��P�ginas encadernadas que cont�m hist�rias�: do livro ao Livro de Artista na disciplina de Arte
��Bound pages that hold stories�: from the book to the Artist�s Book in Art class
Felipe Pergher[1]
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Natalia Comerlatto Ribacki[2]
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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Michelle Coelho Salort[3]
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
�
Resumo
O artigo investiga as possibilidades criativas do Livro de Artista por meio de uma experi�ncia realizada no Componente Curricular Arte, em uma turma de oitavo ano do Ensino Fundamental de Garibaldi � RS. Para isso, versa de forma sint�tica o conceito de Livro de Artista.� Foram apresentadas obras de artistas que trabalharam com esse meio para os estudantes, que foram instigados a explorar livros antigos, obtidos de uma pilha de descarte, como suporte para a cria��o art�stica. O resultado da experi�ncia did�tica foram quatro livros de artista desenvolvidos coletivamente pelos estudantes, que posteriormente foram expostos em um ambiente de circula��o da escola. Foram discutidas, tamb�m, as implica��es que esta experi�ncia trouxe � percep��o dos estudantes sobre o livro enquanto objeto e institui��o.
Palavras-chave: livro de artista, livro, ensino da arte, cria��o art�stica, literatura
Abstract
This paper researches the creative possibilities of the Artist�s Book, through a teaching experience applied during Art class. The classroom had students ranging from 13 to 15 years old, and was located in Garibaldi - Brazil. Having a presentation about artists who have used this medium in their productions as an inspiration and starting point, the students were invited to explore old, soon-to-be discarded books as a medium for artistic creation. This experience resulted in four artists� books collectively developed by the students. Afterwards, they were put on show in a circulation area of the school. Through discussions in class, the implications of this experience to the students� perception of the book as an object and institution were analysed as well.
Keywords: artist�s book, creative process, book, literature, education in arts.
Introdu��o
�������� O que � um livro? Para que serve? O que se pode fazer com um livro? Estas tr�s perguntas podem parecer um tanto simpl�rias, at� mesmo elementares � primeira vista. Aos olhos de adolescentes, j� imersos desde cedo em um mundo mediado pela tecnologia � um mundo muito mais din�mico do que a leitura de um livro f�sico demanda �, as possibilidades parecem ser ainda mais restritas. Livro � um punhado de folhas preenchidas com texto, encadernadas e encapadas. Serve para estudar, eventualmente, para ler. N�o se pode fazer muito com ele al�m disso.
������� Foram estas tr�s perguntas que incitaram uma discuss�o no primeiro encontro do plano de aula que apresentaremos neste artigo. Talvez tenha causado algum estranhamento na turma: que a professora de artes entrasse na sala de aula e come�asse a falar sobre livros, em vez de falar sobre hist�ria da arte ou mostrar o trabalho de algum artista, ou at� mesmo propor uma pr�tica art�stica. A discuss�o demonstrou que, do ponto de vista dos estudantes, um livro � um recept�culo de informa��es. Uma via de m�o �nica: uma vez que o texto est� impresso, ele n�o pode mais ser modificado. Nenhum estudante levantou a possibilidade de que fosse poss�vel utilizar o livro para fazer arte.
A turma em que esta experi�ncia foi realizada j� estava habituada a algumas manifesta��es art�sticas n�o ortodoxas. Na verdade, um dos motivos pelos quais a turma foi selecionada para esta experi�ncia foi justamente o fato de que, mais cedo no ano letivo, j� havia sido trabalhada a rela��o entre arte e escrita. Mesmo assim, ningu�m sequer cogitou a possibilidade de que um livro pudesse ser utilizado para fazer arte. Alguns estudantes, quando a proposta lhes foi apresentada, se mostraram at� mesmo receosos sobre a ideia de intervir artisticamente sobre um livro. Como se modific�-lo fisicamente fosse algo impens�vel. Livro � para ser lido, n�o para ser escrito por cima.
