Formação do olhar a partir de um referencial imagético: A pressão estética sobre o corpo feminino
The development of the gaze stemming from an imagery reference: The aesthetic pressure on the female body
Julia Rocha[1]
Universidade Federal do Espírito Santo - UFES
Ana Carolina Ribeiro Pimentel[2]
Universidade Federal do Espírito Santo - UFES
Resumo
O presente texto discute o potencial formador das imagens, sobretudo, das imagens de mídia, de comunicação digital e de publicidade na construção e imposição de um modelo instituído ao corpo feminino. Os terrorismos visuais são analisados a partir de duas peças imagéticas: a série Monstrous Feminine, de Jessica Ledwich, e o curta-metragem de animação Supervenus, de Frédéric Doazan. A análise das imagens é realizada a partir da discussão sobre sua manipulação e o poder da publicidade e das redes sociais na formação de identidade de mulheres, utilizando Acaso (2016); Wolf (2020); Beiguelman (2021) e Fontcuberta (2014) na reflexão.
Palavras-chave: Imagens; corpo feminino; terrorismo visual; ensino da arte.
Abstract
The present paper discusses the formative potential of images, especially media images, digital communication and advertising in the construction and imposition of an instituted model for the female body. The visual terrorisms are analyzed from two imaginary pieces: the series Monstrous Feminine by Jessica Ledwich and the short animation film Supervenus by Frédéric Doazan. The analysis of images is carried out from the discussion on the manipulation and the power of advertising and social media in the identity formation of women, using Acaso (2016); Wolf (2020); Beiguelman (2021) and Fontcuberta (2014) in the reflection.
Keywords: Images; female body; visual terrorism; art education.
As imagens às quais assistimos, que vemos e que consumimos marcam parte do que desejamos ser; a relação de projeção e busca de identificação é intrínseca ao modo como nos relacionamos com o mundo-imagem. Isso se amplifica à medida que os anos avançam, pois cada vez mais imagens são compartilhadas massivamente, a ponto de que, "Em uma tarde de maio de 2021, mais de mil fotos por segundo eram disponibilizadas no Instagram”, como demarca Giselle Beiguelman (2021, p. 31). Essas imagens nunca estão sozinhas. Elas vêm carregadas de informação visual codificada e têm produtores e destinatários específicos. Contudo, María Acaso (2006, p. 15) aponta que “Nos interessa apenas deixar claro que uma imagem não é realidade; as imagens são, hoje mais do que nunca, deturpações intencionais da realidade, construções feitas por alguém para algo, na maioria dos casos com intenções muito específicas”.
A falta da formação crítica acerca da leitura das imagens faz, por vezes, com que elas sejam compreendidas como representação da realidade. A fotografia criou, ao longo dos anos, a ideia que era uma fonte documental da verdade, um ínfimo segundo de concretude e materialidade de um tempo que transcorreu. Nessa perspectiva, da fotografia como documento, entende-se que esta não possa ser questionada. “A câmera testemunha aquilo que aconteceu e o filme fotossensível está destinado a ser um suporte de evidências. No entanto, isso é só aparência; é uma convenção que, à força de ser aceita sem paliativos, acaba por se fixar em nossa consciência”, tal como sugere Joan Fontcuberta (2014, p. 13). A falta de questionamento dessa perspectiva, a da fotografia como verdade, pode resultar em leituras rasas, que não consideram que imagens podem ser manipuladas e retiradas de contexto, em prol da formação de ideologias, por aqueles que detêm o poder de criá-las e difundi-las em massa. Em contrapartida, quem analisa as imagens, pode, por meio da interpretação, questionar, refutar ou redimensionar os significados visualmente apresentados - o que se constrói por meio da formação crítica em torno delas.
Evidentemente, uma ferramenta tão potente é capaz de construir identidades e determinar padrões comportamentais. Estar diante de tantas imagens sem conseguir interpretá-las criticamente as coloca como formadoras das nossas subjetividades, um recurso para que as indústrias do consumo impulsionem as suas vendas e estabeleçam uma base mais firme do modelo de sociedade que vem sendo instaurado até então. Acaso (2006, p. 14) questiona a falta de interesse em ensinar educação visual desde a infância nas escolas e aponta que isso ocorre
[…] porque os produtores de imagens não estão interessados em que o consumidor médio saiba lê-las, o que não é o mesmo que consumi-las. Enquanto consumir é uma atividade realizada em alta velocidade para produzir uma reação posterior à compra de um produto ou consolidar certas ideias, ler significa tornar conscientes os objetivos ocultos e visíveis de qualquer construção visual.
