Quem tem medo de si?

Percursos metodológicos para uma escrevivência na produção científica

 

Who is afraid of you?

Methodological paths for self-writing in scientific production

 

 

 

Renata Ferreira da Silva[1]

Universidade Federal do Tocantins

Thamires Lima [2]

Universidade Federal do Tocantins

 

 

 

Resumo

Este ensaio convida o(a) leitor(a) um passeio: seguir um percurso argumentativo por diferentes conceitos operativos que validam a produção de índices de singularidade por meio de uma escrita de si na produção acadêmica. Para compreender o ato de narrar-se caminharemos pelos biografemas, Barthes (2004), Bedin (2010); a autoetnografía, Ellis e Adams (2014); a autoficção, Esteves e Adó (2020), até chegarmos ao conceito de Escrevivência de Conceição Evaristo (1995), aliado a proposta de interseccionalidade de Crenshaw (2002) como aposta metodológica para o tratamento das vivências de mulheres negras pesquisadoras em contextos de pesquisas acadêmicas.

 

Palavras-chave: Metodologia de pesquisa; Escrevivência; Mulheres negras 

 

Abstract

This essay invites the reader to take a walk: to follow an argumentative path through different operative concepts that validate the production of indices of singularity through a writing of the self in academic production. To understand the act of narrating oneself, we will walk through the biographemes, Barthes (2004), Bedin (2010); autoethnography, Ellis and Adams (2014); autofiction, Esteves and Adó (2020) until we reach the concept of Escrevivência by Conceição Evaristo (1995) combined with Crenshaw's (2002) intersectionality proposal as a methodological bet for the treatment of the experiences of black women researchers in academic research contexts.
Key-words: Research methodology; Life-writing; Black women

 

 

 

Sobre o percurso

Compreender que a produção científica pode ser validada a partir de vivências pessoais é a proposta desse texto.  Escrever na pós-graduação, a partir de uma escrita de si, se apresenta como alternativa frente aos modelos de neutralidade estabelecidos. Mas como transformar experiências de vida numa fonte de produção de informações científicas?

No decorrer desta escrita é possível acompanhar o processo de descoberta assim como o esforço de explicar o porquê as vivências podem ser relevantes e ser utilizadas como objeto de estudo num programa de pós-graduação. Este esforço justifica-se pela resistência ainda encontrada no âmbito acadêmico para pesquisas que não dissociam sujeito e objeto, que trabalham a partir de uma noção de experiência ligada aos atravessamentos de uma vida expandindo a ideia de pesquisa na/pela escrita, na criação de realidades.

Portanto, inicio esta escrita tentando compreender que “o eu de quem escreve eu não é o mesmo que o eu que é lido por tu” (BARTHES, 2004, p. 21). Isto não é simples. E foi justamente isso que me cativou:  o desafio, a possibilidade de sair do meu eu e apresentar uma versão que eu mesma não conhecia de mim: como falar dos nossos atravessamentos? 

 

Eu quem?

 

Quando o eu pensa em algo, ele irá procurar ao seu redor a materialização do seu pensamento para validar sua representação, por isso o pensamento é que constrói o eu, não o contrário. Mas será que o pensamento é modificado a partir de tudo que vivemos, tornando o eu, o sujeito, um ser fragmentado pelos atravessamentos que nos altera numa força de variação contínua? De acordo com Silva e Brito (2017, p. 5), “no cenário Moderno, a consciência se põe como um critério fundamental para conhecer a realidade, o que confere ao sujeito o centro norteador do conhecimento, pois ele pode garantir a unidade, a identidade permanente do saber”. Assim, o sujeito detém todo o saber, todo o conhecimento, ele é a representação da realidade, essa ideia foi criada e defendida por Descartes para afirmar que o eu é o cerne de todas as constâncias.

O sujeito oferece nesta acepção a suposição essencial para a interpretação, pois “Como não há um fundamento material reconhecido como válido, uma vez que a experiência sensível é posta entre parênteses, buscamos na própria representação os critérios que me mostrarão a sua validade” (SILVA; BRITO, 2017, p. 5). Nesse sentido, o eu pensante buscará constantemente por ele mesmo ao visitar nas suas memórias os parâmetros que exponham no mundo material a relação com o que foi pensado para provar sua existência. O sujeito colocará o mundo exterior em segundo plano nessa tentativa de comprovação do conhecimento, posto que o próprio necessita ser trilhado interiormente pois é o ponto de condução para a verdade.

