‘De volta pra casa’: analogias como estratégia para o desenvolvimento do pensamento crítico
‘Back home’: analogies as a strategy for the development of critical thinking
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Paula Elisa Ricardo Serafim Daré[2]
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Resumo
Este artigo parte da hipótese de que o uso de analogias pode favorecer a compreensão de conceitos, os quais necessitam ser validados em determinados campos, além de possibilitar o desenvolvimento do pensamento crítico e as formulações de conclusões e de argumentos simbólicos. Por isso, a problematização que se aventa busca tencionar as analogias possíveis para o termo “casa”. Interessa suplantar o senso comum que atribui a essa palavra o significado apenas de espaço funcional para moradia e lugar de dentro. O objetivo foi valorizar o termo, exemplificando-o como lugar de dentro e de fora, ou seja, ora como habitação, ora como possibilidade de expressão artística, ora como corpo, e ora também como casa comum, dizendo respeito ao planeta. A metodologia de natureza básica envolveu a abordagem qualitativa com ênfase interdisciplinar ao dialogar com teóricos de diferentes áreas: Carl G. Jung favorece a reflexão numa perspectiva psicológica; já outros, como Edgar Morin, compreendem a vida como um grande tecido entrelaçado, de forma que - juntamente com Marc Augé ampliam a relação entre a humanidade, seu meio e entorno. Por seu turno, Salles e Ostrower embasam as teorias sobre os processos criativos, a linguagem da arte e o uso imagético para representar os sintomas expressos no homem e em seu meio ambiente. Como resultado, verificou-se que é possível ampliar a compreensão do termo casa para além do espaço físico, fazendo uso de analogias para incluir a casa como espaço subjetivo e planetário.
Palavras-chave: Casa; Analogias; Consciência; Arte, Qualidade de vida.
Abstract
This article assumes that the use of analogies can favor the understanding of concepts, which need to be validated in certain fields, in addition to enabling the development of critical thinking and the formulation of conclusions and symbolic arguments. For this reason, the problematization that is suggested seeks to intend possible analogies for the term “house”. It is interesting to overcome the common sense that attributes to this word the meaning only of functional space for housing and place inside. The aim was to value the term, exemplifying it as a place from inside and outside, that is, sometimes as a dwelling, sometimes as a possibility of artistic expression, sometimes as a body, and sometimes also as a common home, referring to the planet. The basic methodology involved a qualitative approach with an interdisciplinary emphasis when dialoguing with theorists from different areas: Carl G. Jung favors reflection from a psychological perspective; while others, such as Edgar Morin, understand life as a large, intertwined fabric, so that - together with Marc Augé, they expand the relationship between humanity, its environment and surroundings. For their part, Salles and Ostrower base theories on creative processes, the language of art and the use of imagery to represent the symptoms expressed in man and in his environment. As a result, it was found that it is possible to broaden the understanding of the term house beyond physical space, making use of analogies to include the house as a subjective and planetary space.
Keywords: House; Analogies; Consciousness; Art; Quality of life.
Caminhar no espaço urbano pode significar ser apenas mais um, na imensa multidão das grandes metrópoles. Em cada passo, pode-se observar as estruturas das cidades e suas variadas formas de funcionamento: a vida social, as relações entre o comércio formal e informal, e os arranjos de toda ordem pela sobrevivência.
Com o aumento das regiões periféricas e das desigualdades sociais, a formação socioespacial das urbes, exigem medidas adequadas de infraestrutura básica, como saneamento, transporte e moradia. Não obstante a esses aspectos, uma das características das grandes cidades recai sobre os modos de habitá-las. As urbes, muitas vezes, comprometem a qualidade de vida de seus habitantes no que se refere ao bem-estar físico, mental e social. Fato esse facilmente detectável na cidade de São Paulo, por exemplo, ao considerar a robustez da paisagem tornada vertical, o excesso de poluição visual e atmosférica, as ocupações desordenadas, a situação caótica das pessoas em situação de rua, a luta por direitos daqueles que habitam as periferias, o caos entre pedestres e veículos pela disputa de espaço nos grandes centros, o aumento da violência, etc. São inúmeras as necessidades de planejamento, especialmente no que diz respeito à saúde, à cultura, à educação, ao lazer, à interação social, às oportunidades de trabalho, dentre outros benefícios.
