagógico-científico e da materialidade de nossas experiências, envolve pensar, divulgar, comunicar, transpor e mobilizar as ciências da natureza. E isto não é nada fácil, já constatamos.

Educar em ciências demanda dispor de um corpo fortemente desejante pela atenção ao/com o mundo que o circunda, às diferentes possibilidades de escrutiná-lo e de criá-lo, aos meios que imbricam-se na aventura de pesquisar e de produzir conhecimentos. Para tal propósito, é necessário habitar certa porosidade ao novo e forragear incessantemente o território que, apesar de tanta disputa, insiste em ser abrigo: a escola.

 

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Encontros na universidade

Da escola, migramos – ou caímos? –, com sorte – e certos privilégios –, nas universidades, em outras salas de aula. Depois de sobreviver a processos seletivos – e a toda a carga histórico-social-emotiva a eles envolvida – que tentam guiar toda uma longa escolarização básica, chegamos lá, nessas salas com professores e professoras teoricamente já iniciados/as em aprofundamentos conceituais dos campos que estudaremos em nossa formação profissional.

Começamos, assim, a forjar um território com as salas de aula acadêmicas. Elas também são nossas: espaços em que ensinamos e também aprendemos. Formamos e somos formados a partir do entrelaçar de práticas pedagógicas, teorias educacionais e saberes específicos das ciências da natureza que residem nos cursos de licenciatura, territórios intitulados como de construção da trajetória formativa de professores e professoras. Laboratórios de ensino e de pesquisa compartilham espaço com telas sem fim, provas, seminários, eventos, entre outros. É, enfim, um universo de possibilidades. E nos resta desbravá-lo.

 

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Professor/a (quase) em fuga

            Acordar, preparar um café, sair para realizar exercícios físicos e, ao chegar em casa, iniciar a longa jornada de trabalho. Mais um dia, sim… sempre mais um dia…  Com a mesa de trabalho posta, a checagem de e-mails inicia, seguida pela análise dos afazeres diários e demandas. Essa é a rotina matinal de muitos/as trabalhadores/as, inclusive de boa parte dos/as professores/as que atuam no Ensino Superior em Instituições Públicas. Não seria diferente com o ser humano que aqui escreve.

            Reuniões, planejamentos semanais, pareceres, artigos, capítulos, planos de aula, lançamentos de notas, resoluções, decretos, ofícios, agendamentos, aulas, slides, livros, quadros, pincéis, e… e… e… É um engendramento gigantesco de afazeres que rodeiam a simples estada do corpo em frente a um computador e/ou notebook, apenas no turno da manhã. Tratam-se de não-coisas (HAN, 2022), excesso de informações e dados que intoxicam nossas existências e práticas profissionais que fragmentam a vida.

            À tarde, quando não existem atividades já programadas (reuniões, aulas, planejamentos, atendimentos, entre outras), lá vai o corpo professoral tentar produzir algo, afinal, ficar parado em um tempo de tantas demandas por produtividade é algo inadmissível, principalmente em uma era em que tudo é digitalização, algoritmos e informações (HAN, 2022). Embora o turno da noite seja preenchido pelas aulas lecionadas até as 22:30 horas, o corpo não se permite silenciar e repousar. É tempo de fazer algo, de se movimentar. Boa parte dos/as profissionais também estão a postos na parte da tarde e da manhã. Como é possível ousar experimentar a pausa?

            Agenciar todos esses pensamentos-sensações é deveras complexo e desafiador. O corpo pede paragem, mas as mensagens, tarefas e cobranças que chegam pelo smartphone não cessam nunca de chegar. O corpo está exausto, mas os pareceres a serem emitidos batem à porta. Uma infinidade de demandas burocráticas quase não permitem que me dedique a ler, estudar, planejar aulas mais interessantes, instigantes, aprofundadas, deglutíveis. Descansar, caminhar pela rua, organizar as roupas, cuidar do corpo, da casa, da vida? Só quando resta tempo. Só nos restos, nas brechas de uma vida. Tarefas e mais tarefas que articulam “[...] um tipo de sofrimento psíquico que tem sido muitas vezes nomeado a partir dos seus intensos efeitos de privação, isolamento, medo, desamparo, riscos, dor, perdas” (AZEVEDO, 2020, p. 150).

