Denunciation of the Crossroads: morality as drug of our time
Denuncia de la Encruzilhada: la moral como droga de nuestro tiempo
Robert Santos do Carmo[1]
Universidade Federal de Sergipe
Michele de Freitas Faria de Vasconcelos[2]
Universidade Federal de Sergipe
Simone Mainieri Paulon[3]
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
O que se lê são narrativas de um processo formativo na encruzilhada produzida pelo encontro entre psicologia e redução de danos; entre uma formação escolarizada (prima-irmã da ciência ‘laboratorizada’) e uma estratégia de cuidado territorial junto a pessoas em situação de rua, que fazem uso de drogas; entre um corpo e a moralidade que lhe constitui. A literatura infanto-juvenil é utilizada como intercessor justo por fabular com palavras, por desdizê-las, por transgredir sua sina desenvolvimentista e moral. Cansado/as de tragar gozando por padecer, tragamos gozando e padecendo. Assim, saberemos, ao final desse ensaio, que se a ver com a droga da moral custa uma vida para criar outra – inumana.
Palavras-chave: Formação; Psicologia; Redução de Danos; Moral.
Abstract
What is read in this essay are narratives of a training process at the crossroads produced by the encounter between psychology and harm reduction; between school-based training (a sister cousin of 'laboratory' science) and a territorial care strategy for homeless people who use drugs; between a body and the morality that constitutes it. Children's juvenile literature is used as a fair intercessor for fable with words, for unsaid them, for transgressing their developmental and moral destiny. Tired of swallowing enjoying suffering, let's swallow enjoying and suffering. Thus, we will know, at the end of this essay, that to do with the drug of morality it takes a life to create another one – inhumane.
Kaywords: Formation; Psychology; Harm reduction; Morality.
Resumen
Lo que leemos son narrativas de un proceso formativo en la encrucijada producida por el encuentro entre la psicología y la reducción de daños; entre la formación escolar (prima de la ciencia de “laboratorio”) y una estrategia territorial de atención a las personas sin hogar que consumen drogas; entre un cuerpo y la moral que lo constituye. La literatura infantil se utiliza como justa intercesora para la fábula con palabras, para desdecirlas, para transgredir su destino evolutivo y moral. Cansados de tragar y disfrutar del sufrimiento, traguemos disfrutando y sufriendo. Así, sabremos, al final de este ensayo, que lidiar con la droga de la moral cuesta una vida para crear otra: inhumana.
Palabras clave: Formación; Psicología; Reducción de daños; Moral.
Em tempos necrobiopolíticos, em que a precarização dos processos educativos e de trabalho ganham ares ainda mais mortíferos, temos insistido numa certa postura pueril de artistar a vida, caçando jeitos de “proteger as forças germinativas de uma tarefa a ser cumprida” (Fonseca, 2007, p. 141), firmando-nos numa frágil linha por meio da qual possamos ensaiar uma fuga, tatear vetores de existencialização no trabalho e na educação; bem ali, onde eles se encontram com os elementos loucos da criação; bem ali, no espaço-tempo em que se dá uma espécie de despersonalização que nos força a pensar. Arte-pensamento-formação-trabalho “que não cabe em conceitos categóricos, mas que se define antes como uma prática de si sempre em vias de se fazer” (Fonseca, 2007, p. 144).
Onde está a redução de danos em você? Essa foi a pergunta feita por uma professora, na ocasião de banca de defesa do trabalho de conclusão de curso em Psicologia no ano de 2018. Como boas perguntas não envelhecem, essa encontrou um solo fértil para germinação. Aliás, antes, revolveu a terra existente, numa insistente tarefa de semeadura de novos valores. A pergunta nietzschiana, no que faz ramificar de novas indagações, convida à produção de uma narrativa corporificada. Narrativa de corpo e língua (Rolnik, 1989) que excede (em intensidade e gagueira epistêmica) o escopo de uma mera justificativa pessoal. Margeando um objeto de pesquisa ou de conhecimento, se tece uma escrita perspectivada, não por sobrevalorizar uma posição ontológica, a verdade de um ser, mas, sim, por se ocupar de outra pergunta: “com o sangue de quem foram feitos os [nossos] olhos [palavras, práticas, conceitos e corpo]?” (Haraway, 1995, p. 25).
Crescemos como se tudo ao nosso redor já estivesse dado. O ambiente, a família, o gênero, as roupas, o calendário, a história, deus, as possibilidades de desenvolvimento, de relações, de trabalho, de vida e até as próprias palavras. Elas já existem. Temos até um alfabeto que constitui famílias silábicas e, por sua vez, forma palavras, frases, textos, perguntas (poucas, porque intimidam), respostas e corpos. Doutorar-se em abc é a consagração deste grande malfeito civilizatório: somos todos humanos. As recompensas são inúmeras: linguagem, comunicação, identidade, notas de desempenho, títulos e trabalho.
Apesar da infinidade de possibilidades com a língua e as linguagens, parece-nos que ora as possibilidades de letramento são restritas; ora, as palavras podem apenas ser reencontradas – haja vista que só poetas têm licença para criá-las –, o que denota uma relação de naturalidade com as palavras, com a linguagem. Entretanto, se a linguagem fosse natural, como se supõe, qual seria então a função da escola, ou melhor, do dispositivo escolarização[5], senão de imprimir um corpo linguageiro? De imprimir, portanto, uma natureza? A natureza, tal qual a linguagem, é, assim, impressa, inscrita, alfabética e moral.
As palavras adoecem a língua, mas não línguas específicas, como se fosse uma epidemia circunscrita a espaços geográficos e comunidades. Esse não é um “privilégio” judaico-cristão e tampouco de outros religiosos, é um adereço civilizatório, do qual a ciência e, nesse caso, a psicologia, não escapam. A moral (a droga da moral!), pois, está por todos os lados e ela adoece, mofa, amortece a língua, os sentidos, o corpo.
