As experiências narrativas nas artesanias de imagens de si e suas potencialidades formativas: tessituras do tempo e da memória

 

 

The experiences narratives in the formative artesanias of images of itself and its potentialities: tessituras of the time and the memory

 

 

Rita de Cássia Fraga da Costa[1]

Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE

 

Taiza Mara Rauen Moraes[2]

Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE

 

 

 

 

Resumo

Este artigo é decorrente de um (re)visitamento aos registros de um quadro têxtil com imagens criadas por idosos como apresentação de si, articulado com um diário de experiências produzido pela pesquisadora, acionando reflexivamente conceitos sobre memória e tempo. Estudo de abordagem cartográfica que se desdobra a partir de uma pesquisa narrativa, num espaço/tempo de educação não formal com um grupo de idosos, mobilizado pelas questões: como o tempo e a memória estão imbricados às experiências narrativas nas artesanias de imagens de si? E como essas experiências a partir do tecer podem potencializar as práticas formativas de seus sujeitos? O tecer memórias de vidas, escritas de modo artesaniado, geraram reflexões sobre as imagens criadas, considerando seus fluxos entre tempo e memória na busca de (re)conhecer os sujeitos envolvidos no projeto como reconstrutores de olhares sobre suas vidas.

Palavras-chave: Tempo; Memórias artesaniadas por idosos; Narrativas de imagens.

 

 

Abstract

This article is the result of a (re)visit to the records of a textile frame with images created by the elderly as a presentation of themselves articulated with a diary of the experiences produced by the researcher, reflexively triggering concepts about memory and time. Cartographic approach study that unfolds from a narrative research, in a space/time of non-formal education with a group of elderly, mobilized by the questions: how is time and memory intertwined with narrative experiences in the artisans of images themselves? And how can these experiences from the weaver enhance the training practices of their subjects? The weaving memories of lives written artfully generated reflections on the created images, considering their flows between time and memory in the search for  (re)meet the subjects involved in the project as reconstructors of looks on their lives.

Keywords: Time; Memories crafted by the elderly; Narratives of images.

 

 

 

 

 

Introdução

O presente artigo compartilha ideações de um estudo cartográfico em desenvolvimento, na linha de pesquisa Memória e Linguagens, na pós-graduação de uma universidade comunitária do sul do Brasil.  Revisitamento aos registros do campo de uma pesquisa narrativa, proposta de educação sensível realizada com 11 idosos, 4 homens e 7 mulheres, com idades entre 60 e 72 anos, assistidos em um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), um espaço/tempo não formal de educação. Os registros narrativos resultaram num quadro têxtil com imagens criadas pelos idosos como apresentação de si, nomeado pelo grupo como ‘Panô de Memórias’ e um diário de campo, o ‘Diário de Experiências’, com notas da pesquisadora.

Adotamos o tecer memórias artesaniadas para a produção dos dados desta escrita. Tramamos e problematizamos os elementos que nos afetaram neste percurso rizomático, visto que as aberturas para este pesquisar cartográfico estão entre escutas, leituras, escrituras, fragmentos das imagens. Portanto, esta é uma pesquisa que se faz na urdidura dos fios de histórias de vida, na trama de tempos, memórias e de todos os sentidos despertados quando nos colocamos disponíveis às experiências narrativas nas artesanias de imagens de si. O objetivo foi direcionado para articular reflexões sobre as experiências narrativas artesaniadas em imagens de si e suas potencialidades formativas num contexto relacional.

 Neste artigo, Deleuze (2015), Pelbart (2015), Didi-Huberman (2013, 2015),  Maffesoli (2021), Benjamin (2012), Passeggi (2010, 2020) e Larrosa (2018) impulsionaram a construção de um diálogo reflexivo sobre Tempo/ Memória/ Imagem/ Experiências narrativas/ Narrativas (auto)biográficas e Formação.

Ancorada na filosofia da diferença, a partir de Deleuze e Guattari (2011; 2012), a abordagem cartográfica foi acionada para a produção da pesquisa, compreendendo-a como percurso formativo que nos conduz ao encontro de experiências e por seus afetamentos.

O movimento proposto viabiliza olhares sobre as imagens artesaniadas como impulsionadoras do pensamento, ao problematizar: como o tempo e a memória estão imbricados às experiências narrativas nas artesanias de imagens de si? E como essas experiências a partir do tecer podem potencializar as práticas formativas de seus sujeitos?