            Professor/a-máquina! É como se nunca pudéssemos nos dar a chance de parar, sossegar. Essa situação é ainda mais agravada quando pensamos na nossa caminhada na/com/pela pesquisa. Enquanto paramos, não estamos alimentando os nossos currículos, não estamos movimentando nossas progressões de carreira, estamos ficando para trás. Estaria, assim, a vida também estagnando ou seria um tempo sagrado de descanso?

Estamos à mercê de tantos olhares que nos atravessam, permeiam, rotulam, menosprezam – seria este o único caminho para formar professores/as e fazer (pesquisa na educação em) ciência? É isso que os rankings de produção e produtividade nos dizem, é isso que percebemos/sentimos quando participamos de algumas reuniões e eventos de associações e/ou sociedades científicas. Assim como o excesso de digitalização e informação causa em nossos corpos, em nossas sensações e vivências individuais, é possível visualizar o desaparecimento do outro, nosso semelhante como mirada (HAN, 2022). Os agencionamentos do contemporâneo nos distanciam do outro, de suas vozes. O outro desaparece como corpo – desercarna – e, “A falta do olhar leva a uma relação perturbada consigo mesmo e com os outros” (HAN, 2022, p. 45). Blindamos nossas vidas, já que tudo é consumível e descoisificável.

            Entrar ou não no fluxo da maquinaria é uma opção para quem habita a docência na educação superior, principalmente na esfera pública? É, de fato, escolha do/a professor/a embarcar ou não nesse movimento? O território está cada vez mais minado… eis professores/as (quase) em fuga. Seres humanos (quase) em fuga. Ansiando, tentando, criando caminhos para fugir da burocratização do viver[7], em prol de movimentações outras, menos cinzas, cansativas (HAN, 2017) e mais desejantes. Queremos ativar o divino da vida, distanciando-nos do excesso de funções e informações. Estamos vivos, e assim queremos nos sentir.

 

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O que é distância?

Com a pandemia de covid-19[8], emergência que nos atravessou nos anos 2020, fomos colocados forçosamente a habitar espaços de educação escolar transpassados de forma remota. As escolas e universidades em seus andares concretados migraram do dia para a noite para as telas de computadores e celulares e, na ausência dessas, para lugar nenhum. Ao pensarmos um pouco mais nesta situação, percebemos que, na verdade, já estávamos imersos nestas derivas entre_telas e entre_janelas (SALES; VAZ, 2022) há muito tempo. Nas telas, abrimos janelas múltiplas que permeiam derivas variadas:

Janelas do corpo, janelas da tela, janelas da casa, do apartamento, janelas de telas, telas do computador, do notebook, do celular, do tablet… janelas da vida, conexões possíveis em momentos nos quais se torna impossível preservar uma “normalidade” agora já obsoleta (SALES et al., 2020, p. 383).

 

Somos bombardeados a todo momento, como nos outdoors, cookies do computador e do smartphone, por anúncios publicitários diversos, como os que seguem: ‘Conquiste o mesmo diploma do presencial!’, ‘Não gaste seu tempo!’, ‘Curse uma graduação a distância (EAD) em apenas 12 meses!’.

Poderíamos ser formados também remotamente? E será que já não somos? Talvez, nestas migrações entre telas que fazem parte do nosso estar-vivo contemporâneo, sejamos formados – e forçados – pelas webvirtualidades.

 O que configuraria o estar presente e o não estar? Seria possível nos constituirmos como professores e professoras de ciências da natureza em uma educação remota? Quais caminhos abririam e quais estradas seriam interditadas pelas telas, janelas, páginas, lives e conferências digitais?

 Estas intercomunicações enveredam-se em produções de modos de ver, habitar e constituir o mundo. Sabemos, também, que os espaços acadêmicos são formados por duros muros, e que vazá-los é necessário para (co)criar territórios em coexistências, mundos outros, quiçá, (im)possíveis: nas distâncias nos encontramos pela internet e construímos relações, criamos pontes, vivemos pelas janelas, pelas frestas que se anunciam nas virtualidades.

Ao pensarmos nas educações possíveis pelas telas e janelas, desejamos, assim, engajarmo-nos em processos educacionais que, para além de tramas neoliberais e infômatas (HAN, 2022) que precarizam o ensino, os corpos e as existências, se comprometam na/pela/com a vida, se engajem com a “[…] auto-educação – ou a leitura que o indivíduo faz do mundo a partir de suas experiências e capacidades” (CORRÊA, 2000, p. 74).

