Andanças: caminhos trilhados na formação em psicologia

 

Wanderings: paths taken in training in psychology

 

Andanzas: caminos recorridos en la formación de psicólogos

 

 

Eliane Regina Pereira[1]

Universidade Federal de Uberlândia

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Resumo

Este ensaio nasceu da experiência docente na disciplina Arte e Formação de Psicólogos. Nele são apresentadas cenas das andanças pela cidade e por espaços específicos, num processo de ensinar-e-aprender que visa provocar rupturas nos aprendizes, nos seus corpos, nos seus pensamentos, nos seus afetos e na sua escuta, produzindo um tipo diferente de aprendizagem. Um aprender que se faz experiência, que exige um corpo em movimento, um corpo atento, que reconhece seus limites, suas potencialidades, sua força, seus medos, sua coragem e se ativa no encontro com o outro.

Palavras-chave: Formação de psicólogos; Experiência; Andanças; Corpo; Escuta.

 

 

Abstract

This essay was born from the teaching experience in the Art and Training of Psychologists discipline. In it, scenes of wanderings around the city and specific spaces are presented, ina teaching-and-learning process that aims to provoke ruptures in learners, in their bodies, in their thoughts, in their affectionsandintheir listening, producing a different type of learning. Learning that becomes experience, which requires a body in motion, an attentive body, wich recognizes its limits, its potential, its strength, its fears, its courage and is activates in the encounter with the other.

Keywords: Training of psychologists; Experience; Wanderings; Body; Listening.

 

 

Resumen

Este ensayo nace de la experiencia docente en la clase del Arte y Formación de Psicólogos. Presenta escenas de caminatas por la ciudad y espacios específicos, en un proceso de enseñanza y aprendizaje que busca provocar rupturas en los alumnos, en sus cuerpos, en sus pensamientos, en sus afectos y en su escucha, produciendo un aprendizaje diferente. Un aprendizaje que se convierte en experiencia, que requiere un cuerpo en movimiento, un cuerpo atento, que reconoce sus límites, su potencial, su fuerza, sus miedos, su coraje y se activa en el encuentro con el otro.

Palabras clave: Formación de psicólogos; Experiencia; Caminar; Cuerpo; Escuchar.

 

 

Introdução

Em um curso de escrita que fiz intitulado “Clube de Escrita com Aline Bei – Procedimentos e Processos Criativos”, organizado pela Espaço Cult, a escritora e professora Aline Bei diz que para escrever é preciso ter apetite pela vida, é preciso colocar o corpo no mundo e permitir ser afetado. Entendo que não só a escrita, mas tudo o que fazemos exige de nós um bocado de apetite pela vida. Sou psicóloga e professora de psicologia e entendo que essa relação ensinar-e-aprender exige de ambos, professor e aprendiz, muito apetite pela vida, pelo outro, pelo encontro.

Como ensinar a ter apetite? Vez ou outra ofereço uma disciplina optativa chamada “Arte e formação de psicólogos” e nela experimento uma série de fazeres a fim de oferecer uma aprendizagem mais saborosa. No ano de 2022, no primeiro semestre, após o isolamento e o ensino remoto, andei por alguns pontos da cidade com os aprendizes. Esse ensaio conta um pouco sobre essas andanças e sobre como tenho provocado esses sujeitos, seus corpos, seus pensamentos, sua escuta.

A caminhada pode provocar estes excessos: excesso de cansaço, que leva o espírito ao delírio; excesso de beleza, que faz a alma vacilar; excesso de embriaguez nos picos, no alto dos desfiladeiros (o corpo explode). Caminhar acaba por despertar em nós essa parte rebelde, arcaica: ossos apetites tornam-se toscos e intransigentes, e nossos elãs, inspirados. Porque caminhar nos coloca na vertical do eixo da vida: arrastados pela torrente que emana abaixo de nós.

