Narrativas e experimentações: a arte como provocadora das infâncias na escola

 

Narratives and experimentation: art as a provocateur of childhood at school

 

Andrea Becker Narvaes¹

Universidade Federal do Pampa

 

Samara Facco²

Universidade Federal de Santa Maria

 

 

 

Resumo

O presente trabalho tem, como ponto de partida, a problematização da relação existente entre a infância, a escola e a arte e, como ponto fundamental, a contribuição de experimentações e narrativas de crianças com a arte visual nas suas dimensões instituídas e instituintes. Seu objetivo consiste em perceber, através da observação, os movimentos conservadores e os criadores existentes entre a infância e o ensino de arte, em uma turma de Anos Iniciais do Ensino Fundamental. É suposto que experimentações artísticas outras podem gerar narrativas de formas outras de viver a infância como convite para possíveis brechas de criações. Para tanto, inicia com narrativas de infâncias e de experiências artísticas escolares que abordam um modo único de ser criança e de fazer arte. Na sequência, dialoga com as concepções de ensino de arte no Brasil. Por fim, apresenta narrativas das próprias crianças com as experimentações artísticas vivenciadas em suas potências de infâncias criadoras, as quais vieram a provocar novas formas de pensar e fazer arte na escola, potencializando uma educação que acolhe o encantamento e a imaginação.

Palavras-chave: Infâncias; Artes visuais; Escola; Instituído; Instituinte.

 

 

Abstract

The present work has, as a starting point, the problematization of the existing relationship between childhood, school and art and, as a fundamental point, the contribution of experiments and narratives of children with visual art in its instituted and instituting dimensions. Its objective is to perceive, through observation, the conservative movements and the creators existing between childhood and art education, in a class of Initial Years of Elementary School. It is supposed that other artistic experiments can generate narratives of other ways of living childhood as an invitation to possible breaches of creations. To this end, it begins with narratives of childhood and school artistic experiences that address a unique way of being a child and making art. Subsequently, it dialogues with the conceptions of art teaching in Brazil. Finally, it presents narratives of the children themselves with the artistic experiments experienced in their creative childhood powers, which came to provoke new ways of thinking and making art at school, enhancing an education that welcomes enchantment and imagination.

Keywords: Childhoods; Visual arts; School; Instituted; Instituing.  

 

¹ Mestre e Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: andrenarvaes@unipampa.edu.br Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0938-2960

²Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Santa Maria/UFSM. E-mail: faccosamara8@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1193-0444

 

Introdução

No intuito de instigar e, ao mesmo tempo, de subsidiar nossas reflexões, tomamos, como ponto inicial, um recorte extraído de vivência pessoal, em instituição de educação infantil. Trata-se de uma narrativa-diagnóstico, escrita por uma psicopedagoga, em referência a uma de nós, autoras deste estudo, quando tinha sete anos e encontrava-se no início de sua escolarização formal:

 

Considerando a avaliação psicológica realizada, ressalto que a mesma vem apresentando no momento, um quadro de ansiedade excessiva com agitação motora, vivências inadequadas e precoces. Apresenta fortes sentimentos de ser reconhecida e de obter expansividade, o que a faz canalizar, principalmente, para suas vivências precoces sexuais, levando a uma preocupação excessiva com a punição. Acredito que os episódios de desatenção decorrem da ansiedade que apresenta em desejar participar de inúmeras atividades e “querer saber tudo”. No momento não apresenta tiques motores. Acredito também ser necessária a continuidade de psicoterapia para serem trabalhadas tais questões, e, principalmente, um trabalho aprofundado de orientação aos pais, para saberem lidar com os sintomas e condutas da criança. (FACCO, 2019, p.8)

 

Esse “recorte” consiste no relato de uma infância não muito poética, tampouco muito brincante, mas que representa tantas outras infâncias que não se encaixam dentro do imaginário social instituído sobre o ser humano e sobre o ser criança enraizado na sociedade. Tal registro representa/compõe as memórias de uma infância que foi não somente podada, foi também medicalizada, exatamente por ir na contramão do que estava posto como uma infância normalizada.

Essa infância é aquela que sofre na escola, espaço esse que, enquanto instituição social, muitas vezes, tenta impor um modelo de ser e de estar no mundo: aquele da obediência às normas. Nas infâncias, podemos encontrar, num único instante, múltiplas formas, composição de cores, diversidade de sabores, em cujas características transpiram criação e autenticidade. Ser criança, nesses termos, significa ser humano, e está na natureza da humanidade a criação de si e do mundo. Cabe, portanto, à educação ou potencializar ou desmobilizar a dimensão imaginária a que nos referimos anteriormente – e isso passa por tomadas de posição do educador e da instituição que abriga a educação.

Este artigo, a tomar como base as considerações preliminares, discute algumas das questões construídas no processo da pesquisa, a saber: (i) como as experimentações artísticas possibilitam experiências que vão na contramão da padronização das formas de ser criança e impulsionam a infância criadora? e (ii) quais os movimentos que a Arte provoca na instituição escolar?