Nesse ensaio, narra-se esboços de um processo formativo na encruzilhada em que psicologia e redução de danos se debatem com a moralidade. O sentido de Encruzilhada é aqui trazido a partir da perspectiva afro-brasileira que Faustino (2022) evoca “em termos de Exu, não como fim do caminho, mas como abertura ambígua, oxímara, contraditória, de horizontes possíveis, de ligações entre masculino e feminino, morto e vivo, passado e presente, marxismo e psicanálise”.
Já a moral apresenta-se como o linguageiro dos costumes, como a “obediência aos costumes” e, portanto, como “a maneira tradicional de agir e avaliar” (Nietzsche, 2016, p. 17). Usualmente o conceito moralidade tende a ser associado às crenças religiosas e à interferência dessas nos diferentes contextos. No entanto, muito embora a moralidade e a cosmovisão judaico-cristã guardem uma idiossincrasia ou reciprocidade, a moral excede para campos epistêmicos, institucionais e subjetivos; para os modos de ver, de viver e de ser.
Quando criança, morei[6] um grande período com meus avós. Próximo à casa deles, há uma praça conhecida como ‘pracinha de Dona’, em referência a uma professora prestigiada e temida – pela palmatória e pelo folclore –. Nessa praça, as crianças, em sua maioria meninos, reuniam-se para brincar, jogar, brigar, comer amêndoas. Também nela, a interpelação heterossexual (Eribon, 2008) denunciara meus gestos e palavras ‘meninescas’ várias vezes. Lá, um gesto brincante, talvez folclórico, fora vigiado e denunciado em alto e ensurdecedor som por uma adulta. Acuado, com medo, sem saber o significado das palavras ser e ‘viado’, mas entendendo que ser ‘viado’ borrava a moral e causava horror nas pessoas, corro para casa, na esperança de encontrar abrigo e silêncio.
Recordo ainda que havia reunido, em uma garrafa pet, uma quantidade enorme de bolas de gude, o que era uma prática comum entre os brincantes. A brincadeira concentrava meninos e, apesar de sentir (ou justo por sentir a interpelação moral que a acompanhava), gostava de brincar de bola de gudes. Fui produzindo um gosto, acompanhando os gestos para alcançar a biloca (buraco raso) que todos os meninos queriam com suas bolas: os duplos sentidos, aqui, não são ocasionais. À revelia dos gostos normalizadores, me interessava pelas cores e formas, pelas bolas de leite (brancas e azuis) e carambolas (com cores esverdeadas e amareladas dentro). Interessava-me em colecionar não apenas as bolas de gude, mas as que considerava mais bonitas, coloridas e diferentes.
Todavia, diante de uma escolha tentadora, mas não menos normativa, ‘pequei’: troquei toda a minha garrafa de (lindas) bolas de gude pelo livro de oração católica que meu primo tinha. À primeira vista, possuía o “coração dividido entre brinquedos e Deus” (Nietzsche, 1998, p.2). Talvez não! O brinquedo era deus, a bola de gude também o era.
E a biloca? A biloca é o cu.
Ânus é condomínio-shopping
Cu é guerra de sentidos [...]
Transmuto para conhecer
Eu me regenero para não nascer
[texto-ciborgue]
Eu sou o mundo
Nascimento é morte
O dilema atual é nascer ou viver
(Rocha, 2021, p. 48-49)
“Você tá com Deus enfiado no seu cu?”. Pergunta a louca “Estamira” (2005) a seu filho, após questioná-la insistentemente sobre sua relação com Deus – deus esse, por sua vez, que entra no cu pela violência. No documentário, com o canto parresiasta de Estamira, ficamos sabendo que nossa lucidez não nos deixa ver.
Ficamos sabendo também que Estamira foi estuprada duas vezes. Segundo sua filha, foi logo depois dos estupros e depois que a mãe chutou uma macumba que ela começou a ‘ficar assim’. Quanto a um dos estupros, um estupro anal, a filha diz que Estamira lhe contou que pediu pelo amor de deus que não fizesse aquilo, que parasse, ao que o estuprador respondeu: ‘que deus, o quê!’. Provavelmente esta cena marca uma ruptura de Estamira com deus. Basta mencionar ‘deus’ para que Estamira fique furiosa: ‘Que deus é esse? Não é ele o próprio Trocadilo? Quem fez o que ele mandou largou de morrer, largou de passar fome?’ (Belo, 2008, p. 142).
Na disputa pelo cu, a interpelação heterossexual (Eribon, 2008) é a(l)tiva, instituindo modos de dizer, de brincar, gestos feitos sestros (emprenhados na vida cotidiana ou nos discursos religiosos, psiquiátricos, psicológicos, políticos e jurídicos). Tais modos constituem sujeitos e se apoderam deles antes mesmo de se reconhecerem enquanto tais, sem que haja sucessão temporal entre a interpelação e o reconhecimento. “É porque o insulto e seus efeitos são apenas a parte visível da interpelação mais profunda que as estruturas sociais, mentais e sexuais já, e sempre-já, operaram sobre mim” (Eribon, 2008, p. 77).
Tendo isso em vista, parece que se torna mais evidente porque tanto a escolha tentadora (entre as bolas de gude e o livro de oração), quanto as próprias bolas de gude são deus. Em deus há ordem, segurança, ‘verdade’, maturidade, razão. Aliás, há também ‘amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio’ (Bíblia, 1969). Afinal de contas, “um menino pode saber aos 10 anos – sem sabê-lo de verdade, mas sabendo-o de qualquer modo – que a palavra ‘viado’ não está longe de designá-lo, e que um dia, seguramente, o designará” (Eribon, 2008, p.81).
Voulás ou Vaitimboras?
Desde que se entendia por gente Tistu ouvia repetirem:
- Tistu, meu filho, nosso negócio é excelente. [...] Canhão sempre se vende, seja qual for o tempo (...)
- Tome sua sopa, Tistu, porque você precisa crescer. Um dia você será o dono de Mirapólvora. Fabricar canhões é muito cansativo, e não há lugar para maricas em nossa família (Druon, 1976, p. 20).
