Os estereótipos e o ensino do desenho: outras perspectivas[1]
Stereotypes and the teaching of drawing: other perspectives
Liane Carvalho Oleques[2]
Universidade do Estado de Santa Catarina
Marcelo Eugenio Soares Pereira[3]
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Resumo
O presente artigo traz reflexões sobre aquilo que é comumente conhecido como desenho estereotipado, seja gráfica ou culturalmente. Busca-se compreender a construção desse desenho, seus aspectos cognitivos e seu ensino e aprendizado em sala de aula, abordando tanto pontos positivos quanto negativos. Para isso, autores como Luquet (1969) e Duarte (2011) contribuem no tocante à construção cognitiva do desenho. Por sua vez, Vianna (1995) auxilia a investigar esse tema no contexto do Ensino da Arte. Além disso, procura-se exemplificar algumas questões com a apresentação e análise de desenhos realizados pelos autores quando crianças.
Palavras-chave: Desenho; Desenho infantil; Estereótipo; Ensino da arte.
Abstract
This paper brings reflections on what we commonly know as stereotyped drawing, whether graphically or culturally. It seeks to reflect on the construction of this design, its cognitive aspects and its teaching and learning in the classroom, addressing both its positive and negative points. To this end, authors such as Luquet (1969) and Duarte (2011) contribute to the cognitive construction of drawing. In turn, Vianna (1995) helps us to investigate this theme in the context of Art Teaching. In addition, we sought to exemplify some issues with the presentation and analysis of the authors' drawings as children.
Keywords: drawing; childish drawing; stereotype; art teaching.
Introdução
Você sabe desenhar? Se pedíssemos para você desenhar uma casa, um sol e uma árvore, como faria? Nesse artigo discutiremos sobre os desenhos elaborados e aprendidos por crianças e adultos, muitas vezes repetidos em salas de aula e ao longo da vida adulta. O debate acerca do que popularmente se denomina estereótipo, nesse estudo se restringe ao âmbito do Ensino da Arte, especialmente na educação infantil e ensino fundamental, bem como a antecipação desse desenho no plano mental, chamado de Modelo Interno (LUQUET, 1969), e seus aspectos cognitivos.
A origem do termo estereótipo remonta uma imagem preconcebida e replicada. Houaiss e Villar (2004) apresentam dois sentidos para o termo em questão, o primeiro contempla o significado literal, atrelado a produção gráfica, a saber: “Chapa ou placa com caracteres fixos em relevo, usado em impressão” (HOUAISS; VILLAR, 2004, p. 313), o segundo, por sua vez, no sentido figurado, provavelmente como é mais conhecido pelo senso comum: “Imagem preconcebida de alguém ou algo, baseado num modelo ou numa generalização” (HOUAISS; VILLAR, 2004, p. 313).
Nesse sentido, temos acompanhado os empreendimentos dos movimentos sociais em busca da desconstrução dos estereótipos de classe, gênero e orientação sexual, para citarmos apenas alguns deles, sabemos o quão trabalhoso é movimentar ideias e conceitos generalizados e fixos, tal como apresentados e difundidos pelos estereótipos presentes em diferentes segmentos culturais. O fato é que estamos tão habituados ao uso mais difundido do termo e seu latente aspecto pejorativo, que imediatamente tomamos como depreciativa qualquer expressão que esteja atrelada a ele. Vale a pena sublinharmos que, em sua aplicação literal, a qual originou o termo figurado, estereótipo é tão somente uma ferramenta a serviço de uma demanda específica. Seja como for, a ideia do desenho estereotipado como algo negativo é bastante evidente no campo dos estudos em arte-educação, e a simples enunciação do termo parece despertar um pavor abismal e, concomitantemente, investir de bravura os arte-educadores que irão combater esse desenho a qualquer custo.
Em busca de compreender um pouco mais sobre este processo, o presente artigo estabelece reflexões sobre os aspectos cognitivos da construção do desenho estereotipado, assim como seu ensino e como este aprendizado é replicado em sala de aula, abordando tanto suas contribuições quanto suas desvantagens. Para isso, autores como Luquet (1969) e Duarte (2011) contribuem no tocante à construção cognitiva do desenho. A seu turno, Vianna (1995) pontua os aspectos negativos da replicação indiscriminada de desenhos e diferentes modos de desenhar.
Como surgem os desenhos?
“A criança desenha para se divertir” afirma Georges-Henri Luquet (1969, p. 15), compreendendo o ato de desenhar como uma atividade lúdica no desenvolvimento da criança. Produzidos ainda no início do século XX, os estudos de Luquet (1969) abordam questões sobre os elementos do desenho infantil, tais como o Modelo Interno e sua evolução do ponto de vista cognitivo - das garatujas até o desinteresse pelo desenho no final da infância e início da pré-adolescência. O autor fez suas primeiras considerações observando o desenho de crianças de diversas nacionalidades e, em seguida, analisando minuciosamente o processo e desenvolvimento de apenas uma criança: sua filha.