Com isso, quero dizer que, caminhando, não se vai ao encontro de si mesmo, como se se tratasse de se redescobrir, de se libertar das velhas alienações para reconquistar um eu autêntico, uma identidade perdida. Caminhando se escapa à própria ideia de identidade, à tentação de ser alguém, de ter um nome e uma história. (GROS, 2021, p.16).

Por que tirar da sala e colocar na rua aprendizes de psicologia? Por que caminhar e olhar o campus, o museu, o circo, os muros e as calçadas da cidade? Por que conversar com pessoas que não estão no mesmo espaço universitário? Porque é preciso se perder para se achar. Acredito que seja necessário, conforme explica Gros (2021), que percamos nossa identidade, nossas certezas, nossa história, para que possamos ouvir histórias outras. Precisamos produzir fissuras nas nossas verdades, para que o outro possa nos contar sobre a sua história e que a nossa escuta seja cuidadosa e ética.

Vivemos em uma sociedade que produz corpos cansados, corpos exaustos. Uma exaustão que é tanto física quando subjetiva. Estamos hiper conectados, porém isolados, solitários. Esta mesma sociedade valoriza a individualidade, o “eu”. E ao buscar dar valor ao eu, ao indivíduo, busca compreender o sofrimento, como sofrimento do eu, e passamos, muitas vezes a olhar para esse sofrimento, por ser vivido pelo sujeito, como se tivesse sua causa exclusivamente no sujeito. Claro que o corpo é do sujeito, e é o sujeito da experiência quem sente a dor, o cansaço, a angústia, a tristeza. É o sujeito quem sofre, mas esse sofrimento não é exclusivo dele.

Em um texto intitulado “Abrir o corpo”, o autor José Nuno Gil escreve: “Não há consciência sem consciência de corpo. Não há consciência sem que os movimentos corporais intervenham nos movimentos da consciência”. (GIL, 2004, p. 17). O autor nos propõe a abertura ao inesperado. Diz ele, um corpo que anda, não apenas se orienta pelo espaço, como toca, cheira, experimenta sabores e ao mesmo tempo sente o peso da massa corporal, identifica problemas nas articulações, tem consciência do espaço e de si mesmo. Para que isso aconteça, Gil propõe abrir o corpo, ou seja, criar uma zona em que o corpo entre em contágio com o mundo, em que se permita afetar e ser afetado, conectando e escolhendo mais livremente esses afetos. E nesse sentido, convoca uma reflexão sobre a arte. Diz ele: “não é porque os agenciamentos artísticos abrem o corpo que adquirem poderes terapêuticos?” (2004, p. 28).

Gil nos faz uma provocação direta, nos convoca a pensar a relação entre clínica (não psicoterapia) e arte, entre arte e processos terapêuticos. É preciso que nosso corpo cansado volte a se sentir corpo criança, que deseja e experimenta a vida, que se espanta e encanta, que vivencia os encontros sempre a flor da pele, que se questiona e busca respostas para tudo, que encara a vida como desafio, que assume o medo, o frio, a tristeza, a dor, mas continua potente, ativo, criativo.

Palacios (2014) também nos ajuda a compreender que vivemos uma sociedade saturada de informações, de tecnologias, e que precisamos recuperar a deriva, a caminhada para recuperarmos nossa sensibilidade. Diz o autor, que a caminhada, enquanto experiência, nos permite modificar a percepção que temos das coisas, dos outros e de nós mesmos.

Como explica o próprio Frédéric Gros:

O flâneur é subversivo... O flâneur subverte a solidão, a velocidade, o atarefamento e o consumo... O corpo do flâneur move-se devagar, mas seus olhos vão e vêm sem cessar, e seu espírito é tomado por mil coisas ao mesmo tempo. (GROS, 2021, p.163-4).

            No livro “Caminhar uma filosofia” Frédéric Gros nos convida a pensar sobre a intensa relação entre o fora, a rua, o flâneur e o pensamento, a reflexão, o olhar atento e, arrisco dizer, a nossa escuta, uma das ferramentas mais importantes do fazer do psicólogo.