Nesse processo, não objetivamos receitas, mas lançamo-nos a nos aproximar de outras formas de educação, muitas vezes bem diferentes daquelas que visam a que todas as crianças aprendam a mesma coisa, ao mesmo tempo e do mesmo jeito. Pretendemos, na verdade, desestabilizar certezas e evidenciar modos instituídos e reproduzidos, sem reflexão, sobre a sociedade, a escola, a arte e, essencialmente, sobre a(s) infância(s).

Na tentativa de aproximação de sentidos e de significados do fazer artístico pelas crianças, realizamos observações com/em um grupo de crianças escolarizadas; dentro disso, voltamo-nos a coletas de narrativas, advindas das experimentações com a arte, imbuídas do propósito de perceber e analisar os movimentos instituintes e instituídos que circulam nas infâncias e nas escolas por intermédio da arte.

 

CAMINHOS METODOLÓGICOS

 

Para efeitos de encaminhamentos metodológicos da pesquisa, organizamos três eixos de trabalho, assim definidos: (i) a pesquisa bibliográfica; (ii) as observações; (iii) as experimentações, com coleta de narrativas infantis. Para o olhar das infâncias e de sua potência criadora, este trabalho conta com os seguintes orientadores de caminhos, pela perspectiva bibliográfica: Castoriadis (2004), Derdyk (2014), Hernandez (2011), Pinazza e Gobbi (2014), Silva e Araújo (2007) e Valle (2009). As observações tiveram o intuito não somente de identificar como a arte está presente nas aprendizagens das crianças, mas, principalmente, de entender como se efetivam os momentos de experimentação artística e de produção de narrativas, considerando, para tanto, os movimentos produzidos por tais experiências infantis na instituição escolar.

Nesse fazer pesquisante, a primeira aproximação se deu com a Escola Estadual de Ensino Fundamental Ana Löbler, localizada no interior do município de Nova Palma/RS, no ano de 2019.  Ao visitarmos a escola, conversamos com a direção, conhecemos os projetos em andamento e ficamos cientes do Projeto político-pedagógico da escola (PPP). Também realizamos uma prática com todas as crianças do ensino fundamental, do 1º até o 5º ano, quando propomos experimentações artísticas. Em uma mesma tarde, com todas as turmas, assistimos a um curta-metragem, fizemos um cartão-postal com imagens do filme, criamos as nossas cores de pele com tinta e também fizemos atividades musicais.

Em outro momento, já em retorno à Universidade, tecemos interpretações sobre as criações das crianças, principalmente em relação aos cartões-postais. Por esse feito, notamos que, mesmo sem termos dado um direcionamento de como fazê-los, quase todos eles mostraram que eram processos de uma mesma lógica criativa: uma determinada imagem escolhida, colocada no centro da folha, sem recortes, sem outras imagens, sem rearranjos outros com outras figuras. Mesmo que se tratasse de um grupo bem dinâmico e disposto a criar, como bem se observou, todos os cartões-postais foram feitos dentro de um modelo semelhante de produção visual, o que nos fez pensar sobre o que a Arte provoca – ou não – na escola e nas crianças.

As reflexões advindas sobre as (re)produções dos cartões-postais fez com que surgisse o desejo de saber mais sobre como as linguagens artísticas se apresentavam para as infâncias naquele espaço. A saber, fora exatamente lá que acontecera toda a escolarização inicial de uma de nós, autoras. Além de uma aproximação pessoal com a escola, a autora em questão percebeu, através das atividades realizadas naquele dia, uma necessidade de voltar a olhar para aquele espaço sob uma outra ótica.

A observação do cotidiano escolar, as narrativas das crianças e as experimentações com a arte aconteceram com uma turma multisseriada de primeiro e segundo anos do ensino fundamental. As narrativas infantis oportunizaram-nos, a nós, pesquisadoras, ver e ouvir, através de relatos orais e artísticos, o que as crianças produzem de arte, bem como o que pensam sobre ela, trazendo micronarrativas com a voz, os traços e o corpo infantil. Com isso, aproximamo-nos das significações imaginárias das crianças, percebendo, por meio de suas criações e de suas falas, o que a arte pode provocar no espaço escolar e nas concepções de infâncias que nós, adultos, temos.

A escolha pelas narrativas infantis surge “(...) do desejo por conhecer crianças e seus processos criadores para além de resultados escolarizados daquilo que projetam, inventam e nos mostram em tantas e diferentes formas” (PINAZZA; GOBBI, 2014, p.22), para que não fiquemos apenas seguindo o que os adultos falam, em referência àquilo que elas gostam ou fazem. Trazemos então narrativas de crianças vivas, autoras dentro das experimentações escolares nos Anos Iniciais, valorizando as narrativas que são pequenas (PUROILA; ESTOLA, 2012), contrapondo as macro narrativas adultas, a fim de ver o que é singular dentro da escola no que se refere às práticas artísticas. Segundo as autoras, “o objetivo não é construir conhecimento objetivo e generalizável. Em vez disso, a descrição e interpretação da vida cotidiana das crianças e várias experiências de bem-estar são consideradas valiosas” (PUROILA; ESTOLA, 2012, p.25).

