“Páginas encadernadas que contêm histórias”: do livro ao Livro de Artista na disciplina de Arte

 

 

 “Bound pages that hold stories”: from the book to the Artist’s Book in Art class

 

Felipe Pergher[1]

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

Natalia Comerlatto Ribacki[2]

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

Michelle Coelho Salort[3]

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

 

 

Resumo

O artigo investiga as possibilidades criativas do Livro de Artista por meio de uma experiência realizada no Componente Curricular Arte, em uma turma de oitavo ano do Ensino Fundamental de Garibaldi — RS. Para isso, versa de forma sintética o conceito de Livro de Artista.  Foram apresentadas obras de artistas que trabalharam com esse meio para os estudantes, que foram instigados a explorar livros antigos, obtidos de uma pilha de descarte, como suporte para a criação artística. O resultado da experiência didática foram quatro livros de artista desenvolvidos coletivamente pelos estudantes, que posteriormente foram expostos em um ambiente de circulação da escola. Foram discutidas, também, as implicações que esta experiência trouxe à percepção dos estudantes sobre o livro enquanto objeto e instituição.

 

Palavras-chave: livro de artista, livro, ensino da arte, criação artística, literatura

 

 

 

Abstract

This paper researches the creative possibilities of the Artist’s Book, through a teaching experience applied during Art class. The classroom had students ranging from 13 to 15 years old, and was located in Garibaldi - Brazil. Having a presentation about artists who have used this medium in their productions as an inspiration and starting point, the students were invited to explore old, soon-to-be discarded books as a medium for artistic creation. This experience resulted in four artists’ books collectively developed by the students. Afterwards, they were put on show in a circulation area of the school. Through discussions in class, the implications of this experience to the students’ perception of the book as an object and institution were analysed as well.

 

Keywords: artist’s book, creative process, book, literature, education in arts.

 

 

Introdução

 

         O que é um livro? Para que serve? O que se pode fazer com um livro? Estas três perguntas podem parecer um tanto simplórias, até mesmo elementares à primeira vista. Aos olhos de adolescentes, já imersos desde cedo em um mundo mediado pela tecnologia — um mundo muito mais dinâmico do que a leitura de um livro físico demanda —, as possibilidades parecem ser ainda mais restritas. Livro é um punhado de folhas preenchidas com texto, encadernadas e encapadas. Serve para estudar, eventualmente, para ler. Não se pode fazer muito com ele além disso.

 

        Foram estas três perguntas que incitaram uma discussão no primeiro encontro do plano de aula que apresentaremos neste artigo. Talvez tenha causado algum estranhamento na turma: que a professora de artes entrasse na sala de aula e começasse a falar sobre livros, em vez de falar sobre história da arte ou mostrar o trabalho de algum artista, ou até mesmo propor uma prática artística. A discussão demonstrou que, do ponto de vista dos estudantes, um livro é um receptáculo de informações. Uma via de mão única: uma vez que o texto está impresso, ele não pode mais ser modificado. Nenhum estudante levantou a possibilidade de que fosse possível utilizar o livro para fazer arte.

A turma em que esta experiência foi realizada já estava habituada a algumas manifestações artísticas não ortodoxas. Na verdade, um dos motivos pelos quais a turma foi selecionada para esta experiência foi justamente o fato de que, mais cedo no ano letivo, já havia sido trabalhada a relação entre arte e escrita. Mesmo assim, ninguém sequer cogitou a possibilidade de que um livro pudesse ser utilizado para fazer arte. Alguns estudantes, quando a proposta lhes foi apresentada, se mostraram até mesmo receosos sobre a ideia de intervir artisticamente sobre um livro. Como se modificá-lo fisicamente fosse algo impensável. Livro é para ser lido, não para ser escrito por cima.

Ao final da primeira aula, porém, depois que as possibilidades de criação artística sobre o livro enquanto suporte foram devidamente apresentadas aos estudantes, e os livros que selecionamos para esta experiência foram distribuídos, a maioria dos estudantes já deixava florescer suas ideias de intervenções artísticas sobre aqueles livros. Já não eram mais objetos intocáveis, imutáveis: tornaram-se possibilidades.

