O caminhar como produção de sentidos e prática pedagógica de construção narrativa

 

The walk as production of senses and pedagogical practice of narrative construction

 

El caminar como producción de sentidos y práctica pedagógica de construcción narrativa

 

Reginaldo Bastos dos Santos[1]

Universidade Federal de São João del Rei

 

Maria Clara Guimaraes Ferrer Carrilho[2]

Universidade Federal de São João del Rei

 

Resumo

O presente estudo é uma reflexão sobre o ato de caminhar pela cidade enquanto produção de sentidos e como gatilho para a escrita. Para tanto, busca-se, primeiramente, desenvolver uma sintética perspectiva histórica da figura do caminhante, muito marcada pelo flâneur, e suas relações com a filosofia, com a literatura e com as artes visuais e performativas.

Palavras-chave: Fabricação de narrativas; Produção de sentidos; Processos artísticos.

 

Abstract

This study is a reflection on the act of walking through the city as a production of senses and as a trigger for writing. To do so, we seek, first, to develop a synthetic historical perspective of the figure of the walker, very marked by flâneur, and its relations with philosophy, literature and the visual and performing arts.

Keywords: Narrative fabrication; Production of meanings; Artistic processes.

 

 

Resumen

El presente estudio es una reflexión sobre el acto de caminar por la ciudad mientras producción de sentidos y como gatillo para la escritura. Para ello, se busca, primeramente, desarrollar una sintética perspectiva histórica de la figura del caminante, muy marcada por el flâneur, y sus relaciones con la filosofía, con la literatura y con las artes visuales y performativas.

Palabras clave: Fabricación de narrativas; Producción de sentidos; Procesos artísticos.

 

Introdução

Sobre dois pés o ser humano caminha em busca de novos horizontes a abrir os solos como possibilidade de conquista. Deslocar-se: essa é a condição primeira que nos faz sair de um lugar ao encontro de um outro, caminhar na eterna busca de novos territórios, essa é a jornada do ser humano no eterno encontro consigo mesmo. O caminhar está relacionado àquilo que é descrito como característico da natureza humana, caminhar ereto sobre dois pés. Em contato com o mundo que nos circunda, descobrimos aquilo que nos movimenta, assim guiados pelo desejo de mobilidade, os seres humanos descortinam paisagens a pensar no fluxo dos pés.

Todos os crepúsculos que contemplo inspiram-me o desejo de ir para o oeste, tão distante e tão belo, como aquele dentro do qual mergulha o sol que parece migrar diariamente para oeste e nos tenta a segui-lo. Ele é o Pioneiro do Grande Ocidente, a quem as nações seguem. Sonhamos toda a noite com aqueles contornos de colinas no horizonte, posto que sejam formados apenas de vapor e tenham sido antes incandescidos com os raios solares. A ilha da Atlântida e as ilhas e jardins das Hespérides, uma espécie de paraíso terrestre, parecem ter sido o Grande Oeste dos antigos, envolvidos em mistério e poesia. (THOUREAU, 1950, p. 19)

 

Ao contemplar os crepúsculos, Henry Thoureau (1950) se deixa levar pela paisagem como faz um peregrino entregue aos caminhos da natureza. O autor supracitado não só vê, como vê com os sentidos, pois reconhece o contorno das colinas, os raios de sol a compor com as paisagens e, o impulso que o guia a lugares distantes. É caminhando que o filósofo se deleita a partir do imaginário sobre a possibilidade de um possível paraíso terrestre. Em sua jornada, Thoureau (1950), buscava o verdadeiro sentido de liberdade. Ser livre para o autor era libertar o espírito dos compromissos mundanos, de uma vida corriqueira e muitas vezes sem sentido. Foi caminhando que o filosofo aprendeu a cultivar a saúde e a cuidar de si. “Penso que não posso conservar a minha saúde e disposição se não passar pelo menos quatro horas por dia - e geralmente mais do que isso - perambulando pelas matas, montes e campos, absolutamente livre de todos os compromissos mundanos” (THOUREAU, 1950, p. 6).

