Ateliers Abertos no Torre�o: a educa��o pela paisagem

Ateliers Abertos in Torre�o: education through landscape

 

Paula Cristina Luersen[1]

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

 

 

Resumo

O texto trata de experi�ncias de educa��o e arte colocadas em jogo no Torre�o, espa�o que promoveu, de 1993 a 2009, um cruzamento entre produ��o e reflex�o da arte contempor�nea em Porto Alegre. Os Ateliers Abertos eram incurs�es coletivas na paisagem realizadas com grupos de alunos/artistas que passam a fazer dos lugares vivenciados um ponto de partida para experimenta��es art�sticas. Os deslocamentos exploram da depress�o dos c�nions � planura do pampa; do deserto de sal � costa litor�nea. A experi�ncia com os lugares conduz o repensar do tempo e do espa�o, refutando automatismos envolvidos no fazer em arte. O encontro com as paisagens desmonta categorias como o erro e o acerto, o individual e o coletivo, a imagina��o e a materialidade nos processos de experimenta��o. Os Ateliers Abertos refor�am o compromisso da educa��o com a mudan�a, propondo a reinven��o constante das formas de fazer.

Palavras-chave: Torre�o; Ateliers Abertos; Paisagem; Tempo: Arte Contempor�nea.

 

 

Abstract

The text deals with experiences of education and art held at the Torre�o, a venue that promoted, from 1993 to 2009, an intersection between the production and reflection on contemporary art in Porto Alegre. The Ateliers Abertos were collective incursions into landscapes that happened with groups of students/artists that turn the experienced places into a starting point for artistic experimentation. The displacements range from canyon depressions to the plains of the pampa; from the salt desert to the sea coast. The experience with these places leads to a second reflection of time and space, refuting the automatism involved in artmaking. The encounter with the landscapes disassembles categories such as hit and miss, individual and collective, imagination and materiality, in processes of experimentation. The Ateliers Abertos reinforce the commitment of education with change as they propose the constant reinvention of different ways of crafting.

Keywords: Torre�o; Ateliers Abertos; Landscape; Time: Contemporary Art.

 

 

[...] Tudo meu, nenhuma posse,

nenhuma posse para a lembran�a,

mas meu enquanto olho.

Inumer�veis, impossu�das,

mas distintas at� a menor fibra,

gr�o de areia ou gota d��gua

� as paisagens.

N�o conservo nem uma palha

na sua inteira visibilidade.

Sauda��o e despedida

numa �nica olhada.

Para o excesso e a falta

um s� mover do pesco�o.

 

Wislawa Szymborska

 

Comecemos pelas paisagens: c�nions em meio � bruma a revelar o oco do abismo; montanhas coloridas que a cada passo se faziam mais distantes; o deserto de sal em sua extens�o imensur�vel de branco. Longas pradarias levando a morros verdejantes; grandes faixas de areia a serem percorridas at� a praia. A imensid�o de um rio; o mar revolto.

Diante delas, o mesmo tipo de rea��o: �Tu foca em um ponto e n�o � isso. Tu vira a cabe�a e n�o � isso tamb�m. Tem que fazer um looping pra ter a absor��o de tudo, do que possa ser tudo. As fotos, nenhuma delas vai conseguir fazer isso�[2]. N�o se trata aqui de fixar uma imagem, mas de tentar fazer frente a uma sensa��o. Como refere o poema Elegia de Viagem, da escritora polonesa Wislawa Szymborska, o deparar-se com a paisagem coloca em quest�o a nossa capacidade de guardar a experi�ncia vivida junto aos lugares que contemplamos. N�o h� posse ou registro que d� conta de refletir tudo o que se passa no corpo. O desafio est�, ent�o, na tentativa de inscrever um gesto e tomar parte, de alguma maneira, do lugar que se mira.

� dessas ideias � o tempo das paisagens, a experimenta��o do gesto e do lugar � que parte o processo de educa��o do qual trataremos no presente artigo. Ele aconteceu no in�cio dos anos 2000, movimentando um grupo de pessoas por diversos lugares. A proposi��o parte do Torre�o, um casar�o localizado no bairro Bom Fim, cuja proposta era efetuar um cruzamento entre produ��o e reflex�o em arte contempor�nea em Porto Alegre. O Torre�o surgiu da vontade de dois artistas/professores, Elida Tessler e Jailton Moreira, de reunir em um mesmo espa�o suas experi�ncias art�sticas e docentes. Essa ideia inicial funda um lugar de di�logo em torno da arte contempor�nea que logo se estende, tanto em termos de abertura ao outro � somando-se aos dois artistas uma s�rie de interlocutores que o espa�o passa a acolher � quanto em termos de proposi��es � que se ampliam na medida em que as trocas acontecem. O Torre�o permaneceu durante 15 anos em funcionamento[3] e � hoje reconhecido como precursor da profus�o de espa�os independentes de arte contempor�nea ocorrida no Brasil nos anos 1990 e in�cio dos anos 2000. A alcunha de �espa�o independente� � atribu�da, no entanto, somente ap�s anos de funcionamento do Torre�o, ganhando circula��o nacional quando iniciativas em sentido an�logo � AGORA/Capacete (RJ), Alpendre (CE), Espa�o Experimental R�s do Ch�o (RJ), Camelo (PE), Atelier Aberto (SP) � tomam f�lego no pa�s, para al�m das diferen�as de contexto e atua��o que as animavam.