As narrativas expressam as experiências subjetivas das crianças, mas sempre de um individual que está imbricado no imaginário social coletivo, situado em um espaço e em um tempo que compõem o que é narrado. Nelas também se fazem presentes as questões culturais da vida no campo, uma vez que é o meio em que vivem, bem como as questões institucionais, por essas crianças estarem em processo de escolarização.  Consideramos, portanto, que essas narrativas não se limitam a serem meramente subjetivas e individuais, pois estão inseridas em um contexto social, cultural e histórico que influencia não somente o que é narrado, mas também o que é silenciado – o que, igualmente, muito significa.

 

A ARTE COMO REPRODUÇÃO

 

A história da educação formal brasileira teve (registrado) seu início com as missões jesuítas, as quais objetivavam cristianizar os indígenas que aqui viviam, trazendo e impondo sua própria cultura, inclusive no que se refere às artes, sem significar a produção ancestral que existia aqui. De acordo com os estudos de Silva e Araújo (2007), os jesuítas utilizavam o ensino de técnicas artísticas como um instrumento para catequizar os índios, o que se dava por meio de práticas informais de oficinas, com artesãos qualificados.

Seguimos, em 1816, com a Academia Imperial de Belas Artes, bem como com a vinda da Missão Artística Francesa, a Arte passa a ser apresentada de maneira institucionalizada, baseada no “[...] exercício formal da produção de figuras, do desenho do modelo vivo, do retrato, da cópia de estamparias, obedecendo a um conjunto de regras rígidas” (SILVA, ARAÚJO, 2007, p.4), instituído pelo modelo neoclássico de ensinar.

Esses estudos apontam que os primeiros vestígios da presença da arte na educação seguiram uma concepção de ensino de arte elitista, baseado em regras rígidas de cópia, oriunda da primeira tendência do ensino de Arte pré-modernista, a qual tinha, como características básicas, uma orientação neoclássica de cópia fiel de figuras, deixando de lado a arte popular e o artesanato que eram produções nacionais. Temos evidencia de que “A Missão Francesa foi na realidade uma invasão cultural de cunho elitista(BARBOSA; COUTINHO, 2011, p. 04), algo funcional dentro do momento histórico, onde “instrumentalizavam para o mundo do trabalho em uma sociedade que se preparava para a modernidade” (BARBOSA; COUTINHO, 2011, p. 42).

De acordo com os estudos dos autores anteriormente referidos, após a tendência tecnicista do ensino de Arte, surge a tendência Modernista, no início do século XX, a qual faz parte dos currículos escolares e se volta ao desenvolvimento da expressão e da criatividade. Nessa concepção de ensino, impulsionada pela Arte Modernista e pelo Movimento Escolinhas de Arte, concebe-se e faz-se um ensino de Arte como um ato lúdico, respeitando os processos criativos e não apenas o resultado como na concepção anterior. Por outro lado, também ficou evidente que as atividades eram trabalhadas sem intervenção ou mediação do professor, seja na percepção dos produtos artísticos, seja na realização da produção da criança, pois se tinha que tal aprendizagem devesse ser de forma espontânea (SILVA; ARAÚJO, 2007), o que também a caracterizou como idealista.

Sendo assim, temos duas vias bem evidentes, a educação artística dentro dos currículos de ensino de Arte na escola, porém sendo essa vigente por longo período como: “a concepção de ensino da arte baseada exclusivamente no fazer artístico contribuiu muito para relegar a arte a um lugar inferior na educação escolar” (SILVA: ARAÚJO, 2007, p. 10-11), pois cabia ao ensino de Arte apenas enfeitar o currículo escolar com atividades pretensamente humanizadoras, e as demais disciplinas seguiam sendo racionais, deixando apenas para a aula de Artes a exploração da sensibilidade.

Os estudos de Rosa Iavelberg (2014), ressaltam nessa concepção de ensino de arte escolar:

o diálogo da criança com a arte adulta aconteceu na escola tradicional, que antecedeu a moderna. A arte adulta ligada a padrões clássicos era um motivo a ser copiado e um modelo a ser alcançado, os conteúdos e procedimentos eram selecionados a partir da lógica adulta, o que desapareceu na escola renovada, dando espaço à lógica, à imaginação e à perspectiva da criança. (IAVELBERG, 2014, p.9)

 

Então, o ensino de Arte seguiu sendo “caracterizado como acessório; um instrumento de modernização de outros setores, e não como uma atividade com importância em si mesmo” (SILVA, ARAÚJO, 2007, p.4). A partir disso, podemos concordar que, na escola do século XXI, ainda estamos enraizados em um fazer artístico-técnico ou com práticas espontaneístas de desenhos livres, oriundas dessas concepções que fizeram parte da nossa história.

Como última concepção, temos, enfim, oriunda da tendência Pós-Moderna (contemporânea), um modo de ensino que não reduz a Arte a um meio para se “alcançar” outros fins ou como uma forma de lazer, mas como expressão e cultura. Segundo Silva e Araújo (2007), essa nova concepção visa à compreensão da arte como uma área de conhecimento e, por isso, uma construção social, histórica e cultural, o que a traz para o domínio da cognição, assim como a esse domínio – de manifestação da razão - se liga o conceito de arte, conhecimento estruturador, passível de potencialização.