Segundo Onate (2000), o sujeito de Descartes passando pela análise de Nietzsche é radicalmente criticado, interessa compreender que a crítica indaga o ponto de vista do eu como singularidade, ou o indivíduo como detentor do conhecimento da mesma maneira que pode diferenciar o real do irreal, o verdadeiro do falso. “Eliminamos a compreensão de um Eu como testemunha, aquele que tem uma consciência separada do objeto que quer conhecer e que está de alguma forma, livre a dominar uma natureza de forma autônoma e racional (SILVA e BRITO, 2017, p. 6). Ao tirarmos a identidade do eu, percebe-se que a construção do pensamento não é realizada pelo eu, o eu é quem é construído por ele, tornando esse eu um sujeito múltiplo e componente de um desenvolvimento do qual ele não é o ponto central. Ele não monitora, estrutura e classifica o processo, ele faz parte de um. Esse processo é a vida, consequentemente, efêmero. Portanto, não existe um “eu”, existem multiplicidades, forças interiores e exteriores que compõem o sujeito. Essa escrita, então, trabalha com outra noção de sujeito. O sujeito da experiência, do atravessamento:

Esse sujeito que não é o sujeito da informação, da opinião, do trabalho, que não é o sujeito do saber, do julgar, do fazer, do poder, do querer [...] o sujeito da experiência seria algo como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos [...] o sujeito da experiência é um ponto de chegada, um lugar a que chegam as coisas, como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar [...] o sujeito da experiência é sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos. (BONDÍA, 2002, p. 24)

 

O sujeito é definido por e como, uma moção de se autodesenvolver. “Porém, cabe observar que é duplo o movimento de desenvolver-se a si mesmo ou de devir outro: o sujeito se ultrapassa, o sujeito se reflete” (DELEUZE, 2012, p. 70). Se desligando da noção que se atribui ao que é o eu, um ser que permanece imutável, a construção do sujeito se dá a partir de suas vivências. Vivências que o cruzam das mais variadas formas: acalentadoras, felizes, tristes, marcantes, violentas. Tais vivências propiciam efeitos que fazem cada sujeito encontrar sentido em suas experiências, organizando ou desorganizando sua maneira de viver. Cada ação está relacionada a uma outra ação que reage a uma outra ação, por isso não há como criar um sujeito com uma exatidão, pois tudo passa de maneira única e nos modifica.

Mas então, quem é esse eu? Como ele transita em nosso cotidiano? Como ele se faz presente na escrita e em nossas falas? Para Barthes (2004, p. 20), “o sujeito da enunciação nunca pode ser o mesmo que agiu ontem: o eu do discurso já não pode ser o lugar onde se restituiu inocentemente uma pessoa previamente guardada”. Esse eu ao mesmo tempo que se apresenta como ator, também se apresenta como autor. É um eu caminhante, ilusório, adulterado em escritas vividas no aqui e no agora. Ele é consequência dos acontecimentos da vida. Uma vida que Deleuze descreve da seguinte forma:

Entre sua vida e sua morte, há um momento que não é mais que aquele de uma vida jogando com a morte. A vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal e, no entanto, singular que depreende um puro acontecimento liberado dos acidentes da vida interior e exterior, isto é, da subjetividade e da objetividade do que acontece [...]. A vida de tal individualidade se apaga em proveito da vida singular imanente a um homem que não tem mais nome, apesar de não se confundir com nenhum outro. Essência singular, uma vida... (DELEUZE, 2016, p. 180)

 

Para Branco (2011, p. 60), a articulação da experiência literária com o escrever sobre a vida, que ela chama de Escreviver, são postas ao lado de outros eloquentes “uma casa, uma pedra, um jardim, um cão, um sonho, uma rapariga, uma vida, jogo de escrita que institui por meio dessas articulações uma noção deleuziana sobre a vida”. Segundo Deleuze (1997, p. 11), a escrita “é inseparável do devir”. Por esse motivo, “é um processo, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido” (DELEUZE, 1997, p. 13), caminhando ao lado da impessoalidade, mesmo que se escreve sobre a figura de um “eu”. Mas existe algo entre essa vida e a morte, Llansol escreve sobre esse “restante da vida”:

O falar e negociar, o produzir e o explorar constroem, com efeito, os acontecimentos do Poder. O escrever acompanha a densidade da Restante Vida, da Outra Forma de Corpo, que aqui vos deixo qual é: a Paisagem. Escrever vislumbra, não presta para consignar. Escrever, como neste livro, leva fatalmente o Poder à perca de memória. E sabe-se lá o que é um Corpo Cem Memória de Paisagem. Quem há que suporte o vazio? Talvez ninguém, nem livro. (LLANSOL, 2014, p. 10)

 

 Assim, a escrita llasoliana destitui a memória do “eu”, tornando-a ausente de poder, tradição e ego. Pois, de acordo com Llansol (2014, p. 99), “(...) não havendo memória de ser humano mais vale guardar em memória o resto, todos os restos, a restante vida”, tornando possível escrever a vida.

Vamos conhecer um pouco mais sobre as escritas da vida, do grego “biografia”. Para Gobbi (2005), é uma tarefa impossível dar uma definição precisa à biografia devido a sua transdisciplinaridade, pois o campo que utiliza a escrita biográfica abarca outras áreas além da literatura, como a história, a antropologia e a psicologia. Ao mencionar o gênero literário, Schimidt (2000; 2004) e Vilas Boas (2003) afirmam que as biografias são mundialmente populares, mas por mais conhecidas que sejam, são poucos os estudos acadêmicos que utilizam sua transversalidade, empregando-o nas pesquisas de forma secundária ou complementar.

