Educação e Pandemia: afetações de tempos e da subjetividade na infância

 

 

Education and Pandemic: affects of time and subjectivity in childhood

 

 

 

César Sonizetti Pereira Leite¹

Universidade Estatual de São Paulo

 

Ana Lucia Penteado Brandão Prado²

Universidade Estadual de São Paulo

 

Guilherme Rodrigues de Oliveira³

Universidade Estadual de São Paulo

 

 

Resumo

O Grupo de Pesquisa IMAGO (Laboratório da Imagem, Experiência e Criação) UNESP Rio Claro SP tem se dedicado aos estudos da infância, tempo e educação. Assim, a Pandemia de Covid-19 que, ao longo de 2 anos, deslocou a educação para novos espaços, lugares e tempos, sem, no entanto, modificar seus caminhos e métodos, também tem nos provocado a refletir de que maneira isso impactou nesses temas e em suas interconexões. Diante disso, este trabalho perpassa pela ideia de constituição de diversas infâncias e educações que caminham através de um tempo não cronológico, mas sim aíonico, em que a infância é condição de existência e não apenas uma etapa da vida. Olhar esta questão tem nos ajudado a pensar que as fissuras criadas pelas crianças com seus modos de ser, agir e pensar, quebram com a ideia de um tempo chronos, um tempo adulto, uma infância única e uma educação formatada, e nos coloca em caminhos outros, diversos, caminhos de movi-mentos, capazes de dar vazão à potências ao invés de atravancar fluxos.

 

Palavras-chave: Educação; Educação e Pandemia; Infância; Tempo;

 

 

Abstract

 

The IMAGO Research Group (Image, Experience and Creation Laboratory) UNESP Rio Claro SP has been dedicated to the studies of childhood, time and education. Thus, the Covid 19 Pandemic, which, over 2 years, shifted education to new spaces, places and times, without, however, changing its paths and methods, has also provoked us to reflect on how this impacted on these themes. and in their interconnections. Therefore, this work goes through the idea of ​​constitution of different childhoods and educations that walk through a non-chronological, but aionic time, in which childhood is a condition of existence and not just a stage of life. Looking at this issue has helped us to think that the fissures created by children with their ways of being, acting and thinking, break with the idea of ​​a chronos time, an adult time, a unique childhood and a formatted education, and puts us in other, diverse paths, paths of movements, capable of giving vent to powers instead of cluttering up flows.

 

 

Keywords: Education; Education and Pandemic; Childhood; Time;

 

Imagem 1 – Podemos voar?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: imagem do acervo do Grupo Imago.

 

A infância, a natalidade, o corpo sem lei, a estética, é o que salvam o mundo de sua caducidade caduquice, de sua “ruína normal”, natural. Há mundo novo, criação, transformação porque há a infância, por que é possível frutificar o acontecimento que leva consigo cada nascimento. A infância é o reino do “como se”, do “faz de conta”, do “e se as coisas fossem de outro modo...?”, a forma única e, a uma só vez, múltipla de todo acontecimento; é levar a sério a novidade de cada nascimento; é impedir que cada nascimento se acabe em si mesmo; é tornar múltipla, diversa, a novidade de todo nascimento; é estender o nascer à vida toda e não apenas ao acontecimento biológico do parto(…) (KOHAN, 2007)

 

O sentimento de infância, construído em torno da criança, tal qual o temos hoje, é algo que se efetivou na Modernidade. Porém, ainda que grande parte dos trabalhos a respeito da infância pontuem sua invenção como um acontecimento moderno, referenciando nas ideias defendidas pelo historiador francês Philipe Ariès (1981), é possível afirmar que já na Antiguidade a questão da infância, e a preocupação em como lidar com a criança possuía suas características peculiares àquela época. Kohan (2005), afirma que Platão já apresenta indícios de uma atenção voltada para a infância.