Com base nisso, trazemos alguns relatos e determinados questionamentos a respeito da forma como a Arte se apresenta na realidade da turma observada. Entendemos que, a todo momento, a escola didatiza a infância, seja promovendo experiências para que aprendam algum conteúdo estipulado pelos adultos, seja vinculando a fixação de algum conteúdo de outra área disciplinar.  Nas observações realizadas na escola, presenciamos muitas atividades de português ou de matemática, impressas em folhas A4, sempre acompanhadas de pequenas ilustrações, para que as crianças as pintassem. Tais desenhos, reproduzidos, aí estavam, não sob forma de que a imagem pudesse falar como linguagem por si mesma; diferente disso, apareciam na tentativa de tornar a atividade mais atraente, para que as crianças cumprissem o objetivo de fixar o conteúdo que, por ali, estava sendo "dado".

Conforme apontam Silva e Araújo (2007, p.5), “o ensino de arte na educação escolar não possui um fim em si mesmo, mas serve como meio para se alcançar objetivos que não estão relacionados com o ensino de arte propriamente dito”. Por exemplo, utilizam-se [os educadores] da linguagem visual para tornar alguns afazeres – completar palavras, encontrar as figuras cujos nomes começassem com a letra que estivesse sendo estudada, fazer contas matemáticas dentro de uma centopeia, entre outros – mais prazerosos e fáceis de serem assimilados, ou seja, para ilustrar outras aprendizagens. Em reflexões de Hernández (2011), temos que:

                                                        

A tradição do olhar ocidental sobre a arte e as imagens se construiu em direção ao objeto (considerado como texto a ser decifrado) ou ao sujeito (a partir de sua concepção de autor-criador individual) que a produz.(...) Desta maneira, a escola ou o museu se articulam como lugares simbólicos que ensinam a disciplinar o olhar (para ver bem o que deve ser visto) e que outorgam, como moeda de câmbio e recompensa à submissão disciplinar, o gozo derivado de decifrar o enigma associado ao poder ver além da superfície do que se vê. (HERNÁNDEZ, 2011, p. 7)

                                                              

Com base nessas considerações, em associação à realidade observada, podemos afirmar que, não raras vezes, a linguagem visual é reduzida a ilustrações viciadas, não oferecendo às crianças qualquer repertório que fosse rico e variado de representações. Essas mesmas formas (formatadas) previamente vão instituindo nas crianças um certo imaginário artístico, por se constituírem em formas culturalmente aceitas das representações das coisas, o que pode explicar as famosas e repetidas frases surgidas em sala de aula: “Prof, mas como eu vou desenhar isso, se não sei desenhar bonito?

Infelizmente, através das tantas folhas distribuídas, nas quais estão (quase sempre) formas prontas e estereotipadas, vamos moldando as crianças para não mais se lançarem a criar formas suas, mas a tentarem reproduzir as poucas representações que conhecem das coisas – que nós, adultos, reproduzimos, por ser o único jeito que sabemos de representar. Ainda nesse sentido, referimos que não apenas a escola, mas também a indústria cultural dos desenhos animados, dos vídeos do Youtube ou dos filmes de animação vão podando as criações originais das crianças e instituindo formas específicas e massivamente entendíveis e reproduzíveis.

Outra observação, realizada quanto a produção dos desenhos, refere-se ao fato de as crianças estarem tão acostumadas a pintar desenhos prontos que, quando se proporcionam momentos de criação, momentos para o chamado desenho livre, elas acabam, normalmente, copiando as mesmas formas que já conhecem. Esse “trânsito de imagens” impede o surgimento de formas inventadas, criadas, de modo autêntico, pelas crianças. Vamos oferecendo tantas formas prontas, seguimos instituindo tantas formas certas de representar, que sejam entendíveis (e aceitáveis) pelos adultos, que as crianças param de fazer as suas criações, quer sejam elas mirabolantes, quer sejam elas criativas, mas sempre próprias e singulares de interpretação do mundo e de tudo que as cerca.

Diante do exposto, surgem outras questões – bem pertinentes – sobre a formação docente. Explicitamo-las: como nós, educadores adultos, moldados pela escola, pela academia e por toda estrutura social e cultural historicamente instituída, podemos propor para as crianças experiências de criação instituintes? Ou, ainda, como nós, que muitas vezes percebemos isso, damo-nos à simples reprodução de práticas que criticamos? Faz-se necessário, portanto, que nos distanciemos do nosso formato habitual instituído, para, assim, poder criar junto com as crianças, abrindo-nos a outras possibilidades de experimentar a educação.

