A (in)visibilidade da interculturalidade no Curso de Licenciatura em Música da Universidade Federal de Roraima
The (in)visibility of the interculturality in Curso de Licenciatura em Música da Universidade Federal de Roraima
Eli de Matos Araujo[1]
Universidade Federal de Roraima
Jéssica de Almeida[2]
Universidade Federal de Roraima
Resumo
Este artigo tem o objetivo de apresentar resultados parciais de uma pesquisa documental desenvolvida como parte de um trabalho de mestrado (ARAUJO, 2021). Para tanto, toma-se como pressupostos as considerações de Walsh (2012) e Queiroz (2004) sobre a interculturalidade, embebidas de princípios decoloniais para a realização da análise dos documentos coletados, sobretudo, do currículo de um curso de licenciatura em música de uma Universidade Federal da região norte do Brasil. Neste recorte, a partir dos indicativos extraídos dos documentos analisados, foi possível perceber que há certa preocupação em se pensar o currículo do Curso a partir de uma perspectiva intercultural, porém, quando esses documentos são estudados à luz das discussões contemporâneas que envolvem essa temática, percebe-se que tais elementos não são desenvolvidos com profundidade, tampouco assumem centralidade em disciplinas que, frequentemente, abordam questões que emergem a interculturalidade.
Palavras-chave: Formação Docente; Interculturalidade; Educação musical; Currículo.
Abstract
This article has the main goal to introduce partial results on documental research developed as part of a master’s degree work (ARAUJO, 2021). Therefore, it is taken as assumptions the considerations by Walsh (2012) and Queiroz (2004) about the interculturality, drenched in decolonized principles, to fulfill the analyses on the collected documents, above all, on a Music Education Degree course curriculum at a Federal University in the North region in Brazil. On this overview, from the data extracted by the analyzed documents, it was possible to notice that there are certain concern on thinking about the Course curriculum from an intercultural perspective, however, when these documents are studied in light of by contemporary discussions that are surrounded by the theme, it can be noticed that such elements aren’t developed in depth, neither endeavor centrality in subjects that, frequently, concern questions that emerge on interculturality.
Keywords: Education degree; Interculturality; Music education; Curriculum.
INTRODUÇÃO
Considerando a música como um fenômeno sociocultural (QUEIROZ, 2005), a proposta deste artigo defende a necessidade de se pensar a diversidade musical, suas práticas, estruturas e particularidades, para além da reprodução inconsciente de códigos estabelecidos por um grupo social dominante. Nesse bojo, tem o objetivo de apresentar resultados parciais de uma pesquisa de mestrado, que analisou como discentes de um Curso de Licenciatura em Música do Norte do Brasil desenvolvem, em suas práticas acadêmico-docentes, uma perspectiva de educação musical intercultural.
A interculturalidade, progressivamente, está sendo tratada como importante para a sociedade, no campo da Educação tem gerado pesquisas sobre as possibilidades dessa abordagem ser um modo mais democrático e abrangente de desenvolver conhecimentos. Também por considerar formas de fazer pesquisa e construir conhecimentos diferentes dos tradicionalmente validados pelas instituições, até porque essas formas têm suas bases em uma cultura de dominação.
Neste sentido, o Curso de Licenciatura em Música da Universidade Federal de Roraima (UFRR) foi pensado como campo para a realização da referida pesquisa. Questiona-se se o curso, localizado em uma região de tríplice fronteira atravessada pela migração venezuelana, tem formado professores/as para atuarem de forma intercultural. Através da pesquisa, buscou-se analisar como discentes do referido curso desenvolvem, em suas práticas acadêmico-docentes, uma perspectiva de educação musical intercultural.
Para isso, foi aplicado um questionário e realizadas entrevistas semiestruturadas com estudantes do Curso que participaram de programas de formação ou que concluíram as disciplinas de estágio supervisionado, partindo do pressuposto que o contato com a realidade escolar emerja necessidades formativas em uma perspectiva intercultural. Além disso, realizou-se uma análise documental sobre os seguintes documentos: Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura em Música (2017), editais e regulamento do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) e do Programa Residência Pedagógica (PRP) do ano de 2018, bem como subprojetos de Música submetidos a esses Programas, Regulamento de Estágio Supervisionado do Curso (2019), ementas e planos de ensino das disciplinas de Estágio Supervisionado.
Considerando os limites deste artigo, os resultados parciais apresentados a seguir foram construídos a partir do levantamento de dados obtidos no Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura em Música da UFRR.
Para o estudo dos dados obtidos nesses documentos, utilizou-se a análise de conteúdo organizada em três fases: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados (BARDIN, 2011). Considerando que informações sobre os documentos vão além de suas unidades de registros, incluiu-se outros elementos trazidos por Bardin (2011), para chegar em uma análise contextualizada com a interculturalidade no ambiente acadêmico e nas práticas acadêmico-docentes.