É pelo ato de contemplação que o filosofo vê a vida a partir dos detalhes. Thoureau (1950), em seu livro intitulado Caminhar a pé, também nos faz esse convite. Primeiramente, o filósofo nos convida a se desapegar das coisas mundanas como forma de nos libertarmos daquilo que nos prende e que nos faz girar em torno dos compromissos. O autor afirma que é na leveza do caminhar enquanto produção de conhecimento, que o sujeito se vê livre de suas próprias amarras, quando este entra em contato direto com suas sensações, a formular e a fabular histórias. Como diz o filósofo francês Frederic Gros (2010, p. 28), quando o mesmo reflete sobre a ação de compor ao caminhar, "o pensamento brota do movimento", movimento como impulso criador na relação do sujeito que se abre para o mundo, pois pensa caminhando e caminha pensando. Nessa perspectiva ao caminhar o sujeito se abre às novas possibilidades espaciais e se deixa ser afetado numa relação profunda entre interior e exterior, configurando deste modo um tipo de relação singular para com o espaço, a produzir pensamentos leves e profundos.

Historicamente, a caminhada ao ar livre era vista pelos filósofos e escritores como uma atividade fundamental à produção intelectual de sua época. Um escritor notável que faz menção a esse fato é o Friedrich Nietzsche (2008). Para Nietzsche, a “caminhada ao ar livre foi como o elemento de sua obra, o acompanhamento permanente de sua escrita" (GROS, 2010, p. 19). O autor em questão, percorria longas distâncias por cerca de seis a oito horas por dia. Depois disso, entregava-se a uma escrita incessante na qual colocava as ideias surgidas ao longo desse processo. Não por acaso, seus textos são repletos de alusões à locomoção, a paisagens e a fenômenos climáticos. A consolidação máxima de seu processo de pensar-caminhar fica clara em seu mais célebre livro, Assim falou Zaratustra, que narra a trajetória de um homem que, aos trinta anos, deixa sua casa e isola-se nas montanhas por dez anos. Após esse período, desce de lá e busca disseminar suas ideias pelo mundo afora. Segundo o filósofo e escritor, o corpo não se separava da mente em relação à atividade em curso. Nessa relação do corpo para com a escrita, o corpo aprendia caminhando por entre os seres e as coisas em meio à natureza, na condição de existência orgânica do ser humano.

Já na descrição de Jean Jacques Rosseau (1986), o caminhar se configurava não só enquanto atividade física, mas também como uma prática de reflexão, caracterizado por ele como caminhada solitária na busca de si mesmo. Para não perder as lembranças das caminhadas diárias, das contemplações encantadoras que essas provocaram, Rousseau, decide fixar, por meio da escrita, as recordações que ainda lhe vinham à mente. O filósofo e escritor em suas caminhadas, anotava tudo que via e, ao anotar, refletia sobre a sua condição de ser e estar no mundo. É interessante perceber como a escrita do filósofo era marcada diretamente pelo caminhar, pautado pelos atravessamentos. “Os lazeres de minhas caminhadas diárias foram frequentemente preenchidos por contemplações encantadoras das quais tenho desgosto de ter perdido a lembrança” (ROUSSEAU, 1986, p. 26). Era por meio da escrita que o filósofo fixava as suas reminiscências mais afetuosas, a restituir-lhe não só a memória do vivido, mas a alegria de poder revisitá-las a cada nova releitura. 

Cotidianamente, estamos fadados a atravessar do ponto A ao B sempre com o mesmo objetivo, o de se chegar a algum lugar. São raríssimos os momentos em que paramos para ver como quem se deixa levar pelo sabor dos acontecimentos. São tantos trajetos que nos passam desapercebidos em nossos percursos, momentos que poderiam ser preciosos, mesmo que fossem vividos por um instante. Como transeuntes passageiros deixamos escapar pelas mãos esses pequenos instantes sem nos darmos conta de sua grandeza. Embora sejam três filósofos com características muito especificas e singulares começo a intuir que;

• Primeiro: o deslocar-se do corpo resulta, então, em um deslocamento da mente, do afeto, e influência em partes o nosso modo de escrita.

• Segundo: ser afetado, por diversas paisagens, climas, ambientes, e o encontro com outros corpos, sejam eles humanos e ou de animais, também promovem sensações que atravessam o caminhante.

