Quem tem medo de si?
Percursos metodol�gicos para uma escreviv�ncia na produ��o cient�fica
Who is afraid of you?
Methodological paths for self-writing in scientific production
Renata Ferreira da Silva[1]
Universidade Federal do Tocantins
Thamires Lima [2]
Universidade Federal do Tocantins
Resumo
Este ensaio convida o(a) leitor(a) um passeio: seguir um percurso argumentativo por diferentes conceitos operativos que validam a produ��o de �ndices de singularidade por meio de uma escrita de si na produ��o acad�mica. Para compreender o ato de narrar-se caminharemos pelos biografemas, Barthes (2004), Bedin (2010); a autoetnograf�a, Ellis e Adams (2014); a autofic��o, Esteves e Ad� (2020), at� chegarmos ao conceito de Escreviv�ncia de Concei��o Evaristo (1995), aliado a proposta de interseccionalidade de Crenshaw (2002) como aposta metodol�gica para o tratamento das viv�ncias de mulheres negras pesquisadoras em contextos de pesquisas acad�micas.
Palavras-chave: Metodologia de pesquisa; Escreviv�ncia; Mulheres negras
Abstract
This essay invites the reader to take a walk: to follow an argumentative path through different operative concepts that validate the production of indices of singularity through a writing of the self in academic production. To understand the act of narrating oneself, we will walk through the biographemes, Barthes (2004), Bedin (2010); autoethnography, Ellis and Adams (2014); autofiction, Esteves and Ad� (2020) until we reach the concept of Escreviv�ncia by Concei��o Evaristo (1995) combined with Crenshaw's (2002) intersectionality proposal as a methodological bet for the treatment of the experiences of black women researchers in academic research contexts.
Key-words: Research methodology; Life-writing; Black women
Compreender que a produ��o cient�fica pode ser validada a partir de viv�ncias pessoais � a proposta desse texto.� Escrever na p�s-gradua��o, a partir de uma escrita de si, se apresenta como alternativa frente aos modelos de neutralidade estabelecidos. Mas como transformar experi�ncias de vida numa fonte de produ��o de informa��es cient�ficas?
No decorrer desta escrita � poss�vel acompanhar o processo de descoberta assim como o esfor�o de explicar o porqu� as viv�ncias podem ser relevantes e ser utilizadas como objeto de estudo num programa de p�s-gradua��o. Este esfor�o justifica-se pela resist�ncia ainda encontrada no �mbito acad�mico para pesquisas que n�o dissociam sujeito e objeto, que trabalham a partir de uma no��o de experi�ncia ligada aos atravessamentos de uma vida expandindo a ideia de pesquisa na/pela escrita, na cria��o de realidades.
Portanto, inicio esta escrita tentando compreender que �o eu de quem escreve eu n�o � o mesmo que o eu que � lido por tu� (BARTHES, 2004, p. 21). Isto n�o � simples. E foi justamente isso que me cativou:� o desafio, a possibilidade de sair do meu eu e apresentar uma vers�o que eu mesma n�o conhecia de mim: como falar dos nossos atravessamentos?�
Eu quem?
Quando o eu pensa em algo, ele ir� procurar ao seu redor a materializa��o do seu pensamento para validar sua representa��o, por isso o pensamento � que constr�i o eu, n�o o contr�rio. Mas ser� que o pensamento � modificado a partir de tudo que vivemos, tornando o eu, o sujeito, um ser fragmentado pelos atravessamentos que nos altera numa for�a de varia��o cont�nua? De acordo com Silva e Brito (2017, p. 5), �no cen�rio Moderno, a consci�ncia se p�e como um crit�rio fundamental para conhecer a realidade, o que confere ao sujeito o centro norteador do conhecimento, pois ele pode garantir a unidade, a identidade permanente do saber�. Assim, o sujeito det�m todo o saber, todo o conhecimento, ele � a representa��o da realidade, essa ideia foi criada e defendida por Descartes para afirmar que o eu � o cerne de todas as const�ncias.
O sujeito oferece nesta acep��o a suposi��o essencial para a interpreta��o, pois �Como n�o h� um fundamento material reconhecido como v�lido, uma vez que a experi�ncia sens�vel � posta entre par�nteses, buscamos na pr�pria representa��o os crit�rios que me mostrar�o a sua validade� (SILVA; BRITO, 2017, p. 5). Nesse sentido, o eu pensante buscar� constantemente por ele mesmo ao visitar nas suas mem�rias os par�metros que exponham no mundo material a rela��o com o que foi pensado para provar sua exist�ncia. O sujeito colocar� o mundo exterior em segundo plano nessa tentativa de comprova��o do conhecimento, posto que o pr�prio necessita ser trilhado interiormente pois � o ponto de condu��o para a verdade.
