APRENDER COM A INF�NCIA A EDUCAR COMO OBRA DE ARTE
LEARNING WITH CHILDHOOD TO EDUCATE AS A WORK OF ART
Leiliane Domingues da Silva[1]
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Dagmar de Mello e Silva[2]
Universidade Federal Fluminense
Resumo
O presente artigo prop�e uma intersec��o entre arte e educa��o, bem como pensar a aprendizagem como uma experi�ncia art�stica, dispositivo est�tico para transpor a rigidez dos curr�culos e a reprodutibilidade de m�todos e estrat�gias pedag�gicas que concebem a aprendizagem por representa��o. Apresentamos a inf�ncia como uma est�tica de exist�ncia cujas formas de atividade sobre si exp�em uma possibilidade �tica para a vida. Nesse sentido, convidamos a escola a aprender com as crian�as para reinventar-se em suas propostas pedag�gicas ofertadas �s crian�as. Este � um estudo te�rico que se pauta em observa��es vividas em contexto escolar, cujas fontes bibliogr�ficas permitiram o aprofundamento de discuss�es que apontam para o aprender como obra de arte.
Palavras-chave: Educa��o; inf�ncia; Arte; Aprendizagem.
Abstract
This article proposes an intersection between art and education, as well as thinking about the learning as an artistic experience, an aesthetic device to transpose the rigidity of school curriculum and the reproducibility of pedagogical methods and strategies that conceive learning by representation. We present childhood as an aesthetics of existence whose �forms of activity on the self� that expose an ethical possibility for life. In this sense, we invite the school to learn with the children to reinvent itself for what pedagogical proposals offered to children. This is a theoretical study that is based on observations lived in a school context whose bibliographic sources allowed the deepening of discussions that point to learning as a work of art.
Keywords: Education; Childhood; Art; Learning.
A crian�a pede para sair da sala de aula e se dirige ao bebedouro. No trajeto pelo p�tio, seu corpo se movimenta de um jeito muito pr�prio, na cad�ncia do seu caminhar evidencia-se um sacolejo pr�prio da agita��o infantil, enquanto sopra os l�bios tentando assobiar... Em seu caminho, est� um banco, n�o hesita em subir e em seguida d� um baita pulo para descer. Sai correndo, muda o ritmo da travessia, agora, como um equilibrista na corda bamba de um circo, segue seu percurso com um p� ap�s outro, equilibrando-se sobre a beirada do canteiro de flores, at� que enxerga um formigueiro, se agacha e fica � espreita a observar; parece querer somente saciar a curiosidade, o desejo de desvendar mais um dos mist�rios da vida. Come�a a contar: uma, duas, tr�s..., silencia-se por um curto tempo, como a imaginar um enredo para o ziguezaguear das formigas, por fim, cantarola e faz onomatopeias numa tentativa de comunica��o com o formigueiro... Como se suspendesse o tempo, parece que mais nada lhe importa, nem mesmo a sua vontade inicial de beber �gua. Devido � demora, a professora sai em busca do aluno na expectativa dele estar a fazer alguma arte! Poder-se-ia dizer que de fato estava, pois, assim como no ato de cria��o art�stica, a crian�a encontrava-se numa esp�cie de entrega, imerso em um estado de aten��o que �vagueia, experimenta uma err�ncia, fugindo do foco [...] indo na dire��o de um campo mais amplo, habitado por pensamentos fora de lugar, percep��es sem finalidade, reminisc�ncias vagas, objetos desfocados e ideias fluidas, que adv�m do mundo interior ou exterior� (KASTRUP, 2004, p.08). Precisou ser cutucado para poder sair de seu estado de encantamento e se deixar conduzir pela m�o da professora. De volta a sala de aula, o corpo infante retorna ao aprisionamento da carteira enfileirada para executar c�pias das informa��es que se encontravam expostas no quadro negro, reestabelecendo um modo de aten��o focal, demandada para a realiza��o de tarefas.
A narrativa nos diz sobre o qu�o as crian�as t�m seus pr�prios modos de ser e habitar o mundo pela poiesis[3], explorando os espa�os atrav�s dos seus sentidos. Experimentando imagens, cheiros, temperaturas, texturas, gostos, sons, ritmos e movimentos das coisas que lhes atravessam como um evento inaugural.