Para além do bem e do mal, do certo e do errado, uma coisa sabemos: é impossível escaparmos da presença constante das telas em nossas vidas. Interessa pensar: Como criar habitações (saudáveis) em meio a elas? Como cultivar estratégias formativas que não se limitem à emissão de informações, dados e conteúdos behavioristas (CORRÊA, 2006)? Como?

Eis o cuidado a ser cultivado diariamente em nossas derivas!

Eis o necessário cuidado a ser cultivado.

 

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Espaços outros, outras educações

Logo saímos da escola e ela continua em nós, vibrando. Lá fora, seja onde for, somos soterrados por múltiplas informações/comunicações. Percebemos que nos situamos “Nesta rede planetária de tecnocosmos, ciberespaço, reprodução regulada por computador” (CORAZZA, 2010, p. 150). Nas redes midiáticas, comunica-se acerca das ciências da natureza o tempo todo – mas a que custo e de que maneira?

Vacinas, bombas atômicas, medicamentos, alimentos, energia eólica, preço do combustível, genética, novas tecnologias digitais, passagens de ônibus e de avião. Nos grupos sociais, fakenews guerrilham pelo espaço – e prestígio – com discursos validados cientificamente em revistas internacionais e no crivo dos/as ‘doutores/as com doutorados/as’. As tramas de poder e de resistência – que, como bem nos ensinou Michel Foucault (2015), são inseparáveis – se acirram: diferentes narratividades sobre o mundo, a vida, a sociedade – em que tudo se transformou em dado e informação (HAN, 2022). E a educação, o que tem com tudo isso?

Ao habitarmos como professores e estudantes estes espaços formais de educação – básica, superior, e… –, percebemos que, comumente, é possível a emergência do sentimento de que eles por si só não nos bastam e que é necessário encontrar linhas de fuga para lugares outros que nos permitam aprender. Se tivermos sorte, podemos visitar em nossas cidades museus de ciências e nos deslumbrar – ou entediar – com exposições que permeiam conceitos clássicos das diferentes áreas das ciências da natureza. Quiçá, espaços museais de artes, história, antropologia, entre outros, também tenham muito a nos educar acerca da vida que pulsa e transborda na natureza.

Caso estejamos abertos à percepção do mundo que nos convoca e inunda com a sua – e nossa – presença, também é possível romper com os binarismos entre natureza e cultura, em naturezaculturas, como defende a bióloga, filósofa e antropóloga Donna Haraway (2022). Tal perspectiva naturalcultural abre caminhos para que percebamos que todos os espaços de nossas vidas são territórios propícios para aprender e educar – e aí só nos resta percorrê-los com atenção. Parques, jardins, matas, praias e florestas transbordam em vida, assim como as urbanidades, os asfaltos das ruas, os concretos das casas e das salas de aula.

É preciso distanciarmos-nos de uma educação em ciências da natureza “[...] localizado fora da vida” (BELTRÃO, 2000, p. 31). A educação em ciências da natureza precisa ser vida, esbanjar vida, sem esse desejo – cada vez mais limitador – de segmentarizá-la, descoisificá-la (HAN, 2022), defini-la, prescrevê-la.

Essa é a nossa aposta: viver a educação, educar com/pela/em meio à vida!

 

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Habitar o jovem corpo professoral

            O que tem atravessado os nossos corpos em nossas experimentações docentes? De que maneiras temos nos posicionado na dura tarefa cotidiana de aprender enquanto criamos circunstâncias (DELIGNY, 2020)? De viver enquanto produzimos meios de habitar a vida e o mundo? De conviver com situações limites?

Comumente ouvimos: ‘Faça isso’; ‘Pense assim’; ‘Fazem 10 anos que tenho feito dessa forma’; ‘Desse modo não dará certo’; ‘Você chegou aqui agora, vassoura nova varre bem’. Essas são apenas algumas das narrativas que ecoam pelos corredores dos espaços formais da docência – nas reuniões, nos corredores, nas salas dos professores, nas vídeochamadas.