 

Andança 01 – Dentro da sala de aula

A aula foi iniciada com discussão de dois textos importantes. Primeiro “Arte e vida”, de Vigotski,depois “Eu não sou criativo”, de Rosane Preciosa. O objetivo foi produzir uma discussão capaz de oferecer ao aprendiz uma compreensão de que a arte nasce da vida, de que as relações entre arte e vida são muito complexas, pois é da vida que a arte recolhe material de criação. Que a arte não é o objeto produzido, mas a capacidade de se fazer linguagem. Que o poder da arte não está no significado final que ela pretende oferecer, mas no inacabamento que permite a cada sujeito, singular, produzir sentidos. Por fim, a ideia eradesmontar o mito do “dom”, do artista sem historicidade, sem contexto. Entender que imitamos e inventamos desde que nascemos e que a invenção é uma potência do homem comum, que cada minúscula parcela de novidade já é criação, que pequenos gestos ou desvios evidenciam a força da invenção (PELBART, 2021).

Invenção é intervenção na existência movido por uma profunda necessidade. É construir uma “câmara de ecos”, que ressoe o vivo e você junto. Inventar não é colorir o mundo, mas corar-se de mundos. (PRECIOSA, 2010, p. 70)

Ao final dessa aula, oferecemos aos aprendizes o primeiro desafio -inventar, intervir, produzir um Blackout Poetry a partir do texto Imaginar, do livro Esperança Feminista, de Débora Diniz e Ivone Gebara.

Cogitei não imaginar a esperança, parecia-me um verbo frágil, um verdadeiro quase sonho.

Compreendi muitas dores sobre quem seriam as ruas, corpos.

Elementos de representação marcados pela inexistência

É preciso desencontro com ternura desesperada

Minhas ideias empoeiradas pelo asfalto eram espectro conhecido dos manicômios, ou do que a ciência chama de perfis, perverso, miserável, perigoso.

Os fatos vivem e morrem com corpo e cor, torpor

Fundamental para sensibilidade daquelas pessoas é ilusão de poder, para salvar almas, curar feridas

A imaginação será sempre limitada na esquina de uma rua.

 

Blackout poetry produzido pelos alunos da disciplina. Arquivo pessoal.

 

Do texto teórico nasce esse texto poético, sensível, feito a várias mãos. A provocação foi para deslocar os aprendizes do lugar de medo para um lugar de criação, de invenção, de experimentação.

 

Andança 02 – O campus universitário

Assistimos ao filme “Balzac e a costureirinha chinesa” e unimos a ele a discussão sobre o texto “Experiência e paixão”, de Jorge Larrosa.

A proposta aqui foi pensar a experiência estética, aquela que ultrapassa o campo do vivido, que exige memória, que não se esgota, que reverbera, que produz sentido. Que se dá em uma relação com o outro, uma relação sensível que amplia a possibilidade do eu e do outro de produzir novos sentidos, que aumenta o repertório.

a experiência é cada vez mais rara por falta de tempo. Tudo o que se passa, passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E, com isso, reduz-se a um estímulo fugaz e instantâneo que éimediatamente substituído por outro estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera. (...). A velocidade com que nos são dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade, pelo novo que caracteriza o mundo moderno, impede sua conexão significativa. Impede também a memória, já que cada acontecimento é imediatamente substituído por outro acontecimento que igualmente nos excita por um momento, mas sem deixar nenhuma marca. O sujeito moderno é um consumidor voraz e insaciável de notícias, de novidades, um curioso impenitente, eternamente insatisfeito (LARROSA, 2004, p. 152).

A experiência é o que nos passa, ou o que nos acontece, ou o que nos toca. Não o que passa ou o que acontece, ou o que toca, mas o que nos passa, o que nos acontece ou nos toca. A cada dia passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos passa. Dir-se-ia que tudo o que passa está organizado para que nada nos passe. Walter Benjamin, em um texto célebre, já certificava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara. (LARROSA, 2004, p. 154).