Para estas reflexões alguns itens foram mobilizados na construção deste artigo. Partimos do ‘Panô de Memórias’ - os fios da vida, item que desvela o objeto deste estudo. Apresentamos o ‘Panô de Memórias’ e o ‘Diário de Experiências’, os registros narrativos de uma proposta educativa/sensível realizada com idosos ativando experiências narrativas (auto)biográficas como possibilidade formativa nas artesanias de imagens de si.

No item No percursar pelas imagens – tessituras da experiência narrativa apresentamos o tecer como modo de produção neste pesquisar cartográfico e da escrita da narrativa imagética artesaniada de Dona Ana[3], artífice-interlocutora participante deste campo de pesquisa. Das percepções incitadas pela sua narrativa artesaniada decorreu o pensar sobre como acontecem as experiências narrativas pela imagem a partir do tecer e suas potencialidades como práticas formativas de seus sujeitos.

No item Tempo e Memória são explorados os imbricamentos do Tempo e da Memória pelas experiências nas narrativas artesaniadas pelas imagens de si, nomeado por Deleuze (2015) como Tempo Aion, tempo não localizado (atópico); seguimos pelas multiplicidades, atentas aos tempos e às memórias na composição do pensar deste sujeito que está em (trans)formação transpassado pelas experiências nas artesanias das imagens no fluxo de sua composição subjetiva.

Inquerimos o tempo em seu aspecto que difere de certo “progressismo” (MAFFESOLI, 2021, p. 12), tomando distância dessa noção de tempo atrelada à produtividade social. Nos interessa seu espírito e seus engendramentos mais profundos para que possamos destacar a intensidade do vivido e do vivível, no estímulo a uma potência natural do humano, ser que se (auto)formata incessantemente em metamorfoses, pois devém sonhos e o melhor-estar.

Ao final, No alinhavar das (in)conclusões pinçamos efeitos deste percursar cartográfico para destacar as tramas das artesanias como imagens, considerando seus fluxos entre a memória e o tempo e a partir da frequente abertura perceptiva em que acontecem, (re)conhecer a novação de seus sujeitos, no entremear de outros entendimentos com a vida.

 

‘Panô de Memórias’ - os fios da vida

 

Este pesquisar mergulha nas imagens têxteis do ‘Panô de Memórias’ e no texto de um ‘Diário de Experiências’ tecido pela pesquisadora propositora. O texto têxtil é composto por costuras, bordaduras, pinturas, escrituras, ensaios criados como apresentações de si. Registros (auto)biográficos frutos de um campo de pesquisa narrativa, desenvolvida com autorização do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP) da universidade, realizada com a duração de seis encontros/oficinas de Artesanias, em um espaço/tempo de educação não formal, conjuntamente com um grupo de onze idosos, 4 homens e 7 mulheres, com idades entre 60 e 72 anos, assistidos em um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) em uma cidade do sul do Brasil. 

O disparador para os encontros oficinas foi a apresentação de um acervo de artesanatos de referência cultural, a maioria deles confeccionados em matéria-prima e técnicas convergentes à produção têxtil, que são muito comuns à região. Este convite à apreciação inaugurou junto ao grupo de idosos reflexões sobre as artesanias, ponderando-se as escolhas e os desafios de cada produção, as origens dos materiais e suas histórias, os usos e (des)usos e tudo mais que lhes tocasse a atenção.

Nessa ocasião, o grupo foi estabelecendo identificações e logo a potencialidade narrativa destas criações artesanais foi percebida. Deste despertar, surgiu a proposta no grupo de criar uma artesania têxtil para a apresentação de si, independentemente da técnica artesanal adotada ou da materialidade, o desafio seria criar, com têxteis (fios, linhas, tecidos e aviamentos abundantes no acervo de materiais do CRAS), um registro narrativo com traços de cada participante, mas que costurados apresentaria o grupo dos idosos do CRAS, na unidade de uma criação artesanal.

As artesanias foram o estímulo central nesta proposta educativa sensível, desde provocar os sentidos, os saberes e a produção das narrativas do grupo, e colaboraram para o surgimento do desafio de criar as artesanias de imagens de si, na confecção colaborativa de um panô, o quadro têxtil. Deste modo, o ‘Panô de Memórias’, como foi nomeado pelo grupo de idosos, foi ideado como oportunidade de apresentação em imagem de algo significativo de suas vidas, mas também como registro de memória do grupo. Um panô que é um quadro formado numa costura conjunta, como quem tece coletivamente uma colcha de retalhos.