A caminhada, nesse sentido, não só libera os pensamentos como também promove um possível encontro entre o corpo e o mundo. O deslocar-se não se resume em sair de um lugar para se chegar a outro e sim em um modo de liberar os pensamentos. Ao deslocar-se, desloca-se a mente, o afeto. Deixar-se ser afetado pelo mundo, "auxiliá-los-ia, então, a encontrar caminhos desconhecidos e novos territórios dentro de nós" (BOITO, 2018, p. 51). Pensando o corpo na modernidade que atravessa diariamente os espaços urbanos, percorro esses mesmos caminhos urbanos, mas como quem rompe fronteiras entre os desejos e os pensamentos. Assim, são pelas contradições existenciais de ser e estar no mundo que me faço presente a ocupar os espaços de convívio.

No meu entendimento estar corpo a corpo com a cidade se faz presente no enfrentamento diário, seja este enfrentamento relacionado aos medos ou às mazelas urbanas, que muitas vezes nos impossibilitam de sermos afetados pela cidade e que, de certo modo, também acabam nos impossibilitando de afetá-la e de transformar os espaços de convívio. Vivemos a impossibilidade da experiência em meio à violência urbana que se dá de diversas maneiras. Vivemos um apaziguamento forçado das contradições econômico-sociais que tendem a homogeneizar e pasteurizar nossos desejos e pensamentos. Tal estado de inercia da população diante dessa questão tem uma relação direta com a “diluição das possibilidades de experiência na cidade contemporânea”, como afirma Paola Berenstein Jacques (2006, p. 23). Considerando que a arquitetura não foi pensada de forma democrática, no sentido literal do termo – como bem de uso fruto de todos os cidadãos que compõe a cidade-estado, o grande desafio na modernidade então seria pensarmos de que maneira podemos intervir nos espaços públicos a gerar outros e novos modos inventivos de viver.

A cidade, para o caminhante, é um território aberto que oferece suas ruas, avenidas e sua arquitetura à exploração. Intervir nos espaços públicos no contexto atual é uma forma que os artistas encontram de ressignificar o espaço em relação aos seus modos de uso. No corpo da cidade, para se produzir novos modos de vida, é necessário a abertura de frestas. Dessa maneira, não só exploramos os espaços da cidade como também experienciamos as paisagens. Para experienciar as possibilidades narrativas do corpo no urbano, a partir de uma espécie de romantismo boêmio, determinados artistas invocavam em suas práticas de deambulação a imagem do flâneur, “aquele personagem efêmero que, rebelando-se contra a modernidade, perdia o seu tempo deleitando-se com o insólito e com o absurdo, vagabundeando pela cidade” (CARERI, 2013, p. 74). Figura esta derivada do conto “O homem das multidões”, de Edgar Allan Poe (1840), arquétipo este do homem que vaga pelas ruas a observar seus passantes e vivências efêmeras do cotidiano urbano moderno (MONTE, 2015).

Tanto escritores quanto performers de teatro e das artes plásticas tomam para si a cidade como campo de criação. Os deslocamentos elegem e configuram o espaço urbano como meio, local no qual se desenrolam as experiências mais diversas, das quais se captam fragmentos. Composta por multiplicidades, a cidade contemporânea é sinônimo de movimentação, mobilidade, processo de criação artística. Os artistas “veem a cidade como campo de investigações artísticas aberto a outras possibilidades sensitivas, e assim, possibilitam outras maneiras de se analisar e estudar o espaço urbano através de suas obras ou experiências” (JACQUES, 2006, p. 131). O mais interessante nesse contexto é percebermos como a arte se insere a vida urbana levantando inúmeras questões, inclusive da própria arte em si.