A música como cultura e sua diversidade
A partir de uma visão pautada na etnomusicologia, é necessário um olhar atento aos contextos em que a diversidade musical se insere e às interações entre seres humanos em suas relações sociais, para Queiroz:
É fundamental para a compreensão de uma série de questões relacionadas à pluralidade musical, não só no que se refere aos produtos musicais, mas também aos conceitos e comportamentos que a música estabelece dentro de cada cultura. (QUEIROZ, 2004, p.101)
Nesta perspectiva, também podemos considerar as contribuições sobre o discurso musical que seja plural:
Para Swanwick (2003, p. 15), “o discurso musical [dentro de qualquer processo educacional] tem que ser visto como uma pluralidade”. Pois somente assim a educação musical “formal”, estabelecida dentro das instituições de ensino, poderá adaptar-se a um mundo em mudanças, numa situação em que os sistemas de comunicação se expandem rapidamente e desordenadamente dentro de cada meio cultural, proporcionando processos de aculturação que fogem, atualmente, de qualquer controle social (QUEIROZ, 2004, p. 101).
Além da cultura como uma teia de significados, explicada por Geertz (2008), um conceito de cultura foi levantado a partir de leituras de diferentes autores da antropologia, sendo que a pesquisa que fundamenta este artigo se baseou em Roy Wagner (2010), levando em consideração o desenho que ela tomou. Em sua obra A Invenção da Cultura, Wagner (2010) coloca como necessário discernirmos e definirmos quais as possíveis implicações da contradição, do paradoxo e da dialética, sendo a cultura neste caso um fenômeno humano amplo, que também pode ser abordado em contextos de menor abrangência, com determinadas especificidades. Para ele,
Em seu sentido mais amplo, o termo "cultura" também procura reduzir as ações e propósitos humanos ao nível de significância mais básico, a fim de examiná-los em termos universais para tentar compreendê-los. Quando falamos de pessoas que pertencem a diferentes culturas, estamos portanto nos referindo a um tipo de diferença muito básica entre elas, sugerindo que há variedades específicas do fenômeno humano (WAGNER, 2010, p. 28).
Temos ainda como contribuição, a consideração de dois fatores inter-relacionados no conceito de cultura trazidos por Wagner (2010). O primeiro fator evidenciado pelo autor é a objetividade relativa, que é a noção do indivíduo de que ele pertence a uma cultura. Como segundo fator levantado, tem-se a relatividade cultural, que corresponde a quando, a partir do reconhecimento de pertença cultural, o indivíduo passa a perceber culturas diferentes das que ele faz parte. Deste modo, o sujeito também pode perceber as inter-relações dessas com a sua própria cultura de pertença, tendo como pressuposto a equivalência das culturas como fator importante para compreendermos a diversidade, no sentido de não haver um sistema de valoração em que diferentes culturas valham mais ou menos,
Com vistas às considerações de Wagner (2010, p. 29), interligado ao conceito de cultura está o de diversidade cultural. Isso porque
A compreensão de uma outra cultura envolve a relação entre duas variedades do fenômeno humano; ela visa a criação de uma relação intelectual entre elas, uma compreensão que inclua ambas. A ideia de "relação" é importante aqui, pois é mais apropriada à conciliação de duas entidades ou pontos de vista equivalentes do que noções como "análise" ou "exame", com suas pretensões de objetividade absoluta.
Deste modo, ao nos comprometermos com a diversidade cultural a partir do estabelecimento de relações, que entrelaçam a objetividade relativa e a relatividade cultural, podemos perceber a cultura alheia não como superior ou inferior à nossa, mas como mais uma cultura além da nossa, que existe no mundo e tem a sua importância e suas peculiaridades.
As complementares formas de conceituar cultura pinceladas até aqui, permitem estabelecer relações entre objetividade relativa e relatividade cultural, considerando-as imersas nessas teias de significados. Isso torna possível dizer que essa dinâmica se estabelece de modo a contribuir para o reconhecimento e a compreensão da diversidade musical.
Sendo a educação musical um dos fios nessa teia de significados, Queiroz (2004, p. 100) nos traz que
Por essa perspectiva, podemos conceber a educação musical como um universo de formação de valores, que deve não somente se relacionar com a cultura, mas, sobretudo, compor a sua caracterização, ou seja, desenvolver um ensino da música como cultura.
Ao tratarmos de diversidade musical brasileira, por exemplo, temos que considerar suas relações com seres humanos e o seu contexto cultural de modo que a diversidade musical se fará presente como uma partícula cultural, composta por identidades. Nesse sentido, torna-se urgente “apontar para dimensões do ensino da música a partir dos significados estabelecidos pelo grande código de cada sociedade – a cultura” (QUEIROZ, 2004, p. 100).
Assim, tem-se como proposta a promoção de uma educação musical realizada a partir de um olhar relacional entre a música, as culturas, a diversidade e as sociedades e, assim, “compreender de forma mais específica dimensões epistemológicas para a educação musical brasileira na contemporaneidade, a partir de suas relações com a cultura desse país e com a música de outros contextos culturais mais amplos” (QUEIROZ, 2004, p. 100).
Com essa linha de pensamento, questiona-se sobre como os acadêmicos do Curso de Licenciatura em Música da UFRR estão sendo formados para exercerem uma docência que contribua para essa conscientização coletiva e individual de diferentes grupos sociais.