No entanto, a reflexão sobre temas tão complexos exigiria estudos aprofundados, os quais advogam a necessidade de compromissos de ordem social e política - além da consciência individual e coletiva em prol de uma ecologia urbana. Devido ao espaço mais restrito dessas linhas, esse artigo propõe-se a pensar um recorte temático envolvendo questões de natureza sensível, isto é, estabelecer um entrelaçamento entre a tríade: casa, seus diferentes significados e qualidade de vida.
Tais aspectos colocam o ser humano no centro das reflexões e supõe seu comportamento cotidiano no contexto citadino (seu modo de viver, seus deslocamentos). Contudo, o objetivo desse texto recairá, principalmente, sobre a possibilidade de utilizar o termo casa como analogia, ou seja, “[...] não me refiro àquela que as nossas paredes cingem, mas a todo este mundo, que é o domicílio, que é a pátria que os deuses nos deram, comum a eles! Se tal ignoramos, muitas e grandes coisas serão por nós ignoradas!”. (OLIVEIRA, 2008, Rep. 1.19).
Por isso, a problematização que se aventa neste artigo coloca em destaque esta citação de Cícero, escrita no ano 51 a. C e conhecida como Tratado da República, na qual se observa uma advertência quanto ao cuidado com a vida. A intenção será expandir essa interpretação ao questionar: quais analogias seriam possíveis ao considerar a palavra ‘casa’ para além da moradia, sem ignorar a qualidade da vida do planeta?
A relevância da analogia proposta sobre o tema casa se justifica uma vez que ganhou novas perspectivas devido a imposição de medidas de isolamento social e lockdowns durante a pandemia. Foi uma oportunidade de reflexão para aqueles que puderam, diuturnamente, experimentar o compartilhamento e o crescimento de vínculos afetivos. Não são raros os casos em que reformulações foram feitas, no sentido de acomodar, incluir, dividir. Se por um aspecto, muitas pessoas reavaliaram o significado de "casa", para além de um espaço físico, e experimentaram o lugar de refúgio seguro contra uma ameaça externa, por outro lado, em muitas casas houve opressões, situações de violências domésticas, separações; dentre outras formas de maus tratos.
Nesse sentido, tendo como referência a inteligência e a impactante potência da criatividade humana, depara-se nesta investigação com um paradoxo inevitável, relativo ao ato de realizar e fazer aquilo que é bom em prol da vida, mas também o desvalor que o ser humano vem dando à existência e ao cuidado com essa “casa comum”, para usar uma expressão de Boff (2017) quando se refere ao planeta.
A pesquisa de natureza qualitativa conta com um corpo textual do qual autores como Edgar Morin (et al, 2003b) serão importantes, pois advertem sobre a necessidade de uma educação que considere a atividade humana na era planetária. Isto significa que a realidade a qual vivemos supõe complexidades e deve ser vista a partir da interação entre diversos fatores como os econômicos, religiosos, políticos, étnicos, demográficos, dentre outros.
O termo “casa”, bem como suas interpretações e significados macros, apoiam-se nos pressupostos de Jung (1988a/b), possibilitando o estabelecimento de analogias tanto no nível de representação mental quanto de significação subjetiva do símbolo casa e habitação. Os demais autores - como Augé (1994) e Harvey (2006) sustentarão os argumentos textuais relativos aos aspectos sociais; já Salles (2012) e Ostrower (1977) ampliarão o conhecimento acerca dos aspectos criativos do ser humano.
Nesse horizonte de reflexão, será possível verificar a complexidade da existência humana, pressupondo seus modos de pensar, sentir, interpretar e habitar o mundo como ser biopsicossocioespiritual revestido de potencialidade criativa. Interessa, aqui, as abordagens subjetivas voltadas para um viver munido de consciência ética para com a natureza e para com as iniciativas a promover o bem-estar individual e coletivo. Assim, expande-se o conceito de “casa” no esforço por compreender seus diferentes significados e possíveis analogias.