Verônica Veloso (2017, p. 44), ao refletir sobre a crise da arte contemporânea e como o urbano aparece e se manifesta na explosão da cidade a partir de suas dissoluções, comenta que “o cenário de dissoluções identificado na arte contemporânea constituiria uma reação à ideia de urbano e não a cidade propriamente dita”. A pesquisadora e professora da USP do departamento de Artes cênicas da área de licenciatura passa então a partir dessa reflexão a investigar o que gera a cena contemporânea deambulatória que se inscreve na cidade como arte urbana. Na leitura da pesquisadora o urbano,

[...] trata-se, antes, de uma forma, a do encontro e a da reunião de todos os elementos da vida social, desde os frutos da terra [...] até os símbolos e as obras ditas culturais. No próprio seio do processo negativo da dispersão, da segregação, o urbano se manifesta como exigência do encontro, de reunião, de informação. (LEFREBVRE, 2016, p. 75 apud VELOSO, 2017, p.44)

 

O que fica pra mim enquanto pesquisador na área das Artes Cênicas é justamente o que a pesquisadora traz ao dialogar com o autor supracitado acima, o que me faz pensar a respeito da importância do encontro. Pensando nessa questão, então começo a me perguntar. Como se dá a experiência em meio à multidão em espaços públicos como lugar de encontro? Encontro, aqui, no sentido amplo da palavra, no ato de se encontrar de fato com as pessoas e principalmente com a cidade, em outras palavras, com essa reunião de todos os elementos da vida social, como lugar de experiência. A experiência no sentido vivo da palavra, como ato de interrupção para que algo nos aconteça. Nessa direção compactuo com o mesmo gesto de experiência do qual o pedagogo espanhol Jorge Larossa (2002), se debruça. Para o autor a experiência requer um gesto de interrupção,

um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LAROSSA, 2002, p. 23-24).

 

Experienciar a cidade a partir do corpo em contato com o mundo que nos circunda, no sentido de cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos e saber falar sobre o que nos acontece. Acredito que a arte nos coloca, nós seres humanos justamente nesse lugar de sensibilidade. As práticas de mobilidade urbana tendem a se definir como uma criação em que o artista se coloca em autorrepresentação. Com relação a esse aspecto, o corpo do artista é o material ideal à sua obra, que durante a ação se redefine incessantemente. Nessa perspectiva, o espaço urbano como lócus da criação é o lugar perfeito para a ação poética. O artista não só se reinventa como dá vasão ao imaginário coletivo, que também se reinventa em meio às paisagens urbanas. Esses cenários permitem uma licença poética para tratar sobre paisagem, pois vão além do olhar puramente geográfico. Nas palavras de Vicente Del Rio (1995, p. 94), “[a] paisagem deve ser entendida como o cenário que nos rodeia, participa e conforma o nosso cotidiano”. Ou seja, a paisagem que nos rodeia é parte de nós mesmos, da mesma forma que nos reflete.

Ao retomar a cidade como lugar de criação, os artistas reencontram o significado da arte no contexto urbano. Na prática, os artistas descobrem como é estar nesse lugar onde a arte deixa os espaços institucionalizados e passa a ocupar as ruas como lugar de pertencimento, tanto da classe artística quanto dos transeuntes. Ao ocupar as ruas, o corpo do artista se desconstrói ao romper com os padrões pré-estabelecidos da arte. Voltando um pouco no tempo temos um caso exemplar que é a dos dadaístas que eram fortemente iconoclastas, que buscavam a destruição do conceito de arte em direção a uma nova arte, a antiarte. Os membros da Internacional Situacionista, vinculados à acepção de arte que almejava uma ruptura radical da antiga estética burguesa, também deram continuidade a esses questionamentos no que tange a arte em favor de novas expressões.

Contra os padrões da modernidade que enxergavam a arte como produto mercantil, os artistas vinham na contramão, propondo outros modos de produção artística: Land Art, happenings, instalações, performance arte. Estar na rua era estar corpo a corpo com a cidade a modificar os espaços públicos de convívio. Os artistas tinham como um dos propósitos a ressignificação dos ambientes urbanos na sua forma de uso. Para que a arte se transformasse enquanto novos modos de produção, primeiro era preciso transformar os espaços de trânsito (fluxo urbano/apropriação do espaço). Para Careri (2013), a simples variação das percepções corporais decorrentes da travessia do espaço constitui uma forma de transformação da paisagem que, ainda que não deixe sinais tangíveis, modifica culturalmente o significado do espaço e, em consequência, o espaço em si. Criar novos espaços era negá-lo na sua primeira condição de ser. Negar não se dá como negação da vida, mas como combustível para o ato criativo. Ao tomar os espaços urbanos como lugar de criação, os artistas performers não só promovem um possível diálogo com corpo da cidade, como provocam o olhar do outro a reconfigurar as espacialidades.