            Entendia-se que a partir da criança era possível educar jovens adultos capazes de formar uma sociedade regular e estável, desde que fossem tutelados desde a infância até a racionalidade da vida adulta. “A infância é um problema filosoficamente relevante enquanto se tenha de educá-la de maneira específica para possibilitar que a pólis atual se aproxime o mais possível da normatizada” (KOHAN, 2005, p. 27-28).

            A criança, vista como um ser irracional e sem controle, quase selvagem, precisava ser comedida e direcionada à lucidez. Se na infância, como disse Platão (1983-1992), temos os seres mais incontroláveis, era preciso encontrar uma maneira de lidar com este comportamento desmedido da criança, que era – e ainda é - considerado um problema.

[…] Essa ideia nos leva a pensar a criança como um animal, dotada de monstruosidade, ou ainda, dito de outra forma, como dizia Platão, conforme já apontamos, como as ovelhas não podem ficar sem pastor, para não se perder, também a criança não pode ficar sem alguém que a vigie e controle em todos os movimentos […] (LEITE, 2011, p. 75)

            A infância, tal qual era vista, foi pensada como este ‘lugar’ de seres inacabados que precisavam da condução do adulto, que nesta concepção já é um indivíduo formado, completo e acabado em sua racionalidade. Naquele momento, e diante da monstruosidade da criança, conforme apontada por Platão, e com a necessidade de racionalizar a criança, na perspectiva da construção da pólis na Grécia Antiga, nasce a Educação, que chega com a missão de educar o ser humano a partir de modelos pré-estabelecidos, ensinando a ela modos de ser e estar no mundo que são, de forma hegemônica, considerados ideais. Como forma de completar um espírito que ainda não é, ou seja, que ao ser tido como incompleto precisa ser levado à completude (LEITE, 2011), a educação ocupa-se de tirar a criança da infância que carrega consigo uma irracionalidade, para que ao chegar à idade adulta, alcance a razão.

A ideia de formação, e, por conseguinte de educação, passa, entre outros motivos, pela noção de monstruosidade da infância e a necessidade de reformulação do espírito humano e infantil. Essa noção, que é base do movimento que no Ocidente vem se produzindo em termos de educação e de práticas educativas com crianças, na perspectiva de tirá-las da infância e levá-las à vida adulta, acabou por produzir uma prática pedagógica e mais ampliada de tirar a infância da criança. (LEITE, 2011, p. 74)

             Ainda que Educação e Pedagogia sejam usualmente representadas como sinônimos, sua etimologia mostra que não. Do latim educare, o verbo educar traz de sua origem um sentido que está ligado a alimentar e criar animais ou crianças enquanto, derivada do Grego Paidagogos, Pedagogia deriva de paidos (criança) e agein (conduzir), e nos fala sobre a condução da criança.

            Mais do que educar a criança e tirá-la da irracionalidade da infância, a educação pretende conformar ou, dito de outra forma, tem como principal razão de existir matar as potências infantis para ajustar o indivíduo ao sistema, e a Pedagogia veio dar conta dessa condução. A cultura do conduzir está, de certa forma, enraizada no modo de ser adulto. Enquanto professores pesquisadores, percebemos que seja em sala de aula - mesmo que com outros adultos - ou com as crianças enquanto pesquisamos nas escolas, é preciso que nos atentemos constantemente aos nossos movimentos, pois ao menor descuido, estamos conduzindo.

            Realizamos um exercício de nos colocarmos como parte do todo, mas como professores e pesquisadores que, ainda que tentando escapar, fomos formados dentro da lógica da racionalidade adulta, aprendemos a hierarquizar não só a educação, mas qualquer relação em que o conhecimento é tido como forma de poder. De que maneira, então, olhar para o outro que está conosco na educação e nas pesquisas, sem pensar no que ele vai aprender, se vai aprender, mas olhar apenas para o que eu estou oportunizando? Como formar pares dentro das escolas, e não hierarquias?