A natureza do Torre�o foi se definindo no decorrer de sua instaura��o e a partir da vontade de Elida e Jailton de n�o apenas ocupar conjuntamente um lugar, mas de invent�-lo � sua medida. S�o trocas, encontros, aulas, viagens, parcerias e produ��es art�sticas que constituem a din�mica da casa no decorrer de sua trajet�ria. Mesmo depois do fechamento do espa�o, em 2009, continuou a representar uma grande dificuldade para Elida e Jailton, bem como para os frequentadores, encontrar uma forma objetiva de defini-lo, pois a pr�pria opera��o de definir imp�e um fechamento, tornando plana a espessura dos di�logos e acontecimentos que guiaram sua constitui��o e percurso. Dessa forma, conferir ao Torre�o uma defini��o �, para usar as palavras de Jailton Moreira (2008, p. 109), deixar de consider�-lo como um �campo de a��es inst�vel, cheio das incertezas que os processos art�sticos e educacionais est�o sempre a gerar�. Entre as diversas iniciativas que mobilizaram as rela��es entre tempo, arte e educa��o no Torre�o, destaca���� mos uma em especial: os Ateliers Abertos. Eles eram incurs�es coletivas na paisagem reunindo grupos de alunos/artistas. A tentativa era estabelecer, segundo Jailton, �uma discuss�o mais pr�xima n�o s� do objeto art�stico, mas tamb�m dos processos que estavam se desenvolvendo simultaneamente por cada aluno� (GERALDO, 2008, p. 111).

Para dar a medida de como � dif�cil isolar processos quando o assunto � educa��o num espa�o como o Torre�o, cabe ressaltar que ao mesmo tempo em que Jailton articulava os Ateliers Abertos, tamb�m aconteciam, na casa, os encontros do grupo de estudos de Elida: o p.a.r.t.e.s.c.r.i.t.a. O grupo surgiu da descoberta de um interesse compartilhado nos textos do livro As palavras e as coisas (1966), de Michel Foucault.[4] Al�m disso, a parceria com institui��es de arte trazia, para �����Torre�o, uma s�rie de atividades que contribu�am na forma��o dos alunos, como o acolhimento de novos p�blicos, �����lan�amentos de livros, discuss�es sobre filmes, dentre outros. Soa artificial, assim, isolar uma s� a��o dentre todas as outras[5], mas tentaremos focar especificamente nos Ateliers Abertos para pensar o modo como articulavam rela��es entre arte contempor�nea, educa��o e tempo. A investiga��o � guiada pela fala dos participantes dos Ateliers, hoje acess�veis por meio dos v�deos que eram produzidos por Jailton ao final de cada incurs�o. Tamb�m usaremos das falas registradas posteriormente no contexto da pesquisa de doutorado Torre�o, lugar de rastros[6].

Ateliers Abertos: nenhuma posse para a lembran�a

Quem sabe a experi�ncia dos Ateliers Abertos seja para os alunos e frequentadores do Torre�o o que mais claramente n�o cabe em palavras ou imagens. O inexprim�vel nessas viv�ncias � um dos temas recorrentes nas conversas e quest�es registradas nos dez v�deos realizados por Jailton. Que experi�ncia de ensino � esta que deixa as salas e o espa�o do casar�o para se abrir � temporalidade imensa dos desertos, c�nions, praias, mares e rios? O que se propunha com os deslocamentos para lugares al�m-casa? O impulso primordial que nos impele a buscar paisagens n�o necessita de explica��o. Existe uma rela��o com o ambiente que s� locais como os explorados nos Ateliers Abertos possibilitam ao corpo. S�o in�meros os escritos que tratam disso, mas parece oportuno convocar aqui uma passagem de Herman Melville em Moby Dick tratando do premente desejo de paisagem que impera nos homens. No livro, Melville (2008, p. 27-28) discorre sobre a liga��o dos habitantes da vila de Nantucket com o oceano a seus p�s:

Perambule pela cidade numa tarde et�rea de s�bado. [...] O que se v�? Plantados como sentinelas silenciosas por toda a cidade, milhares e milhares de pobres mortais perdidos em fantasias oce�nicas. [...] Estes s�o todos os homens de terra; que nos dias da semana est�o enclausurados em ripas e estuques � cravados em balc�es, pregados em assentos, fincados em escrivaninhas. O que � isso, ent�o? O que eles fazem ali? [...] Todos de terra firme, v�m de becos e vielas, de ruas e avenidas � de norte, leste, sul e oeste. Mas aqui est�o todos unidos.

Os Ateliers Abertos quem sabe tivessem a for�a de trazer � tona o impulso evocado por Melville. O mesmo que caracteriza Ishmael, o personagem principal de Moby Dick, descrito como �um atormentado por um desejo permanente de coisas distantes�. (MELVILLE, 2008, p. 28)

Imagem 1. Frame registrado por Jailton Moreira no v�deo do Atelier Aberto XIII (S�o Jos� dos Ausentes, set. 2012)

Fonte: Arquivo do Torre�o.

As falas dos participantes dos Ateliers Abertos deixam claro que, mais do que a no��o espacial, o vivenciar do tempo numa esfera comum entrava em colapso durante as viagens. Em um dos v�deos, um aluno comenta sobre a mudan�a de comportamento que lhe foi proporcionada pelos 10 dias �s voltas com o Salar do Uyuni na Bol�via:

a pressa n�o conta, o tempo n�o conta, eu n�o trouxe rel�gio, a roupa n�o importa. Todo mundo tava interessado no lugar. E eu pensei: o oposto disso seria eu vestido de terno e gravata e indo pro trabalho com um rel�gio e uma pasta. O que �, na verdade, o meu dia-a-dia em Porto Alegre[7].

Os Ateliers Abertos traziam essa tentativa de �retirar o aluno do habitat para, sob novas condi��es, modificar o olhar e, acima de tudo, responder �s surpresas� (MOREIRA, 2005, p. 111). � em alguns desses momentos que buscaremos nos deter para tratar de como essas experi�ncias afetaram os participantes.�

Os encontros com a paisagem t�m in�cio em 2002, ap�s as conversa��es sobre arte e lugar estarem se desenrolando a pleno f�lego no Torre�o. De acordo com Jailton, ainda que essas trocas tivessem um papel fundamental na forma��o do pensamento sobre arte contempor�nea, ele sentia que careciam de uma rela��o mais pr�xima com os processos art�sticos desenvolvidos por cada aluno na casa. Faltava o compartilhamento das d�vidas surgidas em meio ao fazer, no momento da produ��o: �Desejava ouvir o aluno perguntar em alto e bom tom���� �em frente aos colegas: em que enrascada eu estou metido? Que esta indaga��o fosse partilhada no exato momento em que ela ocorresse.� (MOREIRA, 2005, p. 111) Essa percep��o gera a proposta de realizar quatro workshops tendo como tema principal a paisagem. Um passeio conjunto de barco pelo rio Gua�ba inicia essa s�rie, com a pr�tica do desenho de observa��o. Os alunos foram convidados a desenhar o Gua�ba a partir de provoca��es que levavam em conta o olhar m�vel proporcionado pelo percorrer do rio: �A proposta era olhar a paisagem e desenhar, sem registro. N�o era nada pra depois, era pra estar l� e desenhar� (MOTTA, 2018, p. 121).