Voltamos o pensamento para possibilidades de uma formação para a docência pautada em práticas músico-educacionais que atendam diferentes demandas, a partir de um olhar intercultural e interdisciplinar que agrega, inclusive, as contribuições de outras disciplinas para o ensino e aprendizagem da música, em diferentes contextos socioculturais. Ou seja, nos permitir pensar que “as várias possíveis interfaces a serem exploradas entre o conhecimento musical e as ciências humanas, exatas e biológicas são capazes, sobretudo, de ampliar as visões e redefinir as práticas de músicos e educadores musicais” (AMATO, 2010, p. 31).
Esse tipo de formação, engajada e atenta às diversidades escolares torna-se ainda mais urgente considerando o contexto brasileiro, suas heranças de país colonizado e a imensidão de musicalidades encontradas em suas regiões. Assim, Souza (2007, p. 17) destaca que
Atualmente falar sobre a música brasileira significa
incluir várias formas de pensar e fazer música influenciadas por várias
culturas. Por isso, seria mais adequado falar sobre “músicas brasileiras” que
vão além do samba e bossa nova, internacionalmente divulgados pela indústria
fonográfica.
Essas músicas brasileiras se transformam ao longo da história, ressalta-se, num contínuo movimento que retira a cultura e as práticas ligadas a elas de uma posição estática e limitada. Por isso, salienta-se que trabalhar a diversidade musical não é incluirmos músicas compreendidas (e presas) em folclorismo, caracterizado por Penna (2006, p. 40) como algo
Ligado à fixação e congelamento das práticas culturais, na medida em que trabalha com a ideia do “típico”, negando o caráter vivo da cultura e caindo em estereótipos. Reconhecer e valorizar a especificidade de diferentes grupos não implica, necessariamente, congelar suas práticas, desconsiderando o dinamismo da cultura e da arte.
Desse modo, pensamos como possibilidade de repensar as culturas musicais como contextualização do ensino de música e do grupo social ao qual se participa ou se pesquisa. Com o olhar para a compreensão e respeito pelas culturas musicais diferentes, num contexto interdisciplinar e intercultural em educação musical, podendo ou não, devido a outros fatores a serem considerados, proporcionar a expansão dos conhecimentos musicais. Assim, não considerando padrões de valoração musical que podem reforçar experiências musicais folclorizadas ou guetizadas na sociedade.
Especificamente para a educação musical, destaca-se a importância de estar atento à diversidade de músicas nas sociedades, de modo que possibilite abordagens focadas para a sensibilização do olhar e abertura dos ouvidos à apreciação das diferentes culturas musicais para uma educação democrática. Mais do que isso, com vistas a uma educação reflexiva e crítica, na medida que possibilita um (re)pensar sobre as demandas de uma atuação docente que respeite diferenças e expanda conhecimentos a partir das trocas de saberes. Tendo como eixo norteador das ações pedagógico-musicais uma das concepções do multiculturalismo.
Como uma resposta à dominação secular européia ocorrida no território denominado como América Latina, atualmente, temos a crescente mobilização de grupos de resistência, comprometidos com uma ressignificação dos aspectos culturais, sociais, políticos, entre outros, que a princípio foram forçosamente conduzidos e alinhados aos ideais trazidos pelos europeus que dominaram a região no período histórico conhecido como Colonial.
Deste modo, tal ressignificação tem sido abordada por autores contemporâneos como Queiroz (2017), Pereira (2014) e Walsh (2012). A partir da utilização do termo decolonial, nos traz como proposta um novo olhar crítico sobre as relações entre o saber e o poder, em um viés que toma como prerrogativa a impossibilidade de modificar as influências europeias trazidas da colonização. Carrega, também, a missão de colocar em pauta uma nova concepção de saber, que considera outras culturas, além das hegemônicas.
Esse novo olhar proposto para repensar as relações de poder presentes nas estruturas sociais, exige grande mobilização para sua compreensão e para pensar em alternativas que possibilitem novas formas de pensar não hegemônicas, ou seja, tornar possível uma abertura para que a diversidade dessas estruturas sociais tenha espaço por onde se apresentam. Com isso, Walsh (2012, p. 111 – tradução nossa)[3] contribui sobre o questionamento dessas estruturas, ao nos trazer que
O problema na América Latina, como tal, não reside na simples abertura, repensar ou reestruturar as ciências sociais, como alguns estudos sugeriram, mas melhor ainda, questionando suas próprias bases. Ou seja, refutar as suposições que colocam a produção de conhecimento apenas na academia, entre acadêmicos e dentro da cientificidade, e os paradigmas estabelecidos e cânones. É também refutar os conceitos de racionalidade que governam os chamados conhecimentos "específicos", um conhecimento que trabalha para negar e prejudicar práticas, habilidades e agentes que não se enquadram no âmbito hegemônico e dominante da racionalidade. Essa refutação não envolve uma rejeição total desta racionalidade, mas expõe suas intenções coloniais e imperiais e contesta sua posição como singular. Isso nos leva a questionar também a suposta universalidade do conhecimento científico que governa as ciências sociais, na medida em que não abrange a diversidade e riqueza de experiências sociais ou as alternativas epistemológicas e contra-hegemônicas que derivam dessas experiências.
