Ressonâncias de um caderno docente em tempos pandêmicos

 

Resonances of a teaching notebook in pandemic times

 

 

Fernanda Xavier Varella[1]

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Cristian Poletti Mossi[2]

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

 

Resumo:

O texto deriva da pesquisa de mestrado intituladaInvenções em um caderno docente: movimentos afetivos de pesquisa e docência’, na qual se propôs a composição com traços dos conceitos de afeto (DELEUZE, 2002; 2019) e invenção (KASTRUP, 1999; 2001; 2016), em arranjo com a operação com recortes de cenas inscritas em um caderno docente, vivenciadas em torno da docência em arte, explorando, em aliança com elas, movimentações de escrita e produção de imagens a partir do ponto de vista de uma professora de arte/dança atuando em confinamento em sua casa, por consequência das medidas de isolamento social vivenciadas em função da pandemia de Covid-19. Do ponto de vista operativo-metodológico, o trabalho se deu a partir da manipulação das matérias (conceitos, cenas, produções artísticas, leituras no âmbito do grupo de pesquisa, entre outras) que colocam em movimento os escritos, apostando na instauração de um plano de composição (DELEUZE; GUATTARI, 1997) o qual ocupou-se mais em formular questões do      que oferecer respostas.

Palavras-chave: Afeto; Invenção; Pandemia de Covid-19; Docência; Plano de composição.

 

 

Abstract:

The text derives from the master's research entitled 'Inventions in a teaching notebook: affective movements of research and teaching', in which the composition with traces of the concepts of affection (DELEUZE, 2002; 2019) and invention (KASTRUP, 1999; 2001; 2016) was proposed, in an arrangement with the operation with clippings of scenes inscribed in a teaching notebook, experienced around art teaching, exploring, in alliance with them, movements of writing and production of images from the point of view of a teacher of art/dance acting in confinement in their home, as a result of the social isolation measures experienced because to the Covid-19. From an operative-methodological point of view, the work was based on the manipulation of materials (concepts, scenes, artistic productions, readings within the research group, among others) that put the writings in motion, betting on the establishment of a plan of composition (DELEUZE; GUATTARI, 1997) which was more concerned with formulating questions than offering answers.

Keywords: Affection; Invention; Covid-19 pandemic; Teaching; Composition plan.

 

 

Apresentação

 

O texto aqui apresentado é resultante da pesquisa de mestrado intituladaInvenções em um caderno docente: movimentos afetivos de pesquisa e docência’, de minha autoria e orientada pelo coautor deste artigo, na qual se propôs a composição com traços dos conceitos de afeto (DELEUZE, 2002; 2019) e invenção (KASTRUP, 1999; 2001; 2016) e a operação com cenas vivenciadas em torno da docência em arte. Estas cenas tratam-se de recortes de vivências compartilhadas com turmas de ensino médio, enquanto professora da disciplina de Arte na rede pública estadual do Rio Grande do Sul em uma escola de viés militar, bem como outras provenientes de aulas de dança com a educação infantil da rede privada, ambiente no qual trabalho com crianças de 2 a 5 anos, todas elas inscritas em um caderno docente.

Em aliança com as cenas e com os conceitos, foram pensadas na dissertação, as movimentações de escrita e produção de imagens a partir do ponto de vista de uma professora de arte/dança atuando em confinamento em sua casa, por consequência das medidas de isolamento social vivenciadas em função da pandemia de Covid-19 para, assim, colocar em funcionamento a questão: ‘Como se constituem os movimentos de criação/invenção em meio aos afetos que reverberam entre pesquisa e docência em um contexto de confinamento doméstico a que estamos submetidos em função da pandemia de Covid-19?’

Como forma de energizar essa questão, a proposta da dissertação foi a de se fazer um aglomerado, um diário, um inventário de afetos que atravessaram meus dias como professora e pesquisadora, fazer dela uma continuidade do caderno docente, sendo ela própria afirmada como um caderno docente. Neste sentido, o texto de pesquisa busca compor com o conceito de Deleuze e Guattari (1997) de plano de composição em arte, pensando no plano como horizonte para os acontecimentos, imagem fractal do pensamento, como plano maleável que permite engendrar conexões e proliferações.