É nesse sentido que nós voltamos ao termo instituído – já citado anteriormente –, a partir do que nos explica Castoriadis (2004):

                                                                          

Do ponto de vista do imaginário social, ― todos os sinais indentificatórios do indivíduo correspondem ao mundo instituído das significações sociais, no qual evidentemente um lugar essencial é ocupado pelas significações referentes às diferentes entidades coletivas instituídas, das quais o indivíduo é um membro ou um elemento. (CASTORIADIS, 2004, p. 259)

                                            

Dentro do magma das significações imaginárias sociais, temos o instituído como tudo aquilo que já foi criado pela sociedade e que gera regras e normas nas instituições sociais, incluindo aí a escola. Mas não podemos considerar os conceitos instituído e instituinte como antagônicos, pois, se temos algo instituído, é porque isso foi criado por meio de um movimento instituinte.  Os dois, então, estão sempre numa relação de imbricamento e tensão, na medida em criamos a partir do que existe (instituído), mas também o modificamos através de novas criações (instituintes). Segundo Castoriadis (1982, p. 414), “a instituição da sociedade pela sociedade instituinte apoia-se no primeiro estrato natural do dado – e encontra-se sempre (até um ponto de origem insoldável) numa relação de recepção/alteração com o que já tinha sido instituído”. Com base nessas reflexões, podemos pensar que a naturalização do olhar dos adultos, que separa/avalia/classifica, dicotomicamente, como certo ou como errado, tudo o que se relaciona às formas como as crianças realizam determinada proposta, torna o objetivo da expressão artística a representação de algo que tem apenas uma maneira de ser, sem que haja estranhamento para essas produções, que acabam sendo estereotipadas. Se as crianças se expressam, a todo momento, buscando reproduzir as formas simbólicas de representação socialmente instituídas, vão podando sua potência humana criadora, a qual permite instituir outras formas além das que já existem.

O processo de escolarização e de introdução na cultura socialmente instituída vai limitando/frustrando/sufocando a capacidade criadora das crianças, capacidade essa que as assemelha àquela dos artistas, que é poder criar formas próprias de apresentar sua visão de mundo. Por não saberem ainda a forma (instituída) de representar, podem encontrar maneiras singulares para mostrar suas significações, quer através de rearranjos, quer, ainda, por meio de outras combinações, que surgem entre o que se conhece e o que se imagina. As crianças, não sabendo como é o símbolo gráfico que representa normalmente uma casa, precisam inventar suas formas próprias de mostrar que a casa faz parte da sua significação naquele momento.

Infelizmente, raras vezes a arte tem significado “criação”, porque fomos habituados socialmente a fazer formas artísticas copiadas, que precisam ser entendidas para serem consideradas belas. É preciso ter um único significado, que seja claro, para que todos entendam o que ela quer dizer; com isso, não se tem, tampouco se oportuniza, espaço para o não-explicável, o não-lógico e o não-dito (que muito significam).

Dessa forma, questionamo-nos se o que proporcionamos de arte às crianças na escola são consideradas experiências artísticas de criação ou são apenas reprodução de formas estereotipadas daquilo que conhecemos. E então, como proporcionar momentos de criação, que, além de não caírem no senso comum de arte, consigam proporcionar realmente o aumento do repertório das crianças, sem induzi-las a reproduzir algum formato socialmente aceito e apenas passível de entendimento pelos adultos?

 

O QUE A ARTE PROVOCA NA ESCOLA? DISCUTINDO POSSIBILIDADES

 

Com todas as reflexões que permearam o processo de pesquisa, entre estudos bibliográficos, observações na escola e possibilidades de experimentações com o grupo de crianças e suas narrativas, percebemos que, além de proporcionar momentos de criações livres, é preciso desconstruir muitas verdades já internalizadas sobre as linguagens artísticas e seus processos criativos. Faz-se imprescindível desestabilizar estereótipos, julgamentos engessados que permitem apenas uma forma de belo, uma única forma de expressar e de significar a vida, para que, compreendendo que há outras possibilidades, podermos, nos abrir para experimentar e criar.

Além de deixar as crianças experimentarem o novo, é necessário mostrar possibilidades de criações  – como, por exemplo, levar obras de Arte de diferentes tendências artísticas, proporcionar acesso a diversos outros elementos, além do lápis de cor (como giz, tintas, esponjas, linhas, lãs), outras texturas (como terra, folhas, galhos), diferentes tamanhos e texturas de folhas, para que seja possível às crianças conhecerem distintos recursos e assim também se lançarem à possibilidade de outras formas. Não podemos apenas ficar na visão romantizada de infância criadora espontânea, que, com um papel e uma caneta apenas, as crianças conseguirão sair inventando formas.

 A arte nem sempre é algo natural da infância, afinal, as crianças não somente fazem parte de uma sociedade com formas instituídas, como também convivem diariamente com adultos que, na maioria das vezes, conhecem apenas uma forma de representar as coisas; além disso, elas têm livre acesso, por significativo período de tempo, às imagens padronizadas veiculadas pela televisão e pela internet. Todas essas socializações vão instituindo nas crianças formas únicas de desenhar, por exemplo, negando a elas a experimentação e a criação de coisas outras.      

É desse encantamento pelas figuras inventadas das crianças, pelos resquícios da imaginação criadora que propus as experimentações com as crianças. Inicialmente, levei várias obras de arte do artista mineiro Ricardo Ferrari[1], as quais retratam a infância e suas diversas brincadeiras, sempre representadas por personagens amarelos, assim como a obra Jogos Infantis de Pieter Bruegel[2], que demonstra muitos jogos e miniaturas, em uma única tela. Depois de apreciarmos as obras, fomos dialogando sobre as suas percepções e questionamos das obras de arte apresentadas.