Paradoxo inevitável
As sucessivas transformações tecnológicas, postas sob o pretexto de prestar um serviço para o desenvolvimento do bem da humanidade, não impedem, necessariamente, o sofrimento e a morte causados pela ameaça de destruição e degradação. Um exemplo disso é o fato de que, em pleno século XXI, o mundo assiste, perplexo, as artilharias russas voltadas para o território da Ucrânia - uma guerra iniciada há mais de um ano e sem perspectiva de ter um fim, que ameaça o universo pelo uso de armas nucleares.
Nesse viés, essa investigação estabelece como paradoxal uma premissa inevitável: o ser humano está, ao mesmo tempo, ‘dentro e fora’ de casa; explicado de outro modo, a humanidade habita diferentes lugares e ocupa variados espaços formais e informais. Por exemplo, segundo Heidegger (2020, p.129), em seu texto Construir, Habitar Pensar, há uma compatibilidade entre tal tríade, de maneira que construir e pensar são indispensáveis ao habitar. Para o autor, este se aproxima de cuidar, de “de-morar-se”.
Uma ponte, um hangar, um estádio, uma usina elétrica são construções e não habitações; a estação ferroviária, a autoestrada, a represa, o mercado são construções e não habitações. Essas várias construções estão, porém, no âmbito de nosso habitar, um âmbito que ultrapassa essas construções sem limitar-se a uma habitação. Na autoestrada, o motorista de caminhão está em casa, embora ali não seja a sua residência; na tecelagem, a tecelã está em casa, mesmo não sendo ali a sua habitação. Na usina elétrica, o engenheiro está em casa, mesmo não sendo ali a sua habitação. Nelas, o homem de certo modo habita e não habita, se por habitar entende-se simplesmente possuir uma residência (HEIDEGGER, 2020, p. 125).
O ‘de-morar-se’ indica a relação humana se processar, não só com a moradia, mas com o entorno e com os lugares - vínculo possível por meio do tempo e da interação. Por isso, para que haja socialização com pessoas e lugares, há de se ter um tempo moroso para o exercício da comunicação, das parcerias, das aproximações e distanciamentos. Todavia, o modo de viver continuamente mutante, no qual a velocidade é imperativa, priva o ser humano do período necessário à reflexão, ao enraizamento e à criação de vínculos dentro e fora de casa.
Assim, os nexos que deveriam ser estabelecidos nos ‘não-lugares’ (AUGÉ,1994) tornam-se limitados ou inexistentes, visto o termo cunhado por Augé poder aplicar-se ao fato dos transeuntes permanecerem anônimos e distantes de relações identitárias nos espaços coletivos. Nesta característica da pós-modernidade, vive-se a cultura da máxima produtividade e do desempenho, perdendo-se a capacidade de perceber dos espaços sociais como lugares de convivência, pleno de particularidades e de referências.
A sensação de um tempo acelerado e implacável faz surgir um cenário que não se pode ignorar. Trata-se da forma com a qual o ser humano moldou o significado das “[...] relações entre o dinheiro, o espaço e o tempo como fontes interligadas de poder social” (HARVEY, 2006, p. 208). O modo como os fatores econômicos e tecnológicos tenciona o comportamento produtivo, ao preço de um esgotamento e de uma visão de mundo fragmentada, evidencia o colapso social e o impedimento em se construir um futuro social alternativo, visto que:
Já não podemos conceber o indivíduo alienado no sentido marxista clássico, porque ser alienado pressupõe um sentido de eu coerente, e não-fragmentado, do qual se alienar. Somente em termos de um tal sentido centrado de identidade pessoal podem os indivíduos se dedicar a projetos que se estendem no tempo ou pensar de modo coeso sobre a produção de um futuro significativamente melhor do que o tempo presente e passado (HARVEY, 2006, p. 57).
