A experiência de cegueira induzida e a percepção espacialtemporal no desenho cego

 

The experience of induced blindness and spatial-temporal perception in blind drawing

 

La experiencia de la ceguera inducida y la percepción espacio-temporal en el dibujo a ciegas

 

 

 

Bethielle Amaral Kupstaitis[1]

Universidade Estadual de Maringá

 

 

 

Resumo

A partir da experiência de criação de desenhos cegos nasce este estudo baseado em reflexões acerca da prática artística. Na experiência de cegueira induzida, debruça-se sobre a percepção espacial e temporal compreendida no fazer. A predominância da percepção temporal frente à desorientação da percepção espacial conduziu à busca de relatos do neurologista Oliver Sacks quanto à formação da percepção de pessoas cegas que retomam ou não a visão. Estabelece-se então um paralelo sobre a percepção da cegueira induzida e o modo como a realização da série de desenhos cegos é conduzida. O conceito de “contemporâneo” de Giorgio Agamben auxilia a pensar na escuridão dos olhos vendados como uma forma de ser plenamente ativo. Reconhece-se neste não-ver a capacidade de tornar desperto e ativar a atenção para o momento presente, ao oferecer a possibilidade de perceber o tempo e o espaço de forma alargada e intensa.

Palavras-chave: Cegueira; Percepção espacial; Percepção temporal; Desenho.

 

 

Abstract

From the experience of creating blind drawings, this study was born, based on reflections on artistic practice.In the experience of induced blindness it focuses on the spatial and temporal perception understood in the making. The predominance of temporal perception in the face of disorientation of spatial perception led to the research of neurologist Oliver Sacks regarding the formation of the perception of blind people who resume vision or not. A parallel is then established about the perception of induced blindness and how the realization of the series of blind drawings is conducted. Giorgio Agamben's concept of "contemporary" helps to think of blindfolded darkness as a way of being fully active. It is recognized in this non-seeing the ability to become awake and sharpen the perception to the present moment, by offering the ability to perceive time and space in an enlarged and intense way.

Keywords: Blindness; Spatial perception; Temporal perception; Drawing.

 

 

Resumen

De la experiencia de crear dibujos a ciegas nace este estudio, basado en reflexiones sobre la práctica artística. En la experiencia de ceguera inducida, se centra en la percepción espacial y temporal entendida en el hacer. El predominio de la percepción temporal sobre la desorientación de la percepción espacial llevó a la búsqueda de informes del neurólogo Oliver Sacks sobre la formación de la percepción en personas ciegas que recuperan o no la visión. Se establece entonces un paralelo sobre la percepción de la ceguera inducida y la forma en que se realiza la serie de dibujos a ciegas. El concepto de “contemporáneo” de Giorgio Agamben nos ayuda a pensar en la oscuridad de las vendas como una forma de estar plenamente activo. En este no ver reconocemos la capacidad de despertarnos y activar la atención al momento presente, al ofrecer la posibilidad de percibir el tiempo y el espacio de una manera más amplia e intensa.

Palabras clave: Ceguera; Percepción espacial; Percepción temporal; Diseño.

 

 

 

A experiência de cegueira induzida

A experiência de cegueira temporária induzida pelo uso de venda - ou com os olhos simplesmente fechados - é um exercício recorrente na prática docente no ensino das Artes Visuais, que serve para destravar a mão e desembaraçar o traço dos vícios acumulados com o tempo. Logo, nota-se que vivenciar a cegueira temporária ressignifica a percepção do silêncio, do espaço e do tempo. Algumas questões como o cálculo do espaço a partir das medidas de tempo surgem naturalmente como estratégia para resolução de problemas imediatos. Saber quantos passos separam a porta da sala até a parede do lado extremo, pode ser uma experimentação que permite transformar a distância entre seus passos em uma medida de referência. Nesta experiência de breve cegueira, espaço e tempo estão diretamente atrelados porque há uma prática que se manifesta no corpo e através dele.          Aqueles que sempre enxergaram, vivem imersos no espaço e no tempo simultâneos na vida perceptiva. Na cegueira, tende-se a separar a experiência espacial da experiência temporal, vivendo num terreno de organização predominantemente temporal[2]. É no tempo que “os cegos constroem seus mundos a partir de sequências de impressões (táteis, auditivas, olfativas) e não sendo capazes, como as pessoas com visão, de uma percepção visual simultânea” (SACKS, 1995, p. 87).