Mirapólvora, cidade em que Tistu mora, tem esse nome em decorrência da fabricação de canhões. É um mercado promissor que movimenta toda a cidade. Em épocas de guerra o trabalho na fábrica multiplica, dobrando o número de funcionários. Muito embora as pessoas próximas a Tistu e ao dono da fábrica, seu pai, apoiem os Voulás no conflito que estava prestes a ocorrer, a fábrica produz canhões tanto para os Voulás quanto para os Vaitimboras, os inimigos. Como disse o Sr. Trovões a Tistu “É o comércio” (Druon, 1976, p. 106).
Tistu, por sua vez, não se interessava por isso. Ao receber seu duplo zero na aula sobre o conflito geográfico entre esses territórios, que, misteriosamente se localizam à direita e à esquerda de um deserto, recusa a lógica predominante na cidade e, de algum modo, recusa-se a ‘crescer’, a ser o sucessor de Mirapólvora, ao menos, dessa Mirapólvora. Tistu recusa a maturidade.
Essas recusas e a possibilidade de elas encaminharem-no a condição do que a sua Dona Mamãe nomeou como “marica”, atiçam seu devir-criança, devir-homossexual, devir-minoritário (Guattari; Rolnik, 2005; Deleuze, 1992). Os devires singularizam problemáticas que não são de um domínio pessoal, patológico ou simbólico, mas, sim, da produção de derivas nos modos de subjetivação que se conectam a outras problemáticas que estão no “próprio coração da produção da sociedade”, colocando em questão o que têm se produzido nas relações sociais, nas subjetividades (Guattari; Rolnik, 2005, p. 86). Tistu perscruta um conhecimento por entre as coisas, com o dedo, com o corpo; um conhecimento imundo.
Antes do período pandêmico, em uma certa formatura em psicologia, a atenção pousa na imagem escolhida pela turma para ‘representá-la’. A imagem era ‘formada’ por um cérebro e um coração em disputa ou complementariedade, indicando, ao que parece, a divisão costumeira entre razão e emoção; uma subjetividade (privatizada) – ou melhor, um indivíduo, conforme diz Baptista (2000) – dividida: isso é formação.
Durante a solenidade, as oradoras, visivelmente alegres, revelaram ao público o que puderam aprender e deram ênfase na identificação dos famigerados transtornos mentais. Elas diziam rindo: “todo mundo saiu com um CID[7]”. A professora que ensinara a disciplina sobre o CID estava à mesa como homenageada e parecia desconfortável. As alunas pareciam ‘desejar’ o diagnóstico. “Que espécie de vida promove essa concepção de desejo?” (Rolnik, 1989 p. 64).
Não apenas a imagem escolhida, o discurso das oradoras, mas também a mensagem no convite: em todos está a ‘formação’. E não há aqui a tentativa de categorizar ou analisá-los como recursos simbólicos que revelam a ‘verdade’ de algo, e sim de visualizá-los como especificidades do dispositivo formação, como efeitos de uma formação. Nas mensagens prevalece uma ênfase no humanismo, evolução e auto-cuidado. “Nos tornamos mais humanos”, diz num convite. Quase ilesos. “Vencemos”, diz ainda. Brilhamos[8]. Aos ilesos, vencedores, canta Alex Sant’Anna (2015): “só não pode sair ileso daqui”.
E como se formam esses desejos – de diagnóstico, de mais humanidade, de cuidar, de auto-cuidado? De salvação, sã-nidade, proteção – de si mesmo e do outro –? De cuidar-controlar de quem faz uso de drogas? De impô-los a abstinência? De propô-los a redução de danos? De ter cheiro (inodoro), roupas (‘neutras’), gestos, cores, vozes e ruídos ‘psis’ (Baptista, 2000)? De se impregnar de cheiros, roupas, gestos, cores, vozes e ruídos outros?
A fábrica é uma pista. A psicologia é uma fábrica (Baptista, 2000). A empresa é uma pista. A psicologia é uma empresa. Uma empresa obstinada em formar almas-empresas para governar, constituir e naturalizar outras/nossas almas-empresas. Conhecer sua história e seus vícios é uma pista, uma vez que o “desejo de ser não deriva de um desejo ontológico e sim de uma certa história e suas invenções” (Silva, 2001, p.144-145). A história, por sua vez, “será ‘efetiva’ na medida em que [...] reintroduzir o descontínuo em nosso próprio ser. Ela [...] multiplicará nosso corpo e o oporá a si mesmo. É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar” (Foucault, 1979, p. 27-28).
A psicologia estabelece-se em um cenário no qual o Estado e a administração pública desenvolvem práticas de previsão e controle para tornar os indivíduos suficientemente ‘preparados’, ‘treinados’, ‘selecionados’ e ‘vencedores’ para os diferentes trabalhos, ou melhor, para a ‘ordem social’. De tal modo, que recebe como encomenda a sustentação de uma liberdade dentro da ordem (Figueiredo; Santi, 2008; Baptista, 2000).
Com efeito, importa dizer que a psicologia funciona como um estabelecimento fabril; suas técnicas fabricam indivíduos. Distante do sol e do suor, a psicologia produz discursos cheirosos, preparados e maduros, roupas nos conformes, gestos, cores que não são as de Frida Kahlo, vozes e ruídos que lhe são próprias (Baptista, 2000). Mas, ao se esbarrar com ‘o povo da rua’, borra-se a disciplina psicologia e, com ela, seus limites.
Poros, odores, passagens: o corpo na/da pesquisa
[...] outra cena que me vem é... foi de uma festa no CAPS que eu trabalhava e lá tinha uma pegada muito do hip hop, né? [...] e aí rolou uma festa que a gente dançou muito, todo mundo junto... e eu me lembro a sensação física de todo mundo dançando [...] eu nunca tinha dançado aquilo e todo mundo suado, todo mundo misturado, aquela coisa... com a sensação de corpo mesmo... Quando eu cheguei eu falei ‘que doidera, e eu sou psicóloga de lá, né? Boto fé...’ (risos). ‘Quer dizer que eu sou psicóloga e tava trabalhando lá, né?, é assim que a gente faz clínica no CAPS. (M1.)