Pretende-se, ao longo destes escritos, retomar os principais conceitos, imagens e inquietações que permearam a referida dissertação, bem como estabelecer relações entre uma pesquisa e uma docência que se fizeram em meio ao contexto do ensino remoto emergencial entre os anos de 2020 e 2021. Sendo assim, iremos transitar entre alguns recortes da dissertação a fim de que, porventura, se possa expandir e alongar algumas de suas inquietações e elaborações.

 

Com afetos e invenção

 

Os dois principais conceitos que transpassam o trabalho, a que aqui nos referimos, são afeto e invenção. Afeto foi trabalhado dialogando com a proposta de Deleuze (2002; 2019), a partir de sua leitura de Spinoza, como o aumento ou a diminuição de potência de vida decorrente dos encontros que atravessam nossos corpos e a interpretação que damos às afetações causadas nestes encontros (AZEVEDO, 2011). A partir das proposições de Spinoza, os autores nos convidam ainda a pensar o afeto como a variação constante da força de existir ou da potência de agir. Afeto é variação. E a causa dessa variação está nas relações tecidas nos encontros, e não no sujeito que interpreta, ou no objeto de afetação.

Figura 1 - Composição com páginas da dissertação em discussão

Fonte: arquivo pessoal.

 

Por invenção/criação, compreendemos, juntamente com Kastrup (1999; 2001; 2016), Mossi (2020) e Dalmaso (2014), a criação de problemas e não de soluções, a projeção de outros olhares para as realidades que estão sempre se fazendo, o desvio daquilo que é dado previamente como 'certo', a fuga da mera reprodução de modelos preestabelecidos. Portanto, quando falamos em invenção, não queremos descobrir algo que está escondido, e sim mobilizar o pensamento. Pensamento este      que não se separa do corpo, mas que é visto como algo que modifica as coisas ao serem pensadas – pensamento enquanto máquina que produz fluxo de movimento.

Apostamos assim, na invenção como potência presente em todos os procedimentos, e não meramente algo a ser 'identificado' nas cenas que compuseram a dissertação. A escrita desse texto de pesquisa, que buscou abrir possibilidades, mais do que fechar-se em definições ou contornos estanques, foi atravessada pelas cenas de docência e de pesquisa do início ao fim, e não somente ao final, no sentido de funcionar como um ‘resultado’ ou resolução de algo. O manejo com as cenas, então, não tratou de explicá-las, ou mesmo de escrever ‘sobre’ elas, mas de criar ‘com’ elas, em meio à escrita, dando consistência ao plano de composição que se propôs a uma elaboração com conceitos, imagens, produções artísticas, leituras realizadas no âmbito do grupo de pesquisa, entre outros elementos, sem buscar a totalidade dos mesmos, mas os rastros dos efeitos deixados por sua experimentação.

As cenas operam enquanto processo, enquanto parte da produção da professora-pesquisadora que está (sempre) se formando. O trabalho com essas cenas, que não é da ordem da explicação, mas do tensionamento, intenta convidar quem entre em contato com o trabalho a produzir, nos entremeios das páginas do caderno docente, outras composições, relações e sentidos.

Figura 2 - Composição com páginas da dissertação em discussão

Fonte: arquivo pessoal.

 

Pensamos que as cenas recortadas das vivências como docente-pesquisadora funcionaram no decorrer da escrita como pequenas pedras atiradas na água. Atira-se a pedra e ela reverbera na água-texto, emergindo enquanto parte constituinte do caderno docente. Buscamos, a partir das operações de pesquisa, procedimentos para trazer à tona uma escrita viva, honesta, franca, já que escrevemos ‘com’ os afetos – e não apenas ‘sobre’ os afetos – que atravessaram a professora-pesquisadora.

Muitas vozes compuseram o caderno docente para além das referências bibliográficas. Como Deleuze e Guattari (2000, p. 10) nos lembram: “cada um de nós é vários”. Escrevemos a partir de rastros e fragmentos de outras escritas. Em um percurso de escrita coletiva. Não há o que é nosso e o que é do outro. A intenção foi produzir uma pesquisa que não se deu nem no sujeito, nem no objeto, mas na relação entre esses.