Se pedíssemos para você desenhar uma casa, como faria? Provavelmente, começaria com um quadrado para a base e um triângulo para o telhado, deixando para depois os pormenores, tais como portas, janelas ou chaminés. Esse tipo de desenho, rápido, comunicacional e, por vezes, espontâneo, obedece ao que Luquet chamou de Modelo Interno. Assim, tanto na criança quanto no adulto, esse modelo está subordinado a uma imagem mental que antecipa o desenhar (LUQUET, 1969). O Modelo Interno, nessa perspectiva, corresponde aos desenhos que são realizados de memória, mesmo quando existe a intenção de copiar um objeto real. De acordo com Luquet (1969, p. 82):
[...] mas é ainda esse modelo que a criança copia mesmo quando se propôs reproduzir um objeto (motivo ou modelo) que tem diante dos olhos [...]. A prova é que os desenhos do natural e os copiados apresentam os mesmos caracteres que os desenhos de memória, cuja característica principal é serem conformes, não ao realismo visual, mas ao realismo intelectual.
Assim, é possível perceber em desenhos de crianças pequenas a presença de elementos que compõem o objeto real e que não são visíveis, mas que a criança sabe que estavam lá e os considera essenciais para que seu desenho faça sentido. Geralmente, esses elementos não visíveis estão relacionados à função do objeto. Como exemplo, temos o sino desenhado com o badalo. O Modelo Interno também se caracteriza por representar um exemplar (genérico) típico de uma categoria de objetos, como o desenho da casa ou da flor, sendo um recurso básico de execução do desenho de um determinado objeto. Nas palavras de Luquet (1969, p. 81):
A representação do objeto a desenhar [...], toma necessariamente a forma de uma imagem visual; mas esta imagem nunca é a reprodução servil de qualquer das percepções fornecidas ao desenhista pela observação do objeto ou de um desenho correspondente. É uma refração do objeto a desenhar através do espírito da criança, uma reconstrução original que resulta de uma elaboração muito complicada apesar da sua espontaneidade. O nome modelo interno é destinado a distinguir claramente do objeto ou modelo propriamente dito esta representação mental que traduz o desenho.
Dessa maneira, o Modelo Interno é evocado quando a criança desenha um ou outro objeto que lhe é familiar, porém, quando ela desenha pela primeira vez um objeto, precisa criar um modelo que o represente. Por isso, por vezes, esquiva-se e propõe desenhar algo já aprendido. Logo, a dificuldade da criança em desenhar um objeto pela primeira vez não é de ordem gráfica, mas intelectual. Em outras palavras, a complexidade está em organizar graficamente formas e linhas de modo que elas representem um determinado objeto. Quando a criança cria seu Modelo Interno, ele fica disponível para ela em seus desenhos subsequentes e pode ser mantido ou alterado conforme as circunstâncias (LUQUET, 1969).
Wilson e Wilson (1997) salientam que crianças também aprendem a desenhar observando seus pares fazendo o mesmo. Conforme esses autores, as crianças precisam de modelos de desenhos a serem seguidos:
Não será por meio de nenhum tipo de exame das nuvens que a pessoa aprenderá a desenhá-las. [...] Sim, estamos dizendo que, sem modelos para serem seguidos, haveria pequeno ou nenhum comportamento de realização de signos visuais nas crianças (WILSON; WILSON, 1997, p. 63).
Em sala de aula, é possível observar situações como essas constantemente, que devem ser encaradas e estimuladas enquanto trocas benéficas entre os estudantes. No âmbito do desenho infantil, a cognição, a percepção sensorial e a memória são encontradas com evidência no trabalho de Duarte (2007-2011), pesquisadora do desenho infantil que, inicialmente, entende o desenho em sua elaboração no plano mental, como uma ponte entre os objetos e suas representações bidimensionais. Ao encaminhar sua pesquisa aos processos cognitivos alusivos ao ato de desenhar, Duarte (2011) compreende a produção gráfica infantil em um terreno comunicacional. Em outras palavras, podemos compreender o desenho como um espaço privilegiado no qual a criança manifesta seus desejos e amplia capacidades cognitivas.
Desse modo, Duarte (2011) interpreta o desenho infantil como um esquema gráfico estabelecido pela criança, uma sintaxe visual dos elementos mais relevantes da imagem a ser grafada e acrescenta que os esquemas gráficos são representações bastante simplificadas dos objetos circundantes. Duarte (2011) refere-se ao que chamou de esquema gráfico (termo adotado, neste estudo, para definir a produção de desenhos que servem para identificar toda uma categoria de objetos) e, embora Luquet (1969) não tenha adotado a denominação “esquema” por questões conceituais que permeavam o vocábulo em sua época, a autora o utiliza em função do termo transmitir com segurança a ideia de síntese no desenho infantil. Sendo assim, embora tenhamos a impressão de se tratar de um procedimento gráfico rígido, encontramos, no cerne dessa atividade concisa, um aspecto inventivo na medida em que a criança apreende e representa as principais características dos objetos, adicionando pormenores e distribuindo esses elementos no espaço bidimensional.
