APRENDER COM A INFÂNCIA A EDUCAR COMO OBRA DE ARTE

 

 

LEARNING WITH CHILDHOOD TO EDUCATE AS A WORK OF ART

 

 

Leiliane Domingues da Silva[1]

Universidade Estadual do Rio de Janeiro

 

 

Dagmar de Mello e Silva[2]

Universidade Federal Fluminense

 

 

 

Resumo

O presente artigo propõe uma intersecção entre arte e educação, bem como pensar a aprendizagem como uma experiência artística, dispositivo estético para transpor a rigidez dos currículos e a reprodutibilidade de métodos e estratégias pedagógicas que concebem a aprendizagem por representação. Apresentamos a infância como uma estética de existência cujas formas de atividade sobre si expõem uma possibilidade ética para a vida. Nesse sentido, convidamos a escola a aprender com as crianças para reinventar-se em suas propostas pedagógicas ofertadas às crianças. Este é um estudo teórico que se pauta em observações vividas em contexto escolar, cujas fontes bibliográficas permitiram o aprofundamento de discussões que apontam para o aprender como obra de arte.

Palavras-chave: Educação; infância; Arte; Aprendizagem.

 

 

 

Abstract

This article proposes an intersection between art and education, as well as thinking about the learning as an artistic experience, an aesthetic device to transpose the rigidity of school curriculum and the reproducibility of pedagogical methods and strategies that conceive learning by representation. We present childhood as an aesthetics of existence whose “forms of activity on the self” that expose an ethical possibility for life. In this sense, we invite the school to learn with the children to reinvent itself for what pedagogical proposals offered to children. This is a theoretical study that is based on observations lived in a school context whose bibliographic sources allowed the deepening of discussions that point to learning as a work of art.

Keywords: Education; Childhood; Art; Learning.

 

 

A criança pede para sair da sala de aula e se dirige ao bebedouro. No trajeto pelo pátio, seu corpo se movimenta de um jeito muito próprio, na cadência do seu caminhar evidencia-se um sacolejo próprio da agitação infantil, enquanto sopra os lábios tentando assobiar... Em seu caminho, está um banco, não hesita em subir e em seguida dá um baita pulo para descer. Sai correndo, muda o ritmo da travessia, agora, como um equilibrista na corda bamba de um circo, segue seu percurso com um pé após outro, equilibrando-se sobre a beirada do canteiro de flores, até que enxerga um formigueiro, se agacha e fica à espreita a observar; parece querer somente saciar a curiosidade, o desejo de desvendar mais um dos mistérios da vida. Começa a contar: uma, duas, três..., silencia-se por um curto tempo, como a imaginar um enredo para o ziguezaguear das formigas, por fim, cantarola e faz onomatopeias numa tentativa de comunicação com o formigueiro... Como se suspendesse o tempo, parece que mais nada lhe importa, nem mesmo a sua vontade inicial de beber água. Devido à demora, a professora sai em busca do aluno na expectativa dele estar a fazer alguma arte! Poder-se-ia dizer que de fato estava, pois, assim como no ato de criação artística, a criança encontrava-se numa espécie de entrega, imerso em um estado de atenção que “vagueia, experimenta uma errância, fugindo do foco [...] indo na direção de um campo mais amplo, habitado por pensamentos fora de lugar, percepções sem finalidade, reminiscências vagas, objetos desfocados e ideias fluidas, que advêm do mundo interior ou exterior” (KASTRUP, 2004, p.08). Precisou ser cutucado para poder sair de seu estado de encantamento e se deixar conduzir pela mão da professora. De volta a sala de aula, o corpo infante retorna ao aprisionamento da carteira enfileirada para executar cópias das informações que se encontravam expostas no quadro negro, reestabelecendo um modo de atenção focal, demandada para a realização de tarefas.

A narrativa nos diz sobre o quão as crianças têm seus próprios modos de ser e habitar o mundo pela poiesis[3], explorando os espaços através dos seus sentidos. Experimentando imagens, cheiros, temperaturas, texturas, gostos, sons, ritmos e movimentos das coisas que lhes atravessam como um evento inaugural.

Esse olhar da infância nos conduziu a obra de Foucault, quando este nos apresenta uma perspectiva ética que tece uma estreita relação entre a arte e um modo peculiar de conduzirmos nossa existência. Perspectiva esta que nos inspirou na tessitura de uma analogia em que a infância se mostra como uma estética de existência que ensina a escola sobre uma ética aprendizagem.