Apesar de sua importância histórica e também no cenário artístico contemporâneo, destacada principalmente por Silveira (2008), o Livro de Artista não é um assunto que costuma ser tratado em sala de aula, especialmente no Ensino Fundamental. Pretendemos demonstrar, com este relato, que é possível trabalhar esta forma de arte em sala de aula com bastante sucesso, mas não apenas isso. Pretendemos demonstrar que o trabalho com o livro enquanto suporte da criação artística também pode instigar uma nova percepção sobre a própria instituição “livro” nos estudantes.

 

Concepções acerca do Livro de Artistas

 

            Considerando que o objeto de nosso projeto de ensino é o livro de artista, é importante buscar, em primeiro lugar, uma definição para este conceito. Tomaremos como base o sentido bastante abrangente que Regatão (2020, p. 219) propõe:

 

Quando pensamos no livro de artista enquanto obra de arte, estamos perante um objeto que se distingue pela profunda liberdade criativa que proporciona ao seu criador, pela ausência de regras e fórmulas convencionais, pela sua vocação interdisciplinar, forte sentido interativo e sentido provocador na sua afirmação plástica. (REGATÃO, 2020, p. 219)

 

 

Embora Silveira (2008, p. 26) afirme que um livro de artista “não precisa ser um livro, bastando ser a ele referente, mesmo que remotamente”, optamos por tomar como ponto de partida livros propriamente ditos. Estes, recolhidos na Biblioteca Municipal de Garibaldi (RS); mais precisamente, da seção de descarte.

Entendeu-se que esse movimento se trataria de uma ressignificação da própria função do livro. Martin Puchner (2019, p.19), em O Mundo da Escrita, destaca que “o uso generalizado do papel e da imprensa deu início à era da produção em massa e da alfabetização em massa”. Antes da imprensa, porém, a relação entre livro e leitor era consideravelmente diferente.

Desde a possível origem da escrita, na Mesopotâmia, sua utilização era um privilégio de uma parcela muito pequena da sociedade. Mesmo com as mudanças de técnicas e códigos — da escrita cuneiforme aos monges copistas da Era Medieval —, ler e escrever não eram atividades comuns à maioria da população; por consequência, o objeto livro não fazia parte da realidade cotidiana dessas pessoas. O surgimento de recursos de impressão mecânica, que permitiram que livros fossem reproduzidos em larga escala, de forma mais rápida e com um menor custo, foram o estopim para que a escrita e a leitura entrassem no cotidiano da maior parte da população.

Por ter permitido a democratização do saber, o livro desde a imprensa tem sido uma força importante na constituição da sociedade. Todavia, se por muitos séculos o livro tem sido o principal meio de propagação do conhecimento, os livros utilizados neste projeto não parecem cumprir sua função histórica. Afinal, estavam prestes a serem descartados. Utilizando-os como suporte para a criação artística, se dá uma sobrevida ao livro, e por mais que sua materialidade seja questionada, sua função primordial continua a mesma. Os livros continuam servindo como receptáculos de conhecimento; agora, porém, através de recursos plásticos, não necessariamente verbais.

Parece importante também tomar-se alguns pressupostos apresentados por Antônio Cândido (2011, p. 176) em seu texto O Direito à Literatura: primeiro, a definição de literatura como “[...] todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade [...]”; em segundo lugar, a ideia de que a literatura é uma “necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito” (CÂNDIDO, 2011, p. 177). Levando em conta estes dois pressupostos estabelecidos, parece lógico afirmar que o livro de artista é, também, suporte para essas criações de toque poético citadas por Cândido. Sendo assim, levar o livro de artista à sala de aula parece ser, também, uma forma de instrumentalizar os estudantes para que exerçam seu direito à literatura (na definição ampla de Cândido), utilizando uma materialização literária tradicional (o livro) como suporte.

 

 Elaboração do plano de ensino

Partindo da ideia inicial, de trabalhar o livro de artista como suporte para a criação artística, começamos a elaborar nosso plano de ensino. A proposta foi planejada para uma turma de oitavo ano do Ensino Fundamental de uma escola municipal da cidade de Garibaldi — RS. Essa escolha se deu porque no ano letivo de 2021, a turma já havia estudado algumas manifestações artísticas que envolvem intersecções entre Arte e Literatura.

De forma ampla, já havia sido tratada a relação entre a Arte e Escrita ao longo da história: começando nos hieróglifos do Antigo Egito, as iluminuras da Era Medieval, e, num âmbito contemporâneo, a Poesia Concreta e artistas contemporâneos que utilizam a escrita como suporte. Entre esses, Elida Tessler, Austin Kleon e John Sokol. A relação entre a escrita na arte e o livro de artista surge, então, quase como um contínuo.