 

Larrosa (2004) nos ajuda a entender que experiêncianão é acúmulo de informações, de vivências, mas o quanto uma informação, uma vivência, um encontro pode nos afetar e nos transformar.Bakhtin (2000) nos ajuda a entender que a experiência é constituída de uma entoação avaliativa e, portanto, exige exotopia, ou seja, exige distância, exige olhar de fora, olhar de novo, olhar desconfiado, olhar que desafia o que vê.

Ao final dessa aula, os alunos foram chamados a flanar pelo campus da universidade. Exploramos a universidade, os corredores, a rua, o gramado, observamos as paredes, os escritos, os desenhos. Flâneur, como entendemos, é alguém que desacelera o passo, não é um turista, mas alguém que olha e viaja na própria cidade, olha de outro modo o que já é conhecido.

Caminhar é estar fora. Fora, ao ´ar livre´, como se diz. Caminhar provoca a inversão das lógicas do citadino e até mesmo a de nossa condição mais difundida. (GROS, 2021, p.37).

Ao convidar os aprendizes a flanar pelo campus, desejávamos que eles desacelerassem, que olhassem o que não haviam visto anteriormente, que se distanciassem do cotidiano e experienciassem o campus de fato, o cheiro, as cores, as formas.

 

 

 

 

 

 

 

Imagem 01 – Fotos de detalhes do campus universitário

Uma imagem contendo ao ar livre, edifício, mesa, tijolo

Descrição gerada automaticamenteUma imagem contendo edifício, verde, velho, lado

Descrição gerada automaticamenteFoto em preto e branco

Descrição gerada automaticamente com confiança médiaÁrvore com galhos secos

Descrição gerada automaticamenteUma imagem contendo ao ar livre, fogo, hidrante, água

Descrição gerada automaticamentePlanta com folhas verdes

Descrição gerada automaticamente com confiança médiaUma imagem contendo edifício, tijolo, fogo, forno

Descrição gerada automaticamenteJanela de vidro

Descrição gerada automaticamenteUma imagem contendo graffiti

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Fotos produzidas pelos alunos da disciplina.Arquivo pessoal

 

Caminhar pelo campus permitiu enxergar o que não víamos. A placa em homenagem a quem não chegamos a conhecer e que, até então, nunca nos revelara a história. As paredes decoradas de cartazes, de adesivos, de pichações. As diferenças nas calçadas, a planta que insiste em nascer onde não deveria, mas, acima de tudo, nos permitiu brincar e enxergar sorrisos nas paredes cansadas.

 

 

 

 

 

 

 

 

Imagem 02 – Sorrisos nas paredes.

Uma imagem contendo no interior, placa, cozinha, verde

Descrição gerada automaticamentePlaca de letreiro afixada em fachada de prédio

Descrição gerada automaticamente com confiança baixaCozinha com armários brancos e bancada verde

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: Fotos produzidas pelos alunos da disciplina. Arquivo Pessoal

 

Caminhamos para conhecer, para sentir, para experimentar, para fazer do espaço cotidiano uma experiência.

 

Andança 03 – A exposição no museu

A aula foi iniciada no museu da cidade, na exposição intitulada Desejos, do artista paulistano AlanOju. Nessa exposição, o artista buscou provocaro olhar dos visitantes sobre como o espaço urbano nos afeta, sobre como ele nos subjetiva. A reflexão proposta versou sobre como as cores, o excesso de informações, os anúncios que vendem tudo e todos, as linhas que muram nossas vidas e nos impedem de caminhar, as frases aparentemente inocentes que produzem desejos que nem sabíamos que tínhamos, interferem diretamente em quem somos, modificam nossos desejos, nos subjetivam.

Imagem 03 – A exposição.