Ao propor a condução da vida como uma obra de arte, o filósofo francês faz uma distinção clara entre as noções de moral e o cuidado de si na relação consigo. A moral designaria um “conjunto sistemático (...) de regras e valores” (FOUCAULT, 1984, p. 36) que instituem modos prescritivos de viver, tais como a Família, a Escola e a Igreja, dentre outras instituições. No entanto, existiria “uma certa relação consigo” através de “formas de atividade sobre si” que constituiriam uma “estética de existência” (ibid, p. 40) e que arriscaríamos dizer ser próprio da infância.

Todavia, é comum ver esse impulso infantil ser talhado pelas escolas, ao desconsiderar e menosprezar a potência inventiva da criança em suas propostas pedagógicas. Considerando que para aprender a criança precisa ter foco, prestar atenção às tarefas que devem ser executadas com o máximo de assertividade.

 

O que prevalece nesse domínio é o entendimento da cognição como processo de solução de problemas e, no que diz respeito à atenção, a ênfase recai sobre seu papel no controle do comportamento e na realização de tarefas. Ela é a condição para que se dê o processo de aprendizagem, a solução de problemas e o desempenho de tarefas cognitivas. Tomada como uma espécie de processo subsidiário à aprendizagem e estando a seu serviço, sua análise é restrita à atenção voltada para objetos e estímulos do mundo externo, ou seja, para a captação e busca de informações. (KASTRUP, 2004, p.8)

 

Esse modelo de aprendizagem privilegia uma educação que reproduz o que já está posto como verdade única, destituindo a criança da possibilidade de exercer práticas de pensamento inventivas, múltiplas formas de se relacionar com os signos que são expressos pelo mundo.

Nesse intento, a escola deveria ser um espaço de vivências, de convocação do sentir, do experienciar, para que algo de diferente aconteça em seus espaços, talvez assim a escola aprendesse, com o olhar infantil, a enxergar as coisas pelas vias da invenção. Pensar outros possíveis para a educação, desprender-se do olhar adultocêntrico e valorizar tudo aquilo que é imanente à infância[4], ou seja, a invenção contida no brincar, carrega em si a função da arte, já que: “A arte, como pensamento, se revela [...] um intercessor que nos convoca a múltiplas visões de mundo, uma experiência estética que nos acontece por sua aptidão de dizer o indizível” (SILVA, 2011, p.131).

Tomamos aqui a infância tal qual a arte, como fenômeno inaugural e original, que institui um olhar que vira do avesso aquilo que é dado como certo, que está à disposição para viver experiências inusitadas, a curiosidade necessária para conhecer por descoberta, dando novos sentidos àquilo que muitas vezes é considerado insignificante, “dando respeito” ao encantamento pelas coisas que são consideradas desimportantes para os adultos.

 

Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais do que as dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz e por isso, meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: amo os restos como as boas moscas(BARROS, 2015, p.122)

 

Barros (2006) afirma que é pelo encantamento que podemos medir a importância das coisas, e Bondía (2010) enfatiza que só podemos conhecer aquilo que nos afeta, que nos atravessa. É nesse sentido, que a arte favorece uma aprendizagem transformadora. A partir de uma atenção aberta as nossas sensações. Pensar e degustar o mundo, como aponta Barthes (2004), sentir de forma plena, as impressões e reações de um corpo com aquilo com o que interage. “Assim é que a travessia pelas vias da arte, levada a efeito pelos professores, constitui-se em um exercício profissional poético, compromissado com um modo criativo capaz, não só de dizer a realidade do mundo dos homens e mulheres, mas de reinventá-lo” (SILVA, 2011, p.132).

 