Esse olhar da inf�ncia nos conduziu a obra de Foucault, quando este nos apresenta uma perspectiva �tica que tece uma estreita rela��o entre a arte e um modo peculiar de conduzirmos nossa exist�ncia. Perspectiva esta que nos inspirou na tessitura de uma analogia em que a inf�ncia se mostra como uma est�tica de exist�ncia que ensina a escola sobre uma �tica aprendizagem.
Ao propor a condu��o da vida como uma obra de arte, o fil�sofo franc�s faz uma distin��o clara entre as no��es de moral e o cuidado de si na rela��o consigo. A moral designaria um �conjunto sistem�tico (...) de regras e valores� (FOUCAULT, 1984, p. 36) que instituem modos prescritivos de viver, tais como a Fam�lia, a Escola e a Igreja, dentre outras institui��es. No entanto, existiria �uma certa rela��o consigo� atrav�s de �formas de atividade sobre si� que constituiriam uma �est�tica de exist�ncia� (ibid, p. 40) e que arriscar�amos dizer ser pr�prio da inf�ncia.
Todavia, � comum ver esse impulso infantil ser talhado pelas escolas, ao desconsiderar e menosprezar a pot�ncia inventiva da crian�a em suas propostas pedag�gicas. Considerando que para aprender a crian�a precisa ter foco, prestar aten��o �s tarefas que devem ser executadas com o m�ximo de assertividade.
O que prevalece nesse dom�nio � o entendimento da cogni��o como processo de solu��o de problemas e, no que diz respeito � aten��o, a �nfase recai sobre seu papel no controle do comportamento e na realiza��o de tarefas. Ela � a condi��o para que se d� o processo de aprendizagem, a solu��o de problemas e o desempenho de tarefas cognitivas. Tomada como uma esp�cie de processo subsidi�rio � aprendizagem e estando a seu servi�o, sua an�lise � restrita � aten��o voltada para objetos e est�mulos do mundo externo, ou seja, para a capta��o e busca de informa��es. (KASTRUP, 2004, p.8)
Esse modelo de aprendizagem privilegia uma educa��o que reproduz o que j� est� posto como verdade �nica, destituindo a crian�a da possibilidade de exercer pr�ticas de pensamento inventivas, m�ltiplas formas de se relacionar com os signos que s�o expressos pelo mundo.
Nesse intento, a escola deveria ser um espa�o de viv�ncias, de convoca��o do sentir, do experienciar, para que algo de diferente aconte�a em seus espa�os, talvez assim a escola aprendesse, com o olhar infantil, a enxergar as coisas pelas vias da inven��o. Pensar outros poss�veis para a educa��o, desprender-se do olhar adultoc�ntrico e valorizar tudo aquilo que � imanente � inf�ncia[4], ou seja, a inven��o contida no brincar, carrega em si a fun��o da arte, j� que: �A arte, como pensamento, se revela [...] um intercessor que nos convoca a m�ltiplas vis�es de mundo, uma experi�ncia est�tica que nos acontece por sua aptid�o de dizer o indiz�vel� (SILVA, 2011, p.131).
Tomamos aqui a inf�ncia tal qual a arte, como fen�meno inaugural e original, que institui um olhar que vira do avesso aquilo que � dado como certo, que est� � disposi��o para viver experi�ncias inusitadas, a curiosidade necess�ria para conhecer por descoberta, dando novos sentidos �quilo que muitas vezes � considerado insignificante, �dando respeito� ao encantamento pelas coisas que s�o consideradas desimportantes para os adultos.
Dou respeito �s coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que avi�es. Prezo a velocidade das tartarugas mais do que as dos m�sseis. Tenho em mim esse atraso de nascen�a. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abund�ncia de ser feliz e por isso, meu quintal � maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperd�cios: amo os restos como as boas moscas(BARROS, 2015, p.122)
Barros (2006) afirma que � pelo encantamento que podemos medir a import�ncia das coisas, e Bond�a (2010) enfatiza que s� podemos conhecer aquilo que nos afeta, que nos atravessa. � nesse sentido, que a arte favorece uma aprendizagem transformadora. A partir de uma aten��o aberta as nossas sensa��es. Pensar e degustar o mundo, como aponta Barthes (2004), sentir de forma plena, as impress�es e rea��es de um corpo com aquilo com o que interage. �Assim � que a travessia pelas vias da arte, levada a efeito pelos professores, constitui-se em um exerc�cio profissional po�tico, compromissado com um modo criativo capaz, n�o s� de dizer a realidade do mundo dos homens e mulheres, mas de reinvent�-lo� (SILVA, 2011, p.132).