Não conhecemos as habilidades da entrevistada[9] com a dança, tampouco o cheiro de seu perfume preferido ou do que utilizara para ir ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) que trabalhava, como também não sabemos se usava perfume ou mesmo se tem um preferido. Entretanto, ao imaginar que todos dançavam suados e que havia uma “sensação de corpo”, deduzimos que essa experiência tinha cheiro e que os odores se misturavam (Baptista, 2000).
Eu que sempre gostei de perfumes ainda não havia parado para pensar sobre o meu cheiro, não o do meu corpo, mas o do meu corpo perfumado. No mesmo dia em que vou à cerimônia de formatura citada anteriormente, utilizo um transporte de aplicativo para me deslocar até o local do evento. O motorista parou o carro do outro lado do condomínio em que moro, atravessei, entrei no carro e desejei boa noite. Ao dar a partida, ele comentou “senti seu perfume quando você apareceu na rua”. Alegre com o comentário dele, afinal, gosto de me sentir perfumado, respondi “Foi? Isso é bom, né?”. Ao que prontamente ele disse: “deve ser caro”. Não era a primeira vez. Em um jantar familiar, um dos convidados da minha Dona Mamãe (in memorian) dissera: “ele tem cheiro de rico”. O meu corpo tem cheiro de branco, de classe média, de lavanda, de psicólogo. O perfume é a moral e já a anuncia a metros de distância. Moral que entra pelos poros.
É difícil imaginar o encontro entre o cheiro de lavanda e de pele de gente pobre[10]. Dificilmente o cheiro de psicólogo e de povo se misturam. Perfumamos as clínicas, criamos roupas apropriadas para a ida ao psicólogo, roupas de psicólogo, clínicas de psicólogos, cores de psicólogos, sorrisos de psicólogos, cara de paisagem de psicólogos, entre tantos outros aparatos ‘psis’.
“Por que a labareda se apaga quando entra em contato com a memória da cidade?” (Baptista, 2000, p. 28). A chaminé da fábrica quebra? A labareda apaga ou acende com a memória da cidade? Apagam-se as ilusões[11]? Acendem a cotidianidade[12]? Mudam-se as engrenagens e o produto? Mirapólvora ou Miraflores[13]?
Qual pode ser a cara de uma psicologia que se faz encontro na rua, com a rua? O que fazer? O que falar? Há algo que pode ser feito? Qual teoria utilizar? Faz-se clínica? O que é clínica? Como produzir saúde mental sem moradia, água e alimentação de qualidade? Como produzir saúde entre a busca incansável de crack entre as pedras? Como reduzir danos? Como escutar que estar na rua é uma escolha? Como escutar? O que pode uma clínica de/na rua? Se pode falar em práticas ‘psi’ que germinem do encontro com a rua? Nesse encontro, o que sobraria de psi nessas práticas? “Então, com que cara vamos seguir adiante? Qual é a cara viva, estremecida, com a qual possamos afirmar a vida? Com que cara encarar o que nos acontece? Qual é a voz viva, trêmula, balbuciante que corresponde a essa cara, qual a língua que lhe convém?” (Larrosa, 2014, p. 78).
- Você não vai entrar, [...], perguntou Rosa, usuária do serviço, querendo saber se eu entraria na sala do consultório enquanto ela era atendida. A pergunto: você quer que eu entre? E ela retrucou tanto faz. Sorri e entrei. Foi também Rosa, em outro momento em que a encontrei pelas ruas, que disse enquanto conversávamos (eu, em pé, e ela, sentada pedindo alguns “trocados”): [cita nome de um dos autores], se abaixe!
“Não vai falar nada?”, “não vai entrar?”, “se abaixe”, escuto. Expressões como essas, convocam questionamentos acerca da formação de psicólogo; da formação em psicologia, como um saber especializado; mais ainda, convocam questionamentos acerca de uma formação entendida como educação pedagogizada, com conteúdos prescritos, estruturando o campo de ação das pessoas, constituindo posição de sujeitos, modos de ser psicólogo, modos de (nos) conduzir como profissionais psi. A potência dessas questões-pedidos está em serem ordinárias, triviais, em fazerem parte do comum, do cotidiano, quando fazer parte do cotidiano parece ser o incomum na psicologia.
Ao ser convidado a falar, entrar e se abaixar, faz-se um convite também a ciência, nesse caso, a psicologia a adotar uma (outra) práxis, a se abaixar, sair de seu pedestal, das cátedras e settings fechados da academia e dos consultórios e arriscar uma outra cara, imiscuindo-se na vida, na rua. Arriscar uma “sensação de corpo”, de suor, quando é justo pelo suor que sai a verdade, sugerem os Titãs (1991) em música “Saia de mim”. Nesse sentido, o convite é clínico, ético, estético e político.
Convite, aliás, ao corpo: única razão possível (Nietzsche, 2011). Um corpo branco, jovem, interiorano, desviado e desmembrado de uma igreja tradicional evangélica e viado. Não bebia nem fumava, mas inculcava com a diferença – outrora para corrigi-la, e agora? –. Como ser redutor de danos sem usar ou ter usado drogas? Pergunta essa, inclusive, corriqueira entre as formações de redutores. Eu fazia? Faço? Como então ser redutor de danos sem ter se exposto a danos, a danos decorrentes do uso de drogas (ilícitas)? Ledo engano, a moral causa danos! A correção ou salvação de almas também. O ‘bom’ também é “narcótico, perigoso, sedutor, venenoso” (Nietzsche, 1887/1998). Assim sendo, a redução de danos contribuiu para reduzir os danos da moral – não que ela seja, por excelência, ilesa à moralidade.
O que porra tem a ver com a Psicologia isso que eu tô fazendo [ou escrevendo] aqui? (J.)