A pessoa cega em ambiente conhecido sabe quando um obstáculo surge após determinado período de tempo e isto faz parte da sua rotina. Cada objeto possui uma espacialidade própria e pode ser acessado a partir de algum grau de controle, devido às medições de duração de percurso – passos – até elas. Qualquer ritmo que ameace romper a normalidade, mais lento ou depressa que o usual, foge do controle. O filósofo Denis Diderot já antecipava que os cegos percebem “com muito maior precisão do que nós a duração do tempo, pela sucessão das ações e dos pensamentos” (DIDEROT, 2006, p.7).  Portanto, é o tempo entre os eventos que presume o espaço. Além de que, o espaço tende a ser aquele circunscrito pelo próprio corpo e seu alcance imediato, delegando ao tempo e ao movimento, em trabalho conjunto, a possibilidade de captura de um raio mais extenso de espaço.

Veremos um desenho feito no século XVIII. O cego retratado pelo desenhista Coypel (Imagem 1) caminha de forma desajeitada como se estivesse prestes a desabar. Convenhamos, não é a postura de alguém permanentemente cego. Percebe-se pelo uso da venda que sua cegueira é induzida, cegueira de ocasião, “como se o sujeito do erro consentisse naquilo que assim lhe venda os olhos, como se ele fruísse com o seu sofrimento e a sua errância, como se a escolhesse, no risco da queda” (DERRIDA, 2011, p. 20). Jacques Derrida defende que a imagem de Error é a representação de todo o desenhista a trabalhar: inquieto para ver e tocar, com as mãos tensas, em estado de permanente atenção, angustiado pelo desejo de agir, manipular, fazer ver através da aventura de conhecimento que a mão ministra. Imaginando que o cego de Coypel possa recuperar plenamente a visão com a retirada da venda, interessa-me a relação temporal estabelecida pelas pessoas com baixa visão.

 

Imagem 1Antoine Coypel. The Error, 1702.

Fonte: RMN-Grand Palais (Musée du Louvre) https://collections.louvre.fr/en/ark:/53355/cl020011943

Se alguém não “consegue ver no espaço, a ideia de espaço torna-se incompreensível” – o espaço e sua percepção é reduzido ao corpo “e a posição deste é conhecida não pelos objetos que passaram por ele, mas pelo tempo que esteve em movimento” (SACKS, 1995, p.87). O conhecimento na cegueira é construído em ação com o tempo. O desafio de cegos que ganham a visão depois de muitos anos é coordenar espaço e tempo, concatenando-as. A filosofia pergunta, quais dos sentidos falseia, o tato ou a visão? A resposta neste contexto, é a visão, porque dela o cego só tem conhecimento por mediação do tempo e desprovido de meios de reunir ambos, é a visão que provoca a queda.

A relação privilegiada do tempo na relação “espaço e tempo” estabelecida pela cegueira importa-me a fim de pensar o processo de criação de desenhos cegos, porque é exclusivamente no tempo que eles acontecem. É somente no tempo que a mão percorre as linhas imaginárias capturadas na observação prévia. Quanto ao espaço, o desenho sucede em meio a um mapeamento mental do espaço do papel - feito previamente por mim, por alguns poucos minutos ou segundos diante do objeto a que me proponho recobrar pelo desenho - para que pudesse ocupá-lo em toda a extensão. A compreensão mental do espaço trai o processo de construção gráfica porque não é possível medi-la em busca das proporções como faria se a visse. Como vidente, a minha percepção espacial é mais abstrata do que minha percepção temporal pois esta me permite dispor progressivamente as linhas na ordem que a memória informa, mesmo que a duração, segundo a segundo, seja intensamente vivida, acompanhada da urgência de colocar tudo que observei no papel antes que a imagem mental esmoreça. O espaço, enquanto isso, permanece passivo como um plano de fundo que recebe os traços advindo de uma ordem dimensional mediada exclusivamente pelo tempo. Enquanto cega inexperiente, minha noção espacial é praticamente nula.