 

Portanto, quando falo de mim, não estou falando sobre mim, estou falando a partir de mim, com os encontros. Com aquilo que esbarro nas produções afetivas que ocorrem nestes encontros. Escrevo sobre mim, mas esse mim não é um Eu maior, majoritário, constituinte de uma maioridade de si, e sim um eu menor, que fala de dentro de um lugar de educação possível (DELEUZE; GUATTARI, 2000). Assim, optamos por, nestes escritos, alternar a escrita entre a primeira pessoa do singular e a primeira pessoa do plural, destacando os movimentos singulares e coletivos que ocorrem ao longo da pesquisa (VARELLA, 2021, p. 17).

 

Estão presentes na escrita, também, conversas, orientações, experimentações, conselhos, composições com os colegas do grupo de orientação, imagens, textos, interferências, afetos e outras intensidades que atravessaram a pesquisa. “Escrevemos, portanto, com aquilo que nos convoca a manter um corpo-a-corpo com a escrita, com a leitura, com as imagens, com o que mobiliza essas três potências a entrarem em outras possibilidades performativas” (GARLET et al., 2021, p.4). 

 

Caderno docente

Além de ser atravessada por muitos afetos, a dissertação se apresenta como um plano de composição que não só discute o conceito de afeto, mas que procura lançar possibilidades de afetação no encontro com ela, funcionando como uma espécie de caderno docente, contendo rastros e rasuras dos movimentos de pesquisa e docência que atravessaram uma professora-pesquisadora. Aliada a essa proposição, do mesmo modo, não apenas discute o conceito de invenção, mas busca colocar esse conceito em operação, em funcionamento, eminentemente inventando (KASTRUP, 1999) a abertura para questões, ao contrário de lançar soluções únicas para as problemáticas por ela lançadas, via escritas e imagens.

Do ponto de vista operativo-metodológico, se trabalhou a partir da manipulação das matérias que colocaram em movimento a pesquisa, com a instauração de um plano de composição pensado em aliança com os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997), que propõem, enquanto papel da arte, o mergulho no caos para fazer emergir dele um recorte, o delineamento de uma possibilidade de mundo. 

Em um plano de composição, o que vemos é um recorte de um universo de intensidades para todo lado – antes da forma, antes do conceito, um espaço sem referências – o caos. Um lugar de intensidades puras, constituído por forças em luta, lugar de excesso de velocidade – onde as forças passam tão rápido que não conseguimos nos relacionar. O caos é onde o pensamento não pode chegar, não por incapacidade do pensamento, mas da relação. A arte inventa. Entra em intersecção com a linha do caos, desacelerando-a, tira o caos das velocidades infinitas e conserva um pouco em si. Recorta o caos. Este recorte é feito a partir das conexões que estão no caos, não é um contorno limitado, a partir de uma forma externa – é um conjunto de conexões que vem do meio destas intensidades, associação entre forças para produzir consistência. Atravessamos o caos rumo a um plano de composição (DELEUZE; GUATTARI, 1997).

Um plano de composição é uma zona de distribuição de elementos diferenciais heterogêneos intensos e ativos, ressoando em consistência singular, mas sem se reduzir a uma “unidade”. Todo objeto estético envolve em sua construção a ativação de mais de um plano de composição. [...] Cada um desses planos não deixa de ser também um elemento de outros planos. Planos entrecruzam-se, sobrepõem-se, misturam-se, entram em composição uns com os outros, atravessam-se. Por vezes, mesmo, se repelem e se autonomizam. Isso não os impede, contudo, de permanecerem inter-relacionados no metacampo de expressão que os agencia. (LEPECKI, 2010, p. 13).