Douglas Kellner (2011, p. 106) também afirma que ler imagens criticamente significa aprender a apreciá-las, a decodificá-las e a interpretá-las, analisando como são construídas e funcionam em nossas vidas, refletindo sobre as mensagens que podem ser lidas a partir dos repertórios contextuais e subjetivos de cada sujeito. Assim, a falta de uma consciência diante das imagens ou de um exercício constante de criticidade na leitura delas resulta prejudicial para a formação de sujeitos capazes de pensar sobre essa ferramenta tão utilizada pela publicidade. Esse campo se constitui como um dos mais avançados na propagação de mensagens visuais, o que se percebe, por exemplo, diante do desenvolvimento das redes sociais e do aumento da incidência de mecanismos de propaganda mesclando-se aos conteúdos criados pelos perfis de usuários que elegemos seguir. Assim, percebe-se como contemporaneamente existem crescentes investimentos e estratégias de criação nesses artefatos culturais, fomentando o desenvolvimento e fortalecimento de uma sociedade hipercapitalista que se constitui também pelas imagens. A publicidade em si é uma pedagogia que ensina às pessoas no que elas devem pensar e fazer e do que elas precisam para serem felizes e bem-sucedidas (KELLNER, 2011).
Os detentores da criação e vinculação das imagens em massa (como grandes corporações de mídia, revistas, redes sociais e publicidade) reforçam que um grupo específico receba um peso maior na sugestão desses padrões de comportamento: as mulheres. No decorrer da história das imagens, é possível destacar diferentes momentos em que o corpo feminino foi retratado como sinônimo de uma beleza delicada, maternal e perfeita, marcando, desde sempre, a obsessão pela representação feminina ideal, que é endereçada às mulheres, na maior parte das vezes, por homens. Esse modelo vem sendo formatado e reconfigurado no decorrer da história, pensando as imagens como recursos formadores da demarcação de novas regras sobre o corpo feminino. O padrão construído pela história da arte, pela indústria dos produtos cosméticos ou pela publicidade
[…] descreve as características que tornam uma mulher desejável em nossa sociedade. Assim, aceitamos que as mulheres usem certas roupas, que sejam magras mas tenham seios grandes, assim como que o ideal de beleza anglo-saxão, em que o cabelo loiro é o cânone, se torne uma norma implícita. Dessa forma, admitimos o estereótipo da mulher como objeto. (ACASO, 2006, p. 15)
Pensar na mulher como objeto é considerá-la subjugada à lógica e aos valores de outrem, demarcando um lugar de subserviência, que aponta os comportamentos e os desejos que lhe são impostos. A repetição dos elementos de cobrança desencadeia um processo de naturalização de normas que, progressivamente, são sublimadas e incorporadas como vontades aparentemente latentes, mas que foram, de alguma forma, sugeridas a esse gênero pelas posições que ele ocupa socialmente, seja na esfera familiar, social ou laboral.
A construção dessa relação entre mulher e consumo remonta ao período pós-guerra, quando, impulsionadas pela saída dos homens para os frontes, as mulheres — de diferentes classes — ocuparam de vez o mercado de trabalho. Ao contrário do que esse dado possa informar, não foi o aumento do poder de compra que tornou a mulher alvo da indústria da beleza. O mito da beleza foi institucionalizado como um transformador entre mulher e vida pública. Quando abriu brechas nas estruturas de poder, “A beleza deixou de ser apenas uma forma simbólica de moeda. Ela passou a ser o próprio dinheiro”, de acordo com Naomi Wolf (2020, p. 40). Assim,
No momento em que as mulheres escapavam da venda de sua sexualidade num mercado matrimonial ao qual estavam confinadas pela dependência econômica, sua nova busca de independência econômica se confrontou com um sistema de permuta quase idêntico. E quanto mais as mulheres galgaram nesse período os degraus de hierarquias profissionais, tanto mais o mito da beleza se encarregou de atrapalhar cada passo. (WOLF, 2020, p. 40-41)
Assumindo esse posto no local de trabalho, as mulheres tornaram-se alvo de mais uma necessidade criada a partir da lógica masculina, provocando a demarcação de uma necessidade de consumo antes não reforçada. “A Supermulher, sem perceber todas as implicações, teve de acrescentar a seus compromissos profissionais o trabalho sério no campo da ‘beleza’” (WOLF, 2020, p. 48). Responder às cobranças dos quesitos relacionados à estética parece representar para as mulheres uma terceira jornada de trabalho, a qual os homens não são provocados a assumir da mesma forma. Essa perspectiva pode ser identificada na cobrança em relação às unhas, às roupas e ao comportamento adotado por elas no campo laboral e fora dele, por exemplo. Mais do que citados em contratos de trabalho ou nomeados nas relações verbais, esses compromissos se fazem presentes pela construção imagética de como elas são representadas.