A cegueira do desenho é um exercício de percepção singular do tempo que convoca o artista a permanecer alerta ao campo sensível. Poucos segundos no relógio podem parecer minutos de percepção consciente. É mais um exemplo que desacomoda a visão e interfere na percepção tanto de quem executa a ação (o desenho) quanto de quem o recebe visualmente.

 

O desenho cego

Me propus a fazer algumas experimentações atreladas ao tempo, cronometrando o período transcorrido durante cada desenho. Notei de imediato que, quanto mais breves e velozes, mais fiéis ao modelo usado como referência. O que significa dizer que há uma relação inversamente proporcional, quanto menos tempo, mais memória. Nas experimentações que apresento a seguir (Imagens 2 e 3) meu esquema mental ordena o espaço a dispor o que vi da esquerda para a direita, no sentido usual da leitura, como uma espécie de escaneamento mental. Aos poucos, o desenho é remontado pelo acréscimo de pequenas porções, e “Ocorrerá com facilidade que esses segmentos sucessivos não estejam na mesma escala, e que se unam de forma inexata uns aos outros” (VALÉRY, 2003, p.71). Entre eles muitas linhas titubeiam, vão e voltam contornando a forma em uma tentativa inútil de conferir volume ao corpo, pairam em um único plano, com inexpressivas noções de profundidade e perspectiva.

Esta composição, guiada pela relação temporal ocorre em um trajeto linear, na maior parte das vezes sem levantar o lápis da superfície do papel ou num flutuar hesitante que quase encosta a ponta da caneta sobre o suporte. Em um movimento único, o tempo da experiência de apreensão do desenho fica registrado através da linearidade do percurso das linhas em um gesto uniforme. Repito o desenho sobre o mesmo papel. Renovo a observação a cada novo recomeço. Algumas vezes o primeiro registro assume o papel de matriz dos demais porque a revelia das observações reiteradas, teimo em repetir os manejos e manobras na insistência do gesto. Reproduzo as mesmas formas como se a primeira observação e desenho tivessem sido gravadas peremptoriamente na memória. Inicio outro desenho e assim, sucessivamente.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Imagem 2Desenho cego em três tempos (mesa de trabalho), primeiro desenho na base do suporte em cinza claro e último bem acima com caneta cinza escuro, caneta hidrográfica sobre papel, 48x47cm, 2020.

Fonte: Arquivo do autor.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Imagem 3Desenho cego em três tempos, primeira observação em cinza claro na base do suporte, e por último em preto, caneta hidrográfica sobre papel, 48x62cm, 2020.

Fonte: Arquivo do autor.

 

Há alguns aspectos relacionados à percepção visual que me fizeram compreender os atributos do desenho cego a partir do relato da cegueira na construção particular da percepção. O neurologista e escritor Oliver Sacks analisou casos de pessoas que recuperaram a visão depois de décadas de cegueira. O acompanhamento dos pacientes demonstrou que, de fato, ver é um processo gradual de aprendizado calcado na experiência visual. É o caso do paciente Virgil que, cego desde a infância, recupera a visão aos cinquenta anos de idade. A visão para Virgil só fazia sentido quando associada a percepção tátil, ou seja, a visão só se confirma com o toque, e o olho sozinho, não identifica o que vê. O que acontece na prática é o que se conhece por agnosia, que é a “capacidade de ver, mas não de decifrar o que estava vendo” (SACKS, 1995, p.80). A visão é restaurada em maior ou menor grau, mas o olhar não passa a ser uma habilidade natural na sua experiência, agindo como um cego que enxerga, mas não vê, o que quer dizer que não age com a visão. Oliver Sacks afirma que não se pode ver, sentir ou perceber em isolamento visto que a nossa “percepção está sempre ligada ao comportamento e ao movimento, à busca e à exploração do mundo. Ver não é suficiente; é preciso olhar também” (SACKS,1995, p.80-81).