Palavras que arregimentam nossos corpos, sentimentos e vidas. Ecos reativos que nos chegam produzindo perturbações, ensurdecendo, gerando apagamentos. Esses ‘simples’ movimentos de linguagem – que de simples não tem nada – afastam qualquer proximidade, calam e ferem. A docência, portanto, passa a ser convocada ao silêncio, à não partilha, à proliferação de guetos distantes – sem brechas para reconciliação das vidas. Distanciamentos abissais, esgotamentos interpessoais. Competições?

Habitar a docência é uma tarefa complexa, já que nós – humanos? – carregamos todos os nossos microcosmos para as relações estabelecidas. Já canta há décadas Gal Costa: “É preciso estar atento e forte” – por isso, é crucial que cultivemos uma ética relacional com aqueles que experimentam o campo de trabalho conosco, a partir de potências positivas, portanto, não destrutivas.

A aposta, encontrada a partir de estudos em Fernand Deligny (2020), é que possamos investir na proliferação de presenças próximas.

[...] presença próxima é se pôr a traçar junto caminhos, errâncias, atividades (...) Esta é uma presença que não busca interpelar, mas sim permitir; deixar o acaso operar, criar brechas na sobrecarga do imperativo da palavra para que outras ações ou gestos possam surgir, e novos deslocamentos se esboçar. É acompanhar sensivelmente o acontecimento, dando-lhe vazão, permitindo seu desenrolar (MENDES; CASTRO, 2020, p. 354).

 

            Para tanto, ligações intensas – individuais e comunitárias –, tão escassas no sujeito do desempenho pós-moderno, precisam ser cultivadas (HAN, 2017). Elos de ligações são condições para o estabelecimento de presenças próximas, empáticas, atentas e cuidadosas. Presenças não conduzidas por coações negativas, autoagressivas e concorrentes[9].

Que presenças próximas (DELIGNY, 2020) tem habitado conosco essa caminhada professoral? Que saúde tem sido possível de ser acessada nesses espaços profissionais e formativos? Como tenho habitado o jovem corpo professoral? Que “[...] sensibilidades sutis” (AZEVEDO, 2020, p. 166) podem fluir nesses espaços tão infectados por prescrições, normatizações e vigilâncias?

Dúvidas, dúvidas e mais dúvidas…

 

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E… e… e… um universo por vir

Mas, para além de escolas, universidades, museus e mídias, ainda sentimos que algo nos falta. E será que, de fato, alguma coisa/formação/experiência/conhecimento nos é ausente?

Após momentos iniciais de desespero pelo que não temos, sentimos que, na verdade, estamos transbordando em possibilidades de habitar-experimentar ciências da natureza. Qualquer muro que vislumbramos, ao chegar a esta percepção, vai caindo por terra. Percebemos que o céu é todo nosso e que nós somos parte dele, que as plantas e animais coexistem conosco, assim como as nossas bactérias intestinais e os vírus que nos infectam, alterando os nossos genes, podendo nos matar, gerar tumores ou, quiçá, produzir novas organizações de DNA que possam desenvolver características ainda impensáveis. A química da água, do ar e dos alimentos nos preenche com (quase) tudo que precisamos. A física dos movimentos – de ondas, de pernas, de pensamentos – nos faz pulsar de formas inimagináveis, permeando diferentes texturas e tessituras. Restam os afectos a seguirem nos atravessando e misturando transdisciplinarmente tudo isso que emerge em nós e conosco.

Parece, por alguns segundos, que fomos tomados por algo próximo do conceito deleuze-guattariano de acontecimento[10], por uma experiência arrebatadora como a relatada pela personagem principal do conto Amor, de Clarice Lispector (1998), ao ver um homem cego mascando chicletes em um bonde. Somos desestruturados e já não sabemos o que fazer com tantas possibilidades que nos soterram, que nos aterram, que nos jogam ao ar. Percebemos, então, que este ar e este céu que nos circunda também nos compõe: somos parte dos astros, do cosmo, da Gaia, de tudo.

O céu não é mais uma atmosfera acidental que envolve o chão, é a única substância do universo, a natureza de tudo que existe. O céu não é o que está no alto. O céu está em toda a parte: é o espaço e a realidade da mistura e do movimento, o horizonte definitivo a partir do qual tudo deve se desenhar. Só há céu, por toda parte; e tudo, mesmo nosso planeta e o que ele alberga, não passa de uma porção condensada dessa matéria celeste infinita e universal. Tudo o que ocorre é um acontecimento celeste, tudo o que se passa é um feito divino (COCCIA, 2018, p. 92).