No artigo “Sobre um ator para um teatro que invade a cidade” (2011), Carreira nos aponta uma possível reflexão quanto às práticas performáticas como forma de ressignificação do espaço público. O autor parte da premissa de que a cidade vivida acaba sendo um lugar de passagens fortuitas e dela pouco ou quase nada é visto de forma atenta, a não ser em situações alarmantes que se mostram significativas socialmente. Segundo ele, “nós olhamos e somos olhados” na cidade vivida, porém nosso comportamento cotidiano de passagem nos tira do lugar de encontro: A circulação cotidiana não é pródiga em propor encontros vinculantes. As performances artísticas atuam diretamente sobre esses elementos, estimulando novas posturas e relações, pois buscam rupturas do cotidiano. O teatro nas ruas interfere na trama complexa constituída por diversos elementos culturais e pelos procedimentos de circulação cotidiana. “A fratura das rotinas é ponto chave da produção de sentidos que o espetáculo propõe, pois supõe outras formas de convivência, ainda que momentâneas” (CARREIRA, 2011, p. 15-16).

A rua é por excelência o lugar do habitar, da diversidade, onde todos convivem e partilham dos mesmos espaços. Quando o artista se propõe a dialogar com a cidade, ele reivindica um espaço de convívio entre os sujeitos que a ela pertencem. As performances artísticas ressignificam esses espaços e produzem novos sentidos. Pensando no corpo que se inscreve no espaço, vejo o solo se abrir como quem abre os olhos para o mundo. Olho para o espaço como quem habita as paisagens, assim como um flâneur a intervir no espaço, e me permito por alguns instantes ser atravessado numa relação complexa entre os sujeitos e as coisas no decorrer do caminho. Nada está dado, a vida se faz no presente em constante construção. Entendo que é desse modo que as paisagens vão se construindo. Nesse sentido, vejo a escrita do espaço como a escrita do corpo. O corpo que desenha as paisagens e gera novas percepções a respeito do mundo. De acordo com Besse (2014, p. 47), a paisagem é “o acontecimento do encontro concreto entre o homem e o mundo que o cerca”, sendo esse encontro a experiência – experiência de paisagem. E o fator primordial de experimentação é a percepção, a forma como o ser se abre e se permite ao momento, ao sensível.

Na medida em que os artistas passam a experienciar o espaço urbano, o fazer artístico se contamina de forma hibrida. Assim, deve-se refletir historicamente como um determinado movimento artístico foi contaminando o outro. No caso do teatro, é evidente a contribuição das artes plásticas, como ela influenciou todo um pensamento artístico sobre as artes da cena. O corpo desenha os espaços por entre sombras e luz, distâncias e planos, linhas e níveis, texturas e cores. A escrita do corpo no espaço gera outras leituras mediante o olhar do espectador. São esses detalhes que conferem nuances à obra teatral. Da mesma forma que os grandes mestres pintam seus quadros, como Bob Wilson o faz em seus espetáculos, por exemplo.

 O artista, no seu fazer, sempre busca novos horizontes, no que diz respeito à arte teatral. Quando o artista retoma a cidade, ele a (re)descobre a partir dos sentidos. O corpo que se inscreve no espaço é um corpo que se reinventa em meio à multidão e abre novos espaços para o encontro - encontro como lugar de experiência. No corpo a corpo com a cidade, os artistas vão descobrindo no seu próprio fazer teatral novos modos de produção artística. O primeiro ponto que gostaria de ressaltar é o diálogo entre quem faz e quem vê. Em meio ao espaço urbano, a inserção do público é fundamental para a construção da obra teatral. Não há uma separação entre quem faz e quem vê, assim como não há um holofote que dê certa visibilidade ao ator. Na rua, o ator não compete com os outros elementos do espaço, ele dialoga. A relação do ator com o público se dá de forma direta. O que não significa que o público tenha a obrigação de participar, tendo inclusive a escolha de se retirar a qualquer momento ou sequer chegar a participar do evento teatral.