            Percebemos com nossas pesquisas que estar com as crianças não é apenas prestar atenção ao que elas falam, mas dispor-se de forma inteira e irrestrita, sabendo que elas irão romper com qualquer barreira que tentemos colocar. Estar com as crianças requer uma atenção que exige esforço, elas não se contentam com um simples estar ali, elas mobilizam não somente nossa atenção, mas também nosso corpo. Estar com as crianças nos tira do lugar, nos exaure, nos modifica, nos coloca questionamentos novos e infinitos. 

            As relações entre adultos e crianças na educação alcançam uma pluralidade e características singulares aos espaços que ocupam, porém, verificamos que alguns pontos se marcam como recorrentes em muitas delas.

[…] Entre elas destaco a posturas dos educadores, que indicam que muito mais do que metodologias de ensino, o que marca, tece os aprendizados e as produções de sentidos, são modos de circulação da palavra que passa, sobretudo, pela relação que ocorre entre adulto e criança, que é uma relação marcada substancialmente pela postura do educador diante do educando e do educando diante do educador. Ou seja, não são propriamente os sentidos produzidos, os conhecimentos adquiridos que ganham força, mas sim as práticas de poderes neles manifestadas. (LEITE, 2011, p. 50)

            Produzindo fissuras, é possível alcançarmos nesse trajeto práticas emancipatórias e libertadoras que escapem ao que está posto. Porém, por motivos alheios à educação, que permeiam questões políticas e sociais, as práticas educativas predominantes ainda são produzidas por relações de poder que “[…] acabam sempre reproduzindo modos de formas de produção de sentido da e na vida” (LEITE, 2011, p. 50).

Imagem 2 – Bloqueando com blocos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: imagem do acervo do Grupo Imago.

 

- Tia, eu sei voar.

- Uau, me mostra?

- Não posso.

- Por quê?

- Você não vai ver.

- Mas por quê, Davi?

- Porque você é gente grande.

(DAVI, 2019, 5 anos

uma criança em nossas pesquisas).

 

            Muitas vezes colocadas como sinônimos, infância e criança carregam sentidos etimológicos diversos, mas o modo como pensamos e lidamos com a infância e a criança se manifestam nas práticas de poder que estão presentes em experiências educativas (LEITE, 2011). No cenário educacional atual, o que vemos não escapa muito do que foi posto ainda no seu surgimento. Uma educação que, ao pretender tirar as crianças de sua usual irracionalidade e levá-las ao encontro da razão, rompe e interdita fluxos criativos que poderiam acontecer. Podemos dizer então, que os processos formativos, no dito modelo idealizado, procuram modular a subjetividade da criança. Além disso, a educação que conhecemos hoje, em grande parte, cria uma única ideia de infância, impedindo que outras tantas possam surgir neste percurso.

            Ao refletirmos sobre a educação que ocupa a malha social contemporânea, podemos encontrar muitos resquícios de uma educação próxima à que se apresentava ainda na Antiguidade. Esse modelo, tinha como principal objetivo tirar a criança da infância, e ao mesmo tempo, subtrair toda potência infantil que estivesse na criança, para que assim, o indivíduo ao ser tomado pela racionalidade adulta, se adequasse aos moldes sociais hegemônicos.

Leite (2012) irá chamar essa retirada da criança da infância de uma pedagogia para as identidades, pois vem pensar a pedagogia rompendo com as ideias de diferença e desigualdade, visto que as práticas de poder exercidas pela pedagogia moderna impõem uma distância entre os sujeitos que são parte da educação (professores e crianças). Nesse sentido, é necessário explicar que as crianças, e até a própria educação, não devem ser descritas por teorias educativas e psicológicas, pois há nessas crianças uma multiplicidade de conhecimentos, desejos e afetos que as tornam singulares e únicas e, por conta disso, a educação, ou a pedagogia, não deveria pormenorizar essa singularidade, essa multiplicidade da infância e das crianças.