Nesse sentido, também como termo recorrente e pertencente à decolonialidade de saberes, a interculturalidade vem ganhando mais espaço nos debates atuais, não como mais um termo para tentar representar essa complexa teia cultural, mas como um conceito trazido da práxis política, embasada, para Walsh (2006, p. 27 – tradução nossa), nos escritos da Confederación de Nacionalidades Indígenas de Ecuador (CONAIE), em que “o significado político e ideológico da interculturalidade centra-se no fato de fazer parte de processos e práticas necessariamente opostos, transformadores e contra-hegemônicos”[4].
Como característica de uma perspectiva intercultural, Candau e Moreira (2008, p. 22) nos trazem os seguintes aspectos: “a promoção deliberada da inter-relação entre diferentes grupos culturais presentes em uma determinada sociedade” e as culturas em contínuo processo de elaboração, construção e reconstrução, em que, apesar de conterem raízes históricas, possuem suas dinâmicas que não são fixas e estão em constante mudança.
Tais dinâmicas perpassam o que conhecemos como hibridismo cultural e estão presentes nos mais diversos grupos sociais, nas relações culturais que permitem a troca entre esses grupos e que também estabelecem relações que expandem as fronteiras para além das culturas hegemônicas e suas decisões sobre o que pode ser aceito ou não dentro de cada grupo.
Em direção semelhante, na Educação Musical, Queiroz (2017, p. 102) nos traz que
as discussões e análises realizadas, concebem a interculturalidade em uma perspectiva distinta de multiculturalidade, entendendo que enquanto na primeira busca-se a inter-relação e o diálogo entre culturas, a segunda pode se limitar ao reconhecimento da multiplicidade de culturas, sem promover qualquer tipo de relação entre elas. Entendo a interculturalidade como uma importante ferramenta para o reconhecimento e, mais que isso, a erradicação de epistemicídios que marcaram, e ainda marcam, a inserção da música no âmbito da sociedade e, consequentemente, sustentam pilares importantes da formação institucional em música no Brasil.
Como distinção entre os termos, temos na interculturalidade a busca por inter-relações e diálogo entre culturas. Enquanto o termo multiculturalidade se atém ao reconhecimento de múltiplas culturas, sem estabelecimento de relações entre elas. No sentido intercultural, a manifestação musical dos povos nos leva a perceber a música para além de recorrentes dicotomias entre erudito x popular, tradicional x contemporâneo, entre outras, e a caminharmos para uma expansão do olhar sobre as músicas que nos rodeiam e que abrangem, ou seja, para as “dimensões sonoras e não sonoras que permeiam tal fenômeno no âmbito da cultura” (QUEIROZ, 2017, p. 103).
A partir de um olhar crítico e sensível sobre as práticas na e da Educação Musical, é possível observar a necessidade de que sejam repensadas as formas que se ensina música, numa perspectiva em que, assim como temos uma diversidade musical, também temos que pensar numa diversidade de estratégias para o ensino de música (QUEIROZ, 2004). Somada a essa questão, ao considerarmos um ensino musical baseado na perspectiva intercultural, debates sobre educação musical são alimentados pela necessidade de se fazer uma prática docente que “abarca a diversidade de manifestações musicais” (PENNA, 2005, p. 10).
Ao considerarmos essa prática docente e, portanto, formação, para a diversidade, temos as contribuições de Souza (2007), que aborda a diversidade musical brasileira e a infinidade de músicas que constituem a nossa musicalidade, de modo que podemos perceber, ao nosso redor, em nossas vivências musicais ou mesmo em nossas observações como pesquisadores, que o que se ensina através da educação musical não se restringe aos ambientes formais e ditos não-formais de ensino, tampouco a elementos puramente sonoros. Ela também se estabelece a partir do trabalho de pessoas que facilitam o processo para que ela ocorra nos mais distintos ambientes como produtores, performers, críticos, pessoas da TV, cinema e rádio, e outros profissionais ligados à música e suas diversas possibilidades de trabalho.
Esse reconhecimento de que as diferenças constroem a identidade musical do Brasil, só é possível quando, numa perspectiva intercultural, passamos a refletir sobre essas diferenças com um olhar de reconhecimento, respeito e valorização pela cultura musical diferente da nossa.
Portanto, é importante reconhecer que as diferentes manifestações da cultura brasileira, atuando em conjunto, configuram e singularizam a nossa identidade, sendo esse fato refletido nas nossas distintas expressões culturais e, principalmente, na música (DA MATTA, 2001; NAPOLITANO, 2002 apud QUEIROZ, 2004, p. 102).
A partir desse olhar, levantar o diálogo sobre práticas que fortaleçam novas perspectivas para docentes em formação, embebidos desses pressupostos, é urgente e necessário em cursos de formação de professores, sobretudo, em cursos que ainda carregam marcas de currículos coloniais, como é o caso de muitos cursos de Música do Brasil (PEREIRA, 2018). Isso porque, segundo Queiroz (2017, p. 103), essas novas perspectivas de formação docente implicam em “evocar, reconhecer e interagir com um amplo universo da diversidade: os sujeitos que fazem música, as estéticas que configuram as estruturas sonoro-musicais, e os significados que esses fenômenos ganham em seus contextos específicos”.
Neste sentido, busca-se assim que diferentes identidades possam se fazer presentes em espaços compartilhados, numa relação que envolve respeito e inter-relação entre as pessoas envolvidas nesse processo dinâmico da cultura.