Segundo Onate (2000), o sujeito de Descartes passando pela an�lise de Nietzsche � radicalmente criticado, interessa compreender que a cr�tica indaga o ponto de vista do eu como singularidade, ou o indiv�duo como detentor do conhecimento da mesma maneira que pode diferenciar o real do irreal, o verdadeiro do falso. �Eliminamos a compreens�o de um Eu como testemunha, aquele que tem uma consci�ncia separada do objeto que quer conhecer e que est� de alguma forma, livre a dominar uma natureza de forma aut�noma e racional (SILVA e BRITO, 2017, p. 6). Ao tirarmos a identidade do eu, percebe-se que a constru��o do pensamento n�o � realizada pelo eu, o eu � quem � constru�do por ele, tornando esse eu um sujeito m�ltiplo e componente de um desenvolvimento do qual ele n�o � o ponto central. Ele n�o monitora, estrutura e classifica o processo, ele faz parte de um. Esse processo � a vida, consequentemente, ef�mero. Portanto, n�o existe um �eu�, existem multiplicidades, for�as interiores e exteriores que comp�em o sujeito. Essa escrita, ent�o, trabalha com outra no��o de sujeito. O sujeito da experi�ncia, do atravessamento:
Esse sujeito que n�o � o sujeito da informa��o, da opini�o, do trabalho, que n�o � o sujeito do saber, do julgar, do fazer, do poder, do querer [...] o sujeito da experi�ncia seria algo como um territ�rio de passagem, algo como uma superf�cie sens�vel que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vest�gios, alguns efeitos [...] o sujeito da experi�ncia � um ponto de chegada, um lugar a que chegam as coisas, como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe d� lugar [...] o sujeito da experi�ncia � sobretudo um espa�o onde t�m lugar os acontecimentos. (BOND�A, 2002, p. 24)
O sujeito � definido por e como, uma mo��o de se autodesenvolver. �Por�m, cabe observar que � duplo o movimento de desenvolver-se a si mesmo ou de devir outro: o sujeito se ultrapassa, o sujeito se reflete� (DELEUZE, 2012, p. 70). Se desligando da no��o que se atribui ao que � o eu, um ser que permanece imut�vel, a constru��o do sujeito se d� a partir de suas viv�ncias. Viv�ncias que o cruzam das mais variadas formas: acalentadoras, felizes, tristes, marcantes, violentas. Tais viv�ncias propiciam efeitos que fazem cada sujeito encontrar sentido em suas experi�ncias, organizando ou desorganizando sua maneira de viver. Cada a��o est� relacionada a uma outra a��o que reage a uma outra a��o, por isso n�o h� como criar um sujeito com uma exatid�o, pois tudo passa de maneira �nica e nos modifica.
Mas ent�o, quem � esse eu? Como ele transita em nosso cotidiano? Como ele se faz presente na escrita e em nossas falas? Para Barthes (2004, p. 20), �o sujeito da enuncia��o nunca pode ser o mesmo que agiu ontem: o eu do discurso j� n�o pode ser o lugar onde se restituiu inocentemente uma pessoa previamente guardada�. Esse eu ao mesmo tempo que se apresenta como ator, tamb�m se apresenta como autor. � um eu caminhante, ilus�rio, adulterado em escritas vividas no aqui e no agora. Ele � consequ�ncia dos acontecimentos da vida. Uma vida que Deleuze descreve da seguinte forma:
Entre sua vida e sua morte, h� um momento que n�o � mais que aquele de uma vida jogando com a morte. A vida do indiv�duo deu lugar a uma vida impessoal e, no entanto, singular que depreende um puro acontecimento liberado dos acidentes da vida interior e exterior, isto �, da subjetividade e da objetividade do que acontece [...]. A vida de tal individualidade se apaga em proveito da vida singular imanente a um homem que n�o tem mais nome, apesar de n�o se confundir com nenhum outro. Ess�ncia singular, uma vida... (DELEUZE, 2016, p. 180)
Para Branco (2011, p. 60), a articula��o da experi�ncia liter�ria com o escrever sobre a vida, que ela chama de Escreviver, s�o postas ao lado de outros eloquentes �uma casa, uma pedra, um jardim, um c�o, um sonho, uma rapariga, uma vida, jogo de escrita que institui por meio dessas articula��es uma no��o deleuziana sobre a vida�. Segundo Deleuze (1997, p. 11), a escrita �� insepar�vel do devir�. Por esse motivo, �� um processo, uma passagem de Vida que atravessa o viv�vel e o vivido� (DELEUZE, 1997, p. 13), caminhando ao lado da impessoalidade, mesmo que se escreve sobre a figura de um �eu�. Mas existe algo entre essa vida e a morte, Llansol escreve sobre esse �restante da vida�:
O falar e negociar, o produzir e o explorar constroem, com efeito, os acontecimentos do Poder. O escrever acompanha a densidade da Restante Vida, da Outra Forma de Corpo, que aqui vos deixo qual �: a Paisagem. Escrever vislumbra, n�o presta para consignar. Escrever, como neste livro, leva fatalmente o Poder � perca de mem�ria. E sabe-se l� o que � um Corpo Cem Mem�ria de Paisagem. Quem h� que suporte o vazio? Talvez ningu�m, nem livro. (LLANSOL, 2014, p. 10)
�Assim, a escrita llasoliana destitui a mem�ria do �eu�, tornando-a ausente de poder, tradi��o e ego. Pois, de acordo com Llansol (2014, p. 99), �(...) n�o havendo mem�ria de ser humano mais vale guardar em mem�ria o resto, todos os restos, a restante vida�, tornando poss�vel escrever a vida.
Vamos conhecer um pouco mais sobre as escritas da vida, do grego �biografia�. Para Gobbi (2005), � uma tarefa imposs�vel dar uma defini��o precisa � biografia devido a sua transdisciplinaridade, pois o campo que utiliza a escrita biogr�fica abarca outras �reas al�m da literatura, como a hist�ria, a antropologia e a psicologia. Ao mencionar o g�nero liter�rio, Schimidt (2000; 2004) e Vilas Boas (2003) afirmam que as biografias s�o mundialmente populares, mas por mais conhecidas que sejam, s�o poucos os estudos acad�micos que utilizam sua transversalidade, empregando-o nas pesquisas de forma secund�ria ou complementar.