O menino estava preste a pisar no velho continente e conhecer de perto os lugares que para a maioria das pessoas do continente Sul-Americano só são acessíveis através de fotografias e imagens fílmicas. Era um menino privilegiado. Diferentemente da maioria dos meninos de seu país, o garoto de oito anos estava realizando sua primeira viagem internacional, iria testemunhar in loco, aquilo que futuramente lhe será apresentado pela escola, através dos livros de história. Por enquanto, essas questões não faziam tanto sentido para a criança. Suas expectativas estavam voltadas para a aventura de voar, comer coisas gostosas e visitar parques temáticos. Para os pais da criança, aquela seria uma oportunidade de proporcionar ao filho a chance de adquirir uma bagagem cultural que lhe beneficiaria quando adulto. A primeira visita que iriam realizar, não parecia tão encantadora para uma criança de oito anos. Seria no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, local em que está exposta a obra Guernica de autoria de Pablo Picasso. Com 349 cm de altura por 776,5 cm de comprimento, a obra é grandiosa em tamanho, mas, principalmente, como expressão artística e de resistência contra o autoritarismo e ascensão do fascismo na Europa. O quadro impacta o espectador por apresentar a tragédia e o flagelo da guerra em suas terríveis consequências, sob a luz de uma lâmpada elétrica, símbolo da modernidade e do progresso técnico. Os pais querem passar para o filho as informações necessárias para que ele possa compreender o que a obra representa historicamente, mas diante de Guernica, o menino pede silêncio para os pais. Contempla as imagens por alguns instantes e fala: - Não precisa explicar!!! Eu já entendi tudo!!! E o cara não precisou usar nem uma gota de vermelho[5]!!!

 

A arte é uma experiência estética que nos leva a conhecer para além dos princípios da razão[6]. Poderíamos dizer que através da arte, podemos conhecer mesmo sem a presença das palavras.

 

Talvez seja preciso pensar a experiência como o que não se pode conceituar, como o que escapa a qualquer conceito, a qualquer determinação, como o que resiste a qualquer conceito que trata de determiná-la… A experiência seria o modo de habitar o mundo de um ser que existe, de um ser que não tem outro ser, outra essência, além da sua própria existência corporal, finita, encarnada, no tempo e no espaço, com outros. (BONDÍA IÁ, 2014, p.43)

 

Assim é com a infância em seu modo de habitar o mundo, insistindo em questionar e colocar o óbvio de pernas para o ar, enquanto a escola quer as coisas em seu devido lugar.

E se a escola aprendesse com as crianças e reinventasse uma educação por outros modos? Modos mais desejantes e prazerosos, que emperrassem a marcha apressada dos saberes instituídos pelos tempos demarcados por currículos enrijecidos e inertes, e inventasse novos ritmos e cadências que liberassem os corpos e as mentes, na leveza e alegria de um aprender como obra de arte[7]? Uma educação pelo movimento de travessia:

 

[...] que se atualiza no espaço mental/físico, segundo ventos e tempestades sobre dunas, que findam por deslocar os mangues, nomadizando-os, em um movimento mínimo de migração/emigração, mas que tem a força transformadora do processo de territorialização/desterritorialização ou transversalidade. (LINS, 2012, p.23)

 

São nos encontros inesperados das experiências que o olhar é forçado a ver e pensar sobre o que vê, que os pensamentos retos despencam em pedaços que podem compor mosaicos que nos ensinam que o mundo está sempre se fazendo por novas composições, na suspensão e desaceleração do tempo, no sentir pulsante da vida em transformação, no acontecimento que muda tudo o que aí está e nos coloca sem premeditações diante do por vir, para que os processos de aprendizagem se façam sem fronteiras.

 

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar, parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar nos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (BONDÍA, 2002, p.3)

 

É essa a educação que queremos! Aquela que está atenta às singularidades de cada aluno, que escuta as vozes curiosas de crianças que possuem anseios e desassossegos. Que associe sabor ao saber em aulas[8] inventivas, movidas pelo apetite e pelo desejo, pois “da mesma forma que sem fome não apreendemos a comer, e sem sede não aprendemos a beber água, sem “motivação” não conseguimos aprender” (IZQUIERDO, 2011, p.32).

Traçamos assim, as linhas conceituais para provocarmos essa conversa sobre infância e escola como territórios de existências por onde transitam encontros e afetos que transmutam por modos inventivos, as relações entre o mundo e as pessoas; como diz Barros (2006), “uma invenção que sirva para aumentar o mundo”.

 

Dizem que o que todos procuramos é um sentido para a vida. Não penso que seja assim. Penso que o que estamos procurando é uma experiência de estar vivos, de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância no interior do nosso ser e da nossa realidade mais íntima, de modo que realmente sintamos o enlevo de estar vivos. (CAMPBELL, 1990, p.5)

 

Nisto posto, a arte, se apresenta como caminho para a criação de outros possíveis, através das diferenças nos modos de sentir, pensar e fazer da aprendizagem, movimentos que inventam, questionam e desenham novos territórios a partir dessas experiências. Processos que nos movem, nos conectam e dão sentido as nossas existências. Perceber e compreender o cotidiano a partir de nossas inquietudes, por meio de problematizações, que “[...] nos invadem quando forças do ambiente em que vivemos e que são a própria consistência da nossa subjetividade, formam novas combinações, promovendo diferenças de estado sensível em relação aos estados que nos situávamos” (ROLNICK, 1995, p. 5).