J� nessa primeira edi��o do Atelier Aberto se coloca a busca por uma abertura do pensar. Os alunos deveriam renunciar a tudo aquilo que julgavam saber sobre aquele trecho de paisagem porto alegrense: �Se deve confessar primeiramente que n�o se sabe nada, que se precisar� olhar para saber. [...] A paisagem deve ensinar as suas necessidades� (MOREIRA, 2005, p. 112). A partir dessa a��o, vai se estendendo o interesse por lugares que impusessem novas condi��es: o fluxo do Gua�ba d� lugar � aridez e hostilidade das paisagens des�rticas. Os c�nions em S�o Jos� dos Ausentes/RS; o pampa em Santana do Livramento/RS; as praias de S�o Jos� do Norte/RS e da Ferrugem/SC; o deserto e o Salar de Uyuni na Argentina e Bol�via. Esses foram alguns dos encontros que diferentes grupos foram levados a experimentar, algumas vezes com o retorno para uma segunda incurs�o. A cada deslocamento outras nuances do pensamento sobre paisagem eram exploradas. O rastro das quest�es espec�ficas que moveram cada workshop est� nas formula��es que intitulam os v�deos produzidos por Jailton. Alguns exemplos: �S�o Jos� dos Ausentes � o passeio como estrat�gia, a paisagem como mat�ria�; �Salar do Uyuni � interven��es e a documenta��o como mat�ria�; �S�o Jos� do Norte � a paisagem como suporte�; �Ferrugem � a paisagem revisitada�.

N�o havia qualquer partitura conformando os Ateliers Abertos a algum tipo de padr�o. Alguns encontros, como a quinta e a sexta edi��o, n�o envolveram viagens, mas caminhadas pela cidade de Porto Alegre, tendo como foco a cartografia e a malha urbana da cidade. Vendo, por�m, que a experi�ncia com paisagens diversas ainda gerava muitas quest�es, procurou-se por lugares capazes de contrastar com a cidade e a sua atmosfera. A �nica constante, percept�vel em todos os encontros, era a ideia de que os participantes respondessem de alguma forma ao lugar onde se inseriam, colocando em pr�tica o exerc�cio de atelier expandido. Quanto aos grupos, alguns alunos s�o figuras constantes nos v�deos e se pode acompanhar o desenrolar de seus projetos e fazeres de uma paisagem � outra; outros participantes, menos frequentes, atuavam como contraponto nos registros, dando a medida do impacto causado pelo primeiro encontro com paisagens desconhecidas. Uma boa maneira de dimensionar o desafio que os Ateliers propunham est� na fala de uma aluna que, apesar de ter frequentado o Torre�o com grande const�ncia, tomando parte da maioria das atividades no espa�o, decidiu n�o fazer parte dos workshops. Envolvida com sua carreira de arquitetura na capital, ela afirma: �Eu n�o consegui me doar tanto assim. [...] Foi na medida que eu pude. Talvez um certo medo de ir e n�o voltar mais, entende? [...] De alguma maneira, era um passo a mais� (RECENA, 2018, p. 79). Quais as dire��es que propunha tal passo?

Imagem 2. Montagem de imagens registradas por Jailton Moreira nos v�deos do Atelier Aberto III (Salar do Uyuni, Bol�via, set. 2002) e Atelier Aberto IV (S�o Jos� do Norte, nov. 2002).

Fonte: Arquivo do Torre�o.

Para investigar como os alunos eram lan�ados a outro tipo de rela��o com a quest�o da arte e do lugar � necess�rio entender um pouco da din�mica dos Ateliers. Relatos d�o conta de mostrar que os workshops iniciavam antes do deslocamento em si, nas conversa��es que aconteciam no Torre�o: �Tu tem uma esp�cie de prepara��o pra isso, um pouco pra pensar sobre o que est� indo fazer naquele lugar ou sobre as condi��es do lugar.� (MOTTA, 2018, p. 123) Ap�s algumas edi��es, contudo, parece ter se tornado um movimento natural os participantes erguerem suas pr�prias propostas: �Tiveram Ateliers Abertos em que a gente era desafiado a criar um projeto, em outros n�o. Acho que mais pro final, quando a coisa se tornou uma pr�tica, isso j� n�o era t�o direcionado� (SARI, 2018, p. 245). A ideia de pensar projetos a serem desenvolvidos nos lugares, certamente, passava por desenhar sobre a paisagem a ser visitada um horizonte de expectativas. Como coloca, por�m, Roberto Corr�a dos Santos em um texto sobre arte contempor�nea e experi�ncia, a experimenta��o n�o se fia por projetos ou previs�es: �trata-se na experi�ncia de um ato que requer o desconhecer sempre; de estar solto do feito como algu�m se solta de uma morda�a; o feito seria apenas, e j� bastante, a marca da corda na boca. E essa, todos portam�. (SANTOS, 2012, p. 91).