 

Peter Pál Pelbart (2007, p. 1) trata do plano de composição como proliferação: “um plano de proliferação, de povoamento e de contágio. Num plano de composição o que está em jogo é a consistência com a qual ele reúne elementos heterogêneos, disparatados, e também como favorece acontecimentos múltiplos”. Como inventar outros modos de existir em que não nos encontremos polarizados entre a agitação frenética e a passividade depressiva? Por quais outras vias podemos explorar os espaços cheios de mundo onde uma aventura de movimento nos aguarda (LEPECKI, 2010)?

Na tentativa de cartografar a maquinação afetiva que se deu a partir do trabalho com os dispositivos on-line, das aulas em meio ao ensino remoto emergencial, dos movimentos de pesquisa e docência neste contexto, de atentar para como fui me conduzindo no processo de me produzir como professora e pesquisadora, penso que a investigação da dissertação e a instauração dela como plano de composição aliado à imagem de um caderno docente      pôde atuar como um dispositivo de tecer relações entre as forças e intensidades nas quais esbarrei nas produções afetivas/inventivas que aconteceram nos encontros que me compõem/me compuseram em meio ao isolamento.

A proposta é que a pesquisa possa ser lida como um convite para que o/a leitor/a se disponibilize em afetar-se no encontro com ela, e a inventar novas possibilidades a partir daquilo que lê. Portanto, se intentou construir um plano de composição que não só discute o conceito de afeto, mas que procura lançar possibilidade de afetação no encontro com ele, bem como não apenas se discute invenção, mas busca colocar esse conceito em operação, inventando aberturas, efetuando brechas e maquinando possibilidades de problematização em meio aos conceitos, às imagens e aos textos.

 

Educar em tempos de pandemia

 

Em março de 2020 surge uma quebra nas realidades escolares. Uma pandemia de nível global nos impede de nos encontrarmos no local no qual estávamos acostumados e separa, ao menos presencialmente, os corpos que compõem a educação. Corpo-professora, corpo-aluno, corpo-escola, corpo-sala- de-aula. O vírus da Covid-19 confina os corpos em seus quartos, suas casas e transporta o corpo-escola para o corpo-tela do computador.

 

 

 

 

Figura 3 - Composição com página da dissertação em discussão.

Fonte: arquivo pessoal.

 

Nesse processo de migração, professores, alunos, funcionários e famílias foram convidados a ressignificar muitas coisas. Sobretudo a ressignificar a escola. A importância dos encontros e da presença ficou cada dia mais evidente. As dificuldades e limitações apareceram cada vez mais em nosso trabalho com a educação condicionada à tela do computador e ao acesso à internet. Por outro lado, como o professor Silvio Gallo pontua em sua fala intitulada ‘Educar em tempos de pandemia’ (2020)[3], esse também pôde ser um convite para pensarmos outras possibilidades em educação. Pensar no que é possível construir com a realidade que se apresenta. 

Quantas escolas vivem dentro de uma escola? A proposta da pesquisa foi que voltássemos nossos olhares para algumas das escolas possíveis em tempos pandêmicos. Assim como muitos professores, entre março de 2020 e setembro de 2021, o cenário das minhas aulas foram a parede do meu quarto, ou o lugar da casa em que fosse possível aparecer frente às telas. Assim como os diferentes contextos de cada um dos alunos, sejam eles quartos, cozinhas, ou mesmo as bolinhas com as iniciais do nome que aparecem nas janelas das chamadas de vídeo adentraram o ambiente que chamamos, entre 2020 e 2021, de escola. 

Destacamos ainda a possibilidade de seguir pensando em educação, mesmo que de casa, já que aqui estamos falando de um público privilegiado, que vive em ambientes em que todos têm acesso à internet e condições de fazer parte, mesmo que de forma limitada, de uma aula ministrada de forma remota. Podemos, então, dizer que em tempos pandêmicos a escola expandiu. Alargou. Desdobrou.

Figura 4 - Composição com páginas da dissertação em discussão.

 

Fonte: arquivo pessoal.