Nessa relação, a educação e a pedagogia criam moldes e modelos e encaixam as crianças nessas “formas”. A partir disso, passam a identificar como diferente/deficiente, aqueles que não se enquadram nessa perspectiva de indivíduo, gerando uma problemática que engloba não só o caráter da educação, mas também uma questão política de indivíduo, uma política de controle sobre subjetividades e corpos e, principalmente, uma política de controle sobre as infâncias. Por conta disso, é tão necessário fissurarmos, assim como as crianças fazem, com a perspectiva de uma educação controladora, pois é ela que formaliza essa relação distante, é ela que pressupõe uma modelação de comportamentos e conhecimento, é ela que castra a individualidade e a subjetividade dos indivíduos, quebrando com a perspectiva de uma infância aionica e perpetuando uma infância cronológica.

[...] às práticas, que marcam efetivamente a relação adulto-criança, ganharam ao longo do tempo um estatuto onde a diferença – presente nas multiplicidades e nas singularidades – foi tomando a forma de desigualdade, e assim de inferioridade. Ou seja, o desigual passou a ser inferior, e a diferença, identidade. Nesse caso, a pedagogia se constituiu como uma pedagogia das identidades, e os dispositivos de inferioridade e de desigualdade criaram a ideia de uma universalidade nos processos e no percurso, ou seja, criaram uma universalidade na pedagogia e na psicologia do desenvolvimento, e marcaram as práticas de poderes em um invólucro de relações entre superiores e inferiores, entre quem sabe e quem não sabe, produzindo assim o que Rancière (2004) chamou de uma ordem explicadora e desigual nas práticas educativas. (LEITE, 2012, p. 52)

            Chamaremos esse movimento de ‘educação de massa', um modelo ‘pedagogizante’ (RANCIÉRE, 2002), que exclui as subjetividades de cada indivíduo para tornar as relações menos complexas possível, controlando as suas formas, produzindo vidas iguais, alienando e controlando o presente e o futuro das crianças. A ‘educação de massa’ promove uma adultização da criança, permeia um tecnicismo educacional e afasta as crianças das suas infâncias ao não enxergar a criança como um indivíduo com conhecimentos, com subjetividades, e não dar vazão as suas potencialidades e multiplicidades.

            Quando a educação encara a criança como um ‘ainda não ser’, que deve ter sua condução em direção a completude da maturidade, o adulto é posto como pronto e totalmente formado, o que lhe atribuí uma posição de superior, e que possibilita o surgimento de uma relação de poder entre quem educa e quem é educado. Esse poder é normalmente utilizado de forma impositiva, para que a ordem desejada seja mantida em uma sala de aula.

            Podemos dizer que nas últimas décadas, nossas escolas têm passado por transformações que as tem afastado de um modelo de educação vertical e bancária (FREIRE, 1997), possibilitando algum tipo de expressão e diálogo entre os sujeitos desse cenário. Porém, ainda temos, em grande parte delas, especialmente na educação infantil, um modelo que obedece a uma estrutura hierarquizada onde quem detém o conhecimento é tido como superior a quem não o tem.

 

Imagem 3 – Pés, mãos e pernas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

     Fonte: imagem do acervo do Grupo Imago.

Vivendo e sofrendo com os jogos de poder, as crianças vazam, escapam, encontram outros fluxos, frestas, brechas…

As crianças também são sujeitos de poder, que agem e reagem no jogo de forças posto na instituição escolar.

(Gallo, 2010).

            Para tentarmos fissurar essa perspectiva hegemônica de infância e educação, trazemos aqui o fato que, de alguma forma, essas estruturas foram desorganizadas. No início de 2020 a Pandemia de Covid-19 nos colocou em um cenário assustador e conturbado.  Além do gravíssimo problema de saúde pública que o mundo atravessou, diversos outros setores sentiram os efeitos da crise mundial, e a educação não ficou de fora.

            Esse evento também rompeu com o tempo, e nossa ideia de organização e de temporalidade se subverteu. Enquanto alguns sentiam o tempo pandêmico passar devagar, posto que não saiam de casa e muitas das atividades estavam suspensas, outros tinham a nítida sensação de uma aceleração do relógio, decorrida do acúmulo de funções domésticas e institucionais acontecendo em um mesmo lugar, e sem a organização anterior.