O menino estava preste a pisar no velho continente e conhecer de perto os lugares que para a maioria das pessoas do continente Sul-Americano s� s�o acess�veis atrav�s de fotografias e imagens f�lmicas. Era um menino privilegiado. Diferentemente da maioria dos meninos de seu pa�s, o garoto de oito anos estava realizando sua primeira viagem internacional, iria testemunhar in loco, aquilo que futuramente lhe ser� apresentado pela escola, atrav�s dos livros de hist�ria. Por enquanto, essas quest�es n�o faziam tanto sentido para a crian�a. Suas expectativas estavam voltadas para a aventura de voar, comer coisas gostosas e visitar parques tem�ticos. Para os pais da crian�a, aquela seria uma oportunidade de proporcionar ao filho a chance de adquirir uma bagagem cultural que lhe beneficiaria quando adulto. A primeira visita que iriam realizar, n�o parecia t�o encantadora para uma crian�a de oito anos. Seria no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, local em que est� exposta a obra Guernica de autoria de Pablo Picasso. Com 349 cm de altura por 776,5 cm de comprimento, a obra � grandiosa em tamanho, mas, principalmente, como express�o art�stica e de resist�ncia contra o autoritarismo e ascens�o do fascismo na Europa. O quadro impacta o espectador por apresentar a trag�dia e o flagelo da guerra em suas terr�veis consequ�ncias, sob a luz de uma l�mpada el�trica, s�mbolo da modernidade e do progresso t�cnico. Os pais querem passar para o filho as informa��es necess�rias para que ele possa compreender o que a obra representa historicamente, mas diante de Guernica, o menino pede sil�ncio para os pais. Contempla as imagens por alguns instantes e fala: - N�o precisa explicar!!! Eu j� entendi tudo!!! E o cara n�o precisou usar nem uma gota de vermelho[5]!!!
A arte � uma experi�ncia est�tica que nos leva a conhecer para al�m dos princ�pios da raz�o[6]. Poder�amos dizer que atrav�s da arte, podemos conhecer mesmo sem a presen�a das palavras.
Talvez seja preciso pensar a experi�ncia como o que n�o se pode conceituar, como o que escapa a qualquer conceito, a qualquer determina��o, como o que resiste a qualquer conceito que trata de determin�-la� A experi�ncia seria o modo de habitar o mundo de um ser que existe, de um ser que n�o tem outro ser, outra ess�ncia, al�m da sua pr�pria exist�ncia corporal, finita, encarnada, no tempo e no espa�o, com outros. (BOND�A I�, 2014, p.43)
Assim � com a inf�ncia em seu modo de habitar o mundo, insistindo em questionar e colocar o �bvio de pernas para o ar, enquanto a escola quer as coisas em seu devido lugar.
E se a escola aprendesse com as crian�as e reinventasse uma educa��o por outros modos? Modos mais desejantes e prazerosos, que emperrassem a marcha apressada dos saberes institu�dos pelos tempos demarcados por curr�culos enrijecidos e inertes, e inventasse novos ritmos e cad�ncias que liberassem os corpos e as mentes, na leveza e alegria de um aprender como obra de arte[7]? Uma educa��o pelo movimento de travessia:
[...] que se atualiza no espa�o mental/f�sico, segundo ventos e tempestades sobre dunas, que findam por deslocar os mangues, nomadizando-os, em um movimento m�nimo de migra��o/emigra��o, mas que tem a for�a transformadora do processo de territorializa��o/desterritorializa��o ou transversalidade. (LINS, 2012, p.23)
S�o nos encontros inesperados das experi�ncias que o olhar � for�ado a ver e pensar sobre o que v�, que os pensamentos retos despencam em peda�os que podem compor mosaicos que nos ensinam que o mundo est� sempre se fazendo por novas composi��es, na suspens�o e desacelera��o do tempo, no sentir pulsante da vida em transforma��o, no acontecimento que muda tudo o que a� est� e nos coloca sem premedita��es diante do por vir, para que os processos de aprendizagem se fa�am sem fronteiras.