Como os v�deos mostram, era somente o tempo de o grupo come�ar a vivenciar os lugares para que o desconhecido passasse a imperar sobre as a��es dos alunos, colocando em risco inten��es e planejamentos. Os depoimentos demonstram que um dos problemas mais recorrentes era lidar com as discrep�ncias entre imaginar e fazer. Conhecer os lugares apenas por registros trazia esses desv�os. Sobre isso, Jailton comenta:

alguns alunos e artistas chegaram a essa problem�tica sobre os limites da representa��o no desenvolvimento dos seus processos. A quest�o era como �ensinar� esta ideia. A resposta para essa e outras situa��es sobre o ensino da arte passa por aceitar essa impossibilidade, e ao mesmo tempo, negar o sil�ncio. (MOREIRA, 2005, p. 113)

A dist�ncia entre sentir a paisagem e buscar a sua apreens�o, a diferen�a entre as ideias esbo�adas e a sua inscri��o nos lugares, colocava em primeiro plano os limites da representa��o. Quando essa dist�ncia se impunha, as d�vidas, expectativas, pretens�es e enganos passavam a ser externados entre os colegas, sendo que parte desse percurso consta nos registros em v�deo. S�o momentos em que a proposta de ensino dos Ateliers Abertos � fiada por um vivenciar coletivo e pelo compartilhamento de indaga��es � se mostra, de fato, em movimento, fazendo com que as quest�es das paisagens-limite tomassem a for�a de problemas:

Eu vim disposta a escrever, escrever um di�rio de viagem. Eu n�o leio muito di�rio de viagem, mas j� li alguns. Eu tive uma dificuldade imensa em saber o que registrar. O que adianta eu escrever o que eu comi, n�o comi, que horas s�o? Parece idiota. Mas por outro lado, o que tu escreve? [...] Eu t� nesse lugar. A� eu pego a b�ssola do celular, aponto pra um lado e vejo que grau d�. T� sempre anotado assim. T�, mas e da�? O que mais? O que � registrar essa viagem? [...] Vim disposta a escrever e o que menos fiz foi escrever. At� desenhar eu desenhei, uma coisa que nunca fiz na vida.[8]

Ao mesmo tempo que os dilemas se impunham, estar � deriva for�ava o abandono dos clich�s para agir criativamente: �Eu esqueci muitas coisas da cidade, os truques ficaram l�; �Tentei colocar em pr�tica muita coisa do que eu pensei, mas ao mesmo tempo sempre vinha a pergunta: precisava estar aqui pra fazer isso?�[9]. Segundo Jailton, o poder das paisagens em relativizar as atitudes, gestos e a��es induziam, a cada encontro, a um sil�ncio inicial que foi sentido por grande parte dos alunos: �precis�vamos suspender, provisoriamente, a palavra arte, com todos os seus conceitos e implica��es, para que eles pudessem agir sobre a mat�ria da paisagem sem ambi��es de resultado, de produto ou sentido� (MOREIRA, 2005, p. 113). O que parece estar em jogo � essa tens�o constante entre encarar os limites do gesto, dos projetos ou da pr�pria representa��o e, apesar disso, procurar por sa�das e movimentos que fugissem ao j� experimentado, sem o compromisso de que as a��es respondessem necessariamente a uma no��o preestabelecida de arte: �Provar. A experi�ncia como prova, como teste: um passo adiante valendo-se dos recursos do corpo e do frescor da curiosidade intensiva� (SANTOS, 2021, p. 92).

Imagem 3. Montagem de imagens trazendo as experimenta��es dos alunos na paisagem. Registradas por Jailton Moreira nos v�deos do Atelier Aberto II (S�o Jos� dos Ausentes, mai. 2002), Atelier Aberto IX (Santana do Livramento, jul. 2005), Atelier Aberto XI (Ferrugem, jul. 2007), Atelier Aberto XII (Argentina e Bol�via, out. 2010).

Fonte: Arquivo do Torre�o.

Uma das compreens�es que se colocam, nesse ponto, e que os Ateliers Abertos pareciam enfrentar, � a ideia do erro. S�o in�meras as falas que Jailton colhe em seus v�deos sobre a decep��o de ter um projeto frustrado, um ato ou gesto diminu�do pelas condi��es e reveses pr�prios a cada uma das paisagens: �o problema � t�o grande que tu fica impotente para enfrent�-lo�[10]; �a falta de estabilidade me deixou atrapalhado. Eu queria que [o projeto] desse certo�[11]; �as respostas t�o muito aqu�m do que eu gostaria de dar�[12]; �a gente fica t�mido, pensa: �Essa ideia � muito ruim�[13]. O contato com os v�deos reporta ao conceito de erro pensado por Deleuze. Para o fil�sofo, o erro � comumente visto como um estado negativo do pensamento, em contraposi��o a ideia de saber, tida como um elemento que remete ao verdadeiro: �o saber e o erro favorecem uma imagem servil do pensamento, fundada sobre a interroga��o: dar a boa resposta, encontrar o resultado justo, como na escola e nos jogos televisivos� (ZOUBARACHVILLI, 2016, p. 43). Para que essa no��o de erro, t�o refor�ada em nosso dia-a-dia, tomasse outros sentidos, era preciso primeiramente suspend�-la. Os Ateliers Abertos quem sabe oferecessem outra via para que essa fosse experimentada, afinal n�o havia outra alternativa que n�o a imposta pelas dimens�es imensur�veis das paisagens: �O cen�rio torna cada ato nosso insignificante. Mas isso d� muita liberdade. � a humildade de aceitar que � insignificante mesmo�[14].

Nas discuss�es que os v�deos registram se pode acompanhar as aberturas para o transbordamento: �N�o d� pra escolher ideia�; �na d�vida, fa�a!�[15]. Era necess�rio esquecer, finalmente, aquilo que confinava o grupo a julgar as a��es como acertos ou fracassos. O que nos leva a quest�es bastante complexas: em que contextos ou meios da arte isso �, de fato, posto em jogo? Como promover essa abertura para experimenta��o como processo educativo sem que o bin�mio do acerto/erro se imponha a priori? � com a liberdade em rela��o a esses clich�s que se chega � experi�ncia: �o deu certo est� fora do teste, da prova, da ousadia da experi�ncia. A experi�ncia n�o se deixa usar (usam-se dela as inscri��es, as cifras, seus c�digos).� (SANTOS, 2012, p. 93).