Delineamentos metodológicos
A pesquisa exploratória e de campo, de abordagem qualitativa e fundamento fenomenológico, foi realizada com alunos do Curso de Licenciatura em Música da UFRR que concluíram disciplinas de estágio supervisionado ou que participaram das atividades do Pibid e/ou Residência Pedagógica (ambos edição 2018). Para isso, aplicou-se um questionário e realizou-se uma entrevista semiestruturada com cada um deles abordando a formação e a prática para uma educação musical intercultural.
Além das entrevistas e do questionário, visando uma compreensão mais apurada sobre as atividades e dimensões compreendidas na formação dos participantes da pesquisa, desenvolveu-se uma análise documental através da qual buscou-se analisar a presença de temáticas apresentadas até este momento nos seguintes documentos: Projeto Pedagógico do Curso (PPC), nas ementas e planos de ensino das disciplinas de Estágio Supervisionado, no Regulamento de Estágio Supervisionado nos editais e regulamentos dos referidos programas, bem como subprojetos de Música submetidos a eles. Neste artigo, apresenta-se resultados parciais do levantamento de dados obtidos no Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura em Música da UFRR.
Seguindo os parâmetros estabelecidos por Bardin (2011) para a análise de conteúdo, na pré-análise foi feita a escolha e a busca dos documentos analisados. Todos os documentos analisados são públicos e estão disponíveis em formato PDF, online.
Ao analisarmos esses documentos, questionamos se apresentariam ou não excertos interligados às três unidades de registro chaves pré-estabelecidas, advindas do referencial teórico – i. a compreensão de cultura e diversidade musicais; ii. características da interculturalidade; e iii. indicativos contra-hegemônicos – com o objetivo identificar como a interculturalidade neles se inscreve.
Na exploração do material, como segunda etapa proposta por Bardin (2011), buscou-se dados nos documentos que contribuíssem para entendermos como a interculturalidade se faz presente nas práticas acadêmico-docentes de alunos do Curso de Licenciatura em Música da instituição, considerando formações acadêmicas possibilitadas pelo curso e programas de formação que os alunos estiveram envolvidos.
Como forma de refletir sobre a formação acadêmica e (re)pensar possibilidades para uma educação musical abrangente apresentamos, a seguir, a análise de um dos documentos que direciona a formação acadêmica de licenciandos em Música da UFRR: o PPC.
Análise sobre a perspectiva intercultural no Projeto Pedagógico do Curso
O PPC vigente do Curso de Licenciatura em Música da UFRR foi reformulado em 2017, em decorrência das exigências trazidas pela Resolução CNE/CP nº 02, de 01 de julho de 2015[5] e traz importantes informações sobre a estrutura curricular e a disposição dela no decorrer do curso, permitindo adentrar em questões importantes para (re)pensar o proposto por esta pesquisa.
O documento está organizado em quinze capítulos, sendo eles: Introdução, Justificativa, Objetivos, Perfil do Egresso, Competências e Habilidades, Organização do Curso, Matriz Curricular, Atividades Complementares do Curso, Estágio Curricular Supervisionado, Trabalho de Conclusão de Curso, Sistema de avaliação do Projeto Pedagógico, Sistema de avaliação do processo de ensino e aprendizagem do discente, Recursos Humanos, Infraestrutura material e tecnológica e Referências. Além dos capítulos, o documento também conta com quatro apêndices, incluindo as ementas das disciplinas do Curso.
Como objetivo, visa “desenvolver habilidades e competências pedagógicas, didáticas, científicas, musicais e artísticas para habilitar os acadêmicos para atuarem na educação básica e em outros contextos de ensino da música” (UFRR, 2017, p. 8). No que tange aos objetivos específicos, o documento apresenta: “desenvolver habilidades e competências pedagógicas, didáticas, científicas, musicais e artísticas para habilitar os acadêmicos para atuarem na educação básica e em outros contextos de ensino da música” e “compreender o ensino de música em sua complexidade cultural, social e artística”, se aproximando da perspectiva intercultural para a formação de acadêmicos-docentes do Curso (UFRR, 2017, p. 8 – grifos nossos). Isso também pode ser percebido na redação do perfil do egresso, que ressalta a necessidade de formação de profissionais éticos e comprometidos com as realidades sociais e culturais dos espaços de atuação.
Ainda tendo foco no que esta pesquisa se refere, sobre como a perspectiva intercultural para a formação de acadêmicos-docentes do Curso se faz presente, o PPC nos apresenta indicativos de que ela se faz presente ao observarmos as competências e habilidades previstas para serem desenvolvidas durante o Curso, entre elas:
● Identificar e discutir criticamente dilemas resultantes da prática de educação musical nos contextos local, regional, nacional e global da sociedade;
● Promover a cultura musical local, regional e nacional por meio da atuação artística nos contextos de inserção;
● Utilizar metodologias e técnicas de pesquisa científica a partir do pensamento crítico e reflexivo para a produção do conhecimento em educação e música;
● Desenvolver projetos interdisciplinares contextualizados às necessidades formativas dos distintos espaços de atuação (UFRR, 2017, p. 9-10 – grifos nossos).