O processo de criação do ‘Panô de Memórias’ foi alimentado pelas percepções do grupo de idosos. Experiência sensível revelada pela intrínseca aventura de (re)significar memórias e sentidos. Desencadeado pelo desafio de compor com tecidos e fios a confecção de uma imagem elaborada individualmente como apresentação de si, memórias de vidas artesaniadas. Assim, em meio às interações das rodas de conversas, nos encontros das Oficinas de Artesanias, seus artífices-interlocutores foram articulando composições que desvelavam o seu Eu particular e, também, o Eu plural, aquele que articula relações com o mundo.

Ao acompanhar os (des)dobramentos da proposta de educação sensível com os idosos, foi possível reconhecer que as Artesanias tomadas, a princípio, como “[...] as complexidades e a amplitude, tanto dos processos reflexivos e manuais que envolvem os fazeres artesanais, quanto dos produtos resultantes pelo uso de tais habilidades, nesse caso, o artesanato” (PETRYKOWSKI PEIXE et al., 2014, p. 41), tiveram seu conceito ampliado permitindo compreender o artesaniar como linguagem, expressão narrativa e estética refletida no processo e produto constituído na relação de seu fazer/saber/sentir.

Elaboração essa que se conecta à afirmação de Larrosa (2018, p. 23) quando diz que “[...] não se escreve sobre a experiência, mas sim a partir dela”. Nas composições artesaniadas com os têxteis, entre o alinhavar, o costurar e na criação de arranjos outros, no atravessar pelos tecidos com linhas criando rastros, cisões, uniões, dobras, e imprimindo gestos, buscamos refletir sobre as experiências  produtoras de narrativas em anúncios daquilo que afetava o sujeito desencadeadas por imagens (experiências). Assim, deste ofício enraizado nas culturas do mundo, dos saberes e fazeres em compor com tecido e fios, deu-se corpo, corporeidade, às experiências e “ [...] o conhecimento das experiências” (LARROSA, 2018, p. 22).

 

 

 

 

 

 

 

Figura 1: O Panô de Memórias.

 

Fonte: Costa, 2019.

 

O ‘Panô de Memórias’ não é um “decalque” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 30), mas uma enunciação nomeada artesania, ou seja, um conjunto de multiplicidades das subjetividades tramadas como escrituras/leituras de si em uma narrativa viva. Portanto, é imagem-mapa, aberta e “[...] conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 30). Assim, o sujeito narrativo produz uma matéria viva que deriva pelas questões-reflexões e se alimenta no transitar das memórias, nas aprendizagens garimpadas num tempo conexo de errância, entre as intermediações narrativas daqueles que forem fisgados pelo “batimento” de suas imagens (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 9).

Este pesquisar se ocupa em acompanhar as experiências narrativas nas artesanias de imagens de si e suas potencialidades formativas e, nos movimentos deste percursar, (re)conhecemos a narrativa artesaniada como leitura/escritura/ tessitura em imagem. Pois a narrativa é uma leitura sempre plural, mesmo que espelhe “[...] uma leitura particular (como toda leitura?), a leitura do sujeito que sou, que creio ser” (BARTHES, 2012, p. 30). É a expressão de si que vai ocupando todo nosso corpo em busca de tomar a linguagem, para enunciar o sujeito em seu mundo cultural. A narrativa nasce em uma tessitura silenciosa deste, “[...] texto que escrevemos em nossa cabeça [...] texto-leitura.” (BARTHES, 2012, p. 27).

Na artesania do ‘Panô de Memórias’ as narrativas se processam na brevidade da materialidade da imagem, do acesso às memórias e essa experiência se configura pelo saber/fazer artesanal moldado pelo ritmo do sujeito. Portanto, resulta numa incompletude, pois é elaborada na dinâmica necessidade de vir a ser. Devir específico e simultaneamente transparente a cada entonação da palavra ou da imagem de si lançada ao mundo.

A narrativa artesaniada em imagens de si em um Panô de Memória é uma matéria expressiva de quem, na entrega instantânea, protagoniza a transmissão, pois a imagem guarda/registra traços/linhas/marcas codificados pelo narrador(a).

Neste entendimento,  as artesanias de imagens de si, ou ainda, uma imagem tecida artesanalmente como apresentação de si, resulta numa produção de quem se disponibiliza a ser afetado pela brevidade da imagem e da enunciação, uma possibilidade formativa construída no acaso do encontro, no pulso do devir que deixa acontecer sujeito e presente. Instantâneos do tempo e da memória fixados em fios e linhas têxteis.