A fala de um dos alunos pensando hoje as duas ocasi�es em que vivenciou o Salar do Uyuni, d� conta de mostrar a persist�ncia das perguntas independentemente das solu��es ou tentativas frustradas:

na primeira vez eu trabalhei muito com a cor, atuando nessa situa��o de uma paisagem exuberante e ampla. J� na segunda oportunidade eu fui pra tentar me misturar com a paisagem, eu fui pra anular a minha presen�a, essa era minha inten��o, de tentar me misturar um pouco com aquele lugar. E acho que isso foi parte de um processo meu, mas coletivo tamb�m porque uma das perguntas que a gente teve na primeira ida foi: �Como fazer algo em um lugar t�o acachapante, t�o infinito?�. E a segunda vez, era um pouco essa quest�o de tentar n�o confrontar isso e tentar me misturar mesmo. Mas claro que da� decorre uma s�rie de coisas, porque eu acho que acabei criando uma esp�cie de desafio que era ficcional, ou seja, tentar me misturar pensando na visualidade da coisa. [...] As perguntas se desdobraram mesmo foi na experi�ncia, nessa a��o de tentar atingir algumas coisas. De tentar. E as respostas que eu ia tendo n�o fechavam muito a quest�o. Nessa segunda vez mesmo, a pergunta era como se misturar e a resposta foi um pouco que era imposs�vel (risos). Mas era isso: � imposs�vel, mas eu vou seguir perguntando. (MOREIRA, 2012, p. 112-113)

Quem sabe as paisagens e as d�vidas que se colocavam coletivamente fossem o fundo de ruptura, a linha de fuga para que se insinuasse esse outro modo de pensar � e julgar � as interfer�ncias na paisagem. A��es comuns como coletar, reunir, recolher, distribuir, amarrar, cortar, lan�ar, fixar, misturar, selecionar, medir, percorrer, desviar, inscrever, suspender, foram modos correntes de criar rela��es com o entorno. Eram sa�das para, como coloca Jailton, os alunos reagirem a paisagens que �com sua monumentalidade, invertiam dramaticamente a rela��o de um sujeito imperativo com o espa�o, apostando em apropria��es provis�rias e circunstanciais� (MOREIRA, 2012, p. 113). Em alguns dos encontros os alunos foram desafiados, inclusive, a utilizar apenas os materiais encontrados nos pr�prios lugares. Isso se amplia at� o ponto em que a m�xima afirmada em rela��o ao primeiro Atelier Aberto � �a paisagem deve ensinar as suas necessidades� � �, de fato, tomada como ponto de partida. Nessas ocasi�es, situa��es muito espec�ficas de cada lugar direcionavam as a��es. Mais do que trabalhar com a paisagem, os alunos passam a contar com ela e com seus acasos para intervirem.

� ent�o que a n�voa respons�vel por impedir a visibilidade dos c�nions passa a servir de refer�ncia para, num dia claro, usar de um material que volta a nublar o abismo; que a dist�ncia n�o percorr�vel do salar sugere que se experimente um exerc�cio de imobilidade; que o vento que perturba o mar em S�o Jos� do Norte � usado em favor do funcionamento de um objeto cin�tico; que a noite que toma o pampa e faz da terra e do rio uma massa indiscern�vel de escurid�o se torna alternativa para uma a��o baseada na luminosidade de velas acesas. E logo a paisagem revela uma maneira pr�pria de transformar em narrativa um gesto simplesmente esbo�ado, como no caso narrado por um aluno:

Eu trabalho com cinema, trabalho com anima��o que tem muito de planejamento. Tu tem uma narrativa, um roteiro e tem um conforto em rela��o a isso. Vai dar certo, porque tudo aquilo ali foi planejado. [...] [Aqui no deserto] tudo que eu planejava n�o ia dando certo e eu tinha que reagir de alguma forma. [...] Eu achei l� pelas tantas uma placa que dizia que era proibido passar, a� comecei a andar, chegar na placa e voltar. Andava, chegava na placa e voltava. Na terceira vez eu fui atacado por umas gaivotas e tive que parar (risos). Ent�o, a pr�pria paisagem e a natureza deram um fim narrativo pra hist�ria. � um pouco isso, perder o conforto e saber o que fazer com isso.[16]

����������� Se um dos objetivos do Ateliers Abertos era o de que os alunos respondessem �s surpresas, esse � um exemplo em que se reage a um imprevisto conferindo-lhe um sentido. Al�m de enxergar no acaso um elemento produtivo, isso envolve levar a cabo ideias sugeridas pelo entorno, para al�m de consider����� -las simples ou complexas, aleat�rias ou elaboradas. Esse movimento � um grande desafio para quem, como no caso deste aluno, diretor de cinema, s� d� prosseguimento ao trabalho quando amparado por uma ampla cadeia de a��es planejadas e por um projeto aprovado em v�rias inst�ncias. Outro ponto de vista para dar corpo a uma narrativa � sugerido a partir dessa experi�ncia: �o d�spar faz fugir � representa��o; a diferen�a dos pontos de vista tra�a uma linha de fuga� (DELEUZE, 2013, p. 30).

Ao referir o conceito de linha de fuga, coloca-se em jogo a dist�ncia entre dois pontos de vista. Ela s� � percorrida quando se tra�a um caminho para fora do habitualmente experimentado. Pensando em Deleuze, conforme Zoubarachvili (2016, p. 131) se pode afirmar que �um ponto de vista s� se apreende como o que ele � � pura diferen�a � em sua diferen�a com outro ponto de vista. Separadamente, ele � apenas uma maneira subjetiva de representar o mundo a si�. Esse outro jeito de criar, liberto da tutela de um amplo planejamento, poderia, por�m, n�o ter sido reconhecido pelo aluno. Mas h� esse outro meio, de uma paisagem que n�o pode ser dominada, da liberdade para atos que n�o almejam qualquer outra coisa al�m de serem postos em pr�tica. H� um grupo de pessoas buscando experimentar esse tipo de rela��o. Da� emerge a linha de fuga, conduzindo a um ponto de vista exterior �quele comumente praticado dentro do conforto habitual envolvido na l�gica dos projetos.