            Ainda que nem todos tenham tido o direito – ou a consciência - de realmente ficar em isolamento, os que assim o puderam ou o fizeram, tiveram algum deslocamento na noção de tempo. As atividades do dia a dia marcam, de certa forma, o nosso ritmo. Tempo de trabalhar, tempo de ir à academia, tempo de brincar, de almoçar, tempo de ir à escola. Com a vida cada vez mais institucionalizada e repleta de atividades diversas, nos balizamos pelo que temos que fazer. Quando todas essas coisas passam a se dar do lado de dentro de nossos lares, incluindo trabalho e estudo, a ideia de tempo, anteriormente constituída, se desloca.

            Na perspectiva dos processos modulatórios de nossa subjetividade, a noção de tempo e suas perspectivas têm percorrido todo o ocidente desde a Grécia Antiga, e chegado até nós no que poderíamos chamar império de Chronos. Porém, de acordo com Kohan (2020), três formas de temporalidade foram constituídas pelos gregos. Kairós é um tempo único, o tempo da oportunidade, que não se repete. Aión, é a duração do tempo, o tempo da experiência, o exato momento presente e intenso, que nos faz sentir, um tempo infantil. E temos o tempo Chronos, dado pelo relógio, organizado pelo calendário, o tempo institucionalizado. Um tempo em que o presente marca a transição entre um passado que já aconteceu, e um futuro que ainda virá. O tempo da escola.

[…] khrónos é um tempo adulto: o tempo do sistema educativo, das instituições educacionais, da organização do trabalho pedagógico. Tudo o que acontece nas escolas contemporâneas é regido por khrónos: os níveis de ensino, as planificações docentes, a sequência curricular…e a importância de khrónos para a vida social é uma das principais coisas que ensina a instituição escolar, desde a creche até a universidade: as crianças entram nas creches no seu tempo aiônico e saem adultos adequadamente cronologicados. (KOHAN, 2020, p. 07)

            Seja pela questão do tempo, ou por tantos outros fatores que foram afetados nesse período, a educação durante a pandemia foi desestruturada, posta à prova e tentou alternativas de reorganização. Buscando a entropia, utilizou-se de encontros síncronos, assíncronos, educação remota ou totalmente à distância. Alternativas foram pensadas como forma de restabelecer a ordem, e evitar o caos. Enquanto grande parte da população mundial lutava para sobreviver à um vírus mortal, a educação seguia tentando manter-se em movimento, sem que pudesse pausar. O controle não poderia ser perdido e as modalidades educacionais propostas não poderiam ser alteradas, pois a política educacional que vivenciamos é de modelagem de corpos e subjetividades. Assim, não existe a possibilidade de alternância com o início da pandemia. A educação apenas foi realocada das salas nas escolas, para o ambiente virtual, gerando assim uma “continuidade” do trabalho, cobrando ainda mais de professores e crianças.

            No entanto, o pensamento que nos ocorre e que gostaríamos de propor aqui, vai justamente de encontro à ideia de ordem. Se naquele momento, ao invés da educação reunir forças para retomar sua organização habitual, ela tivesse aceitado a vertigem, abraçado a desordem, encarado a desarticulação, podemos supor que teríamos encontrado uma outra forma de se fazer educação e que, a partir disso, novas relações poderiam se formar? É possível supor que a educação teria se desterritorializado das ideias anteriores a isso, e que ao abraçar o caos, produziria linhas de fuga que movimentariam suas relações e suas ideias?

            O que teria acontecido, caso não tivéssemos tentado reestabelecer a ordem? E se tivéssemos permitido que a educação mergulhasse no caos? É possível usar as fissuras que são produzidas pelas crianças na educação para, a partir de um caos, povoar um outro modelo educacional que leve a novas práticas educativas?