Porque os princípios da redução de danos e da reforma se articulam com os da democracia e aí, pela primeira vez, eu tinha ferramentas, inclusive, pra fazer essa questão do cuidado. [...] A gente tava conversando até essa semana, né? [...] de defender princípios, de falar assim: ‘olhe, quando a gente faz tal coisa, eu tô defendendo a democracia, eu tô defendendo, porque que eu acho tão lindo a assembleia, né? [...] (R.)
- Deus? (Risos) (M2.)
- Não, não, assembleia do CAPS. (R.)
- Essa cidadania que a gente aprendeu é se sujeitar, pra eu cuidar do cara ele tem que se submeter às regras sociais... (M2.)
Em seu percurso genealógico da moral, Nietzsche diagnosticara alguns sintomas da vida que declina, ou ainda, da vida faltosa, dividida, controlada e condenada a outra pátria, a saber: “a democracia, os tribunais de paz e a religião da compaixão” (Nietzsche, 1998, p. 142). Ao fazê-lo, aponta, mais uma vez, para a construção de ideais aparentemente dados ou ilesos e, não obstante, para o horror nisto.
De um lado, a caridade apresenta-se como condição para garantia de uma existência melhor: celeste, inodora, pacífica, sem choro ou ranger de dentes e, atualmente, sem ansiedade, tristeza, desatenção, crise e errância. Do mesmo, a cidadania, sob a égide da democracia, ancora-nos em outra deidade, o Estado. Seja para nos tornar cidadãos celestes ou terrenos, em ambos há a afirmação de que ao humano falta – falta-lhe lei, falta-lhe ‘verdade’, falta-lhe direção.
A crença na ‘verdade’ e suas gradações intituladas deus, filosofia e ciência tornaram-se parâmetros para todo valor. A lógica tornou-se a base para toda a ciência e a ciência ganhou, entre todas as ‘representantes da verdade’, o estatuto de grande ‘verificadora’ a atestar o que, de fato, era a ‘verdade’. Nesse sentido, não haveria motivo para que, por exemplo, ciência e religião brigassem entre si (Sousa, 2005, p. 32).
Por certo, já não faz diferença em dizer deus ou ciência, seria como trocar seis por meia dúzia. Muito embora, na operação necropolítica que exterminou quase 700 mil mortos por Covid-19 no Brasil, deus e ciência tenham se imiscuído e orquestrado uma nova e sinistra disputa. Dentre esses números, uma de nossas: Dona Mamãe. Silêncio e grito.
Em uma cena protagonizada pelo primeiro autor e uma redutora de danos, em busca ativa, pela cidade, de um usuário diagnosticado com esquizofrenia, ela narra que o vínculo fora quebrado após insistir para que ele tomasse suas medicações. No entanto, para ele, a redutora havia causado a perda da sua conexão com Deus. Parecia ter uma relação paradoxal com a deidade: ora conectava-se com, ora o era. “Por que esta ciência de merda tenta insultar o meu corpo?” (Baptista, 2017, p. 217) Por que roubar minha conexão com Deus?, ele não perguntou, mas poderia. No diário de campo, a época do encontro, restou a pergunta: “o que oferece mais ‘recurso’ simbólico e criativo para ele: o delírio ou o medicamento (ainda que pudesse vir – ou não – a precisar dele)? Como cuidar de sua saúde sem retirar dele esse ‘recurso’? É preciso retirar?”
Não é que a redutora o tenha oferecido o medicamento com violência ou lhe tratado mal, mas que a veridicção[14] médica lhe retirara a conexão com Deus e, talvez, mais ainda, a possibilidade do paradoxo. A ‘verdade’ sobrepõe o paradoxo. O paradoxo é errante, incerto, brincante, delirante, verde. A ‘verdade’ é lógica, objetiva, alcançável, representável, pura, madura, deus. Mas se a ‘verdade’ também é deus, então o rapaz acabou trocando seis por meia dúzia? E ele pôde escolher trocar?
A minha missão, além de eu ser Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade, seja mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara. [...] Agora os deuses são cientistas, técnicos, eles controla, ele vê aonde ele conseguiu, os cientistas, determinados, trocadilos, ele consegue porque o controle remoto não queima, o cientista tem o medidor que controla. [...] É simples, né? Eles ficam dopando quem quer que seja... com um só remédio. Fica me silenciando: quem sabe sou eu. Esses remédios são da quadrilha, dopante, para querer o deus falsário. O trocadilo é ela [diz sobre a psiquiatra] (Estamira, 2005, grifo nosso).
Estamira achara simples. Talvez o rapaz procurado pela redutora também achasse. Ambos falam do trocadilo-ciência, do trocadilho-expert, do trocadilo-medicalização, ou ainda, do que lhes cortam: o poder. Estamira o caracteriza bem: seduz, incentiva, controla e ainda quer mais. Age sobre a conduta, sobre a ação, o ainda, sobre a possibilidade de agir, incitando, facilitando, dificultando, ampliando ou dando limites; inscrevendo, então, comportamentos (Foucault, 2009). Para fazê-lo, não se opõe à democracia ou à liberdade, pois não é sinônimo de coerção e se efetua entre sujeitos livres, onde preserva-se os sujeitos da ação e seu campo de possibilidades (Foucault, 2009). “O poder não é lá em cima não, é aqui embaixo”, disse Estamira, reveladora da verdade – talvez neste caso sem aspas, não porque revela a ‘verdade’ da verdade, mas porque brinca, delira, faz dela gato e sapato.