 

Inventando travessias, produz efeitos de margem: fim das continuidades e ultrapassagem das fronteiras. Encontra mistérios. Cria outras materialidades para os fazeres-saberes. Produz coletividades anômalas, idades bastardas, pensamentos vagos: além de Bem e Mal. Estabelece ressonâncias, articulações, encontros, traduções, transduções entre elementos dos diversos domínios culturais. (CORAZZA, 2010, p. 147)

 

A aprendizagem como obra de arte, desconhece os limites do que pode o corpo e o pensamento, num movimento desordenado e descontínuo, de onde “voltamos renascidos, de pele mudada” (NIETZCHE, 2001, p.14), que “deixa às margens o aprendido para arriscar viver no risco do (des)aprender de novo, viver de outro modo, ou, simplesmente viver” (COSTA, 2013, p. 159), de forma arteira e prazerosa, os encontros e afetos vivenciados no chão da escola, onde “todo vivo infectado torna-se ele mesmo centro de propagação; cada um torna-se um centro potencial de um novo processo, que não esgota sua causa, mas a regenera à medida que se produz” (STENGERS, 1987, p.18).

Dessa forma, “a arte não é um alvo, mas um atrator caótico” (KASTRUP, 2001, p.19) que recusa o previsível, atuando por abalos, inquietações, estranhamentos. Ela é do âmbito do viver com intensidade o tempo presente, nos forçando a pensar, fazer e ser diferente, pois é no “encontro de diferenças, num plano de diferenciação mútua, em que tem lugar a invenção de si e do mundo” (KASTRUP, 2001, p. 20).

 

Sem algo que force a pensar, sem algo que violente o pensamento, este nada significa. Mais importante do que o pensamento é o “dá que pensar”. Mas o poeta aprende que o primordial está fora do pensamento, naquilo que o força pensar. O leitmotiv do Tempo redescoberto é a palavra forçar: impressões que nos forçam a olhar, encontros que nos forçam a interpretar, expressões que nos forçam a pensar”. (DELEUZE, 2006, pp.88-89)

 

Por conseguinte, a sala de aula é compreendida como território de afetos compartilhado, “lugar onde problematizamos a experiência estética e investigamos as práticas como processos criativos transformadores de corpos e de relações” (ALVES; CARVALHO, 2015, p. 231).

 

É possível pelas brechas, pelas fissuras em sala de aula, pelo entre lugar, pelo meio da ação educativa, promover processos inventivos e criadores e fazer a diferença escorrer, pois é nesse espaço da fronteira que se pode pensar uma educação em trânsito [...] (BRITO, 2015, p. 35)

 

Assim, a sala de aula pode assumir diferentes facetas: oficina, ateliê, galeria, canteiro, sítio arqueológico de escavação de memórias, no “favorecimento de espaços de formação voltados à experimentação artística de um currículo, concebido como expressão vívida de formas singulares, de sensibilidade, expressão estética criação do novo na educação” (COSTA, 2013, p. 150), produzindo fendas para a invenção, potências criadoras, linhas de fuga que escapem das estagnações e que se abrem para os devires.

 

Devir é um nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo, seja de justiça ou de verdade. Não há um termo do qual se parta, nem um ao qual se chegue ou ao qual se chegue. Tampouco dois termos intercambiantes.  A pergunta ‘o que você devém?’ é particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se transforma, aquilo em que ele se transforma muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, de núpcias entre dois reis. (DELEUZE apud ZOURABICHVILI, 2004. p. 48)

 

Diante do exposto até aqui, cabe a pergunta: a que se destinaria o professor? Entendemos que o professor seria um agenciador que faz circular afetos, um atrator[9] de afetos. De acordo com Kastrup (2001, p.26):

 

O professor é um atrator, embora o atrator não seja necessariamente um professor. O atrator é uma função: define-se por seu poder de atrair, de arrastar consigo. [...] No caso de haver um professor, ele atrai para a matéria, e não para um saber pronto. Ele é alguém que exerce a função de conduzir o processo, a expedição a um mundo desconhecido, de fazer acontecer o contato, de possibilitar a intimidade, de acompanhar, e mesmo de arrastar consigo, de puxar. Não para junto de si, mas para junto da matéria, seguindo acompanhando sua fluidez.