 

‘Por que a sala de aula faz tanta falta?’ Essa pergunta passou em minha cabeça inúmeras vezes durante a escrita da pesquisa. Existe muita coisa no campo da docência acontecendo para além da aula, ainda que a mesma aula seja ministrada de forma on-line e presencial, a aula vai para muito além do que o ‘Eu’ quer ensinar. O que é ensinado ou o que é aprendido. Uma conversa, um sorriso, a interação, um acidente que acontece e alguém vai ajudar, coisas que a professora não vê. Talvez esse seja um dos motivos pelos quais temos a impressão de que o tempo da aula remota não passava nunca… A tela do computador limita o inesperado, o que não foi planejado, o imprevisto. Eles ainda estavam lá, mas de forma muito mais tímida, pelas contingências que ess     e formato nos impôs.

Nas realidades que se instauraram (LAPOUJADE, 2017) a partir do ensino remoto emergencial, existia uma sala, mas era uma sala em que os alunos não tinham rosto, não tinham voz, não tinham presença. Que aluno se cria em torno da aula on-line? Com os alunos, construímos um campo entre casa-escola-corpo-conteúdo-outrocorpo. Nesse espaço ‘entre’, coube à docência pensar como escolher produzir a si mesma no processo de participar da aula e produzir um eu revogável, maleável a qualquer tempo, um eu menor, que está sempre em devir.

Esse eu miúdo, que não quer/pensa/cria, mas é produzido em meio a esses encontros, vai também pesquisando de um lugar menos fixo e mais disponível aos afetos e às possibilidades de invenção que se apresentam na docência-pesquisa, já que se desloca de um lugar de suposto 'saber', para surpreender-se com os sabores (VARELLA, 2021, p.64).

 

Entre pesquisa e docência

 

Em um momento de frustração em meio à escrita da dissertação, em que as palavras fugiam e a pesquisa cansava de se fazer, em tempos de esgotamento psicológico, de muito para lidar e pouco a oferecer, nasce uma escrita que chamamos de ABCdário do isolamento.

 

 

 

 

 

 

Figura 5 - Composição com página da dissertação em discussão.

Fonte: arquivo pessoal.

 

Uma escola, uma docência que propõe a construção de um olhar atento sobre os afetos, propõe problemas e não respostas fixas, já que os afetos estão sempre por se fazer. Opera, assim, no âmbito da invenção/criação e não da reprodução de formas prontas, mas implica na construção constante de trajetos formativos (MOSSI, 2020), como a constituição de caminhos em multiplicidade que se abrem a encontros inusitados. Não sabemos o que surgirá destes encontros, mas ainda assim arriscamos apostar neles.

Pensar na construção de sensibilidades mais do que de sensatez (OBREGÓN, 2007) é uma ideia que me parece potente ao ensaiarmos espaços de/para/em criação. A sensatez é uma forma de sensibilidade, mas está mais próxima dos afetos despotencializadores, muitas vezes relacionada ao medo e não a um aumento de potência, já que produz, de certa forma, um disciplinamento do corpo.    

Em um colégio militar, a sensatez em detrimento das sensibilidades apresenta-se em forma de desafio no cotidiano de uma professora de arte em meio a um ambiente que estimula a competitividade pelas mais diversas vias, desde punições para quem não estiver com o uniforme da maneira correta aos primeiros lugares em provas e olimpíadas. 

Em seus escritos sobre uma educação menor e a ideia de professor militante, Silvio Gallo (2002) nos convoca a pensar o professor como o pequeno ‘faz-tudo’ do dia a dia, a cavar buracos, a minar espaços, oferecendo resistências, enfim, como aquele que procura viver as situações e dentro dessas situações vividas tenta produzir a possibilidade do novo. Nesse sentido, e no caso mais específico da docência em arte, a resistência tem uma estreita relação com a noção de criação/invenção, já que, segundo Mossi (2020, p.11), "de acordo com uma concepção mais ampliada" de arte, ela poderá se referir não somente à arte enquanto objeto a ser contemplado, mas especialmente 

[...] à arte de nós mesmos, à possibilidade de criarmos resistências/reexistências em nossa existência, a uma postura artística diante da vida e de povoamentos afirmativos dos territórios de subjetivação, incluindo o da docência. Povoamento como ocupação de certo espaço-tempo com composições de palavras escritas/lidas e imagens que convidam ao pensamento enquanto criação, povoamento como invenção de rotas que abrem possibilidades de futuros e de aprendizagens. Povoamento enquanto criação, portanto. Criação que é sempre resistência/re-existência e insistência (MOSSI, 2020, p.11).