A experi�ncia, a possibilidade de que algo nos aconte�a ou nos toque, requer um gesto de interrup��o, um gesto que � quase imposs�vel nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar, parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opini�o, suspender o ju�zo, suspender a vontade, suspender o automatismo da a��o, cultivar a aten��o e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentid�o, escutar nos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paci�ncia e dar-se tempo e espa�o. (BOND�A, 2002, p.3)
� essa a educa��o que queremos! Aquela que est� atenta �s singularidades de cada aluno, que escuta as vozes curiosas de crian�as que possuem anseios e desassossegos. Que associe sabor ao saber em aulas[8] inventivas, movidas pelo apetite e pelo desejo, pois �da mesma forma que sem fome n�o apreendemos a comer, e sem sede n�o aprendemos a beber �gua, sem �motiva��o� n�o conseguimos aprender� (IZQUIERDO, 2011, p.32).
Tra�amos assim, as linhas conceituais para provocarmos essa conversa sobre inf�ncia e escola como territ�rios de exist�ncias por onde transitam encontros e afetos que transmutam por modos inventivos, as rela��es entre o mundo e as pessoas; como diz Barros (2006), �uma inven��o que sirva para aumentar o mundo�.
Dizem que o que todos procuramos � um sentido para a vida. N�o penso que seja assim. Penso que o que estamos procurando � uma experi�ncia de estar vivos, de modo que nossas experi�ncias de vida, no plano puramente f�sico, tenham resson�ncia no interior do nosso ser e da nossa realidade mais �ntima, de modo que realmente sintamos o enlevo de estar vivos. (CAMPBELL, 1990, p.5)
Nisto posto, a arte, se apresenta como caminho para a cria��o de outros poss�veis, atrav�s das diferen�as nos modos de sentir, pensar e fazer da aprendizagem, movimentos que inventam, questionam e desenham novos territ�rios a partir dessas experi�ncias. Processos que nos movem, nos conectam e d�o sentido as nossas exist�ncias. Perceber e compreender o cotidiano a partir de nossas inquietudes, por meio de problematiza��es, que �[...] nos invadem quando for�as do ambiente em que vivemos e que s�o a pr�pria consist�ncia da nossa subjetividade, formam novas combina��es, promovendo diferen�as de estado sens�vel em rela��o aos estados que nos situ�vamos� (ROLNICK, 1995, p. 5).
Inventando travessias, produz efeitos de margem: fim das continuidades e ultrapassagem das fronteiras. Encontra mist�rios. Cria outras materialidades para os fazeres-saberes. Produz coletividades an�malas, idades bastardas, pensamentos vagos: al�m de Bem e Mal. Estabelece resson�ncias, articula��es, encontros, tradu��es, transdu��es entre elementos dos diversos dom�nios culturais. (CORAZZA, 2010, p. 147)
A aprendizagem como obra de arte, desconhece os limites do que pode o corpo e o pensamento, num movimento desordenado e descont�nuo, de onde �voltamos renascidos, de pele mudada� (NIETZCHE, 2001, p.14), que �deixa �s margens o aprendido para arriscar viver no risco do (des)aprender de novo, viver de outro modo, ou, simplesmente viver� (COSTA, 2013, p. 159), de forma arteira e prazerosa, os encontros e afetos vivenciados no ch�o da escola, onde �todo vivo infectado torna-se ele mesmo centro de propaga��o; cada um torna-se um centro potencial de um novo processo, que n�o esgota sua causa, mas a regenera � medida que se produz� (STENGERS, 1987, p.18).
Dessa forma, �a arte n�o � um alvo, mas um atrator ca�tico� (KASTRUP, 2001, p.19) que recusa o previs�vel, atuando por abalos, inquieta��es, estranhamentos. Ela � do �mbito do viver com intensidade o tempo presente, nos for�ando a pensar, fazer e ser diferente, pois � no �encontro de diferen�as, num plano de diferencia��o m�tua, em que tem lugar a inven��o de si e do mundo� (KASTRUP, 2001, p. 20).