Uma imagem contendo pessoa, homem, olhando, frente

Descrição gerada automaticamenteUma imagem contendo água, estacionado

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Foto autoral. Arquivo Pessoal

 

Apreciamos e conversamos sobre os afetos que circulavam a partir do que víamos, conversamos sobre as experiências acionadas em cada um de nós nesse espaço. Saímos dali para uma sala de aula do próprio museu e discutimos o texto “O espectador emancipado”. Nesse trabalho, Rancière nos ajuda a entender que o espectador é sempre capaz de produzir sentidos sobre o que vê, a partir de como se afeta, de quais repertórios anteriores ele possui e de como experimenta o mundo. “Quem ensina sem emancipar embrutece. E quem emancipa não tem que se preocupar com aquilo que o emancipado deve aprender”. (RANCIÈRE, 2018, p. 37).

Como o principal efeito da visita ao museu foi a discussão sobre os muros que nos separam, nos encastelam, nos fazem não enxergar o outro, começamos um exercício de olhar a cidade e seus muros. Como são, o que dizem, o que fazem pensar, como fazem nossos corpos vibrarem.

Imagem 04 – Muros/paredes da cidade

 

Uma imagem contendo ao ar livre, neve, esqui, morro

Descrição gerada automaticamenteTexto, Quadro de comunicações

Descrição gerada automaticamenteDesenho de personagem

Descrição gerada automaticamente com confiança baixaTexto, Quadro de comunicações

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Fotos produzidas pelos alunos da disciplina. Arquivo pessoal

 

Andar e observar os muros e paredes, se fazer abertura para a experimentação nos ajuda a ver o que não víamos, auxilia na produção de desvios, na busca por novos caminhos, novos olhares, permite um rearranjo, produz escapes.

Andança 04 – A escola de circo

Outro passo que demos na disciplina foi a visita a uma escola circense na cidade. O espaço atua em atividade de contraturno escolar e oferece a crianças e adolescentes a aprendizagem da arte circense. Nossos corpos foram colocados em ação. Entendemos que ali o processo de aprendizagem se dá pelo corpo,o que raramente é experimentado nos espaços universitários. Além disso, nossos professores não foram os professores da instituição, mas os aprendizes, os alunos do contraturno escolar, o que nos fez experimentar uma aprendizagem por pares, uma aprendizagem colaborativa, de quem aprende com quem também está no processo de aprender.

Desafiamos nossos medos. Alguns de nós subiram no tecido, na lira, no trapézio e aprenderam pequenas acrobacias, outros apenas vibraram com a coragem alheia. Sorrimos, falamos, transformamos medo de cair em espetáculo. Aprendemos que circo é coragem, mas acima de tudo é força física, é corpo que se contorce, mas que antes se fortalece. Prestamos atenção em nossos pés, braços, boca, pescoço, porque espetáculo circense exige um corpo que se apresenta como livre, sensível, belo. Os instrutores do dia, no caso os aprendizes circenses, nos ensinaram as atividades, mas ensinaram perguntando se tínhamos medo, se precisávamos de ajuda, o tempo todo conversando ao pé do ouvido sem produzir qualquer constrangimento. O afeto do bom encontro cobria nossos pensamentos e nos transformava em pura coragem.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Imagem 05 – Corpo em ação

Uma imagem contendo deitado, cama, jovem, mesa

Descrição gerada automaticamenteUma imagem contendo mesa, quarto, cama, jovem

Descrição gerada automaticamenteUma imagem contendo bolo, mesa, homem, cortando

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Fotos autorais. Arquivo pessoal

 