 

Cada escola se constitui de muitas escolas. Uma delas, com todas as faltas, defeitos e insuficiências, foi a escola do ensino remoto emergencial. Mas o prédio da escola guarda encontros que a janela do computador não consegue abarcar. Ela é muito pequena para gente fazer uma roda. Se abraçar. Olhar diretamente nos olhos de alguém. Mesmo assim, compomos com ela durante algum tempo. Algumas aulas parecem que foram dadas para ninguém e, em outras, construímos coisas muito bacanas. Do jeito como acontece nas aulas ditas ‘normais’.

Ao afirmar a construção da dissertação como um caderno de professora-pesquisadora em diálogo com o campo da arte, afirmo também que não é o intuito da pesquisa, aqui referenciada, criar soluções para que outros professores trabalhem sobre afeto e invenção na sala de aula, nem ser um conjunto de metodologias a serem seguidas. O plano de composição a que me refiro é um caderno de uma professora-pesquisadora, que volta o olhar para seus alunos, para suas salas de aula, para o tempo inusitado que vivemos fazendo escola, fazendo educação em meio a uma pandemia e, com isso, escreve com os afetos e possibilidades de invenção e quer acolher e habitar os movimentos de pesquisa e docência que a atravessaram.

 

Considerações finais

 

Sandra Corazza (2002) propõe que pensemos a pesquisa com um hífen ligando-a ao ensino, sendo a “pesquisa-que-procura” (CORAZZA, 2002, p. 2) sempre uma pesquisa-ensino. Assim, me constituo professora no processo de ensinar e me constituo pesquisadora no processo de pesquisar. Bem como me constituo professora no processo de pesquisar e pesquisadora no processo de professorar. Pesquiso enquanto professoro e me constituo professora quando escrevo. Inventar-se enquanto autor. Este é também um processo de formação que traz à tona a disponibilidade de um pesquisar-se. A criação/invenção de si está sempre se fazendo, a invenção de uma professora e uma pesquisadora que se coloca com uma postura à espreita, que busca abrir os olhos para brechas inventivas, polir as lentes para enxergar mais. Tais elaborações ganharam expressividade ímpar ao longo do período de isolamento e de ensino remoto emergencial.

Mossi (2019), em aliança com Spinoza nos fala que 

É fundamental que estejamos atentos aos encontros que temos, não para tomar consciência deles, mas para que saibamos as causas que aumentam nossa potência de modo a escolhermos esses encontros e nos tornarmos ativos frente aos acontecimentos - no contraponto de estarmos ao sabor do acaso (MOSSI 2019, p. 20).

A invenção não é um privilégio de alguém, e nem produção de um sujeito individuado e unívoco, e sim de engendramentos coletivos, nos quais diversas interferências podem acontecer. Não faz mais sentido pensar na criação como ação do Eu majoritário, que se senta e pensa ‘agora vou criar!’, mas entender que a invenção está presente em todos os momentos, e somos mais seu produto do que sua causa. Logo, não penso com neutralidade, nem à distância, enxergo pelo meio – mais encarno o pensamento do que o crio do nada, componho com ele – as coisas me convidam a pensar, longe de um querer que vem do sujeito, e sim um engendramento que acontece em composição. O sujeito não é individuado, unívoco, que porque quer, cria. Somos mais efeito desse processo de criação do que fundamento dele (KASTRUP, 2007).

Não seria então nossa responsabilidade enquanto pesquisadores não apenas criar aquilo que colocamos no papel, e sim cartografar as intensidades que estão ao nosso redor? Pensar em como vamos nos conduzindo no processo de nos produzir como professores e pesquisadores? Uma docência que acontece em interface com a pesquisa e vice-versa. Escrever porque não se sabe, na tentativa de fazer com que as palavras procurem por elas próprias e disputar os sentidos em educação sem perder a poesia enquanto fazemos isso.