É nessas condições que os artistas que se encontram na rua se veem a criar. O segundo ponto que gostaria de colocar diz respeito à criação. A criação parte do pressuposto do diálogo entre quem faz e seus interlocutores. Nesse sentido, o artista no corpo da cidade primeiramente identifica a fala daquele determinado espaço em específico, como forma de reconhecer o território. No segundo momento, o artista elabora suas ações teatrais. Se o drama enquanto estrutura ditava as regras da escrita em meados do século XIX, este não mais é o principal elemento da dramaturgia. A escrita do performer parte da captura do instante, embora seja efêmero. É na captura dos instantes que o performer reconfigura os espaços de transição. Pensando no contexto urbano, o corpo do performer é um corpo que se coloca em risco ao ocupar as ruas, praças, prédios abandonados e centros históricos. Quando o performer coloca o seu corpo em risco, gera uma tensão, tensão que se converte em atenção, uma forma de capturar o público. A escrita se faz em ação, é na ação que as narrativas vão se construindo.

Em seu livro Walkscapes: o caminhar como prática estética (2013), ao analisar as vanguardas artísticas como o Dadaísmo, o Surrealismo e o Situacionismo, Francesco Careri nos aponta como podemos compreender o gesto dos artistas que trabalham a partir do espaço urbano como forma de provocar os transeuntes e de ressignificar o espaço. Careri parte do ato de caminhar como gesto estético. Segundo o autor, as excursões urbanas dadaístas marcam pela primeira vez os lugares consagrados como preteridos pelos artistas. A errância no espaço urbano, evocada pela visita dadaísta ao pequeno jardim da igreja Saint-Julien-le-Pauvre, serviu de base para um conjunto de ações voltadas para a intervenção urbana. Em 1924, alguns membros do grupo dadaísta de Paris organizaram um passeio a uma região rural na periferia da cidade. Nessa ocasião, o grupo descobria no andar um ativador do inconsciente, “uma espécie de escritura automática no espaço real capaz de revelar as zonas inconscientes do espaço e as memórias represadas da cidade” (CARERI, 2013, p. 23, grifo no original). Com Breton, Aragon e Picabia, dentre outros, os surrealistas promoviam caminhadas que podiam durar vários dias e que tinham como objetivo promover estados perceptivos em que as fronteiras entre a vida consciente e o sonho se tornassem cada vez mais difusas, estabelecendo franca oposição à racionalidade cartesiana. Conforme Arantes:

A cidade dos surrealistas não revela um espaço regrado e seguro como as cidades de Platão e Descartes; não é metáfora das certezas e verdades prometidas pelos ideais da Razão, mas um espaço prenhe de sonhos, desejos, cruzamentos insólitos, imagens dialéticas, ambiguidades e passagens que devem ser decifradas. (ARANTES, 2010, p. 79).

 

A cidade dos surrealistas revela espaços que, tais como os sonhos, trazem encruzilhadas, trechos contraditórios que se misturam, produzindo, muitas vezes, curtos-circuitos iluminadores (iluminação profana), o inconsciente a romper com o fator razão. “O Surrealismo repousa sobre a crença na realidade superior de certas formas de associações desprezadas antes dele, na onipotência do sonho, no desempenho desinteressado do pensamento” (BRETON, 2001, p. 15). A experiência surrealista ilumina em breves momentos, de forma profana, os sujeitos que perambulam pela cidade. É pela "embriaguez de sentidos, do embaralhamento entre realidade e imaginação, entre a vigília e o sonho, entre o banal e suprarreal" (JACQUES, 2012, p. 120) que os sujeitos são atravessados. Os surrealistas buscam a experiência urbana, a partir de uma realidade não visível, porém palpável pelo ato da imaginação. No entanto, foram os situacionistas que alçaram o gesto de caminhar a um novo patamar de transformação simbólica do território urbano.