Ofato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, aexperiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo – exclusivamentepelas leis da natureza enquanto considerada apenas corporalmente,sem que seja determinado pela mente - pode e o que não pode fazer.Pois, ninguém conseguiu, até agora, conhecer tão precisamente a estruturado corpo que fosse capaz de explicar todas as suas funções, sem falarque se observam, nos animais, muitas coisas que superam em muito asagacidade humana, e que os sonâmbulos fazem muitas coisas, nos sonhos,que não ousariam fazer acordados. Isso basta para mostrar que ocorpo, por si só, em virtude exclusivamente das leis da natureza, é capazde muitas coisas que surpreendem a sua própria mente. Além disso, ninguémsabe por qual método, nem por quais meios, a mente move ocorpo, nem que quantidade de movimento ela pode imprimir-lhe, nemcom que velocidade ela pode movê-lo. Disso se segue que, quando oshomens dizem que esta ou aquela ação provém da mente, que ela temdomínio sobre o corpo, não sabem o que dizem, e não fazem mais doque confessar, com palavras enganosas, que ignoram, sem nenhum espanto,a verdadeira causa dessa ação. Mas, dirão, saiba-se ou não porquais meios a mente move o corpo, a experiência mostra, entretanto,que se a mente não fosse capaz de pensar, o corpo ficaria inerte. Dirãotambém que a experiência mostra que estão sob o poder exclusivo damente coisas tais como o falar e o calar, bem como muitas outras, acreditando,assim, que elas dependem da decisão da mente. Mas quanto aoprimeiro ponto, pergunto-lhes: não é verdade que a experiência igualmenteensina que se, inversamente, o corpo está inerte, a mente não setorna também incapaz de pensar? Pois quando o corpo repousa duranteo sono, também a mente, ao mesmo tempo que ele, permanece adormecida,não tendo, como quando está acordada, a capacidade de pensar. Acredito, além disso, que todos sabem, por experiência, que a mente nãoé capaz de pensar, a cada vez, de maneira igual, sobre um mesmo objeto; em vez disso, a mente é tanto mais capaz de considerar este ou aqueleobjeto, quanto mais o corpo é capaz de ser estimulado pela imagem desteou daquele objeto. (ESPINOSA, 2009, p. 101).

 

Saímos de lá apaixonados por essa aprendizagem que se inicia no corpo entendendo que todo processo de ensino formal deveria ser iniciado pelo corpo, que toda aprendizagem deveria se fazer experiência. Como bem explica Espinosa (2009), corpo e pensamento estão diretamente relacionados, não se sabe tudo o que pode um corpo, mas já se sabe que corpo é potência, que bons encontros aumentam a potência de existir desse corpo. Nossa tarefa foi identificar essa potência na vida cotidiana.

Imagem 06 – Corpos que aprendem

Tela de computador com imagem de pessoas

Descrição gerada automaticamente com confiança médiaRua de uma cidade

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Fotos produzidas pelos alunos da disciplina. Arquivo pessoal

Depois de assistir a uma aula ou a uma conferência, depois de ter lido um livro ou uma informação, depois de ter feito uma viagem ou de ter visitado uma escola, podemos dizer que sabemos coisas que antes não sabíamos, que temos mais informação que antes sobre alguma coisa, mas, ao mesmo tempo, podemos dizer também que nada nos passou, que nada nos tocou, que, com tudo o queaprendemos, nada nos sucedeu ou nos aconteceu. (LARROSA, 2004, p. 154).

É preciso disposição, apetite, um corpo em abertura para a experiência, mas, é preciso cuidado para que a experimentação não seja apenas mais uma obrigação capitalista, nessa ditadura do ter que: ter que experimentar, ter que viver, ter que sentir...

 

Andança 05 – As ruas

Quase no final do semestre e depois de muitas andanças, os aprendizes foram divididos em grupos e deveriam produzir um audiovisual sobre como a disciplina os havia afetado. Foram apresentados diversos trabalhos, mas, aqui, quero destacar umaudiovisual que se inicia com uma pessoa sentada na sala de casa lendo um livro de psicologia. Logo, ela pega na mão um tubo e passa a ler o livro com o foco restrito do tubo. Sai de casa, anda de ônibus, chega à praça e encontra pessoas caminhando, conversando, brincando com as crianças, acariciando cachorros, trabalhando na limpeza, vendedores com barracas. Observa os prédios ao redor da praça, os pombos, as calçadas, as árvores e as sombras que elas oferecem. Sempre a partir desse tubo, nos fazendo pensar que ela olha a partir de uma ótica seletiva, fechada.