As crianças expressaram que, mesmo sendo diferentes, todas as telas representavam crianças brincando. Inclusive, enquanto olhavam as obras, algumas iam dizendo: - eu quero essa! - ah não, eu vou querer essa! Perguntamos então: como assim vão querer, para quê? e elas responderam: eu vou querer fazer igual a essa!. Nessas narrativas, percebemos claramente os resquícios da primeira concepção de arte/Educação pré-modernista, pautada principalmente no modelo neoclássico da cópia rígida de figuras, que se reflete ainda hoje nas formas como se concebem as produções artísticas.

As crianças ainda possuem a visão de artista – como a daquele que produz telas pintadas a óleo, de situações muito distantes da realidade em que elas vivem –, mesmo que não o saibam, mesmo que, num primeiro momento, não consigam perceber que elas também podem ser criadoras, podem fazer as suas próprias obras de arte. Contamos, então, um pouco sobre a biografia dos artistas, além de narrar uma breve história sobre como Ricardo Ferrari criou essas obras sobre a infância e de tecer alguns comentários sobre a riqueza de detalhes nas miniaturas de Pieter Bruguel, que representa a primeira obra de arte em que aparece a infância. Dessa forma, salientamos que, da mesma maneira como os artistas criaram essas infâncias baseadas nas suas vivências, cada um deles também poderia criar a sua significação de infância.

 Como momento seguinte, propomos então que cada uma delas criasse a sua obra de arte, mas com um desafio: explorando as sombras que os seus corpos produziam no Datashow, como mostra a imagem 1. Proporcionamos pedaços de papel pardo, no tamanho que cada um quisesse, emendando quantas vezes fosse necessário, para que coubesse, no papel, a criação que desejavam realizar.

Cada um escolheu como seria a forma do seu corpo na sombra. Para isso, provocávamos para que explorassem os movimentos (Imagem 2), para que fizessem diferentes gestos, que produzissem diversas sombras, até que ficassem da forma como eles gostariam e que essa forma tivesse um movimento como nas brincadeiras. Mais uma vez, percebemos a necessidade de intervir, incentivando esse corpo a produzir outras formas, pois muitas crianças ficavam apenas em pé e paradas, sem ousar criar movimentos.

 

              Imagem 1 – Produzindo desenhos com corpos em movimento

Fonte: FACCO, 2019.

 

Depois que alguns já haviam terminado as suas formas iniciais, disponibilizei, para que continuassem criando, materiais como: giz, lápis de cor, canetinhas, papel crepom, novelos de lãs, lixa, esponja, botões, terra e folhas. Com o decorrer das criações, percebi que, mesmo tendo mostrando um repertório de obras de arte, tendo disponibilizado diversos materiais e também dito que poderiam criar o que quisessem, em muitos casos, ainda surgiam as inseguranças. Elas se manifestaram, durante nossas observações, nas/pelas falas das crianças: Como vou fazer isso? Eu não sei desenhar com isso (referente ao uso das lãs). Me ajuda a fazer isso, porque não sei como desenhar.

Mesmo proporcionando diversos materiais que possibilitassem criar formas menos formatadas e com tamanhos grandes, formando desenhos com as sombras das crianças, criando formas com lã e tinta, algumas crianças pegavam o lápis de escrever e faziam a forma pequena antes de ousar com esses materiais. Com isso, apenas circulavam ou preenchiam os espaços com a lã, as tintas e os elementos da natureza (terra, folhas secas e galhos). Percebemos, naquele momento, que levar um repertório de imagens diferentes e uma gama de materiais diversificados não era o suficiente para que as crianças realmente criassem do seu modo.

 

Imagem 2 - Explorando as formas do corpo

Fonte: FACCO, 2019.

 

Explicitamos aqui a significação de criação, conforme a consideramos: ir além da representação simbólica instituída de algo – como por exemplo, amor ser representado com corações – e fazer um rearranjo de outras combinações e inserções. Não é algo que já está pronto para passar imediatamente para o papel, mas que é produzido no encontro entre o pensamento, a imaginação e o papel, através da provocação com outras imagens, com diálogos, bem como com um repertório de materiais; é o que surge entre o conhecido/imaginado e aquilo que foi conseguido expressar na folha. A imagem 3 retrata bem esse movimento entre o que se pensa e o que se consegue expressar.

 

Imagem 3 – Movimentos de criação

Fonte: FACCO, 2019.

 

Justamente da tentativa de criar, na escola, um espaço onde se faz ser possível aparecerem outras formas, provocadas pelo que já existe, e de mostrar que a arte não é apenas imitação ou recriação da realidade, mas que é uma possibilidade de utilização da potência humana que é a imaginação, que surgiram as criações dos bonecos de cabeça grandes. Como muito bem coloca Edith Derdyk (2014), cujo texto de referência intitula-se – significativamente – ‘Papel em branco’:

 

O desenho acontece de forma mais potente quando a linha é compreendida como extensão do corpo, tal como uma dança no espaço do papel! Quando a linha se trai guiada por modelos prévios, na maioria das vezes ela surge de maneira impessoal, rígida, sem potência expressiva, isenta de subjetividade e, portanto, sem ter chance de conduzir a criança à sua expressão pessoal de forma criativa e íntegra. (DERDYK, 2014, p. 130)

 

Nessas experimentações de produzirem-se como artistas e também de inventarem a significação da sua infância, em forma de criação, com as brincadeiras de cada um, é que fomos instituindo outra relação com a imagem e com a cultura visual (Imagem 4). Aos poucos, fomos nos distanciando no olhar artístico viciado em representar algo simbolicamente e fomos nos aproximando de ousar, inventando outras coisas, como consta na imagem 5.