 

Como nos ensina o filósofo Emanuele Coccia (2018), só há céu por todo lado e, assim, nós nos misturamos. Também percebemos que só há matéria possível de ser explorada pelas ciências da natureza e de ser tangenciada nas nossas práticas educativas. É tanto ar que chega a nos faltar oxigênio. Os pulmões que lutem nessa empreitada de criar circunstâncias (DELIGNY, 2020) e de aprender ciências. Parece que as tantas salas da escola já não cabem na amplitude da vida. Parece que a universidade e todo(s) tanto(s) universo(s) acadêmicos são insuficientes para conter tamanha vazão que é lidar com o viver, com o estar vivo e habitar o mundo, com o constituir mundos, com o criar mundanidades, maneiras de viver e de nos transformar.

Já não somos seres distantes dos trajetos, das perambulações teóricas e físicas que fazemos. Somos seres com o trajeto. O trajeto (formativo; teórico; físico; vivo e não vivo) é potente por ser também parte de nós, do que podemos ser/constituir com ele.

Eis que percebemos as tantas possibilidades de aprender e de criar circunstâncias: espaços de educação formalizada, os territórios admitidos como ‘não formais’, a autoaprendizagem, um aprender com os outros seres vivos, com as plantas, os animais, os microorganismos… devir-com (HARAWAY, 2022) múltiplas outras espécies. Criar mundos em coexistências. Viver a educação em ciências da natureza em movimento.

E assim seguimos! Vivos, atentos e fortes!

 

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Considerações finais

Neste ensaio, agenciamos tomos-vacúolos (RIGUE, 2021) de pensamento que permitiram engendrar ciência da natureza, vida e educação. Ficcionamos narrativas-alianças capazes de dizer, pensar e cocriar com vontade. Mobilizamos escritas desviantes e em deslocamentos para pensar conexões possíveis entre o vivível e o fabulado.

Cada tomo-vacúolo percorre diferentes instâncias de vida e de educação buscando materializar a experiência de habitar e criar o mundo. Pensamos no que podem os espaços educativos, percorrendo os cotidianos escolares e universitários, atravessando a dimensão professoral e as possíveis – e necessárias – fugas. Chegamos nas distâncias e virtualidades que permeiam a educação, tensionando os dilemas e possibilidades destas instâncias educativas. Articulamo-nos em espaços outros de aprender e de educar ao percorrer as circunstâncias de ser jovem, de atuar e de constituir-se como docente(s).

A noção de juventude, portanto, opera ao longo do ensaio como potência e não como falta. Ampliada pela disposição dos corpos – ainda não enrijecidos – em experimentar, se lançar ao desconhecido, desinteressados em responder às expectativas (des)subjetivadoras dos espaços produtores de moldes e de prescrições do que ‘deve ser’ o/a docente no presente. Condução de condutas, portanto, dão lugar à ampliação de possibilidades desejantes e vivas no habitar o exercício profissional. Não saber, nessa seara, emerge como potência, diferenciação. Horizonte de possibilidade para cultivo de linhas lisas, não estriadas, sensíveis à diferença e diferenciação como multiplicidades (DELEUZE; GUATTARI, 2008).

Percebemos, assim, a partir deste ensaio e das escritas fabulativas nele mobilizadas, que a educação pode acontecer em múltiplos espaços e de maneiras distintas. Aprendemos, pensamos, afetamos e somos afetados, por exemplo, quando paramos para lembrar, tensionar e criar a partir do que vivemos. Quando, mesmo diante da correria do cotidiano, inauguramos momentos de silêncio e atenção para nossas aligeiradas rotinas. Temos a chance de cocriar possíveis quando a ficção aparece como aliada, parceira de caminhada, inaugurando e fortalecendo a percepção de que podemos aprender em movimento, e que as ciências da natureza, enquanto campo de conhecimento, ao instaurarem-se como instâncias que articulam natureza-e-cultura-e…e…e…, também são ligações intensivas com os territórios por onde essas aprendizagens possam brotar. Como docentes das ciências da natureza também podemos ser criadores de circunstâncias, poetas do existir, percebendo que aprender sobre/com/a partir desse campo, não nos exclui da oportunidade de estabelecer elos com outros horizontes, como é o caso daqueles que fluem nas filosofias, nas artes, entre outros. Emerge desse movimento, portanto, a potência do exercício da escrita fabulativa na docência em ciências da natureza.