Por outro lado, um olhar mais atento para o documento revela certo distanciamento entre seus objetivos, habilidades e competências e as disciplinas em si. A seguir, apresentamos a análise voltada para as ementas das disciplinas organizada e fundamentada na análise de conteúdo.
Seus componentes curriculares e disciplinas estão organizados em três núcleos estruturantes curriculares. O Núcleo de Formação (NF) engloba estudos de formação específicas do campo educacional e aborda, também, “teorias e filosofias da música, da produção artística musical e da educação” (UFRR, 2017, p. 11). O Núcleo de aprofundamento profissional (NAP) volta-se para “estudos das áreas de atuação profissional, incluindo os conteúdos específicos e pedagógicos” (idem) e o Núcleo de integradores curriculares (NIC) enfatiza a relação teoria-prática. Em seus três núcleos estruturantes, temos as seguintes disciplinas e componentes curriculares:
Quadro 1- Núcleos de estruturantes curriculares e disciplinas
Núcleo |
Disciplinas (obrigatórias e eletivas) e componentes curriculares |
NF |
História da Música (I-V); Teoria e Percepção Musical (I-IV); História da Educação; Arte, Educação e Diversidade Cultural; Didática Geral; Políticas Públicas e Legislação de Ensino; Psicologia da Aprendizagem; Libras e Educação; Estética e Filosofia da Música (I e II); Educação Musical (I e II). |
NAP |
Educação Musical (III, IV e V); Harmonia (I e II); Contraponto; Análise Musical (I e II); Laboratório de Música e Tecnologia (I e II); Instrumento Harmônico: Teclado/Violão I-IV); Canto Coral (I-VIII); Flauta Doce (I-IV); Prática Coletiva de Sopros (I e II); Prática Coletiva de Cordas (I e II); Prática em Conjunto (I-IV); Piano (I-IV); Violão (I-IV); Canto (I-IV); Flauta Transversal (I-IV) e Acordeom (I-IV). |
NIC |
Pesquisa em Música (I e II); Trabalho de Conclusão de Curso (I e II); Estágio Supervisionado (I-IV) e Atividades Acadêmico-Científico-Culturais (AACC). |
Fonte: elaboração das autoras (2021).
Considerando as ementas das disciplinas que constituem o Núcleo de Formação referentes às disciplinas com conteúdos específicos de música, como é o caso de Teoria e Percepção Musical e História da Música, é possível observar como característica que, em sua maioria, apresentam majoritariamente o estudo de conteúdos e estruturação musical embasados na música europeia. Ainda assim, é possível encontrar indicativos de uma possível abertura do currículo para outras escutas, como é o caso de História da Música II, que apesar de não englobar explicitamente em sua ementa, apresenta em seu programa música latino-americana nos séculos XVII e XVIII, música brasileira, bem como matrizes da cultura afro-brasileira e indígena, este último se repetindo em História da Música III.
Outra disciplina destacada foi História da Música V, que apresenta em sua ementa “A música ‘popular’ latino-americana: contexto histórico, características gerais, eventos musicais significativos, fontes documentais, teoria musical, compositores e obras” (UFRR, 2017, p. 73) especificando, em seu programa a música popular latino-americana e brasileira (incluindo o contexto regional).
Por outro lado, as bibliografias recomendadas nas ementas dessas disciplinas, tanto básicas quanto complementares, compostas obrigatoriamente por livros adquiridos pela universidade, indicam, mais uma vez, a predominância da estrutura musical europeia. Já as disciplinas pertencentes à área abrangente da Educação e, mesmo do campo da Educação Musical, contempla predominantemente aspectos que possibilitam uma abordagem intercultural para a formação acadêmica-docente de forma mais explícita.
Assim, destacam-se os seguintes elementos presentes em ementas e programas de disciplinas categorizados na unidade de registro Compreensão de cultura e diversidade musicais: cultura e educação no mundo contemporâneo (História da Educação), Diversidade de práticas musicais; Teorias do Cotidiano (Educação Musical I), estudos e produções sobre os diferentes contextos de atuação, sobre os papéis da música no desenvolvimento cultural e artístico da sociedade e sobre as novas maneiras de se “fazer” e “ouvir” música; Música como valor cultural e artístico; Atribuições, significações e manifestações musicais atuais; Mídias (Educação Musical II).
No Núcleo de Aprofundamento Profissional encontramos a unidade de registro Indicativos contra-hegemônicos de forma bastante sutil, como é o caso de Educação Musical III que inclui em seu Programa “tendências contemporâneas para o ensino da música”. Já a unidade Compreensão de cultura e diversidade musicais aparece mais frequentemente, ainda que com a mesma sutileza: Aplicação dos princípios da harmonia na cifragem da música popular, incluindo harmonizações alternativas de melodias populares e estudo das nomenclaturas usuais das práticas populares (Harmonia I); Harmonias de jazz e da música popular brasileira (Harmonia II); Repertório das diferentes épocas, estilos e compositores (Prática em Conjunto I-IV); Estilos e gêneros de música vocal (Canto III); Treino de diversos ritmos e formas diferentes de acompanhamento de canções folclóricas (Acordeom I-IV).