Isso significa que a despeito da frustação perpétua de alguns poucos em buscar um futuro radicalmente diferente, o ser humano, quando perde o sentido de identidade, inconscientemente é forjado a viver a cacofonia de informações cruzadas, a suspenção das crenças, a euforia do consumo, o desejo exacerbado de ver e ser visto. Como consequência em digerir os excessos de dados e imagens oferecidos pelas mídias sociais, além de outras ações do humano, tais atitudes subtraem a experiência particular e a possibilidade de metabolizar, de interpretar e de ser no mundo.
Sendo assim, os espaços comuns citadinos, em especial aqueles nos circundam diretamente, tornam-se lugares indiferentes. O espaço público fica relegado à terra de ninguém e a população de maior poder aquisitivo fecha-se em ilhas de segurança na falsa esperança de que os problemas ficarão ao lado de fora de seus condomínios.
Neste sentido, a pandemia da Covid-19 parece ter revelado ainda mais a fragilidade da vida e a necessidade de se pensar a saúde como um bem a ser protegida por todos; até mesmo o planeta ressente-se e expressa seus sintomas evidenciando seu adoecimento por meio de pandemias e alterações climáticas, gritando agonizado na tentativa de ser socorrido. Por isso, uma ampliação da consciência se faz indispensável. É urgente o exercício do cuidado global, para além dos quintais privados.
Ao ponderar sobre tais assuntos, ainda há um segundo paradoxo que se deseja evidenciar relativo ao ‘estar dentro e fora de casa ao mesmo tempo’, e em referência a um aspecto subjetivo: vive-se dentro de uma ‘casa comum’, o planeta apesar do lento crescimento da educação ambiental e do desenvolvimento sustentável, quando prevalece a perversidade do pensamento cauterizado ao se acreditar que as fontes de riquezas e dos recursos naturais explorados em excesso não chegarão à escassez, perde-se a noção da urgência de se preservar e zelar pela habitação comum a todos. Nesse particular é que por analogia a casa pode se referir ao planeta, mas também ao corpo humano e seu ganho de consciência.
A consciência, em minha concepção, é a emergência última da qualidade do sujeito. É uma emergência reflexiva, que permite o retorno da mente a si mesma, em circuito. A consciência é a qualidade humana última e, sem dúvida, a mais preciosa, pois o que é último é, ao mesmo tempo, o que há de melhor e de mais frágil. E, de fato, a consciência é extremamente frágil e, em sua fragilidade, pode enganar-se muitas vezes (MORIN, 2003a, p. 126).
Estar fora de casa pode ser aplicado ao estado de ignorância ou falta de respeito, isto é, o ser humano ao mesmo tempo em que está dentro, habitando o planeta conscientemente, pode estar fora dele, quando subordinado a falta de uma consciência lúcida “[...] que produz duas barbáries: a barbárie de destruição e morte, que vem do fundo das eras, e a barbárie anônima e fria do mundo técnico-econômico”. (MORIN, 2003a, p. 72).
A terra vem se transformando em um ambiente precário, insalubre e superpovoado. O uso de recursos naturais sem responsabilidade para com o presente e o futuro revela o modus operandi do ser humano, desconectado de Gaia - a terra mãe - e passível de conduzir todos a uma situação autofágica.
Tanto as guerras - que produzem mortes e degradação em nome do poder - quanto o uso do planeta enquanto produto a ser consumido manifestam aquilo cujos gregos denominavam Hybris, conceito relacionado ao descomedimento. Esse ato de ir além do limite levaria a um castigo divino e tal forma de pensar ancestral é uma maneira de lembrarmos de nossa humanidade (BRANDÃO, 1986).
De volta pra casa
“Há tempo, muito tempo que eu estou longe de casa [...]”. Essa frase pertence a uma linda canção intitulada ‘Tudo outra vez’ de 1979, do compositor brasileiro Antônio Carlos Belchior (1946-2017). De forma criativa, o poeta descreve os sentimentos que o afetava devido à sua imigração do Nordeste brasileiro rumo a Paris. Seu retorno à ‘casa’, entidade definida pela relação família, patrimônio e pátria, deixa-o saudosista, a semelhança da ‘Canção do Exílio’ de Gonçalves Dias (1823-1864). No segundo caso, a casa refere-se à Pátria. No entanto, outras canções como ‘Por enquanto’, de Renato Russo e composta no ano de 1985, termina dizendo: “Estamos indo de volta pra casa”. Aqui, o autor faz alusão ao voltar para casa como um retorno a si mesmo, após lançar-se em uma relação amorosa. Nota-se, nos exemplos citados, a força expressiva dessa palavra ao encontrar-se permeada de significados afetivos.