Afirmamos, assim, a urgência de inaugurarmos espaços de vida nas práticas em educação em ciências da natureza. Nossa aposta é transgredir, reescrever, cocriar novos possíveis a partir do que aprendemos com o que vivemos, sentimos e experimentamos, na escola e na vida. Emerge a necessidade de pararmos de nos desenvolver e, passarmos a nos envolver (KRENAK, 2020). Dessa forma, nos aproximarmos do que, de fato, vivemos em nossos espaços, comprometendo-nos em fazer das ciências da natureza pedaços pulsantes e transbordantes nas nossas existências e na de nossos/as estudantes, parceiros/as de vida e caminhada na/pela/com a educação.

 

REFERÊNCIAS

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[1] Licenciado e Bacharel em Ciências Biológicas, Mestre e Doutor em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pós-doutorando em Divulgação Científica e Cultural no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (LABJOR) do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (NUDECRI) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor Adjunto no curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade de Pernambuco (UPE), Campus Petrolina. E-mail: tiagoamaralsales@gmail.com.

[2] Licenciada em Química, Mestra e Doutora em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Professora Adjunta no curso de Química (Licenciatura e Bacharelado) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Campus Pontal. E-mail: fernandarigue@ufu.br.

[3] Conforme escreve Rigue (2021) tomo-vacúolo trata-se da “[...] possibilidade de ser quebrado e rompido em qualquer lugar, como um rizoma. Tomo-vacúolo que se expande por contágio (...)” (p. 16). Como diferentes gestos de pensamento em pesquisa que podem ser pensados dentro da própria dispersão e intensidade, expandindo, por intensidade, suas linhas de propósito e desejo.

[4] “Aprender não é reproduzir, mas inaugurar (...)” (SCHÉRER, 2005, p. 1188).

[5] Como escreve Byung-Chul Han (2022), “O afetivo é essencial para o pensamento humano. A primeira imagem mental é o arrepio da pele. (...) O pensamento parte de uma totalidade que se antepõe a conceitos, representações e informações. Ele já se move em um “campo de experiência” (p. 71).

[6] Conforme escrevem Kastrup e Caliman (2023) “Na perspectiva ecológica da atenção, (...) a atenção não é sinônimo de prestar atenção. O prestar atenção é apenas um dos gestos da atenção, mas de modo algum totaliza seu funcionamento. A concentração é um regime atencional, a focalização é outro, assim como a distração, a dispersão, a imersão, a vigilância, o alerta, a fidelização etc. (...) a atenção possui múltiplos gestos, distintos e coexistentes. São camadas superpostas de intensidades variáveis e em constante movimento, formando uma espécie de mil folhas da atenção. A atenção é desde sempre coletiva. Nunca estamos sozinhos quando prestamos atenção” (p. 30).

[7] Essa mesma burocratização que alimenta a Sociedade do Cansaço, explorada por Byung-Chul Han (2017). Sociedade do desempenho, ativa, nervosa, exaurida, coercitiva. Para Han (2017), o cansaço cada vez mais solitário é uma forma de violência contemporânea, individualizando pela competição, isolando pela competitividade.

[8] Trata-se de uma doença infecciosa causada pelo coronavírus SARS-CoV-2.

[9] Como é o caso daquelas que são absolutas e resultam, por exemplo, no estabelecimento do burnout (HAN, 2017).

[10] “Todos os corpos são causas uns para os outros, uns com relação aos outros, mas de que? São causas de certas coisas de uma natureza completamente diferente. Estes efeitos não são corpos, mas, propriamente falando, “incorporais”. Não são qualidades e propriedades físicas, mas atributos lógicos ou dialéticos. Não são coisas ou estados de coisas, mas acontecimentos” (DELEUZE, 1974, p. 5). Acontecimento, portanto, trata-se daquilo que se passa, daquilo que toca, da virtualidade do que afeta os seres. Efeitos infinitos e múltiplos que atravessam os seres (DELEUZE, 2003).