Apesar de não constar em nenhum núcleo estruturante do curso, as disciplinas de Regência especificam uma questão bastante presente nas mais diversas culturas musicais: a liderança. Sobre essa questão é interessante observarmos o que consta na ementa de Regência I:
Regência como liderança da prática musical em grupo. Relações interpessoais na prática musical de conjunto e seus desafios. O papel da regência na musicalização escolar. Preparação gestual do regente através de exercícios. Estudo dos diagramas de regência: compassos quaternários, ternários e binários; articulações non legato, staccato, espressivo legato e marcato; preparação de repertório e treinamento prático. Fundamentos da leitura de partituras em instrumento harmônico (UFRR, 2017, p. 57 – grifos do autor).
Levando em consideração a questão da liderança e a diversidade de culturas musicais que temos no contexto brasileiro, questiona-se o porquê de a disciplina de Regência ser escolhida como única legitimada pelo currículo a desenvolver a liderança advinda da prática musical de conjunto. Ainda assim, é perceptível que a prática da regência em si, através de suas duas disciplinas, enfatiza um tipo de regência praticado na música européia, principalmente, considerando a experiência pessoal de uma das autoras deste artigo, que é discente do Curso e participou da disciplina.
Ora, se ampliarmos o olhar para práticas musicais que comumente escapam dos currículos dos cursos de licenciatura em música, contemplamos uma infinidade de possibilidades para a regência: através do olhar, dos batuques de maracatu, da respiração... do corpo, como um todo, que vive e sente a música. Além disso, a liderança em práticas musicais de conjunto é frequente e fundamental em manifestações culturais que não têm o mesmo espaço na academia, como a praticada em grupos de Maracatu, rodas de samba, Giras de Umbanda e rodas de capoeira, etc.
Ainda assim, é importante ressaltar que nosso intuito não é a exclusão do ensino da música europeia como parte da formação acadêmica de licenciandos em Música e, sim, que esse ensino seja parte dessa formação, não um todo absoluto que conduz de forma unitária e vertical o currículo de um Curso.
Nesse sentido, Pereira (2014) nos faz refletir sobre esse tipo de estrutura curricular, que se inscreve no currículo analisado, e o quanto ele se embasa no ensino conservatorial de música que se consolidou como modelo nas instituições de ensino superior do Brasil. Isso dificultou que outros conhecimentos e culturas musicais, que não sejam deste modelo mencionado, pudessem ter espaço na academia tornando-se parte da formação acadêmica de discentes dos cursos de licenciatura em Música do país.
Em sua pesquisa, Pereira (2014) elenca características recorrentes nos currículos por ele analisados, sendo elas:
- o ensino aos moldes do ofício medieval – o professor entendido, portanto, como mestre de ofício, exímio conhecedor de sua arte;
- o músico professor como objetivo final do processo educativo (artista que, por dominar a prática de sua arte, torna-se o mais indicado para ensiná-la);
- o individualismo no processo de ensino: princípio da aula individual com toda a progressão do conhecimento, técnica ou teórica, girando em torno da condição individual;
- a existência de um programa fixo de estudos, exercícios e peças (orientados do simples para o complexo) considerados de aprendizado obrigatório, estabelecidos como meta a ser alcançada;
- o poder concentrado nas mãos do professor – apesar da distribuição dos conteúdos do programa se dar de acordo com o desenvolvimento individual do aluno, quem decide sobre este desenvolvimento individual é o professor;
- a música erudita ocidental como conhecimento oficial; a supremacia absoluta da música notada – abstração musical;
- a primazia da performance (prática instrumental/vocal);
- o desenvolvimento técnico voltado para o domínio instrumental/vocal com vistas ao virtuosismo; a subordinação das matérias teóricas em função da prática;
- o forte caráter seletivo dos estudantes, baseado no dogma do “talento inato” (PEREIRA, 2014, p. 93-94).
A partir da leitura realizada sobre o PPC do Curso de Licenciatura em Música da UFRR, foram encontradas aproximações com as características abordadas por Pereira (2014) em sua pesquisa sobre a manutenção dessa estrutura de formação musical embasada no ensino conservatorial, a qual ele denomina de habitus conservatorial[6].
Deste modo, consideramos em nossa análise não somente as disciplinas contidas nos núcleos estruturantes do PPC, como também suas ementas e programas, o que possibilitou identificarmos não só o que está sendo ensinado, mas como estes conhecimentos estão, possivelmente, formando discentes para a docência em música.
Assim, provocamos, a partir da constatação trazida por Pereira (2014) sobre um possível habitus conservatorial existente nos currículos dos cursos de Licenciatura em Música, discutirmos e repensarmos a formação acadêmica em uma direção mais contextualizada com as demandas sociais que os futuros egressos encontrarão em seus ambientes de atuação.
Nessa direção, Queiroz (2017, p. 135) destaca que
Entre os muitos desafios que emergem nessa realidade, a educação superior se vê em face da necessidade de se redefinir a partir de novas matrizes curriculares, de novos conhecimentos e saberes, de novas formas de sistematização pedagógica e de variadas metodologias de formação. Tais desafios emergem à luz da diversidade cultural que caracteriza o mundo contemporâneo e a necessária inserção da educação superior nesse universo.
Visando os desafios elencados por Queiroz (2017), reiteramos a necessidade de pensar e pontuar possíveis contribuições que a interculturalidade poderá trazer para a formação acadêmica de licenciandos em Música, indo ao encontro de uma perspectiva de educação abrangente, contextualizada aos diversos ambientes de atuação docente em Música.