Diante desse quadro, o presente texto discute o papel que as imagens ocupam no fomento de um modelo idealizado de corpo feminino, instituindo um padrão que demarca um comportamento de consumo e desejo. Debate-se essa problemática a partir do conceito de terrorismos visuais (ACASO, 2016) e dos efeitos da indústria da beleza para a autoimagem das mulheres, recorrendo a dois objeto de análise, a série Monstrous Feminine, de Jessica Ledwich, e o curta-metragem de animação Supervenus, de Frédéric Doazan. Em resposta, demarca-se a importância do ensino da arte para a formação de leitores críticos para as mensagens que percorrem os meios de propagação imagéticos.
Terrorismos visuais e a normatização dos corpos femininos
O corpo feminino sempre esteve subjugado a padrões que o preconizam como um objeto de desejo masculino, sejam padrões de vestimenta, de peso, o avanço da idade ou tantos outros que Acaso (2006) cataloga como “terrorismos visuais”, que foram crescendo expressivamente à medida que se popularizavam os meios de comunicação. Neste conceito, as imagens vinculadas pela publicidade e pelas redes sociais cumprem um papel de aterrorizar os corpos e as mentes daquelas que não atendem aos seus padrões, criando uma ansiedade por consumir e uma busca por alcançar o que se é reproduzido massivamente. A manutenção desses terrores é feita principalmente pelos grandes veículos de informação e pelas mídias de massa, formadores de opinião, tais como a televisão, as revistas, os blogs e sites, as redes sociais, a publicidade e muitos outros artefatos de veiculação de imagens. Esses veículos fortalecem estereótipos visuais e padrões de comportamento, formando uma consciência coletiva que sugere, implícita e explicitamente, medidas e ideias formatadoras da imagem da mulher.
Em diálogo com essas produções, nos últimos anos, o Instagram — rede social de compartilhamento de imagens — popularizou uma ferramenta de filtros que altera, distorce e maquia os rostos das pessoas ao tirar uma selfie, tornando-as mais parecidas com o que é popularmente instituído como padrão. De acordo com a matéria “Jovens fazem cirurgias plásticas para ficar parecidos com suas selfies com filtro”, redigida por Anna Davies e publicada em 2018 no portal BBC News, as clínicas de estética estão sendo cada vez mais procuradas por mulheres em busca de cirurgias plásticas para ficarem parecidas com seus filtros favoritos utilizados nas redes sociais. No texto, uma das jovens entrevistadas relatou que o filtro “[…] definia melhor seu queixo, delineava as maçãs do rosto e deixava seu nariz mais reto, o que sempre a fazia sentir-se um pouco insegura” (DAVIES, 2018, s/p).
Essa insegurança por não parecer esteticamente perfeita é parte do que Acaso (2006) cataloga como terrores visuais, que são plantados e propagados pelas imagens no nosso subconsciente de maneira proposital, para, entre outras razões, suplantar a manutenção de uma indústria que lucra com a ansiedade de alcançar determinada aparência. Esses terrores foram classificados como terrores do corpo, terrores de classe e terrores culturais. Neste texto, devido aos artefatos visuais selecionados para análise, optou-se por discorrer apenas sobre os terrores do corpo, que, por sua vez, dividem-se em: terror de ser velha, terror de ser gorda, terror de não ter dentes perfeitos, terror de não ter o cabelo ideal, terror de ter órgãos genitais pequenos, terror de ser pálida e terror de estar doente. De acordo com Acaso (2006, p. 53),
Esses
terrorismos criam as indústrias mais importantes do sistema capitalista que nos
rodeia, de tal forma que, ao lançar as bases da nossa economia, têm enorme
poder de penetração que gera problemas extremamente importantes, como os distúrbios
alimentares (anorexia e bulimia) e a depressão da maioria das pessoas com mais
de 60 anos em uma sociedade que marginaliza os que não são jovens.