 

Ao professor como atrator, cabe considerar às urgências e questões de seus alunos, os interesses que os movem; para que os processos de aprendizagem se tornem cirandas cheias de vida, que pulsem por meio dos encontros entre diferenças que promovam vibrações, sensações, emoções e conhecimentos, jamais cabíveis nos modelos sistematizados que se prendem em significações que ofuscam a liberdade de imaginar múltiplos outros sentidos com os signos que nos interpelam. Enfim, um professor atrator sabe que a infância tem muito a nos ensinar:

 

[...] a infância não como aquilo que olhamos, senão como aquilo que nos olha e nos interpela. A infância entendida como o outro que nasce e que é aquilo que, ao olharmos, nos coloca em questão, tanto em relação àquilo que somos quanto em relação a todas essas imagens que construímos para classifica-la, para excluí-la, para nos protegermos da presença incômoda, para enquadrá-la em nossas instituições, para submetê-la às nossas práticas e, no limite, pra fazê-la como nós mesmos, isso é, para reproduzir o que ela pode ter de inquietante de ameaçadora. (BONDÍA , 2010, p.16)

 

Compreendemos a arte, como presença estética, capaz de nos transpor da rigidez e reprodutibilidade dos métodos, das técnicas e das tradicionais atividades pedagógicas de ensino, desprovidas de vida e de desejo, para “dissolver as formas instituídas junto a uma inventividade, a uma problematização do mundo, do conhecimento e da educação” (CLARETO; NASCIMENTO, 2012, p.14).

 

A vida concebida segundo esquemas rígidos segundo uma ritualização do cotidiano, uma hierarquização definitiva das responsabilidades, em suma, a vida coletiva serializada pode se tornar uma tristeza desesperadora [...]. É surpreendente constatar que, com as mesmas notas microssociológicas, pode-se compor uma música institucional completamente diferente [...]. E começamos a sonhar com o que poderia se tornar a vida nos conglomerados urbanos, nas escolas, nos hospitais, nas prisões, etc... Se, ao invés de concebê-los na forma de repetição vazia, nos esforçássemos em reorientar sua finalidade no sentido de uma re-criação interna permanente. (GUATTARI, 2012, p.165)

 

Nas palavras de Rilke (2007, p.192), “a arte é infância. Arte significa não saber que o mundo já existe, e fazer um. Não destruir nada que se encontra, mas simplesmente não achar nada pronto. Nada mais que possibilidades. Nada mais que desejos. E, de repente, ser realização, ser verão, ter sol. Sem que se fale disso, involuntariamente. Nunca ter terminado. Nunca ter o sétimo dia. Nunca ver que tudo é bom”.

 

Era mais um encontro do projeto “Filosofia com crianças”. A turminha do segundo ano estava sentada em círculo. As coordenadoras apresentaram o livro que iriam trabalhar naquele dia. O livro tinha como título: “A grande questão” de autoria de Wolf Erlbruch. A cada virada de página iam surgindo diferentes personagens que respondiam qual era sua 'grande questão' - por que nascemos e vivemos?

Os pais, a avó, o gato, o soldado, a pedra, o marinheiro... cada um tinha sua própria resposta. Com extrema delicadeza e inteligência, Wolf Erlbruch vai colocando o leitor na condição de um 'entrevistador', mas também, os conduz a pensar sobre suas próprias “grandes questões”. Ao final do livro as coordenadoras do encontro provocam as crianças para pensarem a respeito de suas “grandes questões”. Todas querem falar e exporem suas respostas. Apenas um menininho timidamente levanta o dedo enquanto os demais disputam a palavra. Quando interpelado por uma das coordenadoras ele responde demonstrando uma certa frustração: - Tia eu não tenho uma grande questão... A mulher pondera que isso não seria um problema. Que nem sempre temos resposta para tudo e que talvez um dia ele encontraria sua própria questão, mas que naquele momento isso não seria uma obrigação. O tempo passou, muitos encontros aconteceram. Encontros em que as crianças puderam expor seus dilemas filosóficos. Até que um dia, quando nem mais lembrávamos daquele episódio, o menino pede a fala com uma grande empolgação e diz: - Tia eu já tenho minha grande questão!!!