Para Bachelard (1993), a casa é o primeiro universo do Homem e imprime, em todos, um modo de habitar e de relacionar-se com o mundo - o que se dá, em um primeiro momento, pelo corpo da mãe, nossa primeira morada. Tal ambiente encontra-se vinculado ao símbolo materno, na medida em que guarda e é continente, como o corpo da mãe. Casa é também identidade: ao adentrarmos na morada de alguém, conseguimos nos aproximar de seus gostos, do que lhe é importante e tem valor.
Quando pensamos no universo da linguagem visual, a casa pode tornar-se alvo de inúmeras representações, evidenciando a criatividade de diferentes artistas. Ao detalhar sobre potencial criador, Ostrower (1977, p. 11) não descaracteriza o inconsciente na realização de uma obra, todavia afirma que toda criação humana “[...] não nos parece existir antes ou fora do ato intencional, nem haveria condições, fora da intencionalidade [...]”.
Partindo desse pressuposto, entende-se que o artista manifesta certos critérios para a elaboração de suas produções e, através das escolhas que faz dos diferentes suportes das mais variadas materialidades que exigem diferentes técnicas, dentre outras ações imaginativas, a noção de casa, como espaço habitado, pode ganhar novos olhares e significados. É o caso da famosa série de três obras a representar o ‘Quarto em Arles’ (Figura 1), do pintor Vicent Van Gogh (1853-1890), para citar apenas um dentre tantos exemplos de criações culturais estrangeiras.
Figura 1: Quarto em Arles (1889).
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Quarto_em_Arles. Acesso em: 12/04/23.
No contexto nacional Di Calvacanti (1897-1976), idealizador e responsável por ‘Quarto de pensão’ (Figura 2) pode ser citado a título de exemplo.
Figura 2: Quarto de Pensão (1956).
Fonte: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra2572/quarto-de-pensao. Acesso em: 12/04/23.
Muitos são os que, de igual modo, encontram inspiração para executar obras cuja temática revela os ambientes domésticos e a intimidade de seus habitantes.
No que tange a produções audiovisuais, temos Ticiano Pereira Monteiro (1982), realizador de um vídeo instalação no ano de 2005. Sobre as águas calmas de um rio situado em Fortaleza (Brasil), o professor e artista posicionou um quarto, produto por ele intitulado ‘O quarto: O mundo bate do outro lado da minha porta’. Tal denominação foi extraída de um poema de Pierre Albert-Birot (1876-1967).
Figura 3:O Quarto:O Mundo Bate do Outro Lado da Minha Porta, Ticiano Monteiro 2005.DVD.
Fonte: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa381147/ticiano-monteiro. Acesso em: 14/03/2023.
Ticiano apresenta o quarto de forma inusitada e nada convencional, pois surpreende o receptor da imagem pela ambientação que propõe nas cenas. Ao invés de paredes, pisos e objetos comuns, há, inversamente, uma virtualidade à semelhança de sonho, que provoca ou remete o espectador ao campo da significação da obra. As paredes são substituídas pelo horizonte da paisagem e tudo que se move pelo vento interfere na composição visual, pois o quarto se funde com a exuberância da natureza, tendo o céu aberto por teto. Sua cama, a mesinha e seus objetos se deslocam e se põem a navegar. Nesse sentido, sua criação coloca-se em estado de contínua metamorfose.