Ao final da primeira aula, por�m, depois que as possibilidades de cria��o art�stica sobre o livro enquanto suporte foram devidamente apresentadas aos estudantes, e os livros que selecionamos para esta experi�ncia foram distribu�dos, a maioria dos estudantes j� deixava florescer suas ideias de interven��es art�sticas sobre aqueles livros. J� n�o eram mais objetos intoc�veis, imut�veis: tornaram-se possibilidades.
Apesar de sua import�ncia hist�rica e tamb�m no cen�rio art�stico contempor�neo, destacada principalmente por Silveira (2008), o Livro de Artista n�o � um assunto que costuma ser tratado em sala de aula, especialmente no Ensino Fundamental. Pretendemos demonstrar, com este relato, que � poss�vel trabalhar esta forma de arte em sala de aula com bastante sucesso, mas n�o apenas isso. Pretendemos demonstrar que o trabalho com o livro enquanto suporte da cria��o art�stica tamb�m pode instigar uma nova percep��o sobre a pr�pria institui��o �livro� nos estudantes.
Concep��es acerca do Livro de Artistas
����������� Considerando que o objeto de nosso projeto de ensino � o livro de artista, � importante buscar, em primeiro lugar, uma defini��o para este conceito. Tomaremos como base o sentido bastante abrangente que Regat�o (2020, p. 219) prop�e:
Quando pensamos no livro de artista enquanto obra de arte, estamos perante um objeto que se distingue pela profunda liberdade criativa que proporciona ao seu criador, pela aus�ncia de regras e f�rmulas convencionais, pela sua voca��o interdisciplinar, forte sentido interativo e sentido provocador na sua afirma��o pl�stica. (REGAT�O, 2020, p. 219)
Embora Silveira (2008, p. 26) afirme que um livro de artista �n�o precisa ser um livro, bastando ser a ele referente, mesmo que remotamente�, optamos por tomar como ponto de partida livros propriamente ditos. Estes, recolhidos na Biblioteca Municipal de Garibaldi (RS); mais precisamente, da se��o de descarte.
Entendeu-se que esse movimento se trataria de uma ressignifica��o da pr�pria fun��o do livro. Martin Puchner (2019, p.19), em O Mundo da Escrita, destaca que �o uso generalizado do papel e da imprensa deu in�cio � era da produ��o em massa e da alfabetiza��o em massa�. Antes da imprensa, por�m, a rela��o entre livro e leitor era consideravelmente diferente.
Desde a poss�vel origem da escrita, na Mesopot�mia, sua utiliza��o era um privil�gio de uma parcela muito pequena da sociedade. Mesmo com as mudan�as de t�cnicas e c�digos � da escrita cuneiforme aos monges copistas da Era Medieval �, ler e escrever n�o eram atividades comuns � maioria da popula��o; por consequ�ncia, o objeto livro n�o fazia parte da realidade cotidiana dessas pessoas. O surgimento de recursos de impress�o mec�nica, que permitiram que livros fossem reproduzidos em larga escala, de forma mais r�pida e com um menor custo, foram o estopim para que a escrita e a leitura entrassem no cotidiano da maior parte da popula��o.
Por ter permitido a democratiza��o do saber, o livro desde a imprensa tem sido uma for�a importante na constitui��o da sociedade. Todavia, se por muitos s�culos o livro tem sido o principal meio de propaga��o do conhecimento, os livros utilizados neste projeto n�o parecem cumprir sua fun��o hist�rica. Afinal, estavam prestes a serem descartados. Utilizando-os como suporte para a cria��o art�stica, se d� uma sobrevida ao livro, e por mais que sua materialidade seja questionada, sua fun��o primordial continua a mesma. Os livros continuam servindo como recept�culos de conhecimento; agora, por�m, atrav�s de recursos pl�sticos, n�o necessariamente verbais.
Parece importante tamb�m tomar-se alguns pressupostos apresentados por Ant�nio C�ndido (2011, p. 176) em seu texto O Direito � Literatura: primeiro, a defini��o de literatura como �[...] todas as cria��es de toque po�tico, ficcional ou dram�tico em todos os n�veis de uma sociedade [...]�; em segundo lugar, a ideia de que a literatura � uma �necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfa��o constitui um direito� (C�NDIDO, 2011, p. 177). Levando em conta estes dois pressupostos estabelecidos, parece l�gico afirmar que o livro de artista �, tamb�m, suporte para essas cria��es de toque po�tico citadas por C�ndido. Sendo assim, levar o livro de artista � sala de aula parece ser, tamb�m, uma forma de instrumentalizar os estudantes para que exer�am seu direito � literatura (na defini��o ampla de C�ndido), utilizando uma materializa��o liter�ria tradicional (o livro) como suporte.
�Elabora��o do plano de ensino
Partindo da ideia inicial, de trabalhar o livro de artista como suporte para a cria��o art�stica, come�amos a elaborar nosso plano de ensino. A proposta foi planejada para uma turma de oitavo ano do Ensino Fundamental de uma escola municipal da cidade de Garibaldi � RS. Essa escolha se deu porque no ano letivo de 2021, a turma j� havia estudado algumas manifesta��es art�sticas que envolvem intersec��es entre Arte e Literatura.
De forma ampla, j� havia sido tratada a rela��o entre a Arte e Escrita ao longo da hist�ria: come�ando nos hier�glifos do Antigo Egito, as iluminuras da Era Medieval, e, num �mbito contempor�neo, a Poesia Concreta e artistas contempor�neos que utilizam a escrita como suporte. Entre esses, Elida Tessler, Austin Kleon e John Sokol. A rela��o entre a escrita na arte e o livro de artista surge, ent�o, quase como um cont�nuo.
O plano de ensino (TABELA 01) foi desenvolvido para ser aplicado em seis aulas, durante tr�s semanas. Isso daria tempo para que todas as etapas previstas fossem desenvolvidas de forma satisfat�ria.
Tabela. 1
AULA |
TEMPO |
ETAPAS PREVISTAS |
AULA 01 08/10/21 |
50 minutos |
Discuss�o pr�via sobre o conceito, a fun��o e as possibilidades do objeto livro
Retomada de conte�dos referentes � intersec��o entre Arte e Escrita; apresenta��o do conceito de livro de artista e refer�ncias visuais. |
AULA 02 08/10/21 |
50 minutos |
Forma��o de grupos. Discuss�o em grupo sobre imagens de obras apresentadas. Distribui��o dos livros a cada grupo. Discuss�o em grupo sobre as possibilidades de cria��o a partir do livro recebido. |
AULA 03 15/10/21 |
50 minutos |
Explora��o em grupo dos recursos expressivos do Livro de Artista. Experimenta��es com diferentes materiais, cria��o e finaliza��o dos livros de artista. |
AULA 04 15/10/21 |
50 minutos |
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AULA 05 22/10/21 |
50 minutos |
Apresenta��o dos trabalhos desenvolvidos pelos grupos nas aulas anteriores. Conversa sobre processos de cria��o. Discuss�o de formas de exposi��o dos trabalhos produzidos. |
AULA 06 22/10/21 |
50 minutos |
Curadoria e montagem da exposi��o planejada pelos alunos. Retomada das discuss�es iniciadas na aula 01. |
Fonte: Dados produzidos pelos autores
Esta proposta teve como inspira��o a concep��o de Jos� Pedro Regat�o (2020), que se vale do Livro de Artista como suporte para o ensino do desenho e seus desdobramentos. Em suas considera��es finais, ao tratar do uso do Livro de Artista como suporte, Regat�o afirma que
[...] a forte componente conceptual desta modalidade art�stica, desafiou os estudantes a refletir sobre o potencial deste formato para exprimir uma ideia, desenvolver um vocabul�rio visual pr�prio e explorar as diversas possibilidades criativas deste suporte. Do ponto de vista est�tico, reconhece-se que o projeto do livro de artista promoveu a explora��o da dimens�o metaf�rica, simb�lica e po�tica da arte. (REGAT�O, 2020, p. 229)
�A potencialidade do Livro de Artista enquanto suporte, portanto, revelou-se bastante compreensiva. Afinal, este autor, mesmo trabalhando uma proposta cujo foco era principalmente o ensino do desenho (sendo o Livro de Artista um �meio� para atingir esse objetivo final), conseguiu guiar seus estudantes a estas reflex�es. Pensamos, ent�o, que uma proposta focada especificamente no Livro de Artista tamb�m poderia fomentar discuss�es e reflex�es muito importantes sobre o fazer art�stico na contemporaneidade, al�m de abrir espa�o para discuss�es sobre o livro e a leitura, e a rela��o dos estudantes com essas materialidades.
� importante destacar ainda outra diferen�a: a proposta descrita por Regat�o foi aplicada em uma turma de uma disciplina do Ensino Superior. Nos pareceu interessante trazer esta discuss�o tamb�m para o Ensino B�sico. Como veremos mais adiante neste escrito, algumas compet�ncias e habilidade da Base Nacional Curricular Comum (BNCC) parecem contemplar perfeitamente a discuss�o sobre o Livro de Artista.
O plano de ensino tamb�m foi embasado por uma experi�ncia� desenvolvida pela Biblioteca de Birmingham, na Inglaterra, e documentada com o nome The Library of Lost Books (FIGURAS 01 e 02). Nesta a��o, alguns artistas foram convidados a modificar e reinventar livros que seriam descartados pela institui��o, utilizando-os como suporte para criar obras de arte. As obras foram, posteriormente, exibidas nesta Biblioteca.
Figura. 1 Livro da artista Kyra Clegg, que usou como suporte um livro de gram�tica da l�ngua francesa de 1829, transformando em um relato imagin�rio de viagem do escritor do livro. Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/videos_e_fotos/2013/11/131108_livros_reaproveita_arte_fn
Figura. 2 Livro de Oliver Flude, que criou hist�rias fant�sticas em um livro do s�culo 19. Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/videos_e_fotos/2013/11/131108_livros_reaproveita_arte_fn
����������� Consideramos esta a��o muito importante para a constru��o de nossa proposta. Primeiro, porque o movimento de explorar de livros antigos como suporte para a cria��o de livros de artista � basicamente o mesmo movimento aplicado em sala de aula. Segundo, porque a est�tica das obras resultantes deste processo nos pareceu bastante condizente com as possibilidades criativas da turma escolhida.
����������� Optamos por executar a experi�ncia em grupos, al�m dos motivos pr�ticos (o tempo de desenvolvimento e a disponibilidade de livros), por acreditarmos que a realiza��o de uma produ��o art�stica colaborativa seria muito importante para os estudantes. Tal pr�tica est� prevista na Base Nacional Comum Curricular - BNCC, onde � listada como Compet�ncia Espec�fica de Arte para o Ensino Fundamental de n�mero 8: �Desenvolver a autonomia, a cr�tica, a autoria e o trabalho coletivo e colaborativo nas artes� (BRASIL, 2017, p. 198).
����������� Al�m dessa compet�ncia, o trabalho com o Livro de Artista � relevante tamb�m para a Compet�ncia Espec�fica de Arte para o Ensino Fundamental de n�mero 1:
Explorar, conhecer, fruir e analisar criticamente pr�ticas e produ��es art�sticas e culturais do seu entorno social, dos povos ind�genas, das comunidades tradicionais brasileiras e de diversas sociedades, em distintos tempos e espa�os, para reconhecer a arte como um fen�meno cultural, hist�rico, social e sens�vel a diferentes contextos e dialogar com as diversidades. (BRASIL, 2017, p. 198)
����������� Considera-se que h� um ponto de intersec��o entre o Livro de Artista e a Literatura nessa compet�ncia. O primeiro pode ser considerado uma �produ��o art�stica� e a segunda, materializada no livro enquanto objeto, como uma �produ��o cultural�: o Livro de Artista seria, ent�o, um hibridismo entre essas duas pr�ticas. Al�m disso, sua posi��o j� consolidada (cf. Silveira, 2008) nos c�rculos de arte indicam que � um fen�meno art�stico relevante, j� materializado e pass�vel de ser estudado.
����������� Al�m das j� citadas compet�ncias, as seguintes habilidades espec�ficas j� previstas na BNCC tamb�m foram exercitadas nesta proposta:
(EF69AR01) Pesquisar, apreciar e analisar formas distintas das artes visuais tradicionais e contempor�neas, em obras de artistas brasileiros e estrangeiros de diferentes �pocas e em diferentes matrizes est�ticas e culturais, de modo a ampliar a experi�ncia com diferentes contextos e pr�ticas art�stico-visuais e cultivar a percep��o, o imagin�rio, a capacidade de simbolizar e o repert�rio imag�tico.
(EF69AR03) Analisar situa��es nas quais as linguagens das artes visuais se integram �s linguagens audiovisuais (cinema, anima��es, v�deos etc.), gr�ficas (capas de livros, ilustra��es de textos diversos etc.), cenogr�ficas, coreogr�ficas, musicais etc.
(EF69AR05) Experimentar e analisar diferentes formas de express�o art�stica (desenho, pintura, colagem, quadrinhos, dobradura, escultura, modelagem, instala��o, v�deo, fotografia, performance etc.)
(EF69AR06) Desenvolver processos de cria��o em artes visuais, com base em temas ou interesses art�sticos, de modo individual, coletivo e colaborativo, fazendo uso de materiais, instrumentos e recursos convencionais, alternativos e digitais. (BRASIL, 2017, p. 207)
Relato da aplica��o do Plano de Ensino
O primeiro dia de aula, compreendendo as etapas previstas nas aulas 01 e 02, foi iniciado com uma curta discuss�o pr�via sobre o livro enquanto objeto. Isso foi feito antes mesmo de se apresentar aos estudantes a ideia de livro de artista, para estabelecer-se um par�metro para compara��o posterior. A discuss�o foi feita com base em tr�s perguntas motivadoras: (a) �O que � um livro?�; (b) �Para que serve um livro?� e (c) �O que se pode fazer com um livro?�.
Nossa hip�tese inicial era a de que os estudantes, em sua maioria, trariam respostas n�o relacionadas �s artes visuais, e mais voltadas para as fun��es mais ortodoxas do livro. Nesse primeiro momento, a maioria dos estudantes chegou a respostas parecidas para as perguntas, confirmando nossa hip�tese inicial. � pergunta (a), todas as respostas foram varia��es de �um conjunto de p�ginas encadernadas que cont�m hist�rias�.
A pergunta (b) teve respostas mais heterog�neas: desde um simples �para ler� (B., 13 anos), passando por �desenvolver a mem�ria e a leitura� (F., 14 anos), �para lermos e imaginarmos o que quisermos� (H., 14 anos), e at� mesmo �para desestressar� (M., 13 anos) ou �descobrir coisas� (G., 14 anos). Analisando as respostas para essa quest�o, percebemos que todas essas respostas tratavam da fun��o mais b�sica e previs�vel de um livro: a leitura. Apesar de estarem em uma aula de Artes, e j� terem estudado, anteriormente, manifesta��es art�sticas que unem arte visual e escrita, todos os estudantes pareceram apegados � defini��o tradicional de �livro�.
����������� As respostas para a pergunta (c) foram um pouco menos conclusivas do que as outras duas. Alguns dos estudantes levantaram propostas um tanto absurdas, como �bater na cabe�a do colega� (G., 13 anos), �deixar de enfeite� (G., 14 anos) ou �matar mosquito� (F., 14 anos). A maioria dos estudantes, por�m, deteve-se nas possibilidades pr�-determinadas do livro: �ler� e �estudar� surgiram novamente na discuss�o. As propostas absurdas, somadas �s duas propostas mais prevalentes, indicam algum esfor�o, ainda que em tom sard�nico, em imaginar outras fun��es para o livro. Como se a pergunta �o que se pode fazer com um livro?� fosse t�o �bvia � afinal, o que se pode fazer com um livro al�m de ler? � a ponto de nem valer a pena ser respondida seriamente.
����������� Logo ap�s a discuss�o, os alunos foram indagados sobre o que eles imaginavam por �livro de artista�. A turma praticamente dividiu-se entre duas possibilidades: �um livro com rascunhos das obras de um artista� e �um caderno onde o artista anota suas ideias�. Observando essa discuss�o, pudemos perceber que, confrontados pela primeira vez com o termo �livro de artista�, os estudantes entenderam �arte� e �livro� como duas coisas essencialmente diferentes, de poucas intersec��es. O �livro de artista�, em sua concep��o, poderia ser um registro de processo ou um caderno de anota��es, mas n�o uma obra por si s�. Tivemos certeza, portanto, de que aquela turma at� ent�o n�o havia sequer considerado a possibilidade de utilizar o livro como um suporte para a cria��o art�stica.
����������� Ao final da discuss�o, foram apresentadas alguns livros de artista � De como n�o fui ministro d�Estado (FIGURA 03), de William Kentridge, e Censored Book (1974) (FIGURA 04), de Barton Lidic� Benes. Acreditamos que estas duas obras seriam suficientes, ao menos em um primeiro momento, para exemplificar as possibilidades criativas deste meio. Pode ser destacada, tamb�m, uma certa conson�ncia com os conceitos de ternura e inj�ria apresentados por Silveira (2008) � sendo Kentridge, que trabalha metodicamente sobre o livro para criar uma anima��o quadro-a-quadro, a ternura; e Benes, que subverte completamente a fun��o do livro, assim impedindo completamente sua abertura, a inj�ria. Tamb�m foram apresentadas as obras produzidas pela j� citada a��o promovida pela Biblioteca Central de Birmingham.
�����������
Figura. 3 P�ginas do livro De como n�o fui Ministro d'Estado, de William Kentridge. Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Figura-1-Paginas-do-livro-De-como-nao-fui-Ministro-dEstado-de-William-Kentridge_fig1_261251156
Figura. 4 Censored Book (1974), de Barton Lidic� Benes Fonte: https://centerforbookarts.dreamhosters.com/index.php/Detail/Object/Show/object_id/772
Em seguida, os estudantes dividiram-se em quatro grupos, e a cada grupo foi entregue um dos livros oriundos da pilha de descarte da Biblioteca Municipal. Foi proposto que os alunos observassem o livro que lhes foi entregue, e, a partir dele, pensassem em possibilidades criativas. Tamb�m foram distribu�dos tablets a cada um dos grupos, para que os estudantes pudessem pesquisar outras refer�ncias por conta pr�pria.
Os estudantes se mostraram muito interessados na proposta, talvez at� mesmo empolgados. Um ponto que chamou a aten��o foi que alguns estudantes, ao receber o livro, perguntaram se poderiam mesmo escrever ou desenhar sobre suas p�ginas. Essa pergunta pode ser considerada mais uma evid�ncia de que o livro ainda � visto pelos estudantes como um objeto intranspon�vel, como se todas as suas possibilidades j� tivessem sido executadas, e a �nica forma de relacionar-se com ele � atrav�s da leitura.
Ao final desta etapa, um dos grupos j� havia tomado algumas decis�es sobre a produ��o de seu livro: utilizariam a imagem impressa de uma bailarina como tema principal de sua produ��o. Ao final da aula, os livros foram recolhidos, para serem distribu�dos novamente na aula seguinte.
No segundo dia de aula, foram iniciadas as experimenta��es sobre os livros. Recursos visuais e textos foram deixados � disposi��o dos alunos, em sua forma impressa, para que pudessem retomar os artistas apresentados a qualquer momento.
Esta etapa foi realizada na Sala de Artes da escola, onde s�o disponibilizados materiais art�sticos de uso coletivo. Os� estudantes tinham, portanto, acesso a materiais como tintas guache e nanquim, folhas coloridas, papeis para recorte, etc. Os estudantes puderam escolher quaisquer desses materiais para desenvolverem seus trabalhos. Al�m do grupo que j� havia decidido por seu tema na aula anterior, outros tamb�m j� tinham tido ideias, na semana que transcorreu entre as duas aulas, sobre o que gostariam de desenvolver. Os alunos, portanto, desenvolveram suas experimenta��es de formas diversas (FIGURA 05).
Figura. 5 Estudantes do 8� ano durante o momento de pr�tica de explora��o dos livros. Fonte: Arquivo pessoal.�
����������� No terceiro dia de aula, conforme planejado, a turma sentou em c�rculo para conversar sobre os processos de produ��o dos livros de artista. Os trabalhos finalizados tamb�m foram apresentados � turma. Foi solicitado que cada grupo detalhasse aspectos como a concep��o das ideias, divis�o de tarefas na elabora��o de projeto, materiais utilizados, etc.
����������� Resumidamente, os estudantes relataram o seguinte:
- Grupo 1 (O Green World): cada integrante do grupo produziu sua interven��o em uma p�gina separada, com uma t�cnica diferente e a partir de inspira��es diferentes. Cada estudante escolheu em qual p�gina trabalharia com base em crit�rios subjetivos: sua idade, seu n�mero da sorte, etc.
- Grupo 2 (As Uvas do Mandrake): O grupo buscou inspira��o no t�tulo do livro (uma edi��o em capa dura de O Pa�s das Uvas, de Fialho de Almeida). A partir disso, utilizaram t�cnicas de est�ncil para criar a silhueta de ta�as de espumante. As ta�as remetem n�o s� ao nome do livro, mas tamb�m � cidade onde a proposta foi desenvolvida, conhecida por ser a �capital do espumante�.
- Grupo 3 (A Fechadura): O grupo optou por modificar a capa do livro. Inicialmente, a ideia era criar uma esp�cie de �fechadura�, mas a proposta foi modificada para que o livro parecesse com a pintura O Grito, de Edvard Munch. Esta pintura foi escolhida por j� ter sido trabalhada em aula antes, e por ter impressionado os alunos. O t�tulo, por�m, se manteve.
- Grupo 4 (A Bailarina): A imagem da bailarina foi encontrada durante as pesquisas realizadas na segunda aula, e foi impressa para ser utilizada na aula posterior. A ideia inicial era desenhar a bailarina, mas o grupo decidiu por utilizar apenas seu contorno. Sua inspira��o foram os trabalhos de Panikaniva e Clegg; este �ltimo tendo sido apresentado durante a aula 01.
����������� Figura. 6 Trabalho da artista Ekaterina Panikanova
Fonte: https://www.designfather.com/book-art-by-ekaterina-panikanova/
Ap�s a apresenta��o, foram levantados poss�veis lugares para que os livros fossem expostos na escola. A turma decidiu utilizar as grades de prote��o em um dos corredores da escola, que fica pr�xima aos banheiros e �s salas de aula. Este lugar foi considerado prop�cio por ter uma ampla circula��o de estudantes, e, por consequ�ncia, deixaria os livros mais vis�veis para os alunos durante os intervalos.
����������� Para finalizar a experi�ncia, cada grupo produziu uma ficha catalogr�fica de seu trabalho. Os livros foram afixados na grade atrav�s do uso de barbantes, facilitando, assim, a intera��o com a obra atrav�s do manuseio dos livros de artista.
Figura. 7 Livros produzidos pelos alunos, j� expostos.�
Fonte: Arquivo pessoal.�
Considera��es Finais
Durante o desenvolvimento deste plano de ensino, pudemos, em primeiro lugar, entender um pouco melhor a rela��o dos estudantes com o livro enquanto objeto. A discuss�o desenvolvida no in�cio da experi�ncia, sobre a defini��o, a fun��o e as possibilidades do livro foi retomada ap�s a �ltima aula, e trouxe alguns pontos interessantes de se ressaltar.
Primeiro: a defini��o de livro pareceu se expandir. Se a turma havia chegado em um consenso, na primeira etapa deste trabalho, de que o livro era um �conjunto de p�ginas encadernadas que cont�m hist�rias�; ao final dela, n�o houve um consenso. As p�ginas do livro n�o precisam conter apenas hist�rias; e tamb�m n�o precisam contar apenas uma hist�ria: podem conter tamb�m outros materiais, e podem servir para contar v�rias hist�rias diferentes, inclusive contadas por diferentes autores. Da mesma forma, as respostas sobre sua fun��o e sobre suas possibilidades foram expandidas: houve quem dissesse que o livro serve tamb�m para �fazer arte contempor�nea� (F., 14 anos), certamente ainda influenciadas pela proposta.
Outra resposta comum foi �aumentar a criatividade�, e esta parece especialmente interessante, porque n�o figurou nas respostas iniciais. Antes de experimentarem o livro como um suporte para a cria��o art�stica, os estudantes enxergaram-no apenas como um recept�culo de informa��es. Ao final da experi�ncia, j� come�aram a entend�-lo como algo al�m disso, como se eles tamb�m estivessem �autorizados� a colocar seu discurso naquele livro, em vez de apenas absorver o discurso do pr�prio livro.
Uma das integrantes do grupo que produziu o livro O Green World ocupou sua p�gina com desenhos que faziam refer�ncia � conhecid�ssima s�rie de livros e filmes Harry Potter. Percebemos, neste movimento, uma possibilidade interessante: talvez, em conjunto com as disciplinas de l�ngua portuguesa e/ou literatura, o livro de artista poderia ser utilizado como uma intersec��o entre essas disciplinas. Talvez, dessa forma, a aproxima��o dos estudantes com os livros poderia ser potencializada, fazendo com que n�o se sentissem s� leitores �passivos� do livro, mas tamb�m agentes de sua cria��o (ou recria��o).
De maneira geral, consideramos que a proposta cumpriu o objetivo inicial, de apresentar o Livro de Artista como suporte art�stico para os estudantes envolvidos no projeto. No meio do caminho, outras consequ�ncias interessantes surgiram � como a ressignifica��o funcional do livro, por exemplo.
Por fim, trazemos uma anedota que aconteceu na semana seguinte ao t�rmino do projeto, e que talvez sirva para atestar o sucesso do projeto: uma das estudantes da turma envolvida no projeto foi at� a Biblioteca Municipal em busca de livros da pilha de descartes, com a inten��o de utiliz�-los como suporte para suas cria��es art�sticas. Quando essa estudante falou isso em sala de aula, outros colegas tamb�m se interessaram pelos livros, e a primeira estudante dividiu alguns dos que tinha levado da biblioteca com seus colegas. Parece coerente afirmar, portanto, que o movimento que foi iniciado em sala de aula n�o se encerrou ao t�rmino da experi�ncia: foram abertos poss�veis caminhos para a rela��o dos estudantes com o livro, e tamb�m novas possibilidades de se pensar na cria��o art�stica.
Refer�ncias Bibliogr�ficas
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SILVEIRA, P. A p�gina violada: da ternura � inj�ria na constru��o do livro de artista [online]. 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008. 319 p.
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[1] Doutorando em Letras � Estudos Liter�rios Aplicados (UFRGS). Mestre em Letras (UFRGS, 2021) e Bacharel em Artes Visuais (UFRGS, 2017)Biografia, inserida ap�s a aprova��o. E-mail: felipe.pergher@ufrgs.br
[2] Licenciada em Artes Visuais (2017). Possui especializa��o em Arte (UFPEL, 2022). Atua como professora na rede municipal de Garibaldi (RS) desde 2020.Biografia, inserida ap�s a aprova��o. E-mail: nataliaribacki@gmail.com
[3] Doutora em Educa��o Ambiental (FURG, 2016). Mestra em Educa��o Ambiental (FURG, 2014) e Licenciada em Artes Visuais. Atua como professora na rede municipal de Rio Grande (RS), e como pesquisadora no CEAMECIM/FURG.Biografia, inserida ap�s a aprova��o. E-mail: michelle.tutoria@gmail.com