A coordenadora lembra das palavras do artista plástico Hélio Oiticica (1986), “o artista, menos que aquele que cria, é quem propõe, motiva e orienta a criação. O artista não é mais o que assina a obra, mas o que desencadeia experiências coletivas”.

 

Aprender como obra de arte, a exemplo do menino que insiste em encontrar sua grande questão e do artista plástico que nos inspira a pensar a função do mestre nesse processo, talvez consista na tarefa de realizar problematizações que possam gerar infinitas novas grandes questões; a serem inventadas por nossos alunos e alunas, como a originalidade da criança que se questiona acerca da vida, como se fosse sempre uma primeira vez.

 

 

REFERÊNCIAS

 

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[1] Mestre em Diversidade e Inclusão pela Universidade Federal Fluminense. Professora orientadora do Curso de Pós-graduação Especialização em  Didática e Práticas de Ensino e Tecnologias Educacionais na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri,Tutora do Curso de Pedagogia da Fundação CECIERJ/UERJ, do Curso de Segunda Licenciatura em Educação Especial da Universidade Federal de São Carlos e  do Curso de Pós-graduação em Educação  Inclusiva e Especial da Universidade Federal de Lavras . Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3764-8818 E-mail: leilianedomingues@gmail.com

[2] Professora Associada da Universidade Federal Fluminense - Faculdade de Educação/SFP, professora permanente dos programas de Pós-graduação - Mestrado Profissional em Diversidade e Inclusão (CMPDI) e Programa de Pós-graduação de Doutorado em Ciência, Tecnologia e Inclusão (PGCTIn). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5863-3607 E-mail: dag.mello.silva@gmail.com

[3] A palavra poiesis era referida pelos filósofos hedonistas como criação. Posteriormente, como arte da poesia e faculdade poética, atividade que revela a beleza do espírito.

[4] Mesmo concordando com a Sociologia das infâncias, de que existem várias infâncias, múltiplos modos de viver a infância, em alguns momentos dessa escrita a palavra infância aparecerá no singular por estarmos nos referindo a uma condição que a etimologia do termo nos remete, ou seja, no latim a infantia é composta pelo verbo fari, falar e pela negação - in. O infans é aquele que ainda não adquiriu “o meio de expressão próprio de sua espécie: a linguagem articulada” (GAGNEBIN, 1997, p. 87). Nossa tese é de que a infância é uma condição da vida que ainda não está impregnada pelas verdades discursivas morais de sua cultura, portanto, se encontra em uma condição que, diferentemente do adulto, se dispõe para o mundo de forma aberta, sem juízos prévios.

[5] Para quem não conhece a obra, Guernica é uma pintura monocromática com nuances de preto, cinza, branco.f

[6] A razão humana funciona baseada em três princípios que permitem a formulação de pensamentos para compreensão da realidade e para a comunicação. Princípio de identidade que é a capacidade que a alma humana possui de especificar, separar e enumerar os elementos de realidade, o Princípio da não contradição que diz que um elemento identificado não pode ser o contrário de si próprio e o. Princípio do terceiro excluído regra que afirma que um elemento identificado, só pode ser pensado como si próprio e como seu inverso, excluindo qualquer outra possibilidade. Por isso, entendemos que a arte é o espaço/tempo em que tudo é possível, inclusive a ruptura com esses princípios.

[7] Trata-se de elaborar um “trabalho de nós sobre nós mesmos enquanto seres livres.” (FOUCAULT, 2008, p. 575)

[8] Deleuze conclui que uma aula “é uma espécie de matéria em movimento musical, em que cada grupo aprende o que lhe convém. Não é tudo que convém a qualquer um. Uma aula é emoção. Se não há emoção, não há inteligência, nenhum interesse, não há nada” (Apud DOSSE, 2010, p. 291).

[9] Termo oriundo da Teoria do Caos que parte da análise de turbulência de fluidos, o conceito de atrator é muito utilizado por Gilles Deleuze por apresentar características fractais e não-lineares, cuja relação de vários vetores, aparentemente aleatórios, resultam em padrões imprevisíveis. O exemplo mais conhecido de atrator é o efeito borboleta. Alegoria para descrever um fenômeno da sensibilidade em relação a pequenas perturbações nas condições iniciais, segundo a qual o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode desencadear uma sequência de fenômenos meteorológicos que provocarão um tornado no Texas, por exemplo.