            A frustração de Virgil (SACKS,1995) se deu pela confiança de que, após ser submetido a uma intervenção médica, abriria os olhos e teria sua visão naturalmente reabilitada, com todas as habilidades de reconhecimento visual em sua natureza objetiva. A sua expectativa tem base na concepção cartesiana de olhar, de que bastaria seu olho ser inundado por raios luminosos para que em seu interior tivesse a sensação de ver, o que ocorre fisicamente, mas não psicologicamente. É na quebra da dualidade corpo/mente que opera a construção da nova subjetividade do olhar. Compreender a visão como “o mais universal e o mais nobre dos sentidos” é danoso se isto quiser dizer dotá-lo de um conhecimento dado, e não construído. O que acarreta o entrave de colocar na visão e não na mente, a responsabilidade por organizar e receber “o mundo tal como é através do órgão – olho” (DESCARTES, 2010, p.451).

Para quem enxerga e nasceu com os sentidos funcionais, a conexão entre as percepções criou uma condição visível sincronizada com os demais sentidos, e isto faz com que seja difícil imaginar a situação de Virgil (SACKS,1995). Experiências como a que tive com a cegueira induzida marcam muito bem a ruptura desta sincronicidade e como ela opera na prática. De modo geral, “quando abrimos nossos olhos todas as manhãs, damos de cara com um mundo que passamos a vida aprendendo a ver. O mundo não nos é dado: construímos nosso mundo através de experiência, classificação, memória e reconhecimento incessantes” (SACKS, 1995, p.77). Um bebê atinge sua constância perceptiva muito cedo, o que significa uma grande incumbência de aprendizado que é alcançada de modo tão inconsciente e progressiva que sua enorme complexidade mal pode ser percebida.

A tarefa de aprendizagem visual lembra o método pictórico de Cézanne (MERLEAU-PONTY,2004) que fazia de cada ângulo do objeto uma aventura perceptiva, um tema de investigação da mais alta relevância, podendo inclusive, permanecer meses sem alterar sua posição. Simplesmente envergando ora para a esquerda, ora para a direita em busca da compreensão sincrônica de todas as facetas aparentes e das modificações dos objetos que estão atreladas a elas. O pintor surpreendia-se que, a cada novo ângulo, o objeto parecia ao mesmo tempo igual e distinto.        

Evoco aqui o interessante caso da assistente cega de nascença que auxiliou o artista norte-americano Robert Morris em uma de suas subséries intitulada Blind Time. A assistente, completamente cega e, diferente de Virgil (SACKS,1995) não retoma a visão. Ela, portanto, não conecta as formas visuais do mundo perceptível com as formas visuais reais do mundo vivido pois não possui senso de escala ou perspectiva. Ao receber a instrução de desenhar uma pirâmide, ignora o fato de que o triângulo seja a sua forma básica correspondente, e mesmo ao toque, ao tê-lo em mãos, desconhece sua forma de representação. Isto ocorre porque “A sensação em si não tem marcadores para tamanho e distância” (SACKS, 1995, p.82) fazendo com que tais valores sejam aprendidos com base unicamente na experiência visual. A assistente de Morris não conseguiu representar certos comandos como, por exemplo, a perspectiva e o fato de que objetos distantes parecem ser menores do que realmente são se comparados a quando estão ao alcance das mãos.