Os situacionistas, ao realizarem as psicogeografias[3] através das técnicas de deriva, buscavam produzir estratégias que de algum modo conduzissem os participantes a uma espécie de desorientação programada. Em um trecho de seu livro Teoria da deriva, Debord (1958) propõe um exercício de deriva baseado no conceito de “encontro possível”. Aquele que realiza a deriva[4] deve ser convidado (por alguém que esteja responsável por organizar a deriva) a comparecer em uma hora e lugar determinados para, daí talvez, encontrar alguém. A incerteza como suspensão é o elemento principal do jogo, a despertar e a aguçar os sentidos dos participantes. A atenção dos jogadores ao ambiente desconhecido é redobrada, pois qualquer pessoa a qualquer momento que por ali passar pode ser uma possiblidade de um provável encontro. Ao se inscrever no espaço, o corpo do sujeito não só movimenta o lugar habitado como também o transforma. A partir deste ponto de vista há um deslocamento do “olhar” sobre a cidade que passa a ser lida de outras maneiras, seja através dos sons, cheiros, cores, texturas, luminosidades, o que possibilita o sujeito da ação que está completamente envolvido nesta situação construída de jogo[5], vir a vislumbrar outras narrativas sobre o lugar habitado. O que conta nessa experiência em específico são as vivências e ações decorrentes da apropriação do espaço. Deslocar o olhar para a cidade era um dos propósitos dos artistas que intervinham no espaço urbano. Um dos grupos exemplares do qual tomo como referência é o grupo Fluxus, a forma como o grupo produzia as suas peças para performances minimalistas a orientar comportamentos imprevisíveis no espaço urbano.

PEÇA DE MAPA

Desenhe um mapa imaginário.

Marque um ponto no mapa aonde deseja ir.

Caminhe por uma rua verdadeira segundo seu mapa.

Se não existe rua onde deveria haver segundo o mapa,

faça uma colocando de lado os obstáculos.

Quando alcançar a meta, pergunte o nome da cidade

e dê flores à primeira pessoa que encontrar.

O mapa deve ser seguido exatamente,

ou o evento deverá ser totalmente abandonado.

Peça aos amigos que escrevam mapas.

Dê mapas aos amigos.

(ONO, 2009, p. 126)

 

À princípio pode parecer um tanto quanto estranho a proposta da artista em questão. A proposta em si coloca tanto a artista quanto os participantes no lugar de encontro. O que está em jogo não é o objetivo de se cumprir a tarefa, mas sim a forma como esse tipo de experiência pode modificar o olhar de quem se propõe a realizar tal atividade. A provocação da artista se dá então como possibilidade de criar outras maneiras de se relacionar com a cidade e com as pessoas. No ato de caminhar, as narrativas vão se constituindo enquanto produção de conhecimento. Pois o gesto do caminhar durante o percurso revela as paisagens, que podem vir a se desembocarem em possíveis modos de escritas. A arte como possibilidade de provocar a si e principalmente o outro convoca os espectadores a participarem do evento. Tanto o(s) espectador(es) quanto o(s) artista(s) envolvido(s) na proposta são fundadores de uma poética que só é possível de forma partilhada. Intervir no espaço urbano também é uma forma de modificá-lo e perceber a cidade a partir de outras camadas para além daquilo que nos é visível. A arte, nesse sentido, não reproduz a realidade tal qual ela é, mas potencializa a vida, dá-lhe uma nova roupagem - um novo sentido de ver as coisas. Ler a cidade também pode ser uma forma de ler as paisagens humanas. São essas pequenas narrativas que compõe a obra da artista Yoko Ono, na sutileza de compor com as demais pessoas.

Caminhar e experimentar a urbe a partir do corpo se revela como forma de se conhecer e conhecer o outro, não só o outro, mas as outras camadas que compõem com a grande metrópole em constante movimento. Por tudo que foi colocado até aqui neste presente artigo, considero que a arte urbana nessa direção nos abre espaço tanto para outras e novas leituras a respeito do espaço urbano quanto a possibilidade de construção artística. É fato a contribuição de alguns movimentos artísticos que caminharam a partir dessas e outras leituras em relação ao contexto urbano, como os dadaístas, os surrealistas, os situacionistas, entre outros. E o que fica pra mim enquanto pesquisador dadas essas leituras é o ato de refletir como a arte vai se transformando no decorrer do seu próprio fazer sempre buscando outros entendimentos sobre a própria arte e como essas possibilidades artísticas aqui apresentadas em certa medida podem gerar outros e novos modos de produção artísticas em busca de outras linguagens.