Estamira não é muito diferente de Rosa, a mulher que convida o jovem psicólogo a falar, entrar e... se abaixar! Ambas produzem uma narrativa errante feita denúncia, convite, revelação. Assemelham-se também no “cansaço por carregar nos ombros o peso de predestinações que não escolheram, no corpo surrado de tanta esquina” (Baptista, 2017, p. 216), na vida roçada do “cotidiano brasileiro sem metáforas, sem véus” (Baptista, 1999, p. 46), mas, até pouco tempo, com máscaras, afinal há perigo no contato, no contágio, no vírus. No momento em que usamos máscaras, caem definitivamente as máscaras que encobriam a relação da clínica com a moral e a urgente tarefa em interferir nesse quadro. O humanismo mata! E, crivados pela moral e bons costumes humanistas, os muros para a alteridade estão ainda mais fortalecidos.
No Fórum “Pandemia na Rua”[15], realizado em 2020, em formato online, um representante da população em situação de rua de Fortaleza disse: “a preocupação é com a transmissão”, o que, até então, parecia óbvio. Sim, há perigo no contato, no contágio, no vírus. Eis que outro representante, dessa vez de Santos, fala: “o vírus somos nós”, anunciando que, apesar da trivialidade em preocupar-nos com a transmissão, a moral asséptica e ascética preocupa-se e elege outro vírus: a rua, o povo. E não é que lavar as mãos, utilizar máscaras e manter o distanciamento social sejam medidas descabidas, posto que elas cabem muito bem na lógica asséptica do moralismo e individualismo neoliberais. A tragicidade do vírus e a porosidade dos objetos denunciam uma dimensão racial e geopolítica do sofrimento (Sant’Anna, 2020; Butler, 2020); denunciam a pobreza.
No entanto, esse trabalho não diz da pobreza a partir dos recortes mais encontrados: atendimento à população pobre; estrato da população para aplicação de testes e intervenções; descrição; consequências da pobreza ou mesmo adaptação do atendimento e técnicas ‘psis’. Ainda que, sob uma ótica madura, se avizinhe a esse último, se trata, em contrapartida, de uma perspectiva que, no encontro com a pobreza, ou ainda, com a precariedade da vida (Butler, 2015), produz contornos que borram o capital, a fábrica, a empresa, a cidade e a ciência; desmorona-se e não se adapta, colocando em questão conceitos como universalidade, transformação social cidadania ou mesmo caridade (Dantas; Oliveira; Yamamoto, 2010) – em suas versões ascéticas, científicas e liberais, a saber: humanismo, empatia e #psicologiaporamor.
Trata-se, pois, de um encontro-feito-processo distante da lógica asséptica, ascética, liberal e humanista, que escapa à Ordem, aos marcos do capital, não se circunscrevendo à prescrição de modos de vida, sejam eles Baseados em Clarividência, em Evidência, ou em Redução de Danos.
E sempre tinha alguém [estudante] que falava ‘não vi nenhum usuário de drogas’, porque as pessoas tinham no imaginário que iam chegar lá e as pessoas iam tá fodidas na mer..., tá usando alguma coisa, né? Eram míopes pra poder perceber que tavam lidando ali... O que é redução de danos traz é justamente que... essa provocação no olhar, que não é o olhar o usuário de drogas, é olhar o sujeito [...]. (J.)
Os termos ‘olhar o sujeito’ e ‘respeitar o desejo do outro’ são consubstanciais. Os lemos como prenúncio de uma cumplicidade afetiva com a ascese que o outro desenha para si no encontro com os(as)(es) psicólogos(as)(es) redutores – e não com o ideal ascético da abstinência, para o qual os desejos e afetos precisam ser suspendidos para garantia da sobriedade e da salvação, não necessariamente do corpo, pois já o fora condenado, mas do espírito. “A carne é fraca”[16] –. No entanto, esses termos não são ilesos à moral que embriaga e alucina, também eles podem ser imbuídos de mistificação, e o são.
Primeiro, por ascese e ideal ascético, referimo-nos à ascese afirmativa e à ascese negativa (Sousa, 2005, p. 26-29), respectivamente. Essa última diz da crença no “além-vida, na metafísica”, na verdade, no dualismo. Tem repulsa a “falta de sentido, ao absurdo da vida”, preferindo, assim, se valer dessas crenças póstumas, verificáveis e verificadoras. Não é a vida que importa, mas a ‘verdade’, seja na versão cristã em um novo céu e uma nova terra em Cristo, seja na científica e filosófica que aponta na ‘verdade’ a sua finalidade e parte de um a priori ‘verdadeiro’. Desse modo, esse tipo cultural ocupa-se de uma ‘vida ideal’, ilesa, mística, madura e objeto da verdade (Sousa, 2005).
Se, por drogas, dizem das substâncias que interferem e agenciam os sentidos, percepções e ações de quem usa, ou que seu uso está às voltas com uma falta que brinca de pique-esconde, fazemos uso dessas associações ‘psis’ e clichês, ao menos aqui, para apontar uma droga letal, lícita, apátrida, ecumênica e viciante que também reifica, agencia, individua, civiliza e assume uma dinâmica de presença-ausência: a verdade. A verdade é moral. A moral padece da verdade.
– São esses canhões, Tistu, que fazem a riqueza de Mirapólvora – exclamou com orgulho o Sr. Trovões. [...]
Essa notícia não pareceu inspirar a Tistu o mesmo orgulho.
Então, pensou ele, a cada tiro de canhão, quatro Tistu sem casa, quatro Carolo sem escada, quatro Amélias sem cozinha... Então é com essas máquinas que se perde o jardim, o país, a perna, ou alguém da família... Esta é a verdade! (Druon, 1976, p. 50).
Ainda no escopo do ideal ascético ou ascese negativa, pode-se acrescentar que o desejo, a contragosto do que as afirmações em análise (‘olhar o sujeito’ e ‘respeitar o desejo do outro’) parecem sugerir, em si mesmas, pode estar colado à política hegemônica do desejo, qual seja, a micropolítica reativa (Rolnik, 2019). Nessa posição, a subjetividade é reduzida a sua experiência como sujeito, olha-se um sujeito e respeita-se o seu desejo. Semelhante a moral, a verdade, o desejo também é arma, e vale dizer que esses termos e efeitos são consubstanciais, embora vazem, especialmente o último. Dito de outra forma, o desejo também é capturável.