Sem algo que force a pensar, sem algo que violente o pensamento, este nada significa. Mais importante do que o pensamento � o �d� que pensar�. Mas o poeta aprende que o primordial est� fora do pensamento, naquilo que o for�a pensar. O leitmotiv do Tempo redescoberto � a palavra for�ar: impress�es que nos for�am a olhar, encontros que nos for�am a interpretar, express�es que nos for�am a pensar�. (DELEUZE, 2006, pp.88-89)
Por conseguinte, a sala de aula � compreendida como territ�rio de afetos compartilhado, �lugar onde problematizamos a experi�ncia est�tica e investigamos as pr�ticas como processos criativos transformadores de corpos e de rela��es� (ALVES; CARVALHO, 2015, p. 231).
� poss�vel pelas brechas, pelas fissuras em sala de aula, pelo entre lugar, pelo meio da a��o educativa, promover processos inventivos e criadores e fazer a diferen�a escorrer, pois � nesse espa�o da fronteira que se pode pensar uma educa��o em tr�nsito [...] (BRITO, 2015, p. 35)
Assim, a sala de aula pode assumir diferentes facetas: oficina, ateli�, galeria, canteiro, s�tio arqueol�gico de escava��o de mem�rias, no �favorecimento de espa�os de forma��o voltados � experimenta��o art�stica de um curr�culo, concebido como express�o v�vida de formas singulares, de sensibilidade, express�o est�tica cria��o do novo na educa��o� (COSTA, 2013, p. 150), produzindo fendas para a inven��o, pot�ncias criadoras, linhas de fuga que escapem das estagna��es e que se abrem para os devires.
Devir � um nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo, seja de justi�a ou de verdade. N�o h� um termo do qual se parta, nem um ao qual se chegue ou ao qual se chegue. Tampouco dois termos intercambiantes.� A pergunta �o que voc� dev�m?� � particularmente est�pida. Pois � medida que algu�m se transforma, aquilo em que ele se transforma muda tanto quanto ele pr�prio. Os devires n�o s�o fen�menos de imita��o, nem de assimila��o, mas de dupla captura, de evolu��o n�o paralela, de n�pcias entre dois reis. (DELEUZE apud ZOURABICHVILI, 2004. p. 48)
Diante do exposto at� aqui, cabe a pergunta: a que se destinaria o professor? Entendemos que o professor seria um agenciador que faz circular afetos, um atrator[9] de afetos. De acordo com Kastrup (2001, p.26):
O professor � um atrator, embora o atrator n�o seja necessariamente um professor. O atrator � uma fun��o: define-se por seu poder de atrair, de arrastar consigo. [...] No caso de haver um professor, ele atrai para a mat�ria, e n�o para um saber pronto. Ele � algu�m que exerce a fun��o de conduzir o processo, a expedi��o a um mundo desconhecido, de fazer acontecer o contato, de possibilitar a intimidade, de acompanhar, e mesmo de arrastar consigo, de puxar. N�o para junto de si, mas para junto da mat�ria, seguindo acompanhando sua fluidez.
Ao professor como atrator, cabe considerar �s urg�ncias e quest�es de seus alunos, os interesses que os movem; para que os processos de aprendizagem se tornem cirandas cheias de vida, que pulsem por meio dos encontros entre diferen�as que promovam vibra��es, sensa��es, emo��es e conhecimentos, jamais cab�veis nos modelos sistematizados que se prendem em significa��es que ofuscam a liberdade de imaginar m�ltiplos outros sentidos com os signos que nos interpelam. Enfim, um professor atrator sabe que a inf�ncia tem muito a nos ensinar:
[...] a inf�ncia n�o como aquilo que olhamos, sen�o como aquilo que nos olha e nos interpela. A inf�ncia entendida como o outro que nasce e que � aquilo que, ao olharmos, nos coloca em quest�o, tanto em rela��o �quilo que somos quanto em rela��o a todas essas imagens que constru�mos para classifica-la, para exclu�-la, para nos protegermos da presen�a inc�moda, para enquadr�-la em nossas institui��es, para submet�-la �s nossas pr�ticas e, no limite, pra faz�-la como n�s mesmos, isso �, para reproduzir o que ela pode ter de inquietante de amea�adora. (BOND�A , 2010, p.16)
Compreendemos a arte, como presen�a est�tica, capaz de nos transpor da rigidez e reprodutibilidade dos m�todos, das t�cnicas e das tradicionais atividades pedag�gicas de ensino, desprovidas de vida e de desejo, para �dissolver as formas institu�das junto a uma inventividade, a uma problematiza��o do mundo, do conhecimento e da educa��o� (CLARETO; NASCIMENTO, 2012, p.14).