Para que a biografia não seja restrita ao gênero literário, alguns pesquisadores preferem chamá-la de “biográfico”. De acordo com Viart (2002), o biográfico é consequência do vivido, evidenciando a forma como o texto expõe seu material. Através do biográfico é possível um distanciamento em relação a compreensão do que é a fidelidade histórica, longe das regras identitárias geradas pelo conceito de obra biográfica de um escritor. Para Viart (2002, p. 211), “escrever uma vida, ou a própria vida, é ficcionalizar; toda representação de vida é, desde o início, fictícia”. Assim, ao iniciar a escrita no próprio âmago biográfico, realiza-se um novo conceito que segundo Viart (2002, p. 73) é a “invenção de si como se fora outro”. A vivência é atravessada pela fábula, onde o biográfico é o esboço em que se realiza esse encontro.

 

Biografemas

 

Entre a vida de Deleuze, o restante da vida de Llansol e o biográfico de Viart, compete ruminar na letra como o agente consequente da concisão da escrita entre a literatura e a vida, que para Barthes é intitulado como “biografema”, uma forte técnica para refletir sobre a escritura de vida.

O surgimento do biografema acompanha uma mudança de abordagem em relação às próprias vidas biografadas, acarretando num novo tratamento biográfico por parte das disciplinas. Trata-se de outra postura de leitura, de seleção e de valorização de novos signos de vida. Ao invés de percorrer as grandes linhas da historiografia, a prática biografematica volta-se para o detalhe, para a potência daquilo que é ínfimo numa vida, para suas imprecisões e insignificâncias. (BEDIN, 2010, p. 5)

 

O biografema possibilita que o próprio sujeito se desprenda, tornando-se um fabulador, um criador, um ator da escrita e da vida. Afinal, qual sentido em escrever sobre uma vida se não for para crer na potência de recriar essa própria vida?

Como anteriormente mencionado, Barthes valoriza muito o leitor, devido a isso, pede “uma colaboração prática”, pois para ele o texto é um “gesto coletivo, sempre escrito e lido a várias mãos” (BARTHES, 2004, p. 74), e é através dessa prerrogativa que o autobiográfico se apresenta, pois o(a) pesquisador(a) realiza seu relato e nele mesmo se dilui. A participação do leitor na escrita biográfica é adjunta ao que Philippe Lejeune (1980; 1984; 1996) nomeia como “pacto autobiográfico”, pois o leitor chancela o texto biográfico ao ser convidado a participar e a fazer algo com aquilo que lê. Esse movimento de escritura testemunhal desenvolvida entre o(a) escritor(a) e leitor(a) aproxima a relação também com o texto, “essa nova posição frente ao campo biográfico coloca a biografia dentro de uma historicidade capaz de sugerir espaços de liberdade frente aos sistemas normativos vigentes” (BEDIN, 2010, p. 27). Assim, a obra de um escritor se torna algo além de vários acontecimentos históricos e aproxima o(a) leitor(a) de suas experiências vividas. 

Falar sobre a coisa biográfica é potencializar seus principais elementos, a escrita e a vida. Ao pensar a biografia como criação ao invés de representação de acontecimentos passados é caminhar contrário a “estratégias ou metodologias thanatográficas” (BEDIN, 2010, p. 30). Barthes, ao trazer a concepção do biografema, quebra a ideia dominante de escrita biográfica, pois o que está em voga nessa forma de escrever é a fragmentação do sujeito, tornando o autor e não o espectador de uma vida, mas sim, o ator daquilo que biograficamente escreve. O biografema é o amigável retorno ao autor, mas não é o autor que somos acostumados a assistir nas grandes produções, muito menos em forma de herói que costumeiramente lemos em relatos históricos, esse autor está mais distanciado “um pouco como as cinzas que se lançam ao vento depois da morte, e que trazem não mais do que clarões de lembrança e erosão da vida passada” (BARTHES, 1979; 1971), forma fragmentada e transversal, a liberdade biografemática de escrita se torna uma poderosa forma de criação e recriação de mundos e possibilidades.

 

Sobre o ato de narrar-se

 

Fragmentos de uma vida se tornam partes de um relato maior, construídas de forma coletiva, se transformando em componentes do processo de formação textual. A perspectiva literária conectada ao relato do sujeito, permite que o leitor se encontre e veja seu reflexo em sua própria história. Clandinin e Connelly (2000) caracterizam essa interpretação metodológica como “alguém que está dentro, que sustenta histórias, e não só as coletas”. Dessa forma, o que se produz não é unicamente conhecimento, mas sim um texto, um relato, que chega ao leitor e cria o vínculo essencial, o relato de uma história que conceda a outros a possibilidade de relatar a sua. A finalidade não seria de aprender, mas sim de gerar e estimular novas narrativas, encadeando a produção de um modo de narrar-se.