Pela pluralidade de opressões propagadas pelas imagens, os terrorismos visuais alcançam pessoas — sobretudo mulheres — de todas as idades e em várias fases da vida. Todas essas imagens nos fazem querer coisas que não temos, provocando uma luta contínua para obtê-las (ACASO, 2006). Quando se é jovem, há uma pressão em atender aos padrões de beleza estabelecidos, isso influencia a maioria das mulheres, que se valem de vários artifícios para não aparentarem as transformações estéticas ocasionadas pelo tempo. Assim, quando se chega à maturidade, há uma busca constante pelo rejuvenescimento, o que faz com que alguns desses corpos busquem por procedimentos estéticos e cosméticos, ampliando a ação dessas indústrias.
Os efeitos nocivos da indústria da beleza para a imagem da mulher
Não apenas cirurgias em âmbitos médicos são utilizadas para alcançar resultados de adequação dos corpos femininos aos padrões impostos, também é muito expressiva a presença do mercado farmacêutico e de cosméticos, bem como o surgimento de diferentes áreas nas quais atuam profissionais que cuidam de algo relacionado ao rosto e ao corpo como design de cílios, de sobrancelhas, de lábios e até intervenções estéticas nas genitálias. Assim, as mulheres se sentem mais bonitas por estarem parecidas com os moldes vinculados pelos meios de comunicação, sem perceber que, com isso, perdem suas individualidades e se tornam cada vez mais parecidas com um padrão dominante nas imagens da mídia e homogeneizadas esteticamente. Esse aspecto evidencia o incentivo para que as potenciais consumidoras tenham medo de não se encaixar e, por causa desse medo, passem a comprar, adquirir e gastar ainda mais (ACASO, 2006 p. 27). Wolf (2020) já alertava que nossa cultura de massa é rigorosamente censurada pelos anunciantes de produtos de beleza e que, enquanto essa indústria dominasse os meios de comunicação, as imagens de massa jamais seriam de mulheres reais.
A banalização dessas práticas parece desconsiderar que elas podem ser altamente nocivas e prejudiciais ao corpo, por mais que sejam naturalizadas, muitas vezes, como pequenas intervenções pela publicidade e pela propagação de espaços que as realizam. Em resposta, com a recorrência cada vez maior desses procedimentos, identifica-se um grande número de denúncias de intoxicação pelo uso de produtos de baixa qualidade, de reações alérgicas, de perda de cabelo, de dores e de infecções. Essas denúncias, embora possam ser problemas que afetem a todas, em grande parte, são de negligência médica e estética e são relatadas por mulheres de baixo poder aquisitivo que se submeteram a procedimentos baratos para alcançar um padrão que lhes é imposto por celebridades, estas que quase sempre são influenciadoras digitais e artistas de televisão, ou seja, pertencem a outra realidade e têm melhores condições financeiras, dessa forma, podem pagar por serviços e produtos de melhor qualidade.
Em Monstrous Feminine (2016), a artista australiana Jessica Ledwich, criou uma série de fotografias utilizando recursos como a manipulação digital para denunciar o modo como essa manutenção dos padrões é prejudicial e danosa aos corpos femininos. As imagens exploram os terrorismos do corpo e a presença das grandes marcas como objetos de desejo feminino, a ponto que se deve fazer de tudo para alcançá-las e possuí-las. Sobre esse trabalho, a artista afirma: “Monstrous Feminine examina criticamente o valor que a sociedade atribui à vaidade, ao consumismo e à busca da perfeição e da juventude eterna” (LEDWICH, 2016, s/p). As imagens também denunciam como as mulheres estão se sujeitando a esses rituais de beleza que são respostas aos terrores citados anteriormente.
Imagem 1 – Monstrous Feminine - Jessica Ledwich
Fonte: https://www.jessicaledwich.com
Nessa obra em específico, é possível identificar aspectos citados por Acaso (2006): a identidade da mulher não importa, de modo que seu rosto é cortado para que não seja sequer percebido. Assim, destaca-se que é o corpo que importa, tal qual na pintura O nascimento de Vênus (1486) — de Sandro Botticelli, colocada na parede como um modelo a ser seguido. Na obra, utilizando o aspirador diretamente conectado ao corpo, a artista aborda de onde se deve tirar as gorduras e onde elas deveriam estar: dos quadris que devem ser finos e esbeltos para os lábios que devem ser cheios e sexys. A modelo usa um pijama curto de seda, um fetiche masculino, e cumpre seus afazeres domésticos sem perder a feminilidade, assim como se entende que a mulher deva proceder para ser uma boa e linda esposa, de acordo com os valores distorcidos propagados. Atrás dela, está a Vênus, que permanece há 500 anos sendo o modelo de feminilidade ideal, com suas medidas irreais, quase impossíveis de serem encontradas em outro corpo.