A vida concebida segundo esquemas r�gidos segundo uma ritualiza��o do cotidiano, uma hierarquiza��o definitiva das responsabilidades, em suma, a vida coletiva serializada pode se tornar uma tristeza desesperadora [...]. � surpreendente constatar que, com as mesmas notas microssociol�gicas, pode-se compor uma m�sica institucional completamente diferente [...]. E come�amos a sonhar com o que poderia se tornar a vida nos conglomerados urbanos, nas escolas, nos hospitais, nas pris�es, etc... Se, ao inv�s de conceb�-los na forma de repeti��o vazia, nos esfor��ssemos em reorientar sua finalidade no sentido de uma re-cria��o interna permanente. (GUATTARI, 2012, p.165)
Nas palavras de Rilke (2007, p.192), �a arte � inf�ncia. Arte significa n�o saber que o mundo j� existe, e fazer um. N�o destruir nada que se encontra, mas simplesmente n�o achar nada pronto. Nada mais que possibilidades. Nada mais que desejos. E, de repente, ser realiza��o, ser ver�o, ter sol. Sem que se fale disso, involuntariamente. Nunca ter terminado. Nunca ter o s�timo dia. Nunca ver que tudo � bom�.
Era mais um encontro do projeto �Filosofia com crian�as�. A turminha do segundo ano estava sentada em c�rculo. As coordenadoras apresentaram o livro que iriam trabalhar naquele dia. O livro tinha como t�tulo: �A grande quest�o� de autoria de Wolf Erlbruch. A cada virada de p�gina iam surgindo diferentes personagens que respondiam qual era sua 'grande quest�o' - por que nascemos e vivemos?
Os pais, a av�, o gato, o soldado, a pedra, o marinheiro... cada um tinha sua pr�pria resposta. Com extrema delicadeza e intelig�ncia, Wolf Erlbruch vai colocando o leitor na condi��o de um 'entrevistador', mas tamb�m, os conduz a pensar sobre suas pr�prias �grandes quest�es�. Ao final do livro as coordenadoras do encontro provocam as crian�as para pensarem a respeito de suas �grandes quest�es�. Todas querem falar e exporem suas respostas. Apenas um menininho timidamente levanta o dedo enquanto os demais disputam a palavra. Quando interpelado por uma das coordenadoras ele responde demonstrando uma certa frustra��o: - Tia eu n�o tenho uma grande quest�o... A mulher pondera que isso n�o seria um problema. Que nem sempre temos resposta para tudo e que talvez um dia ele encontraria sua pr�pria quest�o, mas que naquele momento isso n�o seria uma obriga��o. O tempo passou, muitos encontros aconteceram. Encontros em que as crian�as puderam expor seus dilemas filos�ficos. At� que um dia, quando nem mais lembr�vamos daquele epis�dio, o menino pede a fala com uma grande empolga��o e diz: - Tia eu j� tenho minha grande quest�o!!!
A coordenadora lembra das palavras do artista pl�stico H�lio Oiticica (1986), �o artista, menos que aquele que cria, � quem prop�e, motiva e orienta a cria��o. O artista n�o � mais o que assina a obra, mas o que desencadeia experi�ncias coletivas�.
Aprender como obra de arte, a exemplo do menino que insiste em encontrar sua grande quest�o e do artista pl�stico que nos inspira a pensar a fun��o do mestre nesse processo, talvez consista na tarefa de realizar problematiza��es que possam gerar infinitas novas grandes quest�es; a serem inventadas por nossos alunos e alunas, como a originalidade da crian�a que se questiona acerca da vida, como se fosse sempre uma primeira vez.