Verifico que, em uma época como a nossa, povoada de discursos sobre o que e como fazer com as crianças nas práticas educativas, os discursos, as teorias e os protocolos de ações distanciam os professores da própria vida em torno da escola, do cotidiano da escola e de seus modos de produção de sentido para as práticas educativas, modulando práticas, atitudes e posturas. E separando, assim, a educação da vida real, concreta ou material, e ainda, produzindo na educação outra ideia de real, de real da escola, do cotidiano escolar. Ou seja, a materialidade das práticas educativas dirigidas por modos de ser como educador, modos dados e definidos, cria certa artificialidade na educação, cria verdades como modos de controle da vida social – pela educação – por meio dos discursos e das enunciações citadas em nosso cotidiano, assim “a verdade não tem mais que ser produzida. Ela terá que se representar e se apresentar cada vez que for procurada” (Foucault, 2009, p. 117), é nesses movimentos que as ditas verdades acabam por constituir modos prévios de estar no mundo. (LEITE, 2011, p. 37)

 

Imagem 4 – Amontoados.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

          Fonte: imagem do acervo do Grupo Imago.

Tenho o privilégio de não saber quase tudo.

E isso explica o resto.

(Barros, 2013, p.461).

 

            Não sabemos a resposta, mas temos algumas pistas a respeito. A primeira delas vem de algumas das pesquisas que temos realizado e se dedicam a olhar para as crianças da educação infantil e suas produções imagéticas. De filmes com temas pontuais usados para embasar discussões e figurar conteúdos em sala de aula, ou mesmo a produção de imagens em si, o cinema e os recursos audiovisuais têm sido amplamente usados em pesquisas na Educação nos últimos anos. Um pouco diverso disso e, a partir do que intitulamos de Pesquisa como Experiência, entregamos filmadoras, tablets e câmeras fotográficas para crianças pequenas, e as convidamos a registrar seu entorno sem quaisquer outras explicações.

            Estar com as crianças não nos trouxe e nunca nos trarão respostas. Ao contrário, estar com elas nos colocam a pensar em muitas outras perguntas – que igualmente ficarão sem respostas. Nos deixam constantemente em movimento, nos mostram novos caminhos, passagens secretas e esconderijos mirabolantes.

            Neste movimento, quando chegamos às escolas, ao invés de tentar colocar as crianças nas lógicas adultas de tempo, espaço e organização, nós é que adentramos o mundo infantil, bagunçado e caótico. Os equipamentos se tornam uma extensão desses corpos infantis, proporcionando vivências e experiências que podem captar momentos sem quaisquer pretensões anteriores ou combinados. São possibilidades de criarmos afetos, desejos e vontades que se apresentam de maneira a produzir “coletivos” que, ao mesmo tempo que se formam em um instante único e potente, se desfazem na mesma velocidade e com a mesma potência.

            A partir dessa constituição de “coletivos”, que as massas de modelos homogêneos fissuram e se tornam um “corpo estranho” na educação infantil. São nesses coletivos que as crianças acabam por serem guiadas nas sutilezas afetivas e contagiantes, pois o mesmo grupo que pega seus equipamentos e fica por segundos embaixo da mesa, logo sai e se dissolve, sempre mobilizados por um grito ou uma formiga que aparece em algum espaço da sala. Esses movimentos criam novos coletivos, apresentam novas linhas, e nos convidam a pensar sobre aquilo que, entre outros aspectos, orientam e problematizam as práticas na educação infantil, “[…] uma criança coexiste conosco, numa zona de vizinhança ou num bloco de devir, numa linha de desterritorialização que nos arrasta a ambos [...]” (DELEUZE; GUATARRI, 2012, p. 97).

            A pandemia fissurou com o “espaço escolar” habitando um espaço inusitado, promovendo uma transformação da ideia de casa e de “espaço escolar”, trazendo consigo a problemática da falta dos colegas, das pessoas que habitam a escola e, principalmente, dos espaços que se apresentavam para elas até então. A pandemia, com isso, apenas transporta uma ideia educacional para as casas das pessoas, não permitindo que os “coletivos” se formassem e, a partir disso, permitindo que a “educação de massa” ganhasse força, concretizando assim um plano político de uma educação que se propõe a produzir crianças que não são crianças, produzindo uma infância única, sem multiplicidades e subjetividades.