 

No percursar pelas imagens – tessituras da experiência narrativa

 

Nesta abordagem cartográfica, o tecer surge como modo de pesquisa e produção desta escrita, portanto é uma pesquisa que se (des)dobra no tramar de fios, de vozes, de memórias, de tempos e de sentidos despertados quando nos colocamos disponíveis às narrativas constituídas por imagens.

Percursar que advém de registros de um ‘Diário de Experiências’, que fixaram momentos da pesquisa:

 

D. Ana, sem apresentar tristeza ou alegria, mas sim espanto, faz uma leitura de sua produção, quando finalizada.

 

‘Nossa! Estou vendo minha vida, tantas idas e vindas, tantos territórios diferentes por onde vivi’, comenta, fazendo referência ao tempo em que viveu com os índios nas missões e nas colônias com a família.

 

Apontando uma trama de crochê (uma longa correntinha [que teceu pacientemente]), que numa linha sinuosa ocupa o centro de sua produção, menciona: ‘aqui no meio, este fio que vai e volta é a fronteira que às vezes me deixava do lado de lá, outras vezes me colocava do lado de cá. Já vivi muito!’  (COSTA, 2019, p. 114, grifo nosso).

 

Dona Ana (67 anos) formatou sua narrativa como quem tece-lê-escreve um outro corpo para si. Um corpo-texto-têxtil criado entre as flutuações intensivas de um ser nascente no pensamento dessa idosa que se inscreve pelo imbricamento de linguagens nas tramas têxteis de narrativas artesaniadas. Situação indissociável do corpo, do corpo outro que cabe (re)inventar noutros fluxos de vida aberta ao espaço das forças (PELBART, 2015).

De tal modo, Dona Ana povoa o panô. Habita a imagem de si, seus abismos e superfícies, investe-usufrui na espessura das linguagens e não esconde a admiração  diante de si mesma. Um saber da experiência. Um sujeito narrador que se satisfaz no encontro com a aparição da imagem de si, num instante de auto(re)conhecimento.

 

 

Figura 2: O Panô de Dona Ana.

Fonte: Costa, 2019.

 

Na elaboração narrativa, a memória inunda esse corpo-arquivo duplicado na imagem de si e este (trans)bordar permitiu que Dona Ana (re)criasse seus signos e alterasse sentidos e escolhas (re)atualizadas pelos percursos vividos. Experiência vivida na (re)elaboração de si que, mesmo quando diante da mais branda ou traumática das memórias na superfície consciente, surgem como fôlego de nova possibilidade e de aprendizagem biográfica (PASSEGGI, 2010).

Dona Ana teceu seu ‘Panô de Memórias’ como imagem de si, criando no processo a errância da entrega comum à experiência narrativa. Vivência rica em um corpo aventureiro, que permite ir além ao deixar vestígios, fazendo a transmissão de suas heranças e de sua historicidade (BENJAMIN, 2012).

Por isso, para pensar o Panô de Memória e seus sujeitos narradores (interlocutores-artífices), é necessário dobrar a língua e encontrar o fluxo para o fora da linguagem verbal articulando-a com a linguagem visual. Estas artesanias de imagens de si são decorrentes de experiências que acontecem no entrelaçar de uma rede de composição de seus interlocutores fazendo da costura de seus Panôs de Memórias corporeidade para a matéria viva (das imagens moventes). Experiência narrativa que é devir revelado no “fazer uma imagem, portanto: [no] desobscurecer [...] tudo o que as palavras obscurecem, [...] para fazer aparecer os limites imanentes à linguagem, ao pensamento e, [...] ao próprio corpo.” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 121). 

Neste acompanhar de sentidos passamos a compreender que as linguagens se ressignificam no encontro com outros signos ampliando a potência do pensar (DELEUZE, 2003). Com isso, a dimensão criativa de seus sujeitos interlocutores (em seus processos de devir como realização subjetiva) efetuam (des)dobramentos em ações reveladas na constante inquietação deste processo de mobilidade das expressões dos corpos (junto aos têxteis).

Dona Ana, em sua tessitura, na sua produção narrativa a partir das suas artesanias de imagens de si, a(bordou) novas margens nas experiências com as linguagens. Conhecimento revelado na novação da percepção de si, em um corpo edificado na/pela experiência (LARROSA, 2018), na constância do devir desejante de ser (DELEUZE, 2013), ou ainda, no pulso de dar-se presença nesta leitura-escrita (BARTHES, 2012) materializando em instantes a sua subjetividade, entre pontos alinhavados em têxteis e seus gestos carregados de memórias ancestrais.