 

REFERÊNCIAS

ARANTES, Priscila. “Cartografias líquidas: a cidade como escrita ou a escrita da cidade”. In: BAMBOZZI, Lucas; BASTOS, Marcus; MINELLI, Rodrigo (Org.). Mediações, tecnologia e espaço público: panorama crítico da arte em mídias móveis. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2010.

BESSE, Jean-Marc. O gosto do mundo: exercícios de paisagem. Rio de Janeiro: UERJ, 2014.

BRETON, André. Manifesto do Surrealismo. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001.

BOITO, Sofia Rodrigues. Escritas performativas: textualidades criadas por corpos e espaços. São Paulo. Tese (doutorado) Programa de Pós-graduação em Artes - Cênicas Escola de comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, 2018.

DEBORD, Guy. Teoria da Deriva. Revista Internacional Situacionista, n.2, 1-12, 1958.

CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: G. Gili, 2013.

CARREIRA, André. Sobre um ator para um teatro que invade a cidade. Texto, Cena e formação. Moringa. João Pessoa, Vol. 2, n. 2, 13-26, jul./dez. de 2011.

GROS, Frederic. Caminhar, uma filosofia. São Paulo: É Realizações Editor, 2010.

JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes: corpos e cenários urbanos: territórios urbanos e políticas culturais. Salvador: EDUFBA; PPG-AU/FAUFBA, 2006.

LARROSA, Jorge. “Notas sobre a experiência e o saber de experiência”. Revista Brasileira de Educação, n. 19, 2002.

MONTE, Luiz. Deriva e psicogeografia na cidade contemporânea: experimento situacionista no centro do Recife. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2015. Dissertação de mestrado em design.

NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo, Covilhã. Universidade da Beira, 2008. Disponível em: <http://www.lusofia.net/textos/nietzsche friedrichecchompdf>. Acesso em: 13 ago. 2020.

ONO, Yoko. Grapefruit: o livro de instruções e desenhos de Yoko Ono. Belo Horizonte, 2009.

RIO, Vicente del. Paisagens, realidades e imaginário: a percepção do cotidiano. São Paulo: Paisagem Ambiente Ensaios, 1995.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. As confissões. Rio de Janeiro: Athena, 1940.

THOUREAU, Henry. Caminhar a pé. Ed: Ensaístas Americanos e Clássicos Jackson – volume XXXIII. Rio de janeiro, 1950.

 

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[1]Reginaldo Bastos dos Santos, mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal de São João del Rei/UFSJ (2020). Graduado em Teatro Bacharel (2014) e Teatro Licenciatura (2017) pela Universidade de São João del Rei/UFSJ. E-mail: registeatral@hotmail.com.

[2]Professora de Cenografia, Indumentária e História da Arte nos cursos de gradução e pós-graduação de Teatro da Universidade Federal de São João Del Rei. E-mail: mcferrer@ufsj.edu.br.

 

[3]A psicogeografia, segundo os situacionistas, é um método de aprender o espaço urbano a partir de um "estudo dos efeitos do ambiente geográfico, conscientemente organizado ou não, nas emoções e maneiras, comportamentos e modos de ação, procedimentos e condutas, ações e atos de indivíduos". Esta definição, apresentada na Introdução a uma Crítica da Geografia Urbana (1955) escrita por Debord, foi elaborada a partir de um modo de se pensar outra representação do espaço urbano, que não a imposta pela cartografia oficial do Estado.

[4][deriva]: caminhada aleatória realizada prioritariamente no contexto urbano. Trata-se de um caminhar sem rumo, deixando-se levar pelo sabor dos acontecimentos e pelas pessoas que eventualmente se encontram pelo caminho. 

[5]Para os situacionistas a situação construída de jogo se dava numa relação de proposição lúdica que era a de criar possibilidades de ambiências e acontecimentos que em certa medida era compartilhado pelos artistas em comunhão com as multidões.