            A partir dessas reflexões, o que vislumbramos nesses momentos é uma educação diversa, com múltiplas possibilidades. Uma educação que dá pistas, mas não respostas e que permite às crianças seguirem caminhos outros. Uma educação sensível, arteira. Uma educação que, ao invés de encontrar respostas, nos coloca perguntas que nos fazem manter o movimento, as descobertas, as sensações e experiências. 

É um mundo que possui sua própria lógica, mundo esvaziado da lógica adulta que sempre se impõe sobre o mundo das crianças, mas um mundo que não ‘se organiza’, não ‘se arruma’ em referências dadas antes de uma lógica já dada, mas ‘lógicas de outros tempos e outras razões’, um mundo inseguro e irascível. (LEITE, 2013, p. 06)

Quando olhamos para as imagens e vídeos produzidos nesses encontros, imagens borradas e desfocadas, tremidas e um tanto psicodélicas, há também um deslocamento no modo de pensar, um atrapalhamento de sensações, um caótico modo interno de sentir aquelas produções. Tiram-nos do que está posto e nos colocamos em caminhos desconhecidos, incômodos, convidativos, caminhos outros. São produções que nos causam enjoos, vertigem, dor de cabeça, mas nos colocam fora, nos permitem pensar a educação e a infância de modos múltiplos e diversos.

São imagens que nada dizem ou dizem muito, imagens incômodas, vertiginosas, enjoativas, desfocadas, embaçadas, vazias, escuras, cansativas, trêmulas, paradas, corridas, rápidas, lampejos de imagens, mas que nos convidam a pensar com elas, para além delas… (CHISTÉ, 2015, p. 28)

            Outro movimento que tem nos colocado a pensar a educação, foi uma proposta realizada no decorrer da pandemia. No segundo semestre de 2020, para compor um dos cinco momentos do que chamamos de Ezquizogesto, convidamos crianças a enviar vídeos curtos produzidos no isolamento social, e a partir do conteúdo recebido, um curta metragem foi editado como produto final.

            Tanto as produções imagéticas das crianças que temos com a pesquisa na educação infantil, como esses movimentos realizados através de telas durante a pandemia, têm nos provocado a pensar que a infância, a educação e a arte não trazem de fato respostas às nossas indagações, mas que com mais perguntas, nos colocam em percursos outros. Esses trabalhos que produzimos enquanto grupo, nos colocam a imaginar uma educação instável, que não permitem saberes únicos e definitivos, que se fissura, e não determina uma única infância. Esses momentos de reflexão têm nos colocado entre educações e infâncias de aberturas, deseduca nosso corpo, nosso olhar, nosso saber. Propõe e nos convida a percorrer novos caminhos para seguirmos (des)construindo o que queremos da e para a educação.

 

REFERÊNCIAS

ARIÈS, Philipe. História Social da Criança e da Família. 2ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006.

BARROS, Manuel. Biblioteca Manoel de Barros. Leya, 2013.

CHISTÉ, Bianca Santos. Devir – Criança da Matemática: experiências educativas infantis imagéticas. Tese de Doutorado – Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro, 2015.

DELEUZE, Guilles, GUATTARI, Felix. Mil Platôs Volume 4. Editora 34. SP, 2012

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2009.

GALLO, Sílvio. Infância e poder: algumas interrogações à escola. In: KOHAN, W. O. Devircriança da filosofia: infância da educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

KOHAN, Walter. Infância, entre educação e filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

KOHAN, Walter. Infância, estrangeiridade e ignorância. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

KOHAN, Walter. Tempos da escola em tempo de pandemia e necropolítica. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 15, p. 1-9, 2020 Disponível em: https://www.revistas2.uepg.br/index.php/praxiseducativa/article/view/16212

LEITE, César. Infância, Experiência e Tempo. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011.

LEITE, César. Cinema, educação e infância: fronteiras entre educação e emancipação. Revista Fermentário, v. 2, n. 7, 2013.

RANCIERE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

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