Em vez da força das armas militares, as armas de que se utiliza o capitalismo globalitário são de duas ordens: a força pulsional e seu porta-voz, o desejo, sua arma micropolítica, articulada a uma aliança com as forças políticas locais mais reativas, sua arma macropolítica (Rolnik, 2019, p. 81).
A restrição ao sujeito, ou seja, aos conhecimentos, sentidos e percepções próprias da forma-sujeito, operada nessa posição do desejo, contribui para a conservação do status quo, para a manutenção do plano vigente, submetendo-se, assim, ao regime do inconsciente colonial-racializante-capitalístico ou colonial-cafetinístico – à apropriação pelo capital da vida e do viver –. Afinal, como já sabemos, a subjetivação também é um projeto moral. Outrossim, o desejo pode ser conduzido por uma bússola moral (Rolnik, 2019), apontando sua agulha para o que já é conhecido, familiar, ileso, para um hemisfério, um caminho, uma fôrma institucional, reduzindo subjetividades “a esqueletos de uma retórica seca e vazia, destituída da carne de um corpo vivo” (Rolnik, 2019, p. 73), vociferando “ecos, discursos-clichê e palavras alheias envoltas numa aura de verdade” (Rolnik, 2019, p. 74) (da ciência, do consumo de drogas, do cuidado, do sujeito, da psi, da formação).
Em contraposição ao escopo da ascese negativa e da política do desejo na posição micropolítica reativa, a ascese afirmativa se desenha no encontro com a vida e o viver, não estando, portanto, preocupada com a “verdade, mas com o equívoco de pensá-la como única perspectiva diante da qual todas as outras devem ser avaliadas” (Sousa, 2005, p. 27). É uma ascese da vida, não contra a vida (Sousa, 2005). É da vida e sua potência de criação e diferenciação que se ocupa, não carecendo de paraísos ou a prioris. “A crença no paraíso é uma droga” (Rolnik, 2019, p. 96).
Nesse sentido, a política de ação do desejo exerce uma posição desviante em relação ao regime do inconsciente colonial-racializante-capitalístico. Diferente da micropolítica reativa, essa posição ativa não é orientada por uma bússola moral, mas ética, onde se aponta para a vida e não para quaisquer hemisférios previamente dados, criando, assim, uma diferença do que está po$to no regime vigente, nomeado como antropo-falo-ego-logocêntrico. Desejo, aqui, está às voltas com o movimento de “conservação da vida em sua potência de germinação” (Rolnik, 2019, p. 56). O desejo e o polegar de Tistu têm em comum a possibilidade maquínica de fazer germinar, de verdenejar, de insurgir.
- Meu filho, disse enfim, após madura reflexão – ocorre com você uma coisa extraordinária, surpreendente! Você tem polegar verde...
- Verde!, exclamou Tistu muito espantado. – Acho que é cor-de-rosa, e até que está bem sujo! Verde coisa alguma! Olhou seu polegar, muito normal.
- É claro, é claro que você não pode ver – replicou Bigode. – O polegar verde é invisível. A coisa se passa por dentro da pele: é o que se chama um talento oculto. Só um especialista é que descobre. Ora, eu sou um especialista. Garanto que você tem polegar verde (Druon, 1976, p. 22).
No entanto, nesse caso, diferente do polegar verde, não há mistério nem interioridade. Não se passa dentro da pele, mas à flor da pele, na pele pueril encarniçada de mundo. Tampouco precisa de especialistas, pois, quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare (Barros, 2000, p. 341). A verdinagem é a (re)ativação das virtualidades, não é como aprender uma coisa nova, mas como desaprender a aprendizagem, recuperando o verde em nós, a capacidade de diferir, experimentar – “ali onde ela [a vida] se encontra em estado mais embrionário, onde a forma ainda não ‘pegou’ inteiramente, e a atração irresistível que exerce esse estado de Imaturidade, no qual está preservada a liberdade de ‘seres ainda por nascer’” (Pelbart, 2013, p. 31). É recuperar o “genital inato e recusar o nascimento biológico”, a maturidade, não porque não se quer viver, mas porque nascer de novo é uma exigência que não cessa (Pelbart, 2013, p. 33), uma exigência “para recriar um corpo que tenha o poder de começar” (Pelbart, 2013, p. 33).
Há que se apostar, em detrimento da moral e seus efeitos ascéticos, assépticos, ‘psis’, fabris, roucos e clichês, em uma ascese outra, que afirme uma vida: neutra, desnudada[17], imoral. “Toda vida é desnudamento, abandono das vestimentas, dos códigos [...] não que nos dirigimos para um buraco negro niilista. Mas ao contrário para sustentar-se no ponto em que se intercambiam atualização e virtualização; para um ser criador” (Pelbart, 2013, p. 34). Nesse ponto, a vida dá ponto, não a moral ou a formação. Aliás, ela emprenha na formação de um movimento de dessubjetivação[18].
Comprometidas, por sua vez, em dizer dos efeitos dos encontros com pessoas “muitas vezes machucadas, ébrias, deprimidas, ou exaltadas pela diminuição do uso e condições existenciais tétricas” (Lancetti, 2015, p. 55); não só, no encontro com pessoas que despacham as assepsias sociais, é preciso: entrar e se abaixar; dar passagem a pensa do corpo, com rigor; gaguejar – uma linguagem, uma(s) teoria(s), uma(s) técnica(s); infantilar – uma(s) história(s), uma vida, uma (des)razão; colocar o corpo no sol, inseguro do risco incurável de feder a gente; não sair ileso; descolar a retina – visão e poder são fraternos; fugir da compaixão, da caridade; não se apaixonar – pela verdade, pelo poder, pela Disciplina, pelo paraíso, pela terapêutica; insistir na potência escorregadia e viva da encruzilhada; e, talvez, por último, levar e levar-se ao limite em estado verde: de germinação, multiplicidade, desnudamento e puerilidade.