CONSIDERAÇÕES
A partir da análise realizada, pudemos observar que há uma mobilização para se reconhecer e estudar, em certa medida, a diversidade existente nos espaços formativos, nos espaços de atuação docente e na sociedade em geral. Porém, ao analisarmos em quais momentos essa diversidade é trazida, bem como a forma como ela é trabalhada (programas das disciplinas) na estrutura do curso, se apresenta de forma bastante sutil e pouco delineada. Parece que os conteúdos e abordagens demandados a partir da diversidade cultural e musical ainda estão ocultos e pouco compreendidos no currículo do Curso.
Isso se confirma quando, ao final da análise, identificamos raras inscrições na unidade de registro Características da interculturalidade e apenas uma referência aos indicativos contra-hegemônicos. No primeiro caso, um fato curioso: a interculturalidade está presente, somente, no perfil do egresso do curso, onde o Curso almeja que esse esteja “preparado para mobilizar conhecimentos artísticos, musicais e educacionais pautados na sustentabilidade ambiental, na interculturalidade e na inclusão dos direitos humanos [...]” (UFRR, 2017, p. 9 – grifos nossos). Isso parece corroborar com o último objetivo específico do Curso: Compreender o ensino de música em sua complexidade cultural, social e artística (UFRR, 2017, p. 8).
Ora, se a interculturalidade se inscreve no perfil de egresso, como o Curso espera desenvolver práticas para esta promoção sem incluí-la no currículo como um todo e de forma mais prática em suas disciplinas? Ao considerarmos a análise realizada, constatamos que, atualmente, pouco se direciona a estrutura do Curso para a promoção de uma abordagem intercultural na formação de seus alunos e de suas alunas, futuros/as professores/as de música.
Esta ausência nos preocupa e tem se materializado, de forma prática, nos demais dados analisados na referida pesquisa de mestrado. Frente a isso, esperamos que os levantamentos feitos pela pesquisa a qual este artigo versa e apresenta brevemente, possam contribuir para uma reestruturação do Curso que contemple a interculturalidade desde o início da formação de acadêmicos-docentes de Música, até as experiências de práxis docentes proporcionadas pelas atividades formativas. Mais do que isso, que sejam contempladas experiências, no decorrer da formação, que trabalhem aspectos teórico-práticos da interculturalidade a partir da realidade inscrita nos contextos de trabalho dos/as futuros/as professores/as.
Com isso, visamos provocar a comunidade acadêmica e, especialmente, os/as professores/as de música para que discutam as possibilidades e entraves para o desenvolvimento de uma educação musical mais democrática e abrangente, que construa, de forma crítica e engajada, espaço e tempo para a diversidade de conhecimentos musicais. Uma educação musical que respeite e promova, através de suas práticas (não apenas em teorias), as diversas culturas musicais que encontramos ao atuarmos como docentes da educação básica e em outros contextos de ensino de Música.
REFERÊNCIAS
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[1] Pedagogo na rede municipal de ensino de Boa Vista - RR, atua como professor de educação infantil; discente dos cursos de Licenciatura em Música e Mestrado em Educação da UFRR; participante do Grupo de Estudos e Pesquisas (Auto) Biográficas em Educação Musical (GEPAEM). E-mail: eliaraujo.gepaem@gmail.com
[2] Professora do Curso de Licenciatura em Música e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Roraima (UFRR); Doutora em Educação (Linha de Pesquisa Educação e Artes) pela Universidade Federal de Santa Maria; Mestre em Educação (2016) e Licenciada em Música (2012) pela mesma instituição. E-mail: almeidadejessica@gmail.com
[3] No original: The problem in Latin America, as such, does not lie in simply opening, rethinking or restructuring the social sciences as some studies have suggested, but better yet by questioning their very basis. It is to say, to refute the suppositions that place the production of knowledge only in academia, between academics and within scientificity, and the established paradigms and canons. It is also to refute the concepts of rationality that govern the so-called ‘expert’ knowledge, a knowledge that works to negate and detract from practices, skills and agents that do not fit inside the hegemonic and dominant rationality. Such refutation does not involve a wholesale ejection of this rationality, but exposes its colonial and imperial intentions and disputes its position as singular. This causes us to also question the supposed universality of scientific knowledge that governs the social sciences, to the extent that it does not capture the diversity and wealth of social experiences or the epistemological and counter-hegemonic alternatives that come from these experiences (WALSH, 2012, p. 111).
[4] No original: el significado político e ideológico de la interculturalidad se centra en el hecho de que forma parte de procesos y prácticas que necesariamente son oposicionales, transformadoras y contra-hegemónicas (WALSH, 2006, p. 27).
[5] Resolução que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada.
[6] Para Pereira (2012, p. 135), “compreendemos o conceito de habitus conservatorial como uma descrição típico-ideal das modalidades de valoração musical que organizam as práticas de seleção e distribuição de conhecimento musical. O conceito abrange ainda a concepção de formação de professor de música, baseada nestes esquemas de valoração e organização das práticas, que legitimam a música erudita ocidental e seu valor inerente como conhecimento oficial específico a ser incorporado pelos agentes”.