A figura da Vênus remonta a mitologia romana, da deusa do amor e da beleza - equivalente com a representação grega da deusa Afrodite. Retratada por diversos artistas no decorrer da história da arte, Vênus representa a idealização de um corpo feminino. Nessas produções que atravessam diferentes períodos, a deusa é recorrentemente representada com o corpo nu, traços delicados, cabelos longos e curvas delineadas que projetam uma imagem de sexualidade e desejo - mensagem visual recorrente em outros artefatos que destacam as imagens de mulheres até a contemporaneidade. Esse aspecto é importante para a discussão aqui traçada, uma vez que o outro artefato visual analisado no texto também cita a figura da Vênus, como será descrito adiante.
Em outra imagem da série Monstrous Feminine (2016), a artista aborda o desejo de possuir grandes marcas a qualquer custo. Na obra, a mulher é retratada como um ser sereno e perfeito que, mesmo deitada em seu caixão, se mantem magra, pura, pálida, sem pêlos, com cabelos ajeitados e unhas feitas, usando camisola sensual e perfeitamente maquiada, transmitindo a ideia da permanência da preocupação com o corpo e com os aspectos materiais que o envolvem mesmo depois da morte como algo absoluto. O caixão onde está inserido o corpo dessa mulher perfeita é um exemplar da grife Chanel, conhecida por muitas como uma marca do sucesso e da elegância feminina, um verdadeiro objeto de desejo. Em diálogo com os terrores do corpo descritos por Acaso (2006), identificamos nessa obra a necessidade de estar perfeitamente dentro dos padrões até mesmo no momento da morte, como se o corpo feminino sem vida — mero resto mortal — ainda tivesse que ser trabalhado e manipulado de forma artificial como sendo o modelo certo a se apresentar, mesmo que no próprio velório. A obra também denuncia a necessidade da juventude eterna, de uma aparência sem marcas do tempo até o fim da vida, dialogando com o terror de ser velha.
Imagem 2 – Monstrous Feminine - Jessica Ledwich
Fonte: https://www.jessicaledwich.com
As obras de Ledwich exemplificam a discussão tecida sobre as dores e terrores de ser mulher na sociedade da publicidade, questionando, de forma irônica, os papéis incutidos ao gênero, pensados sobre ser sempre vista como um possível ser consumidor frágil, manipulável e incapaz, por se submeter aos padrões gerados pela indústria do capital. Em outras imagens da mesma série, mulheres aparecem se mutilando, desde as suas unhas até os pêlos, negando características que são comuns aos seus corpos.
Um aspecto incômodo e assustador do trabalho de Ledwich está no fato de ter sido feito para que as situações pareçam exageradas, mas, ao observar as imagens, podemos encontrar analogias muito próximas ao que vivemos hoje, assim, conseguimos até mesmo reconhecer quais práticas estão sendo retratadas e sentir na pele as dores causadas por elas. A artista expressa, através dessa série, sua aversão às indústrias de beleza e ao consumo de diferentes formas, criticando o fato de esses padrões, ao serem naturalizados, potencializarem o consumo, serem muito difíceis de se alcançar e, como consequência disso, incutirem, nas mulheres, um sofrimento não apenas físico, mas também psicológico.
É importante destacar que esses padrões relacionados ao corpo são continuamente modificados pelos mercados de consumo e de beleza. Uma vez que se conquista determinado aspecto, cria-se outro atributo novamente inalcançável ou exaustivamente dispendioso. Assim, consegue-se comprar a bala que faz crescer o cabelo, vendida pela influenciadora digital, mas logo se cria o desejo pela massagem modeladora, vendida pela atriz do momento; consegue-se modificar os lábios, mas na sequência se deseja fazer uma harmonização facial. As indústrias cosméticas e da cirurgia plástica criam desejos infinitos, fazendo com que a lista de mudanças e de intervenções corporais nunca tenha fim, bem como que os procedimentos cirúrgicos e estéticos estejam sempre sofrendo alterações até que as mulheres estejam completamente desfiguradas.