Concluir, talvez, fagocite as perguntas, memórias, afetos e onirismos alinhavados até aqui. Não que indicar proposições, caminhos ou descaminhos não seja também saudável e, por sua vez, ético, mas, o que nos interessa aqui é manter uma abertura para multiplicidade. Até então, não há como desassociar a psicologia da moral, pois, fazer isso seria apostar numa ingenuidade quanto às relações de poder mantenedoras da instituição psi. No entanto, de igual modo, não há como manter uma oratória maduro-metodológica que imprime uma ciência sem moral, como se os nossos perfumes, roupas, gestos, vozes, silêncios, édipos, prescrições, consciência, amor, cidadania, humanismo, desejo, métodos e eficácia não pudessem, eles mesmos, serem conservas de modos de vidas capitais e morais. A moral é a droga do nosso tempo. Tendo dito isso, avisamos desapressado/as: alguma moral até nos serve, desde que a ponhamos à prova: da dança, da sensação de corpo, do suor. Afinal, há de lembrarmos do que disse Stela do Patrocínio (2001, p. 143): “[...] quem vence a saúde é outra saúde, quem vence o normal é outro normal, quem vence um cientista é outro cientista”; quem vence a moral é outra: imoral.
Há de ruminarmos, no entanto, que, se estamos tratando de uma droga lícita, não dizemos só da sua “passabilidade” social, mas, mais do que isso, da sua condição para própria civilidade, para a habitação de um social e, portanto, de uma pedagogia moral que faz falar, faltar, desejar, amar... E agora? Devemos nos abster totalmente ou reduzirmos seus danos? O que implica uma coisa e outra? Mais ainda, como estancar a fissura por moral (emprenhada de pressupostos ‘psis’, educativos, artísticos, publicitários e afins) que confessa, como estampado no 4º passo da irmandade dos Alcoólicos Anônimos ([s.d.]), a necessidade de um “minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos”, como se isso nos fizesse grande?
Assumirmos a ousada tarefa com que Nietzsche (1977) nos desafiou, há mais de um século atrás, de conceber uma psicologia orientada pela Vontade de Potência, deixando para trás qualquer resíduo de moralidade, exigirá, portanto, habitarmos muitas encruzilhadas, evocarmos nossos devires-Exu e semearmos, ainda, tantos Titsus quantas fábricas de canhões encontrarmos pela frente. Vale, portanto, uma última advertência: ninguém sairá ileso!
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[1] Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Sergipe (2021). Doutorando em Educação (UFS). E-mail: robertcarmo6@gmail.com
[2] Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013). Professora Adjunta do Departamento de Psicologia e dos Programa de Pós-Graduação em Psicologia e em Educação da Universidade Federal de Sergipe. E-mail: michelevasconcelos@hotmail.com
[3] Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2001). Professora Titular do Departamento de Psicologia Social e Institucional de do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: simonepaulon@gmail.com
[4] Personagem da literatura infanto-juvenil “Menino do Dedo Verde”, do Maurice Druon (1976).
[5] A escolarização funciona como projeto de civilização, como um dispositivo, no sentido foucaultiano, que adere à pessoa suposta humana um “padrão universal de moral e costumes” (Veiga, 2002, p. 96). Ou ainda, que produz “uma pedagogia que fizesse da civilização a própria natureza humana, homogeneizada para toda a sociedade” (ibid., p. 100) mediante um “controle detalhado e minucioso do corpo” (ibid., p. 100).
[6] Em relação aos pronomes pessoais dispostos no texto, será utilizada a primeira pessoa do singular quando associada à vivência de um ou uma das autoras, mantendo a perspectiva da narrativa em 1ª pessoa e o estilo de escrita da mesma.
[7] Abreviatura para Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde.
[8] Baptista (2000, p. 80) discorre acerca dessa formação que faz brilhar por esquivar-se do sol. O sol faz suar, feder, expõe à vida, aos viventes, às coisas.
[9] Para a pesquisa de mestrado, desenvolvemos uma roda de conversa com psicólogas(os) que trabalham e/ou trabalharam com redução de danos na cidade de Aracaju-Sergipe ou Salvador-Bahia.
[10] Utilizamo-nos deste fato – não uma metáfora –, para elucidar que a desigualdade social também tem odor; e historicamente a população menos favorecida economicamente, especialmente, as pessoas de pele negra, têm suas carnes vituperadas como fétidas.
[11] “A liberdade tendo fim em si mesma ausenta-se das tramas do cotidiano e da história e integra-se ao indivíduo” (Baptista, 2000, p. 112).
[12] Baptista (2000) utiliza essa nomenclatura a partir do pensamento proposto por Walter Benjamin, para designar o dia a dia inseparável da luta social.
[13] Em Mirapólvora, os canhões puderam ‘produzir outras coisas’: flores diversas; por isso, Miraflores.
[14] Pelbart (2013, p. 222), a partir de Foucault, chama de veridicção os saberes especialistas, considerando-os, portanto, articulados às formas de governamentalidade (poderes) e às práticas de si (subjetivação).
[15] Organizado pelo Coletivo Conexões: Políticas da Subjetividade e Saúde Coletiva, vinculado à Faculdade de Ciências Médicas do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp. Mais informações em: https://sites.google.com/dac.unicamp.br /pandemianarua/p%C3%A1gina-inicial. Acesso em 27 de abr. de 2023.
[16] “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; na verdade, o espírito está pronto, mas a carne é fraca” Mateus 26:41 (Bíblia, 1969).
[17] Vale dizer que “uma vida” é um conceito desenvolvido com Deleuze e que “neutro” não tem relação com neutralidade, mas com a rejeição de qualquer categoria.
[18] Dessubjetivação como o que “arrasta os indivíduos dados para fora de sua identidade constituída, desmanchando ademais fronteiras entre as esferas humana e não humana, animal, vegetal, mineral, mítica, divina. Mas a partir desses devires imperceptíveis nascem sujeitos larvares, múltiplos eus, subjetivações outras” (Pelbart, 2013, p. 228).