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ZOURABICHVILI, Fran�ois. O vocabul�rio de Deleuze. Rio de Janeiro: IC, 2004.
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[1] Mestre em Diversidade e Inclus�o pela Universidade Federal Fluminense. Professora orientadora do Curso de P�s-gradua��o Especializa��o em� Did�tica e Pr�ticas de Ensino e Tecnologias Educacionais na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri,Tutora do Curso de Pedagogia da Funda��o CECIERJ/UERJ, do Curso de Segunda Licenciatura em Educa��o Especial da Universidade Federal de S�o Carlos e �do Curso de P�s-gradua��o em Educa��o� Inclusiva e Especial da Universidade Federal de Lavras . Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3764-8818 E-mail: leilianedomingues@gmail.com
[2] Professora Associada da Universidade Federal Fluminense - Faculdade de Educa��o/SFP, professora permanente dos programas de P�s-gradua��o - Mestrado Profissional em Diversidade e Inclus�o (CMPDI) e Programa de P�s-gradua��o de Doutorado em Ci�ncia, Tecnologia e Inclus�o (PGCTIn). Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5863-3607 E-mail: dag.mello.silva@gmail.com
[3] A palavra poiesis era referida pelos fil�sofos hedonistas como cria��o. Posteriormente, como arte da poesia e faculdade po�tica, atividade que revela a beleza do esp�rito.
[4] Mesmo concordando com a Sociologia das inf�ncias, de que existem v�rias inf�ncias, m�ltiplos modos de viver a inf�ncia, em alguns momentos dessa escrita a palavra inf�ncia aparecer� no singular por estarmos nos referindo a uma condi��o que a etimologia do termo nos remete, ou seja, no latim a infantia � composta pelo verbo fari, falar e pela nega��o - in. O infans � aquele que ainda n�o adquiriu �o meio de express�o pr�prio de sua esp�cie: a linguagem articulada� (GAGNEBIN, 1997, p. 87). Nossa tese � de que a inf�ncia � uma condi��o da vida que ainda n�o est� impregnada pelas verdades discursivas morais de sua cultura, portanto, se encontra em uma condi��o que, diferentemente do adulto, se disp�e para o mundo de forma aberta, sem ju�zos pr�vios.
[5] Para quem n�o conhece a obra, Guernica � uma pintura monocrom�tica com nuances de preto, cinza, branco.f
[6] A raz�o humana funciona baseada em tr�s princ�pios que permitem a formula��o de pensamentos para compreens�o da realidade e para a comunica��o. Princ�pio de identidade que � a capacidade que a alma humana possui de especificar, separar e enumerar os elementos de realidade, o Princ�pio da n�o contradi��o que diz que um elemento identificado n�o pode ser o contr�rio de si pr�prio e o. Princ�pio do terceiro exclu�do regra que afirma que um elemento identificado, s� pode ser pensado como si pr�prio e como seu inverso, excluindo qualquer outra possibilidade. Por isso, entendemos que a arte � o espa�o/tempo em que tudo � poss�vel, inclusive a ruptura com esses princ�pios.
[7] Trata-se de elaborar um �trabalho de n�s sobre n�s mesmos enquanto seres livres.� (FOUCAULT, 2008, p. 575)
[8] Deleuze conclui que uma aula �� uma esp�cie de mat�ria em movimento musical, em que cada grupo aprende o que lhe conv�m. N�o � tudo que conv�m a qualquer um. Uma aula � emo��o. Se n�o h� emo��o, n�o h� intelig�ncia, nenhum interesse, n�o h� nada� (Apud DOSSE, 2010, p. 291).
[9] Termo oriundo da Teoria do Caos que parte da an�lise de turbul�ncia de fluidos, o conceito de atrator � muito utilizado por Gilles Deleuze por apresentar caracter�sticas fractais e n�o-lineares, cuja rela��o de v�rios vetores, aparentemente aleat�rios, resultam em padr�es imprevis�veis. O exemplo mais conhecido de atrator � o efeito borboleta. Alegoria para descrever um fen�meno da sensibilidade em rela��o a pequenas perturba��es nas condi��es iniciais, segundo a qual o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode desencadear uma sequ�ncia de fen�menos meteorol�gicos que provocar�o um tornado no Texas, por exemplo.