Imagem 3
– Supervenus - Frédéric Doazan
Fonte: https://vimeo.com/313814996
Essa cobrança constante pelos corpos idealizados e as modas que se substituem na proposição de novos padrões foram problematizadas de maneira irônica e contundente no curta-metragem de animação do cineasta francês Frédéric Doazan, Supervenus. Criado em 2013, no intervalo de dois minutos e meio, o vídeo apresenta imagens animadas de uma mulher que vai sendo transformada a partir de uma série de intervenções estéticas. Acentuadamente demarcando as cobranças endereçadas aos corpos femininos, o vídeo sobrepõe diversos procedimentos de forma acumulativa, evidenciando o aspecto excessivo que se constrói com a sobreposição de tratamentos em prol de um modelo visual para a estrutura corporal feminina.
A imagem inicial é de um desenho esquemático do corpo de uma mulher disposto em um Atlas Elementar de Anatomia, num formato de ilustração científica, nos moldes de outras imagens apresentadas no decorrer de nossa vida escolar. Ao longo do vídeo, esse corpo vai sendo transformado por remoção de pêlos, cirurgias, lipoaspirações, adição de próteses de silicone nos seios, inserção de botox no rosto, rinoplastia, retirada de costelas para demarcação da cintura, bronzeamento artificial e outros tantos procedimentos que vão transformando a estrutura do corpo na mais adequada aos padrões que seja possível.
Imagem 4 – Supervenus - Frédéric Doazan
Fonte: https://vimeo.com/313814996
Nas mudanças provocadas nesse corpo de Supervenus, não somente intervenções cirúrgicas viáveis são adotadas, mas também recursos mais drásticos, possibilitados pelo formato da criação, uma animação. Dessa forma, consegue-se diminuir a circunferência do pescoço, trocar o globo ocular ou estender e aumentar do comprimento das pernas. Esses efeitos irreais simbolizam a materialização almejada por procedimentos danosos ou nocivos ao corpo, adotados a partir da manipulação física, e também digital, da nossa imagem. A sobreposição dos efeitos modificadores dos corpos constrói padrões inexecutáveis em termos físicos, mas realizáveis no mundo digital.
As transformações se seguem no vídeo, vão retornando a partes do corpo que já haviam sido modificadas, provocando ampliação dos lábios, mudança nos cabelos, maior destaque das maçãs do rosto ou aumento das próteses, o que paulatinamente vai deturpando a imagem do corpo inicial que o vídeo apresentou. Novamente remontando aos efeitos surreais citados acima, em certo momento, uma intervenção cirúrgica é feita no cérebro, com a retirada dele e adição de uma substância que o transforma em cor-de-rosa. A cor, recorrentemente associada ao universo feminino, vem acompanhada de um efeito sonoro emitido pela personagem, que parece emular um sentido de satisfação e docilidade, uma espécie de som que parece domesticar essa mulher, enquadrando-a no modelo de objeto que Acaso (2016) mencionou.
Imagem 5 – Supervenus - Frédéric Doazan
Fonte: https://vimeo.com/313814996
Nas imagens que se seguem, novas intervenções são feitas no corpo, cada vez mais drásticas e invasivas, obliterando sinais de velhice, o que remonta ao terror de ser velha que Acaso cita. Nos meios de propagação da imagem, a representação da mulher idosa é por vezes apagada, por vezes apresentada de maneira pejorativa, incidindo num medo de parecer envelhecer e criando uma mítica de que mulheres mentem a idade. Parte dos procedimentos estéticos mais adotados atualmente dizem respeito a esse terrorismo, evitando, ao máximo, sinais de flacidez, perda de colágeno ou mudança na tonalidade dos cabelos.
Outro efeito do final do vídeo corresponde a intervenções cirúrgicas que parecem quase cercear a possibilidade de manter as funções vitais, uma vez que um bebê parece ser abortado e uma parte do estômago recortada. Ainda que esses sejam procedimentos comumente adotados por mulheres, ao mencioná-los no vídeo, parece pôr em questão o quanto são imposições e o quanto são escolhas às quais elas estão submetidas.
Ao final, o corpo hipertransformado parece não suportar a quantidade de intervenções feitas para adequar o formato para os padrões que vão sendo sugeridos, o conteúdo para os valores esperados para uma mulher e as cirurgias feitas para driblar a aparência de um corpo velho, processo natural a que todas estão submetidas, mas que parece ser cobrado de maneira substancialmente diferente a depender dos sujeitos para quem as imagens são formadas. Assim, o corpo se desfalece, derrete, explode. Mais do que a morte pacífica sugerida pelo trabalho de Jessica Ledwich, o final de Supervenus demarca como a pressão pode ser insustentável não somente em termos psicológicos e identitários, como defende-se nesse texto, mas também no sentido fisiológico.