Este aprendizado se revela para nós, videntes, em situações cotidianas. Ao subitamente perder a noção espacial ao descer rapidamente uma escada quando a visão parece embaralhar transformando a aresta do degrau em uma simples linha desconectada do volume que representa na realidade. Por poucos instantes o que se vê é uma confusão de linhas entrelaçadas. Para os cegos que ganham a visão tardiamente, situações como estas são corriqueiras. Objetos e superfícies avultam-se, lançando-se para cima deles, quando na verdade, mantém-se a uma segura distância. Luzes e sombras, por seu turno, são origem de confusão particular e o conceito de sombra, ou seja, de superfícies que bloqueiam a luz, são enigmáticos e os fazem agir com desconfiança na dúvida de aparentarem corpos com volume físico.

            A ruptura na percepção dos objetos ocorre pela ausência de sincronicidade na relação espaço e tempo, pois, como afirmo, o dilema da cegueira está na quebra que existe entre as duas dimensões. O que serve tanto para compreender o contexto das pessoas com baixa visão, como para pensar a atuação do desenhista e que pode ser demonstrado por meio da prática do desenho.

            Quando desenhamos observando algo e tentamos representar o campo volumétrico em um espaço plano segundo coordenadas planas, precisamos passar pelo processo de desmontar a percepção visual das três dimensões e enxergar diretamente a realidade em duas dimensões. Esta transição nos ajuda a não divergir mais com o espaço de representação bidimensional para, simplesmente, passar a acompanhar o que o olho começa a ver segundo este treinamento. O processo de transferência de uma dimensão tridimensional (que é observada) para uma dimensão bidimensional (que será criada) pelo desenho exige uma ruptura que acontece na construção da representação. Isto porque enquanto observo o modelo do desenho acesso, ao mesmo tempo, os marcadores de tamanho e distância que minha percepção formulou em meu repertório visual. Desta maneira, transponho para o papel as formas correspondentes de acordo com o que observo do objeto-referência do desenho. A busca pelas equivalências e proporções adequadas passa pelos valores que aprendi ao longo do processo de formação do meu olhar.

            É o que acontece na prática quando me coloco diante do suporte para desenhar uma das paredes da sala (Imagem 2). Os móveis e objetos, ordenados por mim, portanto, em ordem que me é familiar, serão arranjados uma segunda vez, pela representação gráfica. Essa intimidade, ao contrário do que se possa imaginar, não faz ser mais fácil o meu desempenho frente ao desafio da representação, unicamente pela minha inabilidade em transitar pelo espaço virtual de construção calcado tão somente na memória. Contudo, apesar da dificuldade em lidar com estes dois pólos desconectados, o recurso da linguagem visual que pude exercitar ao longo do tempo na construção do meu repertório gráfico, me permite ainda, “desmontar” estes objetos em suas formas básicas e transportá-las ao papel a fim de garantir uma forma de reconhecimento elementar.

 

O que acontece com os olhos dentro do escuro?

Para além da discussão acerca do desenho cego, retomo o Error de Coypel (Imagem 1) em busca do significado dos olhos vendados. Diante desta reflexão, permaneço de olhos vendados. Atrás da cabeça, o nó de tecido pode ser desfeito a qualquer momento.  Pergunto-me, o que acontece com os olhos dentro na escuridão induzida, quando abdico das noções que me situam no mundo? Giorgio Agamben dirá que estar consciente da escuridão é uma forma de compreender o contemporâneo.

Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. Mas o que significa ‘ver as trevas’, ‘perceber o escuro’? (AGAMBEN, 2009, p.62-63).

 

A escuridão das pálpebras fechadas pelos olhos vendados ocorre em termos neurofisiológicos quando os fotorreceptores ativam células, mesmo na ausência de luminosidade. Isto porque o campo receptivo de células ganglionares off aumenta sua frequência de atividade quando ocorre um decréscimo da luminância. Sob o viés filosófico, podemos pensar que a escuridão está longe de ser uma passividade do corpo, precisamente porque pressupõe a ativação de células do campo receptivo, logo, o escuro é ativo, produzido e afirmado por uma ação de células que o cria. Isso significa, segundo o filósofo Giorgio Agamben, “que perceber esse escuro não é uma forma de inércia ou de passividade, mas implica uma atividade e uma habilidade particular” (AGAMBEN, 2009, p. 63). Assim sendo, perceber o escuro é ser plenamente ativo.