Partindo dessas problematizações, compreendemos que ao desenhar a criança estabelece relações de generalização com o objeto a ser representado. Em outras palavras, esses objetos são sintetizados, de modo que, inicialmente, ela representa suas características mais gerais e significativas. Como exemplo, podemos citar os desenhos de crianças pequenas, denominados como homem-girino, ou boneco-girino, ou simplesmente “girino”, por se assemelhar a estrutura de larvas de anfíbios antes de sofrerem metamorfose. Geralmente, antes de aprimorar o desenho da figura humana, o processo gráfico da criança passa pela fase de girino, que pode começar por volta dos três anos de idade. Essa etapa pode se estender por alguns dias ou meses, sua durabilidade dependerá dos incentivos recebidos e da frequência com que a criança desenha. Ainda que as crianças pequenas reconheçam essas partes do corpo, elas se satisfazem com a figura de girino, possivelmente por ainda não haver um amadurecimento gráfico que permita a representação do restante do corpo.
Desenhos e estereótipos
Os esquemas gráficos são recursos utilizados pelas crianças em diferentes estágios do seu desenvolvimento gráfico, como meios de continuarem se comunicando por meio do desenho. Tais recursos se assemelham, por suas características formais e conceituais, ao que popularmente se denomina desenho estereotipado. Dito de outro modo, o tão condenado desenho estereotipado pode contribuir para o desenvolvimento gráfico e intelectual das crianças.
A esse respeito, Duarte (2011, p. 38) afirma que:
Quando dizemos “desenho infantil”, estamos nos referindo a um período da infância no qual o desenho pode se configurar como uma importante prática no cotidiano das crianças. Trata-se de um período correspondente entre 5 e os 9 anos de idade, no qual, após vencer as dificuldades gráficas iniciais, a criança desenha objetos plenamente identificáveis ao olhar de terceiros e, especialmente, torna evidente sua intenção representacional ao nomear com a palavra justa cada uma das figuras desenhadas.
Com vistas a um melhor entendimento dessa questão, vejamos alguns exemplos de desenhos realizados durante a infância pelos próprios autores deste artigo. Ao observarmos a figura 1, produzida pelo autor aos 9 anos de idade, nos deparamos com uma série de elementos estereotipados, tais como as nuvens azuis, onde vemos por detrás um sol radial amarelo. Ademais, os pássaros no céu, semelhantes a letra M aberta e as copas das árvores redondas e esverdeadas, são desenhos aprendidos e replicados por um sem-número de crianças. Ao observarmos a imagem, notamos que tais esquemas gráficos não as empobrecem, pelo contrário, foram recursos utilizados para a elaboração do desenho naquele momento do seu desenvolvimento gráfico e deixados de lado nos anos subsequentes, sem a necessidade de serem banidos do seu imaginário por parte dos adultos.
Figura 1 – Desenho
Fonte: Acervo do autor Marcelo Eugenio Soares Pereira.
Na imagem seguinte (figura 2) é possível identificar o desenvolvimento gráfico da autora aos 6 anos de idade, no decorrer de um ano. Nota-se uma modificação do esquema de representação da casa, possivelmente aprendido com colegas da mesma idade ou adultos, e amadurecido posteriormente. Já o esquema de nuvens e árvores se mantêm muito parecido no decorrer daquele período. Luquet (1969) denominou esta situação, respectivamente, como Modificação do Tipo, quando a criança começa a mudar ou acrescentar novos detalhes em seus desenhos, os quais não se viam em exemplos anteriores; Conservação do Tipo, quando há um automatismo quanto ao modo de desenhar determinado objeto. Esta conservação que permanece no desenho infantil obedece, conforme o mesmo autor, ao Modelo Interno.
Figura 2 – Sequência de desenhos
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Fonte:Acervo da autora Liane Carvalho Oleques.
Assim, cabe salientar que estes desenhos aprendidos e replicados ao longo da vida ficam disponíveis até a idade adulta, nos auxiliando nas áreas criativas, expressivas e comunicacionais. Nesse aspecto, diversos artistas visuais se utilizam de desenhos esquemáticos, tais como aqueles aprendidos na infância e disseminados em um âmbito comunicacional, conferindo a eles protagonismo em suas obras, como no caso de Tarsila do Amaral, Mario Rubinsk, Alfredo Volpi, entre outros. Como exemplo emblemático de uma produção artística contemporânea inspirada no repertório dos desenhos estereotipados, temos a obra Nuvens (1967), de