Imagem 6 – Supervenus - Frédéric Doazan
Fonte: https://vimeo.com/313814996
A pressão estabelecida em busca desse corpo em constante transformação e adequação se consolida pelas imagens, que evidenciam os elementos tiranos que marcam as pressões estéticas. Essas imagens que anteriormente eram divulgadas via veículos comerciais e estavam circunscritas em determinados tempos e espaços do consumo imagético cotidiano e hoje são difundidas por diferentes canais. Sublimadas dentro das embalagens de produtos relacionados ou não à indústria da estética, incutidas nos conteúdos difundidos pelas redes sociais ou veladas em publicidades demarcadas ou não pela venda de produtos, elas nos incitam desejos e necessidades que não necessariamente estão vinculadas ao real e que por vezes estão conectadas com padrões impossíveis de se alcançar a não ser gastando-se uma grande quantidade de dinheiro em clínicas de estética e em outras indústrias como as do vestuário.
Tais desejos e necessidades criados a partir da visualização contínua de imagens — que formam realidades como dito anteriormente — são os pontos criticados por Ledwich, em sua série de fotografias, e por Frédéric Doazan, no vídeo Supervenus. Seguindo a lógica da publicidade, quanto mais naturalmente artificial, melhor. Unhas compridas, pescoços alongados, corpos depilados, lábios carnudos, quadris largos, uma face harmonizada e a cintura fina formam o ideal de mulher sexy e atraente na contemporaneidade. Em toda a série de fotografias e nas imagens criadas para o vídeo, a mensagem é de que podemos olhar criticamente para essa sociedade que está sendo construída e para as imagens que estamos consumindo nas redes sociais, que transformam nossos desejos. Acaso (2006, p. 90) aponta que, se aprendermos a ler anúncios publicitários, perceberemos que muitos dos desejos instaurados por eles são desnecessários. Dessa forma, aprender a ler as imagens criticamente é ter o controle da própria identidade, mas ser apenas um espectador é dar esse controle a outras pessoas.
O poder de manipulação das imagens e o papel do ensino da arte
Nas imagens vinculadas pela publicidade, existe uma busca pelo corpo perfeito e a juventude eterna, bem como existe um padrão a ser seguido, reforçado por ferramentas de construção visual: iluminação, maquiagem e principalmente manipulação do produto final pós captura da imagem. Essas manipulações surgiram antes mesmo da era digital, pois, segundo Fontcuberta (2014, p. 63), até meados dos anos 1960, “[…] o retoque foi uma prática comum nos estúdios de retratistas: dissimular rugas, marcar sobrancelhas, ressaltar lábios… O retoque devia solucionar o que a maquiagem e a iluminação não eram capazes de corrigir”. Essa prática permanece até hoje de forma modificada e bastante ampliada, o que antes era produto do trabalho de profissionais retratistas, hoje, está disponível com acesso a aplicativos, bastam alguns cliques na tela dos smartphones.
A imagem manipulada e vendida como uma representação do real demarca uma grande violência para os usuários dessas ferramentas. Nesse sentido, Fontcuberta (2014, p. 94) afirma que “[…] a ação de manipular carrega conotações pejorativas: consistiria em atuar em benefício próprio e em prejuízo de outros e, além disso, em fazê-lo com deliberação e traição”. O autor (2014, p. 94) acrescenta que os efeitos de manipulação das imagens “São elementos resultantes do retoque ou de uma simulação artificial que incitam o desejo e fomentam uma exigência de perfeição que não existe na realidade”.
Sendo manipulada, a imagem não poderia ser difundida como um modelo a ser seguido e como documento representativo da realidade, visto que as próprios pessoas retratadas não se apresentam daquela forma. No entanto, são essas imagens que estão presentes nas redes sociais, cartazes publicitários e propagandas televisivas, fazendo com que as mulheres sejam levadas a acreditar que aquele é o modelo que se deve alcançar.
O contínuo e massivo uso dessas imagens em todos os meios de comunicação faz aumentar os terrores relacionados à própria imagem, sobretudo quando se tratam de adolescentes, por exemplo, que estão em processo de construção da sua identidade. O consumo desenfreado de imagens acentua distúrbios de identificação pessoal em diferentes idades. As mulheres passam a acreditar que se deve ser magra para ser saudável, ou que se tem uma forma ideal de cabelo e tom de pele para ser desejável, que se deve balancear carreira e família para ser bem-sucedida. Por fim, pessoas que não atingem essas metas se sentem desvalorizadas e excluídas.