Acredito que algo similar se colocasse em rela��o ao papel do grupo dentro dos fazeres e a��es nos Ateliers Abertos. Como vimos, uma das particularidades ressaltadas nos relatos sobre o Torre�o era o aspecto coletivo que atravessava os processos desenvolvidos pelos alunos na casa. Isso � dif�cil de se manter, por�m, como atesta a conclus�o de Jailton de que, � certa altura, as conversa��es haviam se distanciado do compartilhamento de perguntas que surgiam em meio � produ��o. Nos Ateliers Abertos isso volta a aparecer com for�a, em quest�es que s�o tornadas um problema comum, do grupo: �Tu olha pras outras pessoas que tamb�m est�o impotentes e cada um faz um degrauzinho. Na experi�ncia que eu tenho com arte � sempre complicado trabalhar em grupo [...] e nesse habitat isso acontece naturalmente�[17]. O grupo parece se apresentar como uma sa�da para a impassibilidade que a escala e as condi��es das paisagens impunham. Nos v�deos, se acompanha n�o s� a colabora��o entre pessoas dividindo proposi��es e ideias, mas tamb�m a instaura��o de um pensamento coletivo que cria desvios para situa��es de avalia��o e julgamento, em favor de um compartilhamento que leve ao desdobrar das ideias:

Em determinado momento isso come�ou a ficar muito claro pra gente, porque como a gente estava num momento e num campo de experimenta��o naquele evento do Atelier Aberto, as a��es acabavam sendo compartilhadas de uma forma muito espont�nea, ou seja, as vezes um ia experimentar uma coisa e o outro � colegas, amigos, as outras pessoas que estavam junto � passavam a participar. Acho que isso � uma coisa interessante, porque quebra muito aquela situa��o da arte como produ��o solit�ria. [...] Acho que era um dos valores de l�: a gente se dar conta de que apesar da produ��o de cada um ter uma import�ncia, a produ��o de todos tamb�m tinha import�ncia.(SARI, 2018, p. 235-236)

Imagem 4. Montagem de imagens trazendo as experimenta��es coletivas registradas por Jailton Moreira nos v�deos do Atelier Aberto III (Salar do Uyuni, Bol�via, set. 2002) e Atelier Aberto IX (Santana do Livramento, jul. 2005)

Fonte: Arquivo do Torre�o.

A cumplicidade que se funda a partir da experi�ncia conjunta nos lugares pode ter atuado para fortalecer esse aspecto. Alguns dos lugares experimentados, como no caso do deserto de sal, apresentavam dificuldades f�sicas para a simples perman�ncia no espa�o, exigindo cuidados em rela��o ao corpo que muitas vezes eram postos � prova nas propostas dos alunos � no Atelier XII, por exemplo, uma aluna esbo�a uma a��o perform�tica embalando a cabe�a em pl�stico. O ato, naquele contexto, remetia a uma situa��o que se colocava para todos, pois naquele ambiente n�o se podia respirar tranquilamente sem o amparo de folhas de coca. Os participantes acabavam, assim, ligados pelo embate com um novo contexto e envolvidos em um cuidado m�tuo: �foram ficando as coisas mais humanas mesmo, que � isso, cuidar da sa�de do outro, tomar conta das coisas do outro�.[18] Al�m disso, os lugares promoviam uma aten��o ao que o outro trazia como ideia, como alternativa, como proposta de produ��o, promovendo um di�logo que se traduzia em trabalho conjunto: �N�o � s� pegar material do outro, � pegar a atitude, a ideia, o olhar do outro e a maneira como o outro interage no meio [...] A ideia do outro podia te ensinar como a sua ser melhor.�[19] Pode-se, ent�o, falar em experi�ncia coletiva, com os gestos de um repercutindo nas ideias do outro, com muitas das decis�es sendo tomadas conjuntamente a partir da mobiliza��o do grupo em torno de um mesmo lugar. Os escritos sobre experi�ncia j� citados sugerem que �opera-se a experi�ncia pelo processo de dispor-se a, e, no ir �trabalhando� v�o se abrindo os problemas� (SANTOS, 2012, p. 91). Como os Ateliers Abertos reuniam um grupo, cada qual trazia o seu ponto de vista � medida que trabalhava, abrindo quest�es que, ao olhar do outro, ainda n�o haviam aparecido enquanto problema. Talvez o mais dif�cil, considerando situa��es de ensino num panorama mais geral, seja promover esses momentos de aten��o m�tua, sendo os pr�prios espa�os de educa��o constru�dos de maneira a orientar uma atua��o mais individual. O embate com outros pontos de vista, depende do contato e da aten��o ao outro, ao modo como se comporta e � levado a criar.

As trocas n�o se davam apenas entre os alunos, mas tamb�m com aqueles que j� h� muito habitavam os lugares visitados: as pessoas que recebiam os grupos em pousadas ou alojamentos, para os pernoites; os guias que colaboravam nos deslocamentos pela paisagem; moradores, visitantes ou crian�as que eram moradores de cada um dos lugares. Os registros em v�deo, com frequ�ncia, se voltam para essas pessoas que sustentam uma visada diferente do olhar estrangeiro, trazido pelos alunos. No v�deo do Atelier IX, que trata do pampa, a fala � totalmente concedida a um ga�cho de Santana do Livramento que al�m de receber o grupo na est�ncia de sua fam�lia, � convidado a discorrer sobre temas, como a diferen�a entre espa�o e lugar, a demarca��o de fronteiras, a percep��o do tempo em meio a paisagem. Em outros dos registros, v�m tomar a tela cores e m�sicas das festas de vilarejo, a disposi��o curiosa das crian�as, os olhos dos animais. Os v�deos partem de uma aten��o a processos alheios, sejam eles dos alunos ou daqueles que habitam os lugares visitados. H� a percep��o, tamb�m por parte dos participantes dos Ateliers, desse contato como parte do processo de apreens�o dos lugares:

S�o situa��es muito intensas porque tu te d�s conta de outras intelig�ncias, de outros modos de pensar o mundo. [...] Por exemplo, na Bol�via a gente anda naquele jipe 4x4 num lugar que n�o tem estrada, n�o tem uma marca no ch�o. � tudo sal, branco. Inteiro. Perfeito. S� que, de repente, a gente se d� conta da seguinte pergunta: como o cara que t� dirigindo sabe pra que lado ir? Ele sabe o desenho das montanhas. Ele sabe de que tamanho tem que estar vendo a montanha pra saber que est� indo pra dire��o certa. E, depois de dez minutos, ele sabe que precisa encontrar a ponta de outra montanha. Ent�o, ele tem uma intelig�ncia que quem n�o est� naquele lugar n�o tem! Uma capacidade de leitura de paisagem que a gente n�o tem! [...] Tu vai pra S�o Jos� do Norte e descobre um cara que sabe pra que lado ele precisa construir a porta da casa dele, pra que ela n�o encha de areia. Que entende do vento, que entende do sol, que entende da mar�, e vai aprendendo, naquele espa�o, com outras situa��es. (MOTTA, 2018, p. 123)

Como coloca Ranci�re (2010, p. 27) em O Espectador Emancipado, �nada existe que n�o sejam indiv�duos que tra�am o seu pr�prio caminho pelo meio da floresta das coisas, dos atos e signos que lhes surgem pela frente�. D�-se o reconhecimento por parte da aluna do �poder que cada um ou cada uma tem de traduzir � sua maneira o que percebe, de ligar o que percebe � sua aventura intelectual singular� (RANCI�RE, 2010, p. 28). Um reconhecimento que se refor�a nesses deslocamentos, de que n�o existe forma privilegiada de aprender, mas pura e simplesmente pontos de vista que podem, em sua plena diferen�a, assumirem uma esp�cie de cont�gio.

Imagem 5. Montagem de imagens trazendo um olhar sobre os moradores dos lugares visitados. Registradas por Jailton Moreira nos v�deos do Atelier Aberto III (Salar do Uyuni, Bol�via, set. 2002), e Atelier Aberto X (Salar do Uyuni, Bol�via, set. 2006).

Fonte: Arquivo do Torre�o.

Desse exerc�cio, acabaram surgindo, al�m dos v�deos aqui comentados, trabalhos e propostas art�sticas que podem ser entendidas como resson�ncias daquelas incurs�es. Aos impasses vivenciados, na experi�ncia junto aos lugares, muitos alunos continuaram a responder com suas atua��es art�sticas. Marcos Sari, um dos artistas mais frequentes nas edi��es dos Ateliers Abertos, reconhece naquelas viv�ncias a base para atuar em projetos posteriores, como, por exemplo, o Cadernos de Viagem da 8� Bienal do Mercosul (2011), que teve como proposta o deslocamento de artistas para regi�es com paisagens bastante espec�ficas do Rio Grande do Sul. Situa��o para a qual j� se sentia preparado, tendo experimentado seus fazeres em tantos contextos d�spares como os propostos pelos Ateliers Abertos. Creio que seja tamb�m disso que tratam os Ateliers Abertos ao promoverem deslocamentos que n�o s�o apenas espaciais, mas motivarem o deslocamento de formas de pensar as paisagens, o mundo, a arte. H�, por parte de Jailton, a convic��o de que �todo o processo de educa��o s� ser� realmente efetivo se aceitar a reinven��o constante, isto �, o seu compromisso com a mudan�a�. (MOREIRA, 2012, p. 116).

Tratar dos Ateliers Abertos traz questionamentos que se estendem � educa��o em arte como um todo: como pensar para al�m dos modelos e maneiras de fazer correntes que regulam os sistemas de ensino? Como atuar na arte e na educa��o de forma a n�o compartiment�-las, pensando e praticando essas dimens�es conjuntamente? Como constituir espa�os-tempo���� �para que a produ��o e reflex�o sobre arte contempor�nea se d� de maneira mais coletiva? Por quais �����vias afirmar hoje a necessidade de um pensamento em arte contempor�nea que inaugure novas linhas de tempo e se fie pela constante reinven��o de formas de existir?

A cada deslocamento, o encontro com novos tipos de ambiente colocava em jogo o acaso, a procura pela troca e pelo amparo no grupo, a necessidade de agir sem esperar por resultados. H� um processo de aprendizagem nesse redimensionar constante de a��es e fazeres, quando o exerc�cio concentrado no espa�o restrito do Torre�o se alarga � vastid�o de um deserto, de um c�nion, � planura do pampa. Decorre da� a descoberta de outras intelig�ncias, a suspens�o de expectativas e da pr�pria ideia de arte, o desvio em modos corriqueiros de trabalho, o embate com novas coordenadas para o processo de cria��o. Os grupos de artistas vivenciam a experi�ncia de compartilhar espa�os-tempo���� �drasticamente diferentes daqueles projetados e imaginados � dist�ncia, testando a capacidade do gesto de lidar com o imensur�vel.

Trouxemos aqui apenas alguns dos pensamentos sugeridos pelos rastros dos Ateliers Abertos. Cada viv�ncia, por certo, aponta para novas d�vidas e aberturas, mas tentamos nos deter em como os Ateliers Abertos conduziram a desafios coletivos que envolviam o tempo das paisagens e a err�ncia por espa�os diversos. Nos v�deos, se percebe que h� um descolamento de uma individualidade por vezes t�o proclamada em rela��o aos fazeres da arte. A educa��o pela paisagem buscada nos Ateliers Abertos era um meio, mas tamb�m um fim: �em nenhum momento tinha uma cobran�a ou um desejo de que aquilo virasse algo. Aquilo j� era algo. Isso talvez seja uma chave�. (SARI, 2018, p. 251) Mais do que resultados, o que estava em jogo era a possibilidade sempre presente de deslocamento. Em dire��o aos lugares. Em dire��o ao outro.