Para que a biografia n�o seja restrita ao g�nero liter�rio, alguns pesquisadores preferem cham�-la de �biogr�fico�. De acordo com Viart (2002), o biogr�fico � consequ�ncia do vivido, evidenciando a forma como o texto exp�e seu material. Atrav�s do biogr�fico � poss�vel um distanciamento em rela��o a compreens�o do que � a fidelidade hist�rica, longe das regras identit�rias geradas pelo conceito de obra biogr�fica de um escritor. Para Viart (2002, p. 211), �escrever uma vida, ou a pr�pria vida, � ficcionalizar; toda representa��o de vida �, desde o in�cio, fict�cia�. Assim, ao iniciar a escrita no pr�prio �mago biogr�fico, realiza-se um novo conceito que segundo Viart (2002, p. 73) � a �inven��o de si como se fora outro�. A viv�ncia � atravessada pela f�bula, onde o biogr�fico � o esbo�o em que se realiza esse encontro.
Biografemas
Entre a vida de Deleuze, o restante da vida de Llansol e o biogr�fico de Viart, compete ruminar na letra como o agente consequente da concis�o da escrita entre a literatura e a vida, que para Barthes � intitulado como �biografema�, uma forte t�cnica para refletir sobre a escritura de vida.
O surgimento do biografema acompanha uma mudan�a de abordagem em rela��o �s pr�prias vidas biografadas, acarretando num novo tratamento biogr�fico por parte das disciplinas. Trata-se de outra postura de leitura, de sele��o e de valoriza��o de novos signos de vida. Ao inv�s de percorrer as grandes linhas da historiografia, a pr�tica biografematica volta-se para o detalhe, para a pot�ncia daquilo que � �nfimo numa vida, para suas imprecis�es e insignific�ncias. (BEDIN, 2010, p. 5)
O biografema possibilita que o pr�prio sujeito se desprenda, tornando-se um fabulador, um criador, um ator da escrita e da vida. Afinal, qual sentido em escrever sobre uma vida se n�o for para crer na pot�ncia de recriar essa pr�pria vida?
Como anteriormente mencionado, Barthes valoriza muito o leitor, devido a isso, pede �uma colabora��o pr�tica�, pois para ele o texto � um �gesto coletivo, sempre escrito e lido a v�rias m�os� (BARTHES, 2004, p. 74), e � atrav�s dessa prerrogativa que o autobiogr�fico se apresenta, pois o(a) pesquisador(a) realiza seu relato e nele mesmo se dilui. A participa��o do leitor na escrita biogr�fica � adjunta ao que Philippe Lejeune (1980; 1984; 1996) nomeia como �pacto autobiogr�fico�, pois o leitor chancela o texto biogr�fico ao ser convidado a participar e a fazer algo com aquilo que l�. Esse movimento de escritura testemunhal desenvolvida entre o(a) escritor(a) e leitor(a) aproxima a rela��o tamb�m com o texto, �essa nova posi��o frente ao campo biogr�fico coloca a biografia dentro de uma historicidade capaz de sugerir espa�os de liberdade frente aos sistemas normativos vigentes� (BEDIN, 2010, p. 27). Assim, a obra de um escritor se torna algo al�m de v�rios acontecimentos hist�ricos e aproxima o(a) leitor(a) de suas experi�ncias vividas.�
Falar sobre a coisa biogr�fica � potencializar seus principais elementos, a escrita e a vida. Ao pensar a biografia como cria��o ao inv�s de representa��o de acontecimentos passados � caminhar contr�rio a �estrat�gias ou metodologias thanatogr�ficas� (BEDIN, 2010, p. 30). Barthes, ao trazer a concep��o do biografema, quebra a ideia dominante de escrita biogr�fica, pois o que est� em voga nessa forma de escrever � a fragmenta��o do sujeito, tornando o autor e n�o o espectador de uma vida, mas sim, o ator daquilo que biograficamente escreve. O biografema � o amig�vel retorno ao autor, mas n�o � o autor que somos acostumados a assistir nas grandes produ��es, muito menos em forma de her�i que costumeiramente lemos em relatos hist�ricos, esse autor est� mais distanciado �um pouco como as cinzas que se lan�am ao vento depois da morte, e que trazem n�o mais do que clar�es de lembran�a e eros�o da vida passada� (BARTHES, 1979; 1971), forma fragmentada e transversal, a liberdade biografem�tica de escrita se torna uma poderosa forma de cria��o e recria��o de mundos e possibilidades.
Sobre o ato de narrar-se
Fragmentos de uma vida se tornam partes de um relato maior, constru�das de forma coletiva, se transformando em componentes do processo de forma��o textual. A perspectiva liter�ria conectada ao relato do sujeito, permite que o leitor se encontre e veja seu reflexo em sua pr�pria hist�ria. Clandinin e Connelly (2000) caracterizam essa interpreta��o metodol�gica como �algu�m que est� dentro, que sustenta hist�rias, e n�o s� as coletas�. Dessa forma, o que se produz n�o � unicamente conhecimento, mas sim um texto, um relato, que chega ao leitor e cria o v�nculo essencial, o relato de uma hist�ria que conceda a outros a possibilidade de relatar a sua. A finalidade n�o seria de aprender, mas sim de gerar e estimular novas narrativas, encadeando a produ��o de um modo de narrar-se.