Importa fazer uma distinção com a intenção de contestar a ideia de que o escuro é imobilidade tornando-a sua característica intrínseca. Sabemos agora que no espaço obscuro cabem tantas coisas quanto podemos imaginar porque o seu espaço é ilimitado, metaforicamente falando. Provavelmente seja isto ao que o fotógrafo cego Evgen Bavcar queira dizer ao afirmar que “quanto mais se desenvolve o mundo visual, mais extenso também fica o mundo invisível” (BAVCAR, 2000, p.20), no escuro permanente em que vive a retina do artista há mais mobilidade que inércia. Segundo Agamben

o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda a luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo (AGAMBEN, 2009, p.64).

 

Portanto, a compreensão do contemporâneo passa precisamente pelo desconforto de lidar com o obscuro. É preciso deixar de ver para enxergar, como um piscar de olhos que pressupõe milésimos imperceptíveis de escuro.

A metáfora da visão, ao olhar as estrelas do céu, ilustra o problema. Ao enxergar estrelas muito distantes, na verdade, vemos apenas a luz que emana de milhares de anos atrás e provavelmente muitas delas sequer existam mais. Desta forma, o homem ou mulher que ergue os olhos para o céu se faz “Espectador efêmero de um espetáculo eterno” (DE MAISTRE, 1998, p.124). Assim, conceber o contemporâneo é considerar não perceber o tempo na sua integralidade, pela impossibilidade mesma de não poder manter fixo o olhar sobre ele, a fim de capturá-lo.

 

A experiência do desenho cego e a escuridão ativa

A experiência do desenho cego se faz na medida em que não se vê sendo feito, é nesta peculiar defasagem temporal que o consciente se ativa, tornando-se desperto e avivando a percepção para o momento presente. A escuridão pressuposta pela compreensão do contemporâneo me coloca em consonância com a investigação do espaço obscuro do desenho. Porque a escuridão exige a renúncia momentânea de algumas qualidades do repertório perceptível, mas ao mesmo tempo oferece a habilidade de perceber o tempo e o espaço de forma alargada e intensa. O escuro concede um espaço dilatado que interpela as limitações corporais ao concentrar-se no campo expandido da experiência. Investigar o desenho no espaço de sombra das pálpebras fechadas, consente a aproximação de uma realidade conectada com o contemporâneo, do que nele há de anacrônico e díspar.

 

 

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009.

 

BAVCAR, Evgen. O Ponto zero da fotografia. Rio de Janeiro: Galeria Sotero Cosme, 2000.

 

DE MAISTRE, Xavier. Viagem ao redor do meu quarto. Tradução de Armindo Trevisan. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998.

 

DERRIDA, Jacques. Memória de cego: o autorretrato e outras ruínas.  Fundação Calouste Gulbian. 2011.

 

DESCARTES, René. Discurso sobre o método: para bem dirigir a própria razão e procurar a verdade nas Ciências. São Paulo: Hemus, 2010.

 

DIDEROT, Denis. Carta sobre os cegos endereçada àqueles que enxergam; Carta sobre os surdos e mudos endereçada àqueles que ouvem e falam: texto integral. São Paulo: Escala, 2006.

 

MERLEAU-PONTY, Maurice. A dúvida de Cézanne.São Paulo: Cosac Naify, 2004.

 

SACKS, Oliver W. Um antropólogo em marte: sete histórias paradoxais. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

 

VALÉRY, Paul. Degas Dança Desenho. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2003.

 

 

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[1] Doutora em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2020). Atualmente é professora no curso de Artes Visuais da Universidade Estadual de Maringá, Brasil. E-mail: bethielle@yahoo.com.br

[2] O comprometimento da percepção espacial refere-se aqui especificamente ao sentido da visão, resguardando a funcionalidade dos demais sentidos na experiência com o espaço.