Portanto, as narrativas artesaniadas (auto)biográficas em imagens são (como) a efetuação do devir humano nesta eterna busca e invenção de si. Experiência que, no imbricamento de linguagens, adquire forças na constituição do pensamento como trama da verdade, do signo e da aprendizagem (DELEUZE, 2003).

 

Tempo e Memória

Entre mínimos traços e linhas que indiciam a formação subjetiva nas experiências produzidas nas/pelas imagens do panô artesaniado, cabe um homem, cabem homens-inteiros. Pois, nas entrelinhas há fissuras capazes “[...] de expressar, de dar forma àquilo que, vindo de muito longe, fala através de nós” (MAFFESOLI, 2021, p. 14).

São deflagradas nesta cartografia pelos registros narrativos desta experiência educativa com o ‘Panô de Memórias’, pistas da formação subjetiva nessa subterrânea conexão com o Tempo, ou os tempos e as memórias. Derivas da entrega aberta ao criar a expressão de si, o acontecimento na imagem reverberada em efeitos que sinalizam outro espírito do Tempo.

Como assegura o autor,

O que está em jogo é uma forma de conformidade com o ser no mundo em sua realidade múltipla. Não mais o progresso explicando a imperfeição e suprimindo as dobras do ser, mas o progressivo que o implica. Ou seja, aceitando suas dobras (MAFFESOLI, 2021, p. 15, grifo do autor).

 

Neste campo de multiplicidades, buscamos pensar os imbricamentos do tempo e da memória, mais precisamente, no reconhecimento de um “tempo complexo”, como escreve Didi-Huberman (2013, p. 34). Por este andamento, damos voz a um tempo-tecido, um tempo outro que suspende a linearidade, pois este tempo não cronológico está nas narrativas artesaniadas das imagens de si.

Alinhavamos que o “tempo complexo” é este tempo da detecção da imagem, “provisoriamente configurado” e “dinâmico” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 34). Tempo diverso nas durações, que propiciam as (re)significações das memórias projetadas por narrativas verbais e por narrativas imagéticas que rompem com uma lógica demarcada pelo cronos.

Essa ideia se (des)dobra no percurso deste pesquisar. Dona Ana, na sua narrativa expressa neste artigo, no item No percursar pelas imagens – tessituras da experiência narrativa, contribui para que possamos acompanhar este conteúdo, já que indicia a trama de um tempo-tecido na perpétua passagem por presentes “incompossíveis” (PELBART, 2015, p. XVII), sendo esses,

 

[...] bizarra arquitetura do tempo, labiríntica, turbulenta, caótica, ...Imagem do tempo que não corresponde apenas ao caos fantasioso de nosso sentido íntimo ou psicológico, mas também ao da natureza, da história, do clima... A policromia que o pensamento não cessa de perseguir e igualmente aquilo que não cessa de obsedar a própria vida do pensamento (PELBART, 2015, p. XVIII).

 

Esta experiência narrativa na artesania da imagem de si, traz à tona uma instantânea imagem de um tempo que é múltiplo, incessante. Alcançamos o todo do tempo, refletido por Deleuze (2013), pois diante da imagem colocamos o pensamento em relação, na duração da aparição da imagem, na ativação da memória e do imaginário. É provável a travessia neste entre lugar de uma infinidade de mundos, na perturbação dos circuitos dos tempos, (nas entrelinhas) noutra dimensão do tempo/ espaço.

As experiências narrativas nas artesanias de imagens de si têm por urdidura as matérias da memória, do tempo, da duração, das coexistências, das mudanças incessantes em continuidades do vivo (BERGSON, 2019). Nesta trama, vale considerar que a memória está nas formulações dos discursos narrativos pictóricos que produzimos, encontramos, atravessamos, nestes imbricamentos de linguagens suscitados nas narrativas artesaniadas em imagens têxteis. Diante das imagens, a memória se constitui nessas enunciações geradas por seus desdobramentos, mobilizados na velocidade do tempo. Portanto, neste estudo, nesta errância das experiências narrativas com as imagens, nossa atenção deteve-se nas tramas alinhavadas em artesanias, aparição que subsidiam o imbricamento de gestos, fios e blocos têxteis coloridos, em sobreposições engendradas, assim como surgem/subsistem os fragmentos das memórias de vida.