Nesse sentido, a investiga��o narrativa abre, entre outras, as seguintes op��es no relato: (a) deixar espa�os que podem ser preenchidos pelos diferentes leitores; (b) tratar de evitar a fic��o perfeita que represente de maneira un�voca a realidade; (c) fazer vis�vel o metarrelato que proporcione sentidos alternativos ao trajeto da investiga��o, e (d) dar a possibilidade ao leitor de completar o relato. Est� incorpora��o do leitor sup�e um posicionamento radicalmente novo frente ao que se costuma entender por investiga��o. Um posicionamento que de fato tem a ver com os intentos de descentraliza��o do sujeito�. (HERN�NDEZ, 2013, p. 47)
� importante destacar que o convite n�o se trata de experi�ncias que se olhe e fale de si mesma(o) de forma autocomplacente, pelo contr�rio, s�o escritos que sugerem uma autorreflex�o, problem�ticas sociais e que resultam sobretudo em pot�ncia de vida (SOUMINEN, 2006; HERN�NDEZ, 2013).� Para tanto, a partir das intensidades captadas, s�o descritos relatos intensos e vivos que podem desencadear estudos que conectem o pessoal com o plural.
N�o existe uma maneira espec�fica de viver a vida, mas somos potencialmente destinados a buscarmos a felicidade, constituindo a forma de vida, como um ato pol�tico. Como buscar essa forma de vida em uma sociedade que tradicionalmente coloca os oprimidos como socialmente exclu�dos sob estado de exce��o e deixa o poder pol�tico soberano decidir a dita forma de viver a vida? Segundo Agamben (2015, p. 14), �a intelectualidade e o pensamento n�o s�o uma forma de vida ao lado de outras nas quais se articulam a vida e a produ��o social, mas s�o a pot�ncia unit�ria que constitui em forma-de-vida as m�ltiplas formas de vida�. E essa � a forma de vida que uma escrita de si pode criar as pot�ncias necess�rias em busca de uma �forma-de-vida�.
Sobre o autoetnogr�fico e autoficcional
Esta discuss�o pode ser tamb�m tramada a partir das estrat�gias autoetnogr�ficas, outra inspira��o que legitima este percurso. Para compreender o que � a autoetnografia, � necess�rio primeiramente entender o conceito de etnografia. A etnografia � uma abordagem de pesquisa desenvolvida por antrop�logos para estudar a cultura e a sociedade, preocupando-se em investigar suas pr�ticas, cren�as, valores, significados e demais aspectos socioculturais. �Dentre os pilares que sustentam a pesquisa etnogr�fica, encontra-se a intera��o prolongada entre o pesquisador e os participantes da investiga��o bem como a intera��o cotidiana do pesquisador no universo pesquisado� (MAGALH�ES, 2017, p. 17).
Dessa forma, para Goldschmidt (1977, p. 294), �[...] de certo modo, toda etnografia � autoetnografia�, ao passo que conjectura envolvimento pessoal e um modelo intr�nseco de an�lise, sendo essa a inclus�o da(o) pesquisadora(o) no objeto de estudo como integrante da pesquisa, tornando-o(a) o(a) pr�prio objeto a ser estudado. De acordo com Ellis e Adams (2014), o voc�bulo �autoetnografia� foi utilizado por Karl Heider (1975) para relatar sapi�ncias em que integrantes de determinado grupo cultural pudessem oferecer seus pr�prios relatos em rela��o �quela cultura.�
Ainda segundo Ellis e Adams (2014), o crescimento de estudos autoetnogr�ficos est� relacionado a tr�s motiva��es, s�o elas: 1) maior afei��o pelos estudos qualitativos e pelas narrativas de experi�ncias pessoais no ambiente acad�mico; 2) maior autentica��o �tica na pesquisa; 3) a pot�ncia de mulheres e minorias para o meio acad�mico. Como efeito, as �reas relacionadas � educa��o, psicologia social e antropologia t�m adotado a autoetnografia como predile��o metodol�gica de pesquisa social.
Para os autores, a autoetnografia � descrita como �pesquisa, escrita, hist�rias, e m�todos que conectam o autobiogr�fico e o pessoal ao cultural, social e pol�tico� (ELLIS; ADAMS, 2014, p. 254). De acordo com Bossle e Neto (2009, p. 133), �a autoetnografia surge como um tipo de etnografia centrada nas viv�ncias do pr�prio sujeito em seu contexto social�.
Diferente da pesquisa positivista que averigua por meio da impessoalidade e a objetividade seu objeto de estudo, a pesquisa qualitativa autoetnogr�fica enfatiza a relev�ncia da experi�ncia pessoal como modelo de composi��o da informa��o dos estudos socioculturais. A autoetnografia consente a envoltura da(o) pesquisadora(o) e oportuniza o estudo das suas viv�ncias emocionais, portanto, a pesquisa autoetnogr�fica evidencia a experi�ncia pessoal na conjuntura das intera��es sociais e condutas culturais, averiguando o comprometimento cogitativo da(o) pesquisadora(o) ao expor a percep��o interior do fen�meno pesquisado.
Na trajet�ria de pesquisa a que este ensaio se conecta, a pot�ncia de mulheres e minorias para o meio acad�mico foi o ponto chave.� A escrita a partir da viv�ncia da pesquisadora tornou poss�vel que os atravessamentos vivenciados durante uma campanha pol�tica fossem relatados por meio das vivencias de uma mo�a que, durante o per�odo eleitoral, se deparou com enfrentamentos pol�tico-sociais. Problematizando a aus�ncia de mulheres na pol�tica, em especial das mulheres negras, um recorte pessoal � tramado a partir dos atravessamentos de um corpo que vai se tornando um corpo pol�tico, ou seja, quest�es pessoais s�o conectadas a quest�es sociais revelando a dificuldade da participa��o feminina nos espa�os p�blicos de poder. A escrita de si, como ato pol�tico, aproxima essas realidades das produ��es no meio acad�mico?
Segundo Mendes Chaves (1971), grupos minorit�rios s�o aqueles que de algum modo ou em algum setor das rela��es sociais, passam por algum n�vel de depend�ncia ou desvantagem por algum outro grupo, tido como �maiorit�rios�. Geralmente, grupos maiorit�rios provocam discrimina��es aos grupos minorit�rios, ambos s�o componentes de uma sociedade mais ampla. Assim, a �reflexividade consiste em nos voltarmos para nossas experi�ncias, identidades e rela��es a fim de considerarmos como elas influenciam nosso trabalho presente� (ADAMS et al, 2015, p. 30).
Todo este estudo em torno do sujeito, da escrita, da vida, da relev�ncia do autobiogr�fico conectado ao cultural, social e pol�tico, ao recriar a vida desta mo�a, nos faz chegar na autofic��o, tamb�m como conceito potente para um percurso metodol�gico que legitime o relato. A autofic��o � uma m�quina produtora de mitos do escritor, que funciona tanto nas passagens em que se relatam viv�ncias do narrador quanto naqueles momentos da narrativa em que o autor introduz no relato uma refer�ncia � pr�pria escrita, ou seja, a perguntar pelo lugar de fala (O que � ser escritor? Como � o processo de escrita? Quem diz eu?). Reconhecer que a mat�ria da autofic��o n�o � a biografia mesma e sim o mito do escritor, nos permite chegar pr�ximos da defini��o que interessa para nossa argumenta��o. Qual a rela��o do mito com a autofic��o? O mito, diz Barthes, �n�o � uma mentira, nem uma confiss�o: � uma inflex�o�. �O mito � um valor, n�o tem a verdade como san��o� (KLINGER, 2006, p. 55).
A indaga��o tenciona perspectivar n�o necessariamente o produto da realidade da pesquisa, mas sim o chamado �mito do pesquisador�, o sujeito coletor de dados, o interlocutor com predisposi��es a se ocultar atr�s de uma terceira pessoa. Assim sendo, alegar que a pesquisa � fic��o n�o findaria com um problema central, e precedente, qual seja, o da autoria. De acordo com Klinger (2006, p. 58),
O texto autoficcional implica uma dramatiza��o de si que sup�e, da mesma maneira que ocorre no palco teatral, um sujeito duplo, ao mesmo tempo real e fict�cio, pessoa (ator) e personagem. Ent�o n�o se trata de pensar, como o faz Phillipe Lejeune, em termos de uma �coincid�ncia� entre �pessoa real� e personagem textual, mas a dramatiza��o sup�e a constru��o simult�nea de ambos, autor e narrador. Quer dizer, trata-se de considerar a autofic��o como uma forma de performance.
Assim surge a concep��o de que uma verdade s� pode ser identificada enquanto uma inven��o, enquanto fic��o em exerc�cios do imagin�rio.
Assim, como pesquisadora, tenho exercitado esse lugar dram�tico em que �[...] a pesquisa assim pode ser percebida como um conto: um conto que conta um pesquisar, enquanto conta os feitos de uma voz que conta o que busca � e o drama se formula, e ganha for�a, na tens�o dos (des)encontros� (ESTEVES e AD�, 2020, p. 364).
Ap�s vivenciar todo esse percurso metodol�gico de escrever a vida, uma vida atravessada por v�rias outras vidas, procurei encontrar algo que de fato me fizesse sentir conectada com todo o trabalho de produ��o de meus �ndices de singularidade, minhas escreviv�ncias como mulher negra.
Escreviv�ncia
Acredito que a sensa��o de acolhimento que a escreviv�ncia me trouxe est� diretamente atribu�da ao fato de Concei��o Evaristo ser uma mulher negra que escreve sobre viv�ncias da popula��o negra, principalmente as mulheres, e de sua pr�pria vida, me causando uma imediata conex�o. Mais do que uma metodologia como pot�ncia de escrita de um objeto de pesquisa, a sua obra liter�ria me levou ao fasc�nio, possibilitando a reflex�o acerca de quest�es sociais que me potencializam enquanto militante partid�ria e social.
Escreviv�ncia, em sua concep��o inicial, se realiza como um ato de escrita das mulheres negras, como uma a��o que pretende borrar, desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz de mulheres negras escravizadas tinha sua pot�ncia de emiss�o tamb�m sob o controle dos escravocratas, homens, mulheres e at� crian�as. E se ontem nem a voz pertencia �s mulheres escravizadas, hoje a letra, a escrita, nos pertencem tamb�m. Pertencem, pois nos apropriamos desses signos gr�ficos, do valor da escrita, sem esquecer a pujan�a da oralidade de nossas e de nossos ancestrais. Pot�ncia de voz, de cria��o, de engenhosidade que a casa-grande soube escravizar para o deleite de seus filhos. E se a voz de nossas ancestrais tinha rumos e fun��es demarcadas pela casa-grande, a nossa escrita n�o. Por isso, afirmo: a nossa escreviv�ncia n�o � para adormecer os da casa-grande, e sim acord�-los de seus sonos injustos. (EVARISTO; NUNES, 2020, p. 12)
A express�o �escreviv�ncia� vem sendo debatida por pensadores e cr�ticos da literatura afro-brasileira. Em diversas pesquisas, a palavra apropria-se de v�rios significados, nem sempre referentes � composi��o lexical que nela se manifesta. De forma morfol�gica, d�-se entre a associa��o de �escrever� e �viver�, das perspectivas poss�veis pela enuncia��o de �escrever viv�ncias�, ou o fato de escrever vividos pelo eu que os resgata na escrita. A relev�ncia do termo como conceito vem crescendo devido �s variadas discuss�es que ele tem suscitado entre cientistas da literatura afro-brasileira, ganhando for�a a cada artigo, disserta��o, tese ou discuss�es sobre as escritas de Concei��o Evaristo.
Para investigar mais acerca do termo proposto por Evaristo, � necess�rio, primeiramente, notar como ele vem sendo explicado pela pr�pria autora. Assim como tamb�m � relevante inteirar-se sobre o ponto de vista de estudiosos que analisam as produ��es de Concei��o Evaristo. De acordo com o livro Escreviv�ncia: a escrita de n�s: reflex�es sobre a obra de Concei��o Evaristo, a express�o �escreviv�ncia� foi utilizada pela primeira vez pela autora �em uma mesa de escritoras negras no Semin�rio Mulher e Literatura, em 1995� (NUNES, 2020), fazendo refer�ncia ao VI Semin�rio Mulher e Literatura, ocorrido na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O termo foi relatado como uma t�cnica que rasura a ordem validada pela representa��o da �M�e Preta� que conta �hist�rias para adormecer a prole da Casa-grande�. Os caminhos da palavra correspondem a uma proposi��o de escrita liter�ria que procura macular o imagin�rio popular que enxerga a pessoa negra apenas nas fun��es atribu�das � subalternidade do sistema escravocrata. Est� dentro desse imagin�rio a figura da M�e Preta, que � obrigada a criar a prole da casa-grande, inclusive deixando de amamentar seus filhos para nutrir os filhos dos �sinh�s� e �sinh�s�. � importante ressaltar que mesmo amamentando, criando e contando hist�rias que embalavam essas crian�as, as negras escravizadas n�o estavam eximidas da viol�ncia acometida pelos senhores de escravos.
Em uma entrevista concedida ao Estado de Minas, em 2004, Evaristo diz que a escrita liter�ria desenvolvida por mulheres negras arca com uma forma de conjectura do que ficou invisibilizado e silenciado pela Hist�ria. A afirma��o de Concei��o Evaristo evidencia que o termo �escreviv�ncia� designa uma rela��o intr�nseca entre a a��o de escrita liter�ria e a rela��o de viv�ncia da popula��o negra do Brasil ao longo dos anos.��
�Essa ideia atravessa a obra po�tica e ficcional da escritora, levando-a ao recolhimento de lembran�as vivenciadas em sua inf�ncia, com sua fam�lia, recordando hist�rias contadas pela pr�pria m�e, tias, e outras mulheres que costuravam a rotina trabalhista com o fio da fantasia. A escrita da autora, portanto, usufrui de uma rica fonte de saber, a oralidade, que prepara a escreviv�ncia.
Em anota��es exibidas na exposi��o Ocupa��o Concei��o Evaristo realizada pelo Banco Ita� (2017), � poss�vel ler um trecho sem data, escrito a m�o pela autora, explicando o que seria para ela "escreviv�ncia�, naquele momento de sua vida, escrito em duas palavras �escre-viv�ncias�.
Minha escre-viv�ncia vem do quotidiano dessa cidade que me acolhe h� mais de 20 anos e das lembran�as que ainda guardo de Minas Gerais. Vem dessa pele-mem�ria � Hist�ria passada, presente e futura que existe em mim. Vem de uma teimosia, quase insana, de uma insist�ncia que nos marca e que n�o nos deixa perecer, apesar de. Pois entre a dor, a dor e a dor, � ali que reside a esperan�a. [�] Venho insistindo tamb�m em misturar literatura e vida nos cursos que fiz, o de bacharelado e licenciatura em Portugu�s-Literatura, UFRJ, e o de Mestrado em Literatura Brasileira, na PUC/RJ. (ITA� CULTURAL, 2019)
Observe que na cita��o, Evaristo recolhe os elementos que contribuem na forma��o do termo escreviv�ncia: vida e literatura. Na jun��o dos termos fica expl�cito que as experi�ncias vivenciadas atravessam o campo da literatura, em seu trabalho proposital com a linguagem, com a escrita.
Consciente do seu fazer liter�rio, Evaristo distende esse processo � escrita produzida por outras autoras, ao afirmar que a experi�ncia do povo negro motiva os sentidos dados por ela ao termo escreviv�ncia, tornando-se caracter�stica de processos de cria��o liter�ria, assumidos por subjetividades negras. Essa caracter�stica marcaria os prop�sitos da cria��o liter�ria afro-brasileira e a sua inten��o de acolher as experi�ncias vividas por negros e negras na composi��o de textos que se abrigam em diferentes g�neros. (FONSECA, 2020, p. 62-63)
A escreviv�ncia de Concei��o Evaristo cria um cen�rio de coletividade mesmo quando a viv�ncia � individual. Essa coloca��o afirma que em sua fic��o as personagens originam-se �profundamente marcadas por [sua] condi��o de mulher negra e pobre�. E, para enfatizar o que diz, Evaristo afirma em entrevista concedida � Biblioteca Nacional, em 2015:[3] �� desse meu lugar, � desse de �dentro para fora�, que minhas hist�rias brotam�.
Como fica evidenciado, o termo "escreviv�ncia�, que � debatido pela pr�pria autora desde o seu surgimento em 1995, o estabelece como um formato de sua escrita liter�ria, gradualmente torna-se uma pot�ncia apta a movimentar as estruturas de uma ordem liter�ria institu�da. O voc�bulo, ao perpassar dos debates em seu entorno, passa a expressar uma subjetividade de mulheres negras que pode ser uma estrat�gia discursiva pr�pria a percep��o de um eu negro, quanto aclamar uma voz coletiva negra que se incube de relatar as experi�ncias femininas negras. As vertentes poss�veis ao termo navegam nos g�neros envoltos na no��o da �escrita de si�, assim como apresentados na autobiografia e na autofic��o, mas tamb�m permitem interatividades com outros termos e express�es que atendem os elos entre sujeitos negros e modos de experienciar a mem�ria e a pr�pria vida.�
O encontro com esta proposta me trouxe a sensa��o de direcionamento do porvir de uma vida atravessada por um pleito eleitoral. Compartilhar as dores, experi�ncias e emo��es da mo�a, me fazem sentir que essa escrita n�o pertence a quem est� desenvolvendo-a, pertence a todas que vieram antes, caminham agora e vir�o depois de mim.
Al�m da escreviv�ncia, a pot�ncia da escrita por meio da compreens�o da interseccionalidade que constr�i a mo�a, me possibilitou ter um novo olhar sobre os corpos pol�ticos, principalmente os pertencentes �s mulheres negras.
A� interseccionalidade� � uma� conceitua��o� do� problema� que� busca capturar as consequ�ncias estruturais e din�micas da intera��o entre dois� ou� mais� eixos� da� subordina��o. Ela� trata� especificamente� da forma pela� qual o� racismo,� o� patriarcalismo,� a opress�o de� classe� e outros� sistemas� discriminat�rios� criam� desigualdades� b�sicas� que estruturam as posi��es relativas de mulheres, ra�as, etnias, classes e outras. Al�m disso, a interseccionalidade trata da forma como a��es e pol�ticas espec�ficas� geram� opress�es� que� fluem� ao� longo� de� tais eixos, constituindo aspectos din�micos ou ativos do desempoderamento. (CRENSHAW, 2002, p. 177)
O que Crenshaw (2002) e Evaristo (2020) nos disseram, mostra como a mulher negra � colocada nessa posi��o de subalterniza��o, sendo a mo�a e a popula��o negra como um todo, atravessados por m�ltiplas opress�es, como a classe, religi�o, origem, g�nero, sexualidade, etc. O conceito de interseccionalidade vem de um enfrentamento ao processo de descoloniza��o desde que o termo emergiu, passando a beber de uma fonte pr�pria de saber, n�o europeia, fendendo, assim, com o �privil�gio epist�mico�, portanto, a interseccionalidade � metodologia para pesquisa de uma realidade natural ou cultural mediante verifica��o, tal qual a escreviv�ncia,� proporcionando, segundo Akotirene (2019, p. 19), �instrumentalidade te�rico-metodol�gica � inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado�.
Tal processo de descoloniza��o, por meio da escreviv�ncia e interseccionalidade, se faz necess�rio para desmistificar do imagin�rio popular a vis�o que a sociedade possui em torno das mulheres negras, pois segundo a intelectual negra conhecida por bell hooks,[4] desde o per�odo da escravid�o at� a atualidade, o corpo da mulher negra �tem sido visto pelos ocidentais como o s�mbolo quintessencial de uma presen�a feminina �natural�, org�nica, mais pr�xima da natureza, animal�stica e primitiva� (hooks, 1995, p. 468). Esse discurso atua para chancelar a proibi��o da presen�a de mulheres negras no campo da intelectualidade, pois �mais do que qualquer grupo de mulheres nesta sociedade, as negras t�m sido consideradas �s� corpo, sem mente�� (hooks, 1995, p. 469). Diante do exposto, hooks argumenta que � fundamental para a luta de liberta��o das mulheres negras, ocupar esse espa�o de produ��es cient�ficas, considerados intelectuais. Nessa l�gica, Concei��o Evaristo exp�e a relev�ncia de que mulheres como ela, sua m�e, como Carolina de Jesus,[5] se atestem enquanto escritoras e pesquisadoras.
Quando mulheres do povo como Carolina, como minha m�e, como eu tamb�m, nos dispomos a escrever, eu acho que a gente est� rompendo com o lugar que normalmente nos � reservado. A mulher negra, ela pode cantar, ela pode dan�ar, ela pode cozinhar, ela pode se prostituir, mas escrever, n�o, escrever � alguma coisa... � um exerc�cio que a elite julga que s� ela tem esse direito. Escrever e ser reconhecido como um escritor ou como escritora, a� � um privil�gio da elite. (Evaristo, 2010)
Assim como eu me senti conectada � escrita de Concei��o Evaristo, a escritora se refere em const�ncia � escrita realizada por Carolina Maria de Jesus, ela relata que sua fam�lia lia Carolina �n�o como leitores comuns, mas como personagens das p�ginas de Carolina. A hist�ria de Carolina era nossa hist�ria� (Evaristo, 2010). Devido a identifica��o com a viv�ncia de Carolina Maria de Jesus, por ser uma mulher negra, moradora da favela, que escreveu literatura. Essa narrativa de Concei��o Evaristo se mostra como parte de uma �escola� de escritoras negras oriundas de favelas, criando uma tradi��o liter�ria que exerceu sobre ela �o caminho de uma escrita inaugurada por Carolina que escreveu tamb�m sob a forma de di�rio, a mis�ria do cotidiano enfrentada por ela�, validando suas experi�ncias como forma de produ��es liter�rias e cient�ficas.
Concei��o relata que trabalhou como dom�stica desde os oito anos de idade, al�m de desempenhar as fun��es atribu�das ao trabalho do lar, levava as crian�as da vizinhan�a a escola e ensinava-as a fazerem as li��es de casa o que �rendia tamb�m uns trocadinhos� (Evaristo, 2009, p. 1). Tamb�m participava com a m�e e a tia �da lavagem, do apanhar e do entregar trouxas de roupas nas casas das patroas� (Evaristo, 2009, p. 1). Essa parte de sua vida, rendeu um belo depoimento escrito, memoroso pela forma que escolhe relat�-lo:
Mais um momento, ainda bem menina, em que a escrita me apareceu em sua fun��o utilit�ria e �s vezes, at� constrangedora, era no momento da devolu��o das roupas limpas. Uma leitura solene do rol acontecia no espa�o da cozinha das senhoras:4 len��is brancos, 4 fronhas, 4 cobre-leitos, 4 toalhas de banho, 4 toalhas de rosto, 2 toalhas de mesa, 15 calcinhas, 20 toalhinhas, 10 cuecas, 7 pares de meias, etc, etc, etc. As m�os lavadeiras, antes t�o firmes no esfrega-torce e no passa-dobra das roupas, ali diante do olhar conferente das patroas, naquele momento se tornavam tr�mulas, com receio de terem perdido ou trocado alguma pe�a. M�os que obedeciam a uma voz-conferente. Uma mulher pedia, a outra entregava. E quando eu, menina, testemunhava as toalhinhas antes embebidas de sangue, e depois, j� no ato da entrega, livres de qualquer odor ou n�doa, mais a minha incompreens�o diante das mulheres brancas e ricas crescia. As mulheres de minha fam�lia, n�o sei como, no min�sculo espa�o em que viv�amos, segredavam seus humores �ntimos. Eu n�o conhecia o sangramento de nenhuma delas. E quando em meio �s roupas sujas, vindas para a lavagem, eu percebia cal�as de mulheres e min�sculas toalhas, n�o vermelhas, e sim sangradas do corpo das madames, durante muito tempo pensei que as mulheres ricas urinassem sangue de vez em quando. (Evaristo, 2005, p. 2)
Nessa passagem � poss�vel compreender a presen�a da interseccionalidade que emerge nas produ��es de Concei��o Evaristo, por meio das quest�es de classe, ra�a e g�nero. Observe como a escritora caracteriza as �mulheres brancas e ricas� � as �patroas� � de forma singular, retratando-as como distintas das mulheres de sua fam�lia � as lavadeiras � que em seu imagin�rio possu�am uma caracter�stica biol�gica diferente, um estranhamento: urinar sangue. Essa diferen�a n�o denuncia uma simples confus�o infantil, mas sim a rela��o de subalternidade em que a menina vivenciava ao entrar em contato com �as toalhinhas antes embebidas de sangue� de suas patroas, em contrapartida, ela n�o tinha contato semelhante com as mulheres de sua pr�pria fam�lia, pertencentes a sua mesma classe e ra�a. As diferen�as entre o ser mulher que Concei��o relata nesse trecho de sua escrita s�o conectadas por ela � fun��o �utilit�ria� e �constrangedora� da escrita. Tal constrangimento se faz �til � medida que revela as rela��es de poder que a autora deseja denunciar.
A rela��o de Concei��o com as mulheres de sua fam�lia aparece em diversos trechos de suas obras quando o conv�vio entre elas � retratado, a saber:
Como ouvi conversas de mulheres! Falar e ouvir entre n�s era a talvez a �nica defesa, o �nico rem�dio que possu�amos. Venho de uma fam�lia em que as mulheres, mesmo n�o estando totalmente livres de uma domina��o machista, primeiro a dos patr�es, depois a dos homens seus familiares, raramente se permitiam fragilizar. Como �cabe�a� da fam�lia, elas constru�am um mundo pr�prio, muitas vezes distantes e independentes de seus homens e mormente para apoi�-los depois. Talvez por isso tantas personagens femininas em meus poemas e em minhas narrativas? Pergunto sobre isto, n�o afirmo. (Evaristo, 2005, p. 4)
����������� Tais relatos
produzem pot�ncias de escrita, assim, notamos que ao erguer a voz autoral para
denunciar desigualdades sociais, ao passo que expressa seus atravessamentos
pertencentes ao sociocultural, Concei��o Evaristo propicia abertura de espa�os
em que vozes socialmente negligenciadas, como � o caso das mulheres negras,
tornam-se aud�veis por meio de suas escreviv�ncias produzindo uma escrita que
denuncia as consequ�ncias sociais de um Brasil que n�o trata a popula��o negra
com devido respeito desde o per�odo da escravid�o. E n�o seria este um
importante movimento de escrita para a p�s-gradua��o brasileira?
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This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)
[1] Atriz. P�s-Doutora em Teatro pela Universidade Federal de Uberl�ndia. Doutora e Mestre em Educa��o pelo Programa de P�s-Gradua��o em Educa��o da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: renataferreira@mailuft.edu.br ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6433-6564
[2] Mestra em Comunica��o e Sociedade - PPGCOMS/UFT; Graduada em Administra��o pela Universidade Federal do Tocantins - UFT E-mail: thamireslima@mail.uft.edu.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2096-3846
[4] bell hooks� � o pseud�nimo da escritora norte-americana Gloria Jean Watkins, que o adota grafado em letras min�sculas � grafia aplicada tamb�m aqui.
[5] Carolina Maria de Jesus (1914-1977) mulher negra, perif�rica, autora do livro Quarto de despejo: di�rio de uma favelada (1950). Traduzido em 13 idiomas, o livro narra as mazelas e discrimina��es vivenciadas pela autora na periferia de S�o Paulo.