Imagem 07 – Fotogramas do audiovisual produzido pelos alunos da disciplina

Uma imagem contendo janela, no interior, quarto, gato

Descrição gerada automaticamente

Pessoa sentada em banco de praça

Descrição gerada automaticamente com confiança médiaTela de um aparelho eletrônico

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: Arquivo pessoal

 

Terminamos de assistir ao filme, pensando no quanto nossos olhares vão sendo produzidos, o que e como olhamos é carregado pela lente que nos constitui, nesse caso, pela psicologia. Nesse trabalho os aprendizes foram para a rua, flanaram pela praça e evidenciaram que a formação universitária é também uma lupa com a qual se olha a vida, se experimenta a vida. Formar-se é transformar-se. O que faz com que nosso papel como docentes seja de ampliação do olhar, de produção de uma lupa com a qual se possa, de fato, olhar a vida e escutar as pessoas.A partir disso, propomos uma reflexão: como produzir corpos potentes, capazes de se sensibilizar com a história alheia sem desejar enquadrá-las em teorias únicas? Como produzir uma escuta ativa, que ao escutar transforma quem sou?

 

Andança 06 – Convidando outros para andarmos juntos

Depois de uma série de andanças, de lugares, de olhares, decidimos expor a discussão e nossas vivências no espaço que habitamos, na universidade. Entendíamos que uma exposiçãoofereceria a todos a oportunidade de conhecer os caminhos da nossa aprendizagem.

 

Imagem 08 – Exposição.

Pessoas em pé ao lado de uma pessoa

Descrição gerada automaticamente com confiança médiaPessoas em pé em frente a televisão

Descrição gerada automaticamente com confiança médiaHomem em pé em frente a parede branca

Descrição gerada automaticamente com confiança médiaPlaca pendurada na parede

Descrição gerada automaticamente com confiança médiaTexto, Carta

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Fotos produzido pelos alunos da disciplina.Arquivo pessoal

 

Em Manguinhos, vai-se ao mar para retomar essa conexão com os fluxos da vida, para torná-la porosa, movimentá-la. ... Trata-se de embalar o corpo para ´colocar as ideias no lugar´, uma operação que detona de forma inelutável os delírios de separação entre corpo e a mente. (GIACOMEL, RÉGIS E FONSECA, 2004, p. 90)

Os autores, falam do banho de mar como ativação política do corpo. E nós que vivemos em cidades sem mar, comoativamos a potência política do corpo? Entendemos o mar não apenas como areia, água salgada e ondas. O mar deve ser pensado como espaço-tempo de encontro, de abraços, de paradas, de calma, de caminhada, de observação lenta, deafecção e mobilização de desejos. Portanto, se algum de nós não esteve nas caminhadas, nas conversas informais, nos corpos em movimento, pode ter sua potência ativada na exposição, na reflexão sobre as fissuras que esse tipo de aula-intervenção pode proporcionar. Se entregar para a exposição, conversar, observar, mudar o ritmo do passo também ativa a potência do corpo.

Descansando pés e pernas

Espero que nesse momento você não esteja mais se perguntando por que levar estudantes de psicologia ao museu, ao circo, à rua? Por que experimentar uma aula de musicalização para crianças, uma oficina de teatro, uma aula de escrita criativa ou de artes plásticas?  Por que discutir cinema ouvindo um cineasta falar de produção de documentários? Por que discutir teoria fora da sala de aula, sentado no gramado ou na praça? Por que produzir fotos, criar audiovisuais, escrever poesias, contos e cartas de amor pela vida?

Espero que agora você já tenha compreendido que nossa profissão exige uma escuta cuidadosa sobre a vida e as dores do outro e que, para ouvir isso precisamos que nossos corpos, nossas histórias, nossas experiências tenham de fato produzido fissuras, produzido outros de nós mesmos. Que aprendamos que o espaço urbano constitui nossas subjetividades e, portanto, produz saúde e sofrimento.