 

REFER�NCIAS

BORDIN, Glaci. Entrevista IX [nov. 2016], p. 186. Entrevistadora: Paula Luersen. Porto Alegre, 2016. 1 arquivo .mp3 (66 min). In: LUERSEN, Paula. Torre�o: lugar de rastros � volume 2. Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Programa de P�s-Gradua��o em Artes Visuais, Porto Alegre, 2018.

DELEUZE, Gilles. Conversa��es. Trad. Peter P�l Pelbart. S�o Paulo: Editora 34, 2013.

GERALDO, Sheila Cabo (org.) Entrevista: Torre�o 15 anos de trabalho. Revista Concinnitas, ano 9, volume 2, n�mero 13, dez. 2008.

MELVILLE, Herman. Moby Dick, trad. Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza. S�o Paulo: Cosac Naify, 2008.

MOREIRA, Jailton. O Torre�o como experi�ncia de educa��o. In: Revista Porto Arte 23, volume XIII, novembro de 2005.

MOTTA, Gabriela. Entrevista V [nov.2016], p. 121. Entrevistadora: Paula Luersen. Porto Alegre, 2016. 1 arquivo .mp3 (90 min). LUERSEN, Paula. Torre�o: lugar de rastros � volume 2. Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Programa de P�s-Gradua��o em Artes Visuais, Porto Alegre, 2018.

SANTOS, Roberto Corr�a. Opus Dei: arte contempor�nea e experi�ncia. REZENDE, Renato; KIFFER, Ana; BIDENT, Christophe. Experi�ncia e arte contempor�nea. Rio de Janeiro: editora Circuito, 2012.

SARI, Marcos. Entrevista XIV [jul. 2017], p. 251. Entrevistadora: Paula Luersen. Porto Alegre, 2017. 1 arquivo .mp3 (95 min). LUERSEN, Paula. Torre�o: lugar de rastros � volume 2. Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Programa de P�s-Gradua��o em Artes Visuais, Porto Alegre, 2018.

SZYMBORSKA, Wislawa. [poemas]. Trad. Regina Przybycien. S�o Paulo: Companhia das Letras, 2011.

RANCI�RE, Jacques. O espectador emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010.

RECENA, Maria Paula. Entrevista II [nov. 2015], p. 70. Entrevistadora: Paula Luersen. Porto Alegre, 2015. 1 arquivo .mp3 (66 min). In: LUERSEN, Paula. Torre�o: lugar de rastros � volume 2. Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Programa de P�s-Gradua��o em Artes Visuais, Porto Alegre, 2018.

 

ZOUBARACHVILI, Fran�ois. Deleuze: uma filosofia do acontecimento. S�o Paulo: Editora 34, 2016.

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[1] Doutora em Artes Visuais (Hist�ria, Teoria e Cr�tica) pela UFRGS com a tese "Torre�o, lugar de rastros" (2018). Mestre em Artes Visuais pela UFSM (2012). Graduada em Artes Visuais (Licenciatura) pela UFPel (2009). Sua pesquisa se insere na linha de Arte Contempor�nea - Arte e Cultura. E-MAIL: paulacluersen@gmail.com ORCID: 0000-0003-3307-0833

 

[2]Fala registrada no v�deo Atelier Aberto III - Interven��es e a documenta��o como mat�ria.

[3] O Torre�o se manteve em funcionamento de 1993 a 2009.

[4]As leituras de Foucault foram o primeiro vislumbre de um desejo que se expande para um pensamento maior: investigar as rela��es entre imagem e escrita, texto liter�rio e produ��o art�stica, literatura e arte contempor�nea � quest�es disparadoras para a produ��o art�stica de Elida, tornadas centrais em suas pesquisas acad�micas e compartilhadas pelo grupo. Orientandos e alunos da universidade reuniam-se com alunos do Torre�o em encontros que envolviam conversas com artistas, visita��o de bibliotecas, realiza��o de exposi��es e outras propostas na interface entre arte contempor�nea e escritos liter�rios de diversas �pocas. Para mais detalhes, sugere-se a consulta do site de Elida Tessler: https://www.elidatessler.site.

[5] Al�m do p.a.r.t.e.s.c.r.i.t.a, as pr�ticas compartilhadas pelos alunos na casa � Ter�as-Texto, Ter�as no Cinema, Encontros com o artista �, s�o parte fundamental de um processo de ativa��o do pensamento sobre arte contempor�nea posto em jogo no Torre�o. Cada uma dessas a��es est� perpassada, conforme relatos, por planejamento e acaso, implica��o individual e pesquisa conjunta, expectativa e descoberta.

[6] Pesquisa desenvolvida de 2014 a 2018 como parte do doutoramento em arte, realizado pela autora no Programa de P�s-Gradua��o da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O resultado da pesquisa est� dispon�vel em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/187858.

[7]Fala registrada no v�deo do Atelier Aberto II � O passeio como estrat�gia, a paisagem como mat�ria.

[8]Fala registrada no v�deo Atelier Aberto XII � O Encontro.

[9]Fala registrada no v�deo Atelier Aberto XIII � Um pequeno di�rio.

[10]Fala registrada no v�deo do Atelier Aberto II � O passeio como estrat�gia, a paisagem como mat�ria.

[11]Fala registrada no v�deo do Atelier Aberto X � Bol�via, o retorno.

[12]Fala registrada no v�deo do Atelier Aberto XII � O encontro.

[13]Fala registrada no v�deo do Atelier Aberto XIII � Um pequeno di�rio.

[14]Fala registrada no v�deo do Atelier Aberto IIIInterven��es e a documenta��o como mat�ria.

[15]Fala registrada no v�deo do Atelier Aberto XIIIUm pequeno di�rio.

[16]Fala registrada no v�deo do Atelier Aberto XII � O encontro.

[17]Fala registrada no v�deo do Atelier Aberto IIIInterven��es e a documenta��o como mat�ria.

[18]Fala registrada no v�deo do Atelier Aberto XIIO encontro.

[19]Fala registrada no v�deo Atelier Aberto XII � O encontro.