Da ação de tecer uma apresentação de si, rompeu-se o limite da representação, para deixar passar a outros fluxos. “O sujeito toma a si mesmo como objeto de reflexão” (PASSEGGI, 2010, p. 112). Da expressão do artesanato, em suas artesanias com amarras na cultura, surgem bordas da germinação na expressão de si, que subvertem padrões e usos comuns. Tempo e memória mesclam ritmo e estrutura a esta experiência-existência formativa.

 

No alinhavar das (in)conclusões

A partir do revisitamento aos registros narrativos artesaniados em imagens de si, em uma proposta educativa sensível com um grupo de idosos, tecemos esse artigo ao tramar e refletir os elementos que nos afetaram neste percursar cartográfico.

O ponto de partida foi a compreensão de que o tempo e a memória estão imbricados às experiências narrativas nas artesanias de imagens de si. E que as experiências do tecer podem potencializar as práticas formativas de seus sujeitos. Questões que nos mobilizaram a pensar as experiências narrativas nas artesanias de imagens de si e suas potencialidades formativas.

Na dimensão dessa experiência, o sujeito que punteia (com a percepção) este ‘Panô de Memórias’ (re)costura, (re)tece, (re)borda, (re)fuxica, (re)entremeia as linhas têxteis às linhas de suas ideias e sentidos (rizoma nômade que habita a extensão do ser). Consideramos que os sujeitos da experiência narrativa pelas artesanias, ao estarem diante da imagem (e na imagem), contagiam-se nessas forças, em suas potências de devires. Portanto, diante dessas provocações ao pensar trazidas pelas linguagens, esses sujeitos lidam com possibilidades para a sua metamorfose, (produzindo-se em corpos têxteis) enquanto seguem costurando caminhos (histórias de vida) nas suas (trans)formações e atualizações.

No contexto dessa pesquisa, as pistas nos levaram a olhar as imagens artesaniadas, considerando suas derivas, suas durações coextensivas entre Tempo e memória e, a partir da contínua abertura perceptiva em que acontecem, (re)conhecer as alternativas de formação do Eu numa teia viva. Portanto, o sujeito da narrativa, (re)liga os fatos, as coisas às experiências, numa prática que desencadeia a sua (re)invenção, na (re)visão e (re)encontro com seus modos e estratégias de seguir construindo relações com o mundo (PASSEGGI, 2020, web). Interlocutor que se realiza em processos de produção de sentidos articulados entre os vestígios de suas práticas sociais, culturais e históricas, e os estágios mais amplos dos quais as imagens (imaginação e imaginário) corroboram para lhes elevar enquanto sujeitos da experiência narrativa.

Sem buscar fechamentos, este alinhavar quer deixar/mostrar passagens, brechas, aberturas para que essa pesquisa siga e, em outras pesquisas, possa derivar. Ainda, indicamos o artesaniar e o tecer com têxteis como possibilidades para o desenvolvimento de pesquisas nas humanidades, haja vista as potencialidades das experiências observadas nesta cartografia desenhada entre o observar e o fazer, a propiciar novas apreensões para o proceder de/em uma pesquisa viva.

 

REFERÊNCIAS

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BERGSON, Henri. A evolução criadora. [Tradução Bento Prado Neto]. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2019.

COSTA, Rita de Cássia Fraga da. Artesania: formação cultural, construções identitárias e experiências sensíveis na terceira idade. 2019, 159 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade da Região de Joinville, Joinville, 2019. Disponível em: https://www.univille.edu.br/account/mestradoedu/VirtualDisk.html/downloadDirect/1502804/Rita_de_Cassia_Fraga_da_Costa.pdf. Acesso em: 12 maio 2022.

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DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. v. 1, 2. ed. [Tradução de Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa]. São Paulo: Editora 34, 2011.

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DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. [Tradução de Vera Ribeiro]. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

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LARROSA, Jorge. Esperando não se sabe o quê: sobre o ofício de professor. [Tradução Cristina Antunes]. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.

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PELBART, Peter Pál. O tempo não-reconciliado. (Coleção Estudos). São Paulo: Perspectiva, 2015.

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This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)

 



[1] Doutoranda em Patrimônio Cultural e Sociedade pela Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE), Joinville, SC, Brasil (2022). Bolsista CAPES-PROSUC. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7276-7863. E-mail: ritadacosta08@gmail.com

[2] Doutorado em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil (2002). Professora titular da Licenciatura/Bacharelado em Letras e do PPG em Patrimônio Cultural e Sociedade na Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE), Joinville, SC, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6389-1133. E-mail: moraes.taiza@gmail.com

[3] Dona Ana é o nome da participante da pesquisa. Seu uso foi autorizado em TCLE específico, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos – CEP da Universidade.