Fomos produzindo movimentos instituintes durante esses processos, na medida em foram desaparecendo as falas inseguras de quem não sabia desenhar e aparecendo Profe, vou fazer um céu com nuvens rosas. Ainda segundo Edith Derdyk (2014, p. 134), “[...] a linha traçada é a concretização material de uma ação movida pelo desejo, pela necessidade, pelo imaginário de um corpo, revelando a expressão plena de uma subjetividade capturada pelas distintas intensidades do traço”. Em outras palavras, abrindo-se o espaço de/para criação. Nesse sentido, a cultura visual:

 

[...] põe a ênfase não tanto na leitura das imagens como nas posições subjetivas que produzem as imagens (seus efeitos nos sujeitos visualizadores). Isso significa considerar que as imagens e outras representações visuais são portadoras e mediadoras de significados e posições discursivas que contribuem para pensar o mundo e para pensarmos a nós mesmos como sujeitos. (HERNÁNDEZ, 2011, p. 3-4)

 

A riqueza dos desenhos infantis não se encontra na representação da realidade, mas na interpretação da criança que foi provocada pela realidade (Imagem 6) e que também provoca as significações de quem vê (sente).

Imagem 4 – Produzindo outro olhar sobre as imagens

Fonte: FACCO, 2019.

 

Imagem 5 – A desnaturalização do olhar

Fonte: FACCO, 2019.

 

Imagem 6– Imagens como produtoras de efeitos

Fonte: FACCO, 2019.

 

Para dialogar com uma educação do sentir, consideramos pertinente o dizer da autora Lilian do Valle (2009), que acredita na potência da educação como prática de transformação social. Para ela, ainda que a educação vise à aquisição de conhecimentos, habilidades ou comportamentos já instituídos, ela deve ser entendida como prática de formação humana, a qual “visa à auto-alteração, à criação de si mesmo como alguém que jamais se foi e que antes nunca existiu” (VALLE, 2009, p.475-476).

Assim, na tentativa de ver a escola para além de uma instituição social com normas instituídas que regem os que ali convivem, mas também como um espaço educativo que faz surgir movimentos criados pelas crianças, tentamos provocar outros movimentos pelo viés das experimentações e do imaginário, a colocar as crianças como protagonistas e artistas. Assim, trazemos as concepções sobre o imaginário e a imaginação na teoria do imaginário social.

 

[...] O imaginário é poder radical de criação que faz ser cada sociedade, e que não pode ser imputado a nenhuma instância supra-humana nem extra-social, a nenhum Ser, Ideia, Lei, acontecimento, indivíduo ou grupo, senão ao coletivo anônimo que, a cada vez, é a própria sociedade. Quanto à imaginação, ela é poder igualmente radical, mas que designa a atividade de auto constituição do sujeito, que não pode tampouco ser reduzida a nenhuma determinação imposta pela natureza ou pelas leis sociais. (VALLE, 2009, p.475)

 

Com os momentos de criações dos Bonecos de cabeça grande, produzimos movimentos instituintes na forma de conceber a arte naquele espaço, na medida em que propiciamos experiências onde ela deixa de ser apenas imitação ou recriação de formas já existentes, para dar lugar à imaginação criadora das crianças. Nesse processo, as crianças deixam de ficar atreladas à imitação da realidade, para, a partir daquilo que existe, produzirem um novo.

Esses movimentos instituintes na forma de fazer arte, se apresentam na medida em que se deixa de lado um modelo a seguir e ousa-se criar a sua forma própria, a partir do que conhecem. A imagem 7 demonstra esse novo olhar das crianças para com as imagens produzidas, um ver e sentir com menos vícios, na medida em que inventam formas e criam a sua própria significação sobre a infância.

A criança foi contando, enquanto criava o desenho, que se trata de uma produção dela andando de bicicleta, coisa com que mais gosta de brincar. Ao invés de desenhar uma bicicleta convencional, percebemos que ela havia convidado duas colegas para ajudar na produção das sombras e fazer a bicicleta com os corpos.

 

Imagem 7 - Inventando formas

Fonte: FACCO, 2019

                                                      

A arte dá conta daquilo que não conseguimos verbalizar, gesticular e demonstrar de forma objetiva, porque ela é algo a mais do que certezas. Na escola e no ensino de artes, vivemos na “[...] ilusão de que o dizer dá conta do que vemos, quando, na realidade, sempre vemos mais do que dizemos ver” (HERNÁNDEZ, 2011, p.6), sentimos mais do que podemos expressar e como humanos somos muito mais que meros reprodutores.