Mapear algumas dessas afetações é uma das formas que encontro de me fazer professora e pesquisadora, de me tornar ativa frente aos acontecimentos em torno da docência, mesmo que as ressonâncias que se sobressaiam sejam justamente as tristes, quando nos remetemos aos tempos pandêmicos, o maior desafio que se instaura é pensar a diminuição da potência enquanto dissonância, variação. E da impotência, da falta, extrair um modo de vida mais afirmativo.

Latour (2008, p. 39) nos convida a aprender a ser afectados, a nos tornarmos corpos sensíveis às intensidades que nos atravessam, e pensar o corpo como “aquilo que deixa uma trajetória dinâmica através da qual aprendemos a registrar e a ser sensíveis àquilo de que é feito o mundo”. Quanto aos afetos, disponibilizar-se, atentar-se, sensibilizar-se, abrir brechas, frestas, rupturas no corpo. Tornar-se poroso. Questionar-se: ‘Com esses afetos, o que se pode criar?’

Busco, como prática de vida, perseguir “a pesquisa-que-procura” (CORAZZA, 2002, p.2) e ainda ser capaz de captar outras cenas, pensando em disponibilizar-me, em me “colocar à espreita de possíveis brechas inventivas” (KNEIPP; MOSSI, 2019, p. 9), para me conectar com os espaços que cavamos na(s) escola(s) e dar luz a pequenos acontecimentos.

 

 

Referências

 

AZEVEDO, Adriana Barin de. A arte dos afetos em Deleuze e Espinosa. Alegrar (Campinas), v. 7, p. 1-11, 2011.

CORAZZA, Sandra Maria. Pesquisa-ensino: o "hífen" da ligação necessária na formação docente. Araucárias - Revista do Mestrado em Educação. FACIPAL. Palmas, v. 1, n. 1, 2002.

DALMASO, Alice Copetti. A perspectiva da invenção numa pesquisa em educação: processos e aprendizagens de um pesquisar-inventivo. Revista Digital do LAV, v. 7, p. 5-29, 2014.

DELEUZE, Gilles. Curso sobre Spinoza – Gilles Deleuze (Vincennes, 1978-1981). Tradução: Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, Francisca Evilene Barbosa De Castro, Hélio Rebello Cardoso Júnior e Jefferson Alves de Aquino. Editora Universidade Estadual do Ceará, 3a Edição, 2019. Disponível em: http://clinicand.com/cursos-sobre-spinoza-gilles-deleuze-vincennes-1978-1981-pdf-em-portuguesonline/. Acesso em: 02 março. 2021.

DELEUZE, Gilles. Espinosa – Filosofia prática. Tradução: Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. São Paulo: Escuta, 2002.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2000.

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GALLO, Silvio. Em torno de uma Educação Menor. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27 n. 2, p. 169-178, jul./dez. 2002.

GALLO, Silvio. Live online: Educar em tempos de pandemia. Projeto Agenciamentos Contemporâneos dentro do Laboratório de Filosofia, Ciências Humanas e Outros Sistemas de Pensamento, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=n6-nGmpfn2U&t=1s. Acesso em 3 de maio de 2020. 

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[1] Mestra em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na linha de pesquisa Arte, linguagem e currículo. Pós-graduada em Motricidade Infantil e Licenciada em Dança pela mesma instituição. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5224-3088 E-Mail: fexvarella@gmail.com

[2] Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), na linha de pesquisa Educação e Artes. Mestre em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGART), na linha de pesquisa Arte e Cultura, ambos pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS). É membro pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte, Educação e Cultura (GEPAEC) e do Grupo de Estudo e Pesquisa em Arte e Docência - ARTEVERSA, ambos vinculados ao CNPq. Orcid:  https://orcid.org/0000-0002-3523-4152 E-mail: cristianmossi@gmail.com

[3] Live online: Educar em tempos de pandemia. Projeto Agenciamentos Contemporâneos dentro do Laboratório de Filosofia, Ciências Humanas e Outros Sistemas de Pensamento, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=n6-nGmpfn2U&t=1s. Acesso em 3 de maio de 2020.