O plano de ensino (TABELA 01) foi desenvolvido para ser aplicado em seis aulas, durante três semanas. Isso daria tempo para que todas as etapas previstas fossem desenvolvidas de forma satisfatória.

Tabela. 1

AULA

TEMPO

ETAPAS PREVISTAS

AULA 01

08/10/21

50 minutos

Discussão prévia sobre o conceito, a função e as possibilidades do objeto livro

 

Retomada de conteúdos referentes à intersecção entre Arte e Escrita; apresentação do conceito de livro de artista e referências visuais.

AULA 02

08/10/21

50 minutos

Formação de grupos. Discussão em grupo sobre imagens de obras apresentadas. Distribuição dos livros a cada grupo. Discussão em grupo sobre as possibilidades de criação a partir do livro recebido.

AULA 03

15/10/21

50 minutos

Exploração em grupo dos recursos expressivos do Livro de Artista. Experimentações com diferentes materiais, criação e finalização dos livros de artista.

AULA 04

15/10/21

50 minutos

AULA 05

22/10/21

50 minutos

Apresentação dos trabalhos desenvolvidos pelos grupos nas aulas anteriores. Conversa sobre processos de criação. Discussão de formas de exposição dos trabalhos produzidos.

AULA 06

22/10/21

50 minutos

Curadoria e montagem da exposição planejada pelos alunos. Retomada das discussões iniciadas na aula 01.

Fonte: Dados produzidos pelos autores

 

Esta proposta teve como inspiração a concepção de José Pedro Regatão (2020), que se vale do Livro de Artista como suporte para o ensino do desenho e seus desdobramentos. Em suas considerações finais, ao tratar do uso do Livro de Artista como suporte, Regatão afirma que

[...] a forte componente conceptual desta modalidade artística, desafiou os estudantes a refletir sobre o potencial deste formato para exprimir uma ideia, desenvolver um vocabulário visual próprio e explorar as diversas possibilidades criativas deste suporte. Do ponto de vista estético, reconhece-se que o projeto do livro de artista promoveu a exploração da dimensão metafórica, simbólica e poética da arte. (REGATÃO, 2020, p. 229)

 A potencialidade do Livro de Artista enquanto suporte, portanto, revelou-se bastante compreensiva. Afinal, este autor, mesmo trabalhando uma proposta cujo foco era principalmente o ensino do desenho (sendo o Livro de Artista um “meio” para atingir esse objetivo final), conseguiu guiar seus estudantes a estas reflexões. Pensamos, então, que uma proposta focada especificamente no Livro de Artista também poderia fomentar discussões e reflexões muito importantes sobre o fazer artístico na contemporaneidade, além de abrir espaço para discussões sobre o livro e a leitura, e a relação dos estudantes com essas materialidades.

É importante destacar ainda outra diferença: a proposta descrita por Regatão foi aplicada em uma turma de uma disciplina do Ensino Superior. Nos pareceu interessante trazer esta discussão também para o Ensino Básico. Como veremos mais adiante neste escrito, algumas competências e habilidade da Base Nacional Curricular Comum (BNCC) parecem contemplar perfeitamente a discussão sobre o Livro de Artista.

O plano de ensino também foi embasado por uma experiência  desenvolvida pela Biblioteca de Birmingham, na Inglaterra, e documentada com o nome The Library of Lost Books (FIGURAS 01 e 02). Nesta ação, alguns artistas foram convidados a modificar e reinventar livros que seriam descartados pela instituição, utilizando-os como suporte para criar obras de arte. As obras foram, posteriormente, exibidas nesta Biblioteca.

 

Figura. 1 Livro da artista Kyra Clegg, que usou como suporte um livro de gramática da língua francesa de 1829, transformando em um relato imaginário de viagem do escritor do livro. Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/videos_e_fotos/2013/11/131108_livros_reaproveita_arte_fn

 

 

Figura. 2 Livro de Oliver Flude, que criou histórias fantásticas em um livro do século 19. Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/videos_e_fotos/2013/11/131108_livros_reaproveita_arte_fn

            Consideramos esta ação muito importante para a construção de nossa proposta. Primeiro, porque o movimento de explorar de livros antigos como suporte para a criação de livros de artista é basicamente o mesmo movimento aplicado em sala de aula. Segundo, porque a estética das obras resultantes deste processo nos pareceu bastante condizente com as possibilidades criativas da turma escolhida.

            Optamos por executar a experiência em grupos, além dos motivos práticos (o tempo de desenvolvimento e a disponibilidade de livros), por acreditarmos que a realização de uma produção artística colaborativa seria muito importante para os estudantes. Tal prática está prevista na Base Nacional Comum Curricular - BNCC, onde é listada como Competência Específica de Arte para o Ensino Fundamental de número 8: “Desenvolver a autonomia, a crítica, a autoria e o trabalho coletivo e colaborativo nas artes” (BRASIL, 2017, p. 198).

            Além dessa competência, o trabalho com o Livro de Artista é relevante também para a Competência Específica de Arte para o Ensino Fundamental de número 1:

Explorar, conhecer, fruir e analisar criticamente práticas e produções artísticas e culturais do seu entorno social, dos povos indígenas, das comunidades tradicionais brasileiras e de diversas sociedades, em distintos tempos e espaços, para reconhecer a arte como um fenômeno cultural, histórico, social e sensível a diferentes contextos e dialogar com as diversidades. (BRASIL, 2017, p. 198)

            Considera-se que há um ponto de intersecção entre o Livro de Artista e a Literatura nessa competência. O primeiro pode ser considerado uma “produção artística” e a segunda, materializada no livro enquanto objeto, como uma “produção cultural”: o Livro de Artista seria, então, um hibridismo entre essas duas práticas. Além disso, sua posição já consolidada (cf. Silveira, 2008) nos círculos de arte indicam que é um fenômeno artístico relevante, já materializado e passível de ser estudado.

            Além das já citadas competências, as seguintes habilidades específicas já previstas na BNCC também foram exercitadas nesta proposta:

 

(EF69AR01) Pesquisar, apreciar e analisar formas distintas das artes visuais tradicionais e contemporâneas, em obras de artistas brasileiros e estrangeiros de diferentes épocas e em diferentes matrizes estéticas e culturais, de modo a ampliar a experiência com diferentes contextos e práticas artístico-visuais e cultivar a percepção, o imaginário, a capacidade de simbolizar e o repertório imagético.

(EF69AR03) Analisar situações nas quais as linguagens das artes visuais se integram às linguagens audiovisuais (cinema, animações, vídeos etc.), gráficas (capas de livros, ilustrações de textos diversos etc.), cenográficas, coreográficas, musicais etc.

(EF69AR05) Experimentar e analisar diferentes formas de expressão artística (desenho, pintura, colagem, quadrinhos, dobradura, escultura, modelagem, instalação, vídeo, fotografia, performance etc.)

(EF69AR06) Desenvolver processos de criação em artes visuais, com base em temas ou interesses artísticos, de modo individual, coletivo e colaborativo, fazendo uso de materiais, instrumentos e recursos convencionais, alternativos e digitais. (BRASIL, 2017, p. 207)

 

 

Relato da aplicação do Plano de Ensino

 

O primeiro dia de aula, compreendendo as etapas previstas nas aulas 01 e 02, foi iniciado com uma curta discussão prévia sobre o livro enquanto objeto. Isso foi feito antes mesmo de se apresentar aos estudantes a ideia de livro de artista, para estabelecer-se um parâmetro para comparação posterior. A discussão foi feita com base em três perguntas motivadoras: (a) “O que é um livro?”; (b) “Para que serve um livro?” e (c) “O que se pode fazer com um livro?”.

Nossa hipótese inicial era a de que os estudantes, em sua maioria, trariam respostas não relacionadas às artes visuais, e mais voltadas para as funções mais ortodoxas do livro. Nesse primeiro momento, a maioria dos estudantes chegou a respostas parecidas para as perguntas, confirmando nossa hipótese inicial. À pergunta (a), todas as respostas foram variações de “um conjunto de páginas encadernadas que contém histórias”.

A pergunta (b) teve respostas mais heterogêneas: desde um simples “para ler” (B., 13 anos), passando por “desenvolver a memória e a leitura” (F., 14 anos), “para lermos e imaginarmos o que quisermos” (H., 14 anos), e até mesmo “para desestressar” (M., 13 anos) ou “descobrir coisas” (G., 14 anos). Analisando as respostas para essa questão, percebemos que todas essas respostas tratavam da função mais básica e previsível de um livro: a leitura. Apesar de estarem em uma aula de Artes, e já terem estudado, anteriormente, manifestações artísticas que unem arte visual e escrita, todos os estudantes pareceram apegados à definição tradicional de “livro”.

            As respostas para a pergunta (c) foram um pouco menos conclusivas do que as outras duas. Alguns dos estudantes levantaram propostas um tanto absurdas, como “bater na cabeça do colega” (G., 13 anos), “deixar de enfeite” (G., 14 anos) ou “matar mosquito” (F., 14 anos). A maioria dos estudantes, porém, deteve-se nas possibilidades pré-determinadas do livro: “ler” e “estudar” surgiram novamente na discussão. As propostas absurdas, somadas às duas propostas mais prevalentes, indicam algum esforço, ainda que em tom sardônico, em imaginar outras funções para o livro. Como se a pergunta “o que se pode fazer com um livro?” fosse tão óbvia — afinal, o que se pode fazer com um livro além de ler? — a ponto de nem valer a pena ser respondida seriamente.

            Logo após a discussão, os alunos foram indagados sobre o que eles imaginavam por “livro de artista”. A turma praticamente dividiu-se entre duas possibilidades: “um livro com rascunhos das obras de um artista” e “um caderno onde o artista anota suas ideias”. Observando essa discussão, pudemos perceber que, confrontados pela primeira vez com o termo “livro de artista”, os estudantes entenderam “arte” e “livro” como duas coisas essencialmente diferentes, de poucas intersecções. O “livro de artista”, em sua concepção, poderia ser um registro de processo ou um caderno de anotações, mas não uma obra por si só. Tivemos certeza, portanto, de que aquela turma até então não havia sequer considerado a possibilidade de utilizar o livro como um suporte para a criação artística.

            Ao final da discussão, foram apresentadas alguns livros de artista — De como não fui ministro d’Estado (FIGURA 03), de William Kentridge, e Censored Book (1974) (FIGURA 04), de Barton Lidicé Benes. Acreditamos que estas duas obras seriam suficientes, ao menos em um primeiro momento, para exemplificar as possibilidades criativas deste meio. Pode ser destacada, também, uma certa consonância com os conceitos de ternura e injúria apresentados por Silveira (2008) — sendo Kentridge, que trabalha metodicamente sobre o livro para criar uma animação quadro-a-quadro, a ternura; e Benes, que subverte completamente a função do livro, assim impedindo completamente sua abertura, a injúria. Também foram apresentadas as obras produzidas pela já citada ação promovida pela Biblioteca Central de Birmingham.

           


Figura. 3 Páginas do livro De como não fui Ministro d'Estado, de William Kentridge. Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Figura-1-Paginas-do-livro-De-como-nao-fui-Ministro-dEstado-de-William-Kentridge_fig1_261251156

 

 

 

 

 

 


Figura. 4 Censored Book (1974), de Barton Lidicé Benes Fonte: https://centerforbookarts.dreamhosters.com/index.php/Detail/Object/Show/object_id/772

 

 

Em seguida, os estudantes dividiram-se em quatro grupos, e a cada grupo foi entregue um dos livros oriundos da pilha de descarte da Biblioteca Municipal. Foi proposto que os alunos observassem o livro que lhes foi entregue, e, a partir dele, pensassem em possibilidades criativas. Também foram distribuídos tablets a cada um dos grupos, para que os estudantes pudessem pesquisar outras referências por conta própria.

Os estudantes se mostraram muito interessados na proposta, talvez até mesmo empolgados. Um ponto que chamou a atenção foi que alguns estudantes, ao receber o livro, perguntaram se poderiam mesmo escrever ou desenhar sobre suas páginas. Essa pergunta pode ser considerada mais uma evidência de que o livro ainda é visto pelos estudantes como um objeto intransponível, como se todas as suas possibilidades já tivessem sido executadas, e a única forma de relacionar-se com ele é através da leitura.

Ao final desta etapa, um dos grupos já havia tomado algumas decisões sobre a produção de seu livro: utilizariam a imagem impressa de uma bailarina como tema principal de sua produção. Ao final da aula, os livros foram recolhidos, para serem distribuídos novamente na aula seguinte.

No segundo dia de aula, foram iniciadas as experimentações sobre os livros. Recursos visuais e textos foram deixados à disposição dos alunos, em sua forma impressa, para que pudessem retomar os artistas apresentados a qualquer momento.

Esta etapa foi realizada na Sala de Artes da escola, onde são disponibilizados materiais artísticos de uso coletivo. Os  estudantes tinham, portanto, acesso a materiais como tintas guache e nanquim, folhas coloridas, papeis para recorte, etc. Os estudantes puderam escolher quaisquer desses materiais para desenvolverem seus trabalhos. Além do grupo que já havia decidido por seu tema na aula anterior, outros também já tinham tido ideias, na semana que transcorreu entre as duas aulas, sobre o que gostariam de desenvolver. Os alunos, portanto, desenvolveram suas experimentações de formas diversas (FIGURA 05).


Figura. 5 Estudantes do 8º ano durante o momento de prática de exploração dos livros. Fonte: Arquivo pessoal. 

 

            No terceiro dia de aula, conforme planejado, a turma sentou em círculo para conversar sobre os processos de produção dos livros de artista. Os trabalhos finalizados também foram apresentados à turma. Foi solicitado que cada grupo detalhasse aspectos como a concepção das ideias, divisão de tarefas na elaboração de projeto, materiais utilizados, etc.

            Resumidamente, os estudantes relataram o seguinte:

-       Grupo 1 (O Green World): cada integrante do grupo produziu sua intervenção em uma página separada, com uma técnica diferente e a partir de inspirações diferentes. Cada estudante escolheu em qual página trabalharia com base em critérios subjetivos: sua idade, seu número da sorte, etc.

-       Grupo 2 (As Uvas do Mandrake): O grupo buscou inspiração no título do livro (uma edição em capa dura de O País das Uvas, de Fialho de Almeida). A partir disso, utilizaram técnicas de estêncil para criar a silhueta de taças de espumante. As taças remetem não só ao nome do livro, mas também à cidade onde a proposta foi desenvolvida, conhecida por ser a “capital do espumante”.

-       Grupo 3 (A Fechadura): O grupo optou por modificar a capa do livro. Inicialmente, a ideia era criar uma espécie de “fechadura”, mas a proposta foi modificada para que o livro parecesse com a pintura O Grito, de Edvard Munch. Esta pintura foi escolhida por já ter sido trabalhada em aula antes, e por ter impressionado os alunos. O título, porém, se manteve.

-       Grupo 4 (A Bailarina): A imagem da bailarina foi encontrada durante as pesquisas realizadas na segunda aula, e foi impressa para ser utilizada na aula posterior. A ideia inicial era desenhar a bailarina, mas o grupo decidiu por utilizar apenas seu contorno. Sua inspiração foram os trabalhos de Panikaniva e Clegg; este último tendo sido apresentado durante a aula 01.

 

 

            Figura. 6 Trabalho da artista Ekaterina Panikanova

Fonte: https://www.designfather.com/book-art-by-ekaterina-panikanova/

 

Após a apresentação, foram levantados possíveis lugares para que os livros fossem expostos na escola. A turma decidiu utilizar as grades de proteção em um dos corredores da escola, que fica próxima aos banheiros e às salas de aula. Este lugar foi considerado propício por ter uma ampla circulação de estudantes, e, por consequência, deixaria os livros mais visíveis para os alunos durante os intervalos.

            Para finalizar a experiência, cada grupo produziu uma ficha catalográfica de seu trabalho. Os livros foram afixados na grade através do uso de barbantes, facilitando, assim, a interação com a obra através do manuseio dos livros de artista.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura. 7 Livros produzidos pelos alunos, já expostos. 

Fonte: Arquivo pessoal. 

 

 

 

Considerações Finais

 

Durante o desenvolvimento deste plano de ensino, pudemos, em primeiro lugar, entender um pouco melhor a relação dos estudantes com o livro enquanto objeto. A discussão desenvolvida no início da experiência, sobre a definição, a função e as possibilidades do livro foi retomada após a última aula, e trouxe alguns pontos interessantes de se ressaltar.

Primeiro: a definição de livro pareceu se expandir. Se a turma havia chegado em um consenso, na primeira etapa deste trabalho, de que o livro era um “conjunto de páginas encadernadas que contém histórias”; ao final dela, não houve um consenso. As páginas do livro não precisam conter apenas histórias; e também não precisam contar apenas uma história: podem conter também outros materiais, e podem servir para contar várias histórias diferentes, inclusive contadas por diferentes autores. Da mesma forma, as respostas sobre sua função e sobre suas possibilidades foram expandidas: houve quem dissesse que o livro serve também para “fazer arte contemporânea” (F., 14 anos), certamente ainda influenciadas pela proposta.

Outra resposta comum foi “aumentar a criatividade”, e esta parece especialmente interessante, porque não figurou nas respostas iniciais. Antes de experimentarem o livro como um suporte para a criação artística, os estudantes enxergaram-no apenas como um receptáculo de informações. Ao final da experiência, já começaram a entendê-lo como algo além disso, como se eles também estivessem “autorizados” a colocar seu discurso naquele livro, em vez de apenas absorver o discurso do próprio livro.

Uma das integrantes do grupo que produziu o livro O Green World ocupou sua página com desenhos que faziam referência à conhecidíssima série de livros e filmes Harry Potter. Percebemos, neste movimento, uma possibilidade interessante: talvez, em conjunto com as disciplinas de língua portuguesa e/ou literatura, o livro de artista poderia ser utilizado como uma intersecção entre essas disciplinas. Talvez, dessa forma, a aproximação dos estudantes com os livros poderia ser potencializada, fazendo com que não se sentissem só leitores “passivos” do livro, mas também agentes de sua criação (ou recriação).

De maneira geral, consideramos que a proposta cumpriu o objetivo inicial, de apresentar o Livro de Artista como suporte artístico para os estudantes envolvidos no projeto. No meio do caminho, outras consequências interessantes surgiram — como a ressignificação funcional do livro, por exemplo.

Por fim, trazemos uma anedota que aconteceu na semana seguinte ao término do projeto, e que talvez sirva para atestar o sucesso do projeto: uma das estudantes da turma envolvida no projeto foi até a Biblioteca Municipal em busca de livros da pilha de descartes, com a intenção de utilizá-los como suporte para suas criações artísticas. Quando essa estudante falou isso em sala de aula, outros colegas também se interessaram pelos livros, e a primeira estudante dividiu alguns dos que tinha levado da biblioteca com seus colegas. Parece coerente afirmar, portanto, que o movimento que foi iniciado em sala de aula não se encerrou ao término da experiência: foram abertos possíveis caminhos para a relação dos estudantes com o livro, e também novas possibilidades de se pensar na criação artística.

 

Referências Bibliográficas

 

ARTISTAS dão ‘nova vida’ a livros descartados por biblioteca. BBC News Brasil, 08 de novembro de 2013. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/videos_e_fotos/2013/11/131108_livros_reaproveita_arte_fn>. Acesso em: 10 de novembro de 2021.

 

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2017.

 

CÂNDIDO, A. O direito à literatura in: Vários escritos. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2011. 272p.

 

PUCHNER, Martin. O mundo da escrita: como a literatura transformou a civilização. 1. ed. São Paulo : Companhia das Letras, 2019. 488p.

 

REGATÃO, J. P. O Livro de Artista: potencialidades pedagógicas no ensino do desenho. Estado da Arte. Uberlândia, v. 1 n. 2, jul./dez. 2020. Disponível em: <http://www.seer.ufu.br/index.php/revistaestadodaarte/article/view/57970>. Acesso em: 7 nov. 2021.

 

SILVEIRA, P. A página violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista [online]. 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008. 319 p.

 

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[1] Doutorando em Letras — Estudos Literários Aplicados (UFRGS). Mestre em Letras (UFRGS, 2021) e Bacharel em Artes Visuais (UFRGS, 2017)Biografia, inserida após a aprovação. E-mail: felipe.pergher@ufrgs.br

[2] Licenciada em Artes Visuais (2017). Possui especialização em Arte (UFPEL, 2022). Atua como professora na rede municipal de Garibaldi (RS) desde 2020.Biografia, inserida após a aprovação. E-mail: nataliaribacki@gmail.com

[3] Doutora em Educação Ambiental (FURG, 2016). Mestra em Educação Ambiental (FURG, 2014) e Licenciada em Artes Visuais. Atua como professora na rede municipal de Rio Grande (RS), e como pesquisadora no CEAMECIM/FURG.Biografia, inserida após a aprovação. E-mail: michelle.tutoria@gmail.com