De acordo com Nalina Eggert, do portal BBC News, a deputada francesa Valerie Boyer, em 2009, foi ao Parlamento de seu país apresentando um projeto de Lei que obrigava jornais, revistas e redes de televisão a identificarem as imagens modificadas via Photoshop — software de edição de imagens. Boyer justificava a medida afirmando que o uso massivo dos editores está criando referências irreais ao público consumidor, com metas que não são atingíveis pela maioria da população sem que haja uma perda no bem-estar físico e mental.
Um problema central da propagação de imagens com esse teor é que cada vez mais usuários de redes sociais ou leitores de imagens ficam acostumados à manipulação digital e aos filtros, tornando mais difícil reconhecer quando essas modificações aconteceram e impedindo os sujeitos de pensar criticamente sobre o mundo-imagem. Esse problema vem se agravando, uma vez que as tecnologias estão trabalhando para que esses detalhes pareçam ainda mais naturais e por estarmos nos distanciando uns dos outros no mundo real e nos aproximando no virtual. “Estamos testemunhando a reconceituação do que se entendia por natureza, e a manifestação de novos padrões de beleza é sintomática desse processo”, diz Beiguelman (2021, p. 148). Dessa forma, desconsidera-se a aparência real para dar lugar a imagem maquiada e manipulada das redes sociais, então se criam escravas das tendências e da indústria crescente de padronização de corpos.
No mundo em que vivemos, a linguagem visual é o sistema primário para alterar a realidade, representando nossos corpos, nossos pensamentos, nossos hábitos e nos obrigando a manipular, mutilar e torturar nossa estrutura. Longe de ser uma mera ferramenta de comunicação, a linguagem visual é uma linguagem de implementação da realidade (ACASO, 2012, p. 96). Nesse sentido, a educação acerca do poder das imagens se torna necessária, pois potencializa a formação crítica desse público, refletindo a respeito do que se vê e do que se consome, considerando que as mulheres são as mais afetadas por essa indústria. Essa perspectiva de educação pode ser pensada para o currículo escolar para formar novas cidadãs capazes de decidir com mais autonomia sobre seus próprios corpos e sua própria imagem.
REFERÊNCIAS
ACASO, María. Esto no son las Torres Gemelas: Cómo aprender a leer la televisión y otras imágenes. Madrid: Los Libros de la Catarata, 2006.
ACASO, María. Pedagogías invisibles: El espacio del aula como discurso. Madrid: Los Libros de la Catarata, 2012.
BEIGUELMAN, Giselle. Políticas da imagem: Vigilância e resistência na dadosfera. São Paulo: Ubu Editora, 2021.
DAVIES, Anna. Jovens fazem cirurgias plásticas para ficar parecidos com suas selfies com filtro. BBC News, 05 de maio de 2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-43910129>. Acesso em: 15/01/2022.
EGGERT, Nalina. Publicações francesas terão 'alerta Photoshop' em imagens retocadas. BBC News, 30 de setembro de 2017. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-41452985>. Acesso em: 15 Jan. 2022.
FONTCUBERTA, Joan. O beijo de Judas: fotografia e verdade. São Paulo: Gustavo Gili, 2014.
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[1] Doutora em Educação Artística pela Universidade do Porto, Mestre em Artes e Educação pela Universidade Estadual Paulista e Licenciada em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Professora da Universidade Federal do Espírito Santo e coordenadora do Núcleo de Artes Visuais e Educação do Espírito Santo - NAVEES e do Grupo de Pesquisa Entre - Educação e arte contemporânea (CE/UFES). Realiza pesquisa sobre o ensino da arte na contemporaneidade, mediação cultural, relações entre museus e escolas, avaliação de propostas educativas no campo das artes visuais e formação de professores. E-mail: pjuliarocha@gmail.com
[2] Graduada em Fotografia pela Universidade de Vila Velha e atualmente cursando Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Participa do Grupo de Pesquisa Entre - Educação e Arte Contemporânea (CE/UFES) com foco na linha de processos artísticos e educativos relacionados na contemporaneidade. Bolsista PIBIC CNPq (2022-2023), com desenvolvimento do projeto "Pós-fotografia e educação: O papel da leitura de imagens na aproximação com a arte contemporânea”. E-mail: ana.r.pimentel@edu.ufes.br