Zanella (2020) escreve que a educação estética, é fundamental para o tensionamento de olhares cristalizados e para fazer nascer olhares outros. É fundamental para a reinvenção de si e dos modos de estar. Tencionar sentidos e criar novos possíveis.

A vida exige que rompamos com o tradicional, com as regras, com as verdades. É preciso ultrapassar. Ensinar é assim também. É preciso afetar. Ensinar a pensar exige que a gente pense de diferentes formas, em diferentes lugares, colocando o corpo em movimento. Aprender exige corpo em movimento. Reconhecer seu corpo, seus limites, suas potencialidades, sua força, seus medos, suas coragens. É preciso escutar o próprio corpo para escutar o que o outro diz. É preciso reconhecermos nossos afetos, para produzirmos bons encontros.

 

 

 

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão; rev. trad. Marina Appenzeller. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 512p.

BALZAC e a Costureirinha Chinesa. Direção: Dai Sijie. [S.I.:s.n.], 2005. 111 min., son., color.

LARROSA, JorgeBondiá. Linguagem e educação depois de Babel.Belo Horizonte: Autêntica, 2004. 360p.

DINIZ, Debora; GEBARA, Ivone. Esperança Feminista. 1. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2022.

ESPINOSA, Baruch. Ética. Trad. Toma Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

GIACOMEL, Angélica E.; RÉGIS, Vitor M.; FONSECA, Tania Galli. Que tal um banho de mar... para ativar a potência política do corpo! (p. 89-103). In FONSECA, T. M. G. e ENGELMAN, S. (Orgs.). Corpo, Arte e Clínica. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.

GIL, José Nunes. Abrir o corpo. In: (p. 13-28). In FONSECA, T. M. G. e ENGELMAN, S. (Orgs.). Corpo, Arte e Clínica. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.

GROS, Frédéric. Caminhar uma filosofia. São Paulo: Editora UBU, 2021. 224p.

PALACIOS, AntonioJesús. Carto[bio]grafias. Invenciones cartográficas para representaciones experienciales.Revista de Estudios Urbanos y Ciencias Sociales.Volumen 4, número 1, páginas 269-276.

PELBART, Peter P. Palestra de encerramento. FACES – Festival de Arte e Cultura Erico Stickel. 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sA4Uiajsu-g&t=2668s>. Acesso em: 09 maio 2023.

PRECIOSA, RosaneRumores discretos da subjetividade: Sujeito e escritura em processo. Porto Alegre: Sulina: Editora da UFRGS, 2010.96p.

RANCIÉRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. 130p.

VIGOTSKI, Lev S. Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 400p.

ZANELLA, Andrea Vieira. Arteurbe: jovens, oficinas estéticas e cidade. Curitiba: Appris, 2020. 165p.

 

 

 

 

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[1]Psicóloga formada pela Universidade do Vale do Itajaí (1995), com mestrado e doutorado em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (2007, 2011). Fez estágio pós doutoral em Psicologia Social pela PUC/SP (2019). Professora da Universidade Federal de Uberlândia (Associada II). Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia desta mesma universidade, desde 2016. Foi Diretora do Instituto de Psicologia (2015-2018). Foi membro do Corpo Editorial da GERAIS: Revista Interinstitucional de Psicologia (2019-2022). Foi membro do GT da ANPEPP - A psicologia sócio-histórica e o contexto brasileiro de desigualdade social (2017 a 2019), atualmente é coordenadora do GT Psicologia, estética e arte. Atua na área da Psicologia da Saúde, com ênfase em Psicologia Social e nos Processos de Criação em Contextos de Saúde. Atua principalmente com os temas: Psicologia Clínica Individual, Práticas Grupais, constituição do sujeito, processos de criação, potência de ação, oficinas estéticas. E-mail: pereira.elianeregina@gmail.com