Apesar do caráter precário e transitório da obra/performance, a assumir uma estética pública e puramente visual, pode-se dizer que a casa do artista se faz no mundo e pertence ao mundo. O espaço da natureza não separa o dentro e o fora, o interior e o exterior. O universo onírico, no qual habitamos outros territórios enquanto dormimos, é exposto e pode significar uma crítica pessoal e coletiva, aos modos de habitar os espaços do mundo e a possibilidade de viver unido à natureza: “Talvez uma noção de alma do mundo, um mundo com alma, possa realmente começar a se fazer sentir somente a partir da formulação mais imediata de uma alma no mundo, que se expressa, em primeiro plano, como uma sensibilidade para o lugar” (BARCELLOS, 2018, p. 14). Assim, “[...] por necessidade, o artista é impelido a agir. Uma ação com tendência, certamente, complexa que se concretiza por meio de uma operação poética [...]” (SALLES, 2012, p.19).
A casa é também um lugar social, dando-nos uma localização, um endereço. Ela é, portanto, um mapa da subjetividade e social - sendo neste último a forma de morar de um grupo ou de uma etnia, comunicando sua criatividade e seus sintomas. Com tal perspectiva, podemos ampliar o campo do olhar até pensarmos na humanidade e no planeta, com suas subjetividades e suas ações sociais.
Mudar o olhar assemelha-se a ganhar ciência de algo, permitindo a incorporação de um saber dotado de ideias. Para Edgar Morin (2003a) é a “cabeça bem-feita” em prol da preservação da vida. É o voltar-se e cuidar de si, ampliando a consciência do eu. Tal aspecto está vinculado ao processo adaptativo e tudo em oposição a ele será evitado e tenderá a inconsciência. Vale destacar o fato desse par operar de forma oposta e complementar, isto é, caso a consciência atue de modo demasiado unilateral, o inconsciente se manifestará por meio de sintomas (alterações no comportamento) em busca de uma homeostase psíquica - equilíbrio dinâmico que envolve funções compensatórias por meio de uma relação dialética entre consciente e inconsciente visando o suprimento das necessidades (JUNG, 1990). Todo esse sistema é mediado pelo Self, um centro regulador da energia psíquica que transita entre esses dois polos (JUNG, 2003).
Entende-se que a própria consciência nunca é algo acabado ou definitivo. Ela vai se formando no exercício de si mesma, num desenvolvimento dinâmico em que o homem procurando sobreviver, e agindo, ao transformar a natureza se transforma também. O homem não somente percebe as transformações como sobretudo nelas se percebe.
A percepção de si mesmo dentro do agir é um aspecto relevante que distingue a criatividade humana (OSTROWER, 1977, p.10).
De acordo com Jung (2003), o inconsciente possui duas camadas: uma delas é pessoal, e está vinculada à história de vida do indivíduo; a outra é mais profunda e formada por meio de padrões universais - os arquétipos, padrões que se repetem em todas as culturas e épocas, denotando formas típicas da humanidade. Pode-se dizer que o habitar, a busca de abrigo, é arquetípica ao exprimir um padrão universal.
Jung (1988b) usou a casa como uma metáfora da estrutura psíquica, com locais de trânsito fácil, representando a consciência, e os de pouco acesso, como o inconsciente. Toma-se, por isso, a liberdade de pensar tal espaço enquanto símbolo do Self, pois carrega em si a história pessoal do seu morador e um padrão coletivo de abrigo. Pode-se estender essa compreensão para a casa-planeta e, nesse caso, o que estaria fora do âmbito da consciência?
A possibilidade de ter um abrigo foi fundamental no processo de evolução humana e tal localidade tornou-se referência - em certa medida - de proteção e convivência. A analogia com o termo é possível quando atribuímos ao corpo o símbolo de habitação do Self. Segundo Eliade (1992), há uma linha associativa entre corpo, casa e cosmos. Do microcosmo do corpo ao macrocosmo do planeta, de alguma forma, nós habitamos. O homem reproduz em si os ritmos de seu entorno, em um movimento contínuo de ligação e interdependência consigo, com o outro e com o meio.