Na busca por outros movimentos e por outras possibilidades, corroboramos com Hernández (2011), para quem:

 

[...] uma proposta educativa a partir da cultura visual pode ajudar a contextualizar os efeitos do olhar e mediante práticas críticas (anticolonizadoras), explorar as experiências (efeitos, relações) de como o que vemos nos conforma, nos faz ser o que os outros querem que sejamos e poder elaborar respostas não reprodutivas frente ao efeito desses olhares. (HERNÁNDEZ, 2011, p.18)

 

É na escola (principalmente) que a arte pode representar esse lugar de expressão e da potência humana de criação e invenção social e de si. Nenhuma realidade foi sempre assim e nem precisa continuar a ser, temos a possibilidade de inventar e logo (des)inventar de novo, uma vez que os seres humanos possuem a capacidade de autoalteração social, seja por meio da imaginação (singular), seja mesmo pelo viés do imaginário (coletivo).

 

(IN)CONCLUSÕES

O lugar que a arte ocupa no espaço escolar é, muitas vezes, um lugar de reprodução de símbolos já existentes, na medida em que exigimos das crianças fazerem suas formas o mais próximo possível do considerado histórica e socialmente como real legitimado. Em outros momentos, porém, percebemos a potência da expressão infantil, tendo a arte dos desenhos como fuga de invenção, espaço aberto para a imaginação, mesmo no entremeio à rotina repetitiva da sala de aula.

Inicialmente, observamos que a escola institui um olhar naturalizado sobre as produções artísticas, como nos desenhos, pelo qual, às vezes, ensinam-se as crianças a não criarem, isto é, repetirem, como observado nas primeiras experimentações, quando as crianças narram que “precisam fazer com o lápis primeiro e só depois que tivessem certeza que estava bom, passar os lápis e as canetinhas coloridas”. Mesmo estando no início do processo de escolarização, foi percebido que seguiam um padrão artístico instituído que procuravam reproduzir. Na tentativa de romper com essa relação de cópia e reprodução de figuras, aos poucos, fomos estabelecendo outra relação com as imagens, não como explicativas ou interpretativas, mas como provocadoras naqueles que as produzem e veem de diferentes significações, que o repertório próprio e o coletivo, o já existente e o que foi criado.

Oportunizamos momentos de criação que foram além de lápis de cor e folha A4, trazendo suportes grandes, elementos da natureza, experimentações com o próprio corpo e saídas a campo para presenciar a vida com toda sua pluralidade. Através da imaginação singular de cada uma das crianças nas suas produções com os Bonecos de Cabeça Grande, apreendemos que, ao mesmo tempo em que significavam as suas infâncias, iam alterando também o imaginário coletivo referente ao lugar da arte naquele espaço. Aprendemos que é possível atender à necessidade de mudar, aceitando os convites infantis de movimentar a docência e mostrar outros caminhos possíveis no que se refere as experimentações artísticas nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental.

Percebemos a alteração da forma como as crianças se relacionavam com os elementos, na medida em que se permitiram fundir-se com os elementos, produzindo desenhos no encontro da imaginação com os materiais dispostos. Além da expansão da subjetividade nesses momentos de experimentações, movimentou-se também o imaginário coletivo, na medida em que instituímos na escola o lugar da arte como experiência de criação e de desenvolvimento das crianças. A arte foi ocupando o seu espaço de potência no currículo escolar, como relata a professora regente ter percebido a importância do ensino de arte para o desenvolvimento integral das crianças.  Foi com esse movimento de des-naturalização, esse des-locamento, essa des-construção, que mais práticas artísticas outras seguiram contaminando aquele espaço escolar, provocando outras formas de ser criança e de ensinar na escola.

Esse trabalho foi realizado com o intuito de dar visibilidade a um fazer/ser educação da infância criadora, educação que não se restrinja apenas a um transmitir saberes historicamente instituídos, mas que explore a maior potência humana, que é a capacidade de invenção de si mesmo pela imaginação e transformação da sociedade, pelo imaginário social instituinte. E, para finalizar, se este texto transita entre o escrito de uma primeira pessoa do singular (eu), em paralelo e em alternância com uma primeira do plural (nós), em composição/relação ainda com uma terceira do plural (elas, as crianças) é porque o individual e o coletivo dialogam, se mesclam, se constituem, se movimentam, se complementam. Esse é o fazer na educação, esse é o fazer na/da/com a arte: onde o adulto (re)encontra a criança, e a criança e o adulto educador dão-se, colorida, sonora e movimentadamente, as mãos.

 

REFERÊNCIAS

 

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FACCO, Samara. Experimentações artísticas na escola e narrativas infantis: O que a arte (re)produz na instituição escolar. 2019, 45 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Pedagogia), Universidade Federal de Santa Maria -UFSM, Santa Maria, 2019.

 

HERNANDEZ, Fernando. A cultura visual como um convite à deslocalização do olhar e ao reposicionamento do sujeito. MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene. (Org.). Educação da cultura visual: conceitos e contextos. 1. ed. Santa Maria: Editora da UFSM, 2011. p. 31 – 50.

 

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VALLE, Lílian do. A educação impossível. Santa Maria: Educação, 2009, p. 473-486.

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[1] Disponível em: https://www.guiadasartes.com.br/ricardo-ferrari/obras-e-biografia

[2] Disponível em: https://virusdaarte.net/pieter-bruegel-o-velho-jogos-infantis/