Nesse sentido, a investigação narrativa abre, entre outras, as seguintes opções no relato: (a) deixar espaços que podem ser preenchidos pelos diferentes leitores; (b) tratar de evitar a ficção perfeita que represente de maneira unívoca a realidade; (c) fazer visível o metarrelato que proporcione sentidos alternativos ao trajeto da investigação, e (d) dar a possibilidade ao leitor de completar o relato. Está incorporação do leitor supõe um posicionamento radicalmente novo frente ao que se costuma entender por investigação. Um posicionamento que de fato tem a ver com os intentos de descentralização do sujeito”. (HERNÁNDEZ, 2013, p. 47)

 

É importante destacar que o convite não se trata de experiências que se olhe e fale de si mesma(o) de forma autocomplacente, pelo contrário, são escritos que sugerem uma autorreflexão, problemáticas sociais e que resultam sobretudo em potência de vida (SOUMINEN, 2006; HERNÁNDEZ, 2013).  Para tanto, a partir das intensidades captadas, são descritos relatos intensos e vivos que podem desencadear estudos que conectem o pessoal com o plural.

Não existe uma maneira específica de viver a vida, mas somos potencialmente destinados a buscarmos a felicidade, constituindo a forma de vida, como um ato político. Como buscar essa forma de vida em uma sociedade que tradicionalmente coloca os oprimidos como socialmente excluídos sob estado de exceção e deixa o poder político soberano decidir a dita forma de viver a vida? Segundo Agamben (2015, p. 14), “a intelectualidade e o pensamento não são uma forma de vida ao lado de outras nas quais se articulam a vida e a produção social, mas são a potência unitária que constitui em forma-de-vida as múltiplas formas de vida”. E essa é a forma de vida que uma escrita de si pode criar as potências necessárias em busca de uma “forma-de-vida”.

 

Sobre o autoetnográfico e autoficcional

 

Esta discussão pode ser também tramada a partir das estratégias autoetnográficas, outra inspiração que legitima este percurso. Para compreender o que é a autoetnografia, é necessário primeiramente entender o conceito de etnografia. A etnografia é uma abordagem de pesquisa desenvolvida por antropólogos para estudar a cultura e a sociedade, preocupando-se em investigar suas práticas, crenças, valores, significados e demais aspectos socioculturais. “Dentre os pilares que sustentam a pesquisa etnográfica, encontra-se a interação prolongada entre o pesquisador e os participantes da investigação bem como a interação cotidiana do pesquisador no universo pesquisado” (MAGALHÃES, 2017, p. 17).

Dessa forma, para Goldschmidt (1977, p. 294), “[...] de certo modo, toda etnografia é autoetnografia”, ao passo que conjectura envolvimento pessoal e um modelo intrínseco de análise, sendo essa a inclusão da(o) pesquisadora(o) no objeto de estudo como integrante da pesquisa, tornando-o(a) o(a) próprio objeto a ser estudado. De acordo com Ellis e Adams (2014), o vocábulo “autoetnografia” foi utilizado por Karl Heider (1975) para relatar sapiências em que integrantes de determinado grupo cultural pudessem oferecer seus próprios relatos em relação àquela cultura. 

Ainda segundo Ellis e Adams (2014), o crescimento de estudos autoetnográficos está relacionado a três motivações, são elas: 1) maior afeição pelos estudos qualitativos e pelas narrativas de experiências pessoais no ambiente acadêmico; 2) maior autenticação ética na pesquisa; 3) a potência de mulheres e minorias para o meio acadêmico. Como efeito, as áreas relacionadas à educação, psicologia social e antropologia têm adotado a autoetnografia como predileção metodológica de pesquisa social.

Para os autores, a autoetnografia é descrita como “pesquisa, escrita, histórias, e métodos que conectam o autobiográfico e o pessoal ao cultural, social e político” (ELLIS; ADAMS, 2014, p. 254). De acordo com Bossle e Neto (2009, p. 133), “a autoetnografia surge como um tipo de etnografia centrada nas vivências do próprio sujeito em seu contexto social”.

Diferente da pesquisa positivista que averigua por meio da impessoalidade e a objetividade seu objeto de estudo, a pesquisa qualitativa autoetnográfica enfatiza a relevância da experiência pessoal como modelo de composição da informação dos estudos socioculturais. A autoetnografia consente a envoltura da(o) pesquisadora(o) e oportuniza o estudo das suas vivências emocionais, portanto, a pesquisa autoetnográfica evidencia a experiência pessoal na conjuntura das interações sociais e condutas culturais, averiguando o comprometimento cogitativo da(o) pesquisadora(o) ao expor a percepção interior do fenômeno pesquisado.

Na trajetória de pesquisa a que este ensaio se conecta, a potência de mulheres e minorias para o meio acadêmico foi o ponto chave.  A escrita a partir da vivência da pesquisadora tornou possível que os atravessamentos vivenciados durante uma campanha política fossem relatados por meio das vivencias de uma moça que, durante o período eleitoral, se deparou com enfrentamentos político-sociais. Problematizando a ausência de mulheres na política, em especial das mulheres negras, um recorte pessoal é tramado a partir dos atravessamentos de um corpo que vai se tornando um corpo político, ou seja, questões pessoais são conectadas a questões sociais revelando a dificuldade da participação feminina nos espaços públicos de poder. A escrita de si, como ato político, aproxima essas realidades das produções no meio acadêmico?

Segundo Mendes Chaves (1971), grupos minoritários são aqueles que de algum modo ou em algum setor das relações sociais, passam por algum nível de dependência ou desvantagem por algum outro grupo, tido como “maioritários”. Geralmente, grupos maioritários provocam discriminações aos grupos minoritários, ambos são componentes de uma sociedade mais ampla. Assim, a “reflexividade consiste em nos voltarmos para nossas experiências, identidades e relações a fim de considerarmos como elas influenciam nosso trabalho presente” (ADAMS et al, 2015, p. 30).

Todo este estudo em torno do sujeito, da escrita, da vida, da relevância do autobiográfico conectado ao cultural, social e político, ao recriar a vida desta moça, nos faz chegar na autoficção, também como conceito potente para um percurso metodológico que legitime o relato. A autoficção é uma máquina produtora de mitos do escritor, que funciona tanto nas passagens em que se relatam vivências do narrador quanto naqueles momentos da narrativa em que o autor introduz no relato uma referência à própria escrita, ou seja, a perguntar pelo lugar de fala (O que é ser escritor? Como é o processo de escrita? Quem diz eu?). Reconhecer que a matéria da autoficção não é a biografia mesma e sim o mito do escritor, nos permite chegar próximos da definição que interessa para nossa argumentação. Qual a relação do mito com a autoficção? O mito, diz Barthes, “não é uma mentira, nem uma confissão: é uma inflexão”. “O mito é um valor, não tem a verdade como sanção” (KLINGER, 2006, p. 55).

A indagação tenciona perspectivar não necessariamente o produto da realidade da pesquisa, mas sim o chamado “mito do pesquisador”, o sujeito coletor de dados, o interlocutor com predisposições a se ocultar atrás de uma terceira pessoa. Assim sendo, alegar que a pesquisa é ficção não findaria com um problema central, e precedente, qual seja, o da autoria. De acordo com Klinger (2006, p. 58),

O texto autoficcional implica uma dramatização de si que supõe, da mesma maneira que ocorre no palco teatral, um sujeito duplo, ao mesmo tempo real e fictício, pessoa (ator) e personagem. Então não se trata de pensar, como o faz Phillipe Lejeune, em termos de uma “coincidência” entre “pessoa real” e personagem textual, mas a dramatização supõe a construção simultânea de ambos, autor e narrador. Quer dizer, trata-se de considerar a autoficção como uma forma de performance.

 

Assim surge a concepção de que uma verdade só pode ser identificada enquanto uma invenção, enquanto ficção em exercícios do imaginário.

Assim, como pesquisadora, tenho exercitado esse lugar dramático em que “[...] a pesquisa assim pode ser percebida como um conto: um conto que conta um pesquisar, enquanto conta os feitos de uma voz que conta o que busca — e o drama se formula, e ganha força, na tensão dos (des)encontros” (ESTEVES e ADÓ, 2020, p. 364).

Após vivenciar todo esse percurso metodológico de escrever a vida, uma vida atravessada por várias outras vidas, procurei encontrar algo que de fato me fizesse sentir conectada com todo o trabalho de produção de meus índices de singularidade, minhas escrevivências como mulher negra.

 

Escrevivência

 

Acredito que a sensação de acolhimento que a escrevivência me trouxe está diretamente atribuída ao fato de Conceição Evaristo ser uma mulher negra que escreve sobre vivências da população negra, principalmente as mulheres, e de sua própria vida, me causando uma imediata conexão. Mais do que uma metodologia como potência de escrita de um objeto de pesquisa, a sua obra literária me levou ao fascínio, possibilitando a reflexão acerca de questões sociais que me potencializam enquanto militante partidária e social.

 

Escrevivência, em sua concepção inicial, se realiza como um ato de escrita das mulheres negras, como uma ação que pretende borrar, desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz de mulheres negras escravizadas tinha sua potência de emissão também sob o controle dos escravocratas, homens, mulheres e até crianças. E se ontem nem a voz pertencia às mulheres escravizadas, hoje a letra, a escrita, nos pertencem também. Pertencem, pois nos apropriamos desses signos gráficos, do valor da escrita, sem esquecer a pujança da oralidade de nossas e de nossos ancestrais. Potência de voz, de criação, de engenhosidade que a casa-grande soube escravizar para o deleite de seus filhos. E se a voz de nossas ancestrais tinha rumos e funções demarcadas pela casa-grande, a nossa escrita não. Por isso, afirmo: a nossa escrevivência não é para adormecer os da casa-grande, e sim acordá-los de seus sonos injustos. (EVARISTO; NUNES, 2020, p. 12)

 

A expressão “escrevivência” vem sendo debatida por pensadores e críticos da literatura afro-brasileira. Em diversas pesquisas, a palavra apropria-se de vários significados, nem sempre referentes à composição lexical que nela se manifesta. De forma morfológica, dá-se entre a associação de “escrever” e “viver”, das perspectivas possíveis pela enunciação de “escrever vivências”, ou o fato de escrever vividos pelo eu que os resgata na escrita. A relevância do termo como conceito vem crescendo devido às variadas discussões que ele tem suscitado entre cientistas da literatura afro-brasileira, ganhando força a cada artigo, dissertação, tese ou discussões sobre as escritas de Conceição Evaristo.

Para investigar mais acerca do termo proposto por Evaristo, é necessário, primeiramente, notar como ele vem sendo explicado pela própria autora. Assim como também é relevante inteirar-se sobre o ponto de vista de estudiosos que analisam as produções de Conceição Evaristo. De acordo com o livro Escrevivência: a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo, a expressão “escrevivência” foi utilizada pela primeira vez pela autora “em uma mesa de escritoras negras no Seminário Mulher e Literatura, em 1995” (NUNES, 2020), fazendo referência ao VI Seminário Mulher e Literatura, ocorrido na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O termo foi relatado como uma técnica que rasura a ordem validada pela representação da “Mãe Preta” que conta “histórias para adormecer a prole da Casa-grande”. Os caminhos da palavra correspondem a uma proposição de escrita literária que procura macular o imaginário popular que enxerga a pessoa negra apenas nas funções atribuídas à subalternidade do sistema escravocrata. Está dentro desse imaginário a figura da Mãe Preta, que é obrigada a criar a prole da casa-grande, inclusive deixando de amamentar seus filhos para nutrir os filhos dos “sinhôs” e “sinhás”. É importante ressaltar que mesmo amamentando, criando e contando histórias que embalavam essas crianças, as negras escravizadas não estavam eximidas da violência acometida pelos senhores de escravos.

Em uma entrevista concedida ao Estado de Minas, em 2004, Evaristo diz que a escrita literária desenvolvida por mulheres negras arca com uma forma de conjectura do que ficou invisibilizado e silenciado pela História. A afirmação de Conceição Evaristo evidencia que o termo “escrevivência” designa uma relação intrínseca entre a ação de escrita literária e a relação de vivência da população negra do Brasil ao longo dos anos.  

 Essa ideia atravessa a obra poética e ficcional da escritora, levando-a ao recolhimento de lembranças vivenciadas em sua infância, com sua família, recordando histórias contadas pela própria mãe, tias, e outras mulheres que costuravam a rotina trabalhista com o fio da fantasia. A escrita da autora, portanto, usufrui de uma rica fonte de saber, a oralidade, que prepara a escrevivência.

Em anotações exibidas na exposição Ocupação Conceição Evaristo realizada pelo Banco Itaú (2017), é possível ler um trecho sem data, escrito a mão pela autora, explicando o que seria para ela "escrevivência”, naquele momento de sua vida, escrito em duas palavras “escre-vivências”.

Minha escre-vivência vem do quotidiano dessa cidade que me acolhe há mais de 20 anos e das lembranças que ainda guardo de Minas Gerais. Vem dessa pele-memória – História passada, presente e futura que existe em mim. Vem de uma teimosia, quase insana, de uma insistência que nos marca e que não nos deixa perecer, apesar de. Pois entre a dor, a dor e a dor, é ali que reside a esperança. […] Venho insistindo também em misturar literatura e vida nos cursos que fiz, o de bacharelado e licenciatura em Português-Literatura, UFRJ, e o de Mestrado em Literatura Brasileira, na PUC/RJ. (ITAÚ CULTURAL, 2019)

 

Observe que na citação, Evaristo recolhe os elementos que contribuem na formação do termo escrevivência: vida e literatura. Na junção dos termos fica explícito que as experiências vivenciadas atravessam o campo da literatura, em seu trabalho proposital com a linguagem, com a escrita.

Consciente do seu fazer literário, Evaristo distende esse processo à escrita produzida por outras autoras, ao afirmar que a experiência do povo negro motiva os sentidos dados por ela ao termo escrevivência, tornando-se característica de processos de criação literária, assumidos por subjetividades negras. Essa característica marcaria os propósitos da criação literária afro-brasileira e a sua intenção de acolher as experiências vividas por negros e negras na composição de textos que se abrigam em diferentes gêneros. (FONSECA, 2020, p. 62-63)

 

A escrevivência de Conceição Evaristo cria um cenário de coletividade mesmo quando a vivência é individual. Essa colocação afirma que em sua ficção as personagens originam-se “profundamente marcadas por [sua] condição de mulher negra e pobre”. E, para enfatizar o que diz, Evaristo afirma em entrevista concedida à Biblioteca Nacional, em 2015:[3] “É desse meu lugar, é desse de ‘dentro para fora’, que minhas histórias brotam”.

Como fica evidenciado, o termo "escrevivência”, que é debatido pela própria autora desde o seu surgimento em 1995, o estabelece como um formato de sua escrita literária, gradualmente torna-se uma potência apta a movimentar as estruturas de uma ordem literária instituída. O vocábulo, ao perpassar dos debates em seu entorno, passa a expressar uma subjetividade de mulheres negras que pode ser uma estratégia discursiva própria a percepção de um eu negro, quanto aclamar uma voz coletiva negra que se incube de relatar as experiências femininas negras. As vertentes possíveis ao termo navegam nos gêneros envoltos na noção da “escrita de si”, assim como apresentados na autobiografia e na autoficção, mas também permitem interatividades com outros termos e expressões que atendem os elos entre sujeitos negros e modos de experienciar a memória e a própria vida. 

O encontro com esta proposta me trouxe a sensação de direcionamento do porvir de uma vida atravessada por um pleito eleitoral. Compartilhar as dores, experiências e emoções da moça, me fazem sentir que essa escrita não pertence a quem está desenvolvendo-a, pertence a todas que vieram antes, caminham agora e virão depois de mim.

Além da escrevivência, a potência da escrita por meio da compreensão da interseccionalidade que constrói a moça, me possibilitou ter um novo olhar sobre os corpos políticos, principalmente os pertencentes às mulheres negras.

A  interseccionalidade  é  uma  conceituação  do  problema  que  busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois  ou  mais  eixos  da  subordinação. Ela  trata  especificamente  da forma pela  qual o  racismo,  o  patriarcalismo,  a opressão de  classe  e outros  sistemas  discriminatórios  criam  desigualdades  básicas  que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas  geram  opressões  que  fluem  ao  longo  de  tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento. (CRENSHAW, 2002, p. 177)

 

O que Crenshaw (2002) e Evaristo (2020) nos disseram, mostra como a mulher negra é colocada nessa posição de subalternização, sendo a moça e a população negra como um todo, atravessados por múltiplas opressões, como a classe, religião, origem, gênero, sexualidade, etc. O conceito de interseccionalidade vem de um enfrentamento ao processo de descolonização desde que o termo emergiu, passando a beber de uma fonte própria de saber, não europeia, fendendo, assim, com o “privilégio epistêmico”, portanto, a interseccionalidade é metodologia para pesquisa de uma realidade natural ou cultural mediante verificação, tal qual a escrevivência,  proporcionando, segundo Akotirene (2019, p. 19), “instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado”.

Tal processo de descolonização, por meio da escrevivência e interseccionalidade, se faz necessário para desmistificar do imaginário popular a visão que a sociedade possui em torno das mulheres negras, pois segundo a intelectual negra conhecida por bell hooks,[4] desde o período da escravidão até a atualidade, o corpo da mulher negra “tem sido visto pelos ocidentais como o símbolo quintessencial de uma presença feminina ‘natural’, orgânica, mais próxima da natureza, animalística e primitiva” (hooks, 1995, p. 468). Esse discurso atua para chancelar a proibição da presença de mulheres negras no campo da intelectualidade, pois “mais do que qualquer grupo de mulheres nesta sociedade, as negras têm sido consideradas ‘só corpo, sem mente’” (hooks, 1995, p. 469). Diante do exposto, hooks argumenta que é fundamental para a luta de libertação das mulheres negras, ocupar esse espaço de produções científicas, considerados intelectuais. Nessa lógica, Conceição Evaristo expõe a relevância de que mulheres como ela, sua mãe, como Carolina de Jesus,[5] se atestem enquanto escritoras e pesquisadoras.

 

Quando mulheres do povo como Carolina, como minha mãe, como eu também, nos dispomos a escrever, eu acho que a gente está rompendo com o lugar que normalmente nos é reservado. A mulher negra, ela pode cantar, ela pode dançar, ela pode cozinhar, ela pode se prostituir, mas escrever, não, escrever é alguma coisa... é um exercício que a elite julga que só ela tem esse direito. Escrever e ser reconhecido como um escritor ou como escritora, aí é um privilégio da elite. (Evaristo, 2010)

 

Assim como eu me senti conectada à escrita de Conceição Evaristo, a escritora se refere em constância à escrita realizada por Carolina Maria de Jesus, ela relata que sua família lia Carolina “não como leitores comuns, mas como personagens das páginas de Carolina. A história de Carolina era nossa história” (Evaristo, 2010). Devido a identificação com a vivência de Carolina Maria de Jesus, por ser uma mulher negra, moradora da favela, que escreveu literatura. Essa narrativa de Conceição Evaristo se mostra como parte de uma “escola” de escritoras negras oriundas de favelas, criando uma tradição literária que exerceu sobre ela “o caminho de uma escrita inaugurada por Carolina que escreveu também sob a forma de diário, a miséria do cotidiano enfrentada por ela”, validando suas experiências como forma de produções literárias e científicas.

Conceição relata que trabalhou como doméstica desde os oito anos de idade, além de desempenhar as funções atribuídas ao trabalho do lar, levava as crianças da vizinhança a escola e ensinava-as a fazerem as lições de casa o que “rendia também uns trocadinhos” (Evaristo, 2009, p. 1). Também participava com a mãe e a tia “da lavagem, do apanhar e do entregar trouxas de roupas nas casas das patroas” (Evaristo, 2009, p. 1). Essa parte de sua vida, rendeu um belo depoimento escrito, memoroso pela forma que escolhe relatá-lo:

 

Mais um momento, ainda bem menina, em que a escrita me apareceu em sua função utilitária e às vezes, até constrangedora, era no momento da devolução das roupas limpas. Uma leitura solene do rol acontecia no espaço da cozinha das senhoras:4 lençóis brancos, 4 fronhas, 4 cobre-leitos, 4 toalhas de banho, 4 toalhas de rosto, 2 toalhas de mesa, 15 calcinhas, 20 toalhinhas, 10 cuecas, 7 pares de meias, etc, etc, etc. As mãos lavadeiras, antes tão firmes no esfrega-torce e no passa-dobra das roupas, ali diante do olhar conferente das patroas, naquele momento se tornavam trêmulas, com receio de terem perdido ou trocado alguma peça. Mãos que obedeciam a uma voz-conferente. Uma mulher pedia, a outra entregava. E quando eu, menina, testemunhava as toalhinhas antes embebidas de sangue, e depois, já no ato da entrega, livres de qualquer odor ou nódoa, mais a minha incompreensão diante das mulheres brancas e ricas crescia. As mulheres de minha família, não sei como, no minúsculo espaço em que vivíamos, segredavam seus humores íntimos. Eu não conhecia o sangramento de nenhuma delas. E quando em meio às roupas sujas, vindas para a lavagem, eu percebia calças de mulheres e minúsculas toalhas, não vermelhas, e sim sangradas do corpo das madames, durante muito tempo pensei que as mulheres ricas urinassem sangue de vez em quando. (Evaristo, 2005, p. 2)

 

Nessa passagem é possível compreender a presença da interseccionalidade que emerge nas produções de Conceição Evaristo, por meio das questões de classe, raça e gênero. Observe como a escritora caracteriza as “mulheres brancas e ricas” – as “patroas” – de forma singular, retratando-as como distintas das mulheres de sua família – as lavadeiras – que em seu imaginário possuíam uma característica biológica diferente, um estranhamento: urinar sangue. Essa diferença não denuncia uma simples confusão infantil, mas sim a relação de subalternidade em que a menina vivenciava ao entrar em contato com “as toalhinhas antes embebidas de sangue” de suas patroas, em contrapartida, ela não tinha contato semelhante com as mulheres de sua própria família, pertencentes a sua mesma classe e raça. As diferenças entre o ser mulher que Conceição relata nesse trecho de sua escrita são conectadas por ela à função “utilitária” e “constrangedora” da escrita. Tal constrangimento se faz útil à medida que revela as relações de poder que a autora deseja denunciar.

A relação de Conceição com as mulheres de sua família aparece em diversos trechos de suas obras quando o convívio entre elas é retratado, a saber:

Como ouvi conversas de mulheres! Falar e ouvir entre nós era a talvez a única defesa, o único remédio que possuíamos. Venho de uma família em que as mulheres, mesmo não estando totalmente livres de uma dominação machista, primeiro a dos patrões, depois a dos homens seus familiares, raramente se permitiam fragilizar. Como ‘cabeça’ da família, elas construíam um mundo próprio, muitas vezes distantes e independentes de seus homens e mormente para apoiá-los depois. Talvez por isso tantas personagens femininas em meus poemas e em minhas narrativas? Pergunto sobre isto, não afirmo. (Evaristo, 2005, p. 4)


            Tais relatos produzem potências de escrita, assim, notamos que ao erguer a voz autoral para denunciar desigualdades sociais, ao passo que expressa seus atravessamentos pertencentes ao sociocultural, Conceição Evaristo propicia abertura de espaços em que vozes socialmente negligenciadas, como é o caso das mulheres negras, tornam-se audíveis por meio de suas escrevivências produzindo uma escrita que denuncia as consequências sociais de um Brasil que não trata a população negra com devido respeito desde o período da escravidão. E não seria este um importante movimento de escrita para a pós-graduação brasileira?

 

 

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[1] Atriz. Pós-Doutora em Teatro pela Universidade Federal de Uberlândia. Doutora e Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: renataferreira@mailuft.edu.br ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6433-6564

[2] Mestra em Comunicação e Sociedade - PPGCOMS/UFT; Graduada em Administração pela Universidade Federal do Tocantins - UFT E-mail: thamireslima@mail.uft.edu.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2096-3846

[3]

[4] bell hooks” é o pseudônimo da escritora norte-americana Gloria Jean Watkins, que o adota grafado em letras minúsculas – grafia aplicada também aqui.

[5] Carolina Maria de Jesus (1914-1977) mulher negra, periférica, autora do livro Quarto de despejo: diário de uma favelada (1950). Traduzido em 13 idiomas, o livro narra as mazelas e discriminações vivenciadas pela autora na periferia de São Paulo.