Por isso, quando Hillman (1993) escreve Cidade e Alma, enfatiza que caminhar tem se tornado cada vez mais, uma prescrição médica. Para o autor, se caminhadas são prescritas é porque algo muito básico ficou esquecido: a relação do homem com a natureza. Esse pensamento é reforçado quando se percebe a falta de calçadas ou sua redução, em prol da ampliação do sistema viário; o fechamento de parques e espaços de lazer, por se temer a invasão ou depredação – justificando, dessa forma, a substituição desses espaços convertidos em condomínios ou prédios comerciais.
Talvez a pergunta formulada acima, sobre aquilo que está fora do âmbito da consciência, signifique que o planeta precisa ser visto e sentido como corpo/casa/habitado e vivo. Feri-lo, degradá-lo ou objetificá-lo é, em última instância, o ser humano ferir a si próprio. Ao afastar-se dessa consciência, ele se distancia da anima mundi. Nesse sentido a ecologia psíquica e biológica coloca-se em relação ao grande corpo de Gaia e nos impõe o desafio de pensar como se vive. «¿Cómo vives?» Esta era la pregunta que yo me hacía a mí mismo y a los demás [...]” (MORIN, 2020, p. 23). Nos idos de 1960, Edgar Morin questionava a condição humana e os modos de se viver, e sobre isso diz:
[...] Esta pregunta, más actual que nunca, se ha convertido en candente con el confinamiento. Los condicionantes del confinamiento nos han llevado a todos a cuestionarnos nuestro modo de vida, nuestras verdaderas necesidades, nuestras aspiraciones, que se hallan reprimidas en los que solo viven para trabajar, olvidadas en aquellos que gozan de una vida menos esclava, y, en general, enmascaradas por las alienaciones de lo cotidiano [...] que nos aparta de los verdaderos problemas de nuestra condición humana (MORIN, 2020, p. 23).
Na visão de Morin (2020), todos dependem da biosfera terrestre, mas ainda sim a degradam. Por isso, se faz necessário ter em mente a consciência de viver a plenitude finita da vida, no entrelaçamento da alma com o cosmos.
Considerações finais
Ao explorar as inúmeras facetas da analogia da casa ao longo deste artigo, mergulhamos em um universo intrincado de significados.
A pandemia, como revelada da fragilidade humana e da interdependência global, ressaltou a necessidade urgente de compensar nossa relação com o planeta, nossa casa maior.
No quarto de Van Gogh, vislumbramos a solidão e a introspecção; na pensão de Di Cavalcanti, a vivacidade de interações humanas; na videoinstalação de Monteiro, a serenidade das águas reflete a harmonia que devemos buscar com nosso entorno. Assim, a analogia da casa expande-se para abranger não apenas a habitação física, mas também a casa subjetiva, o espaço interno que somos para nós mesmos.
Cícero, em sua advertência atemporal, nos convoca a não ignorar a vastidão da casa comum que compartilhamos - o planeta. Diante do paradoxo de nossa capacidade criativa e, ao mesmo tempo, nossa negligência para com a casa planetária, surge a responsabilidade urgente de cultivar uma consciência global.
Em última análise, cada representação da casa, seja no pincel, no traço ou na instalação, contribui para um mosaico multifacetado que revela a complexidade de nossa relação com o espaço que habitamos. Que estas reflexões sirvam como um convite à contemplação e, acima de tudo, à ação, na construção de um entendimento mais profundo sobre o que significa, verdadeiramente, chamar algum lugar de casa.
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This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)
[1] Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (IA/UNESP). Bacharel e Licenciatura em Pedagogia e em Educação Artística pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Fapcom – Faculdade Paulus de Tecnollogia e Comunicação. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5825-3084. E-mail: isasilveira@mackenzie.br
[2] Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Graduação em Psicologia pela Universidade Paulista. Especialização em Cinesiologia pelo Instituto Sedes Sapientiae (1995) e em Psicoterapia Junguiana pela Sociedade de Psicoterapia Junguiana e Departamento de Psiquiatria da Santa Casa de São Paulo (1994). Analista Junguiana pelo Instituto Junguiano de São Paulo, membro da Associação Junguiana do Brasil e da International Association for Analytical Psychology (IAAP). Orcid: https://orcid.org/0009-0004-3863-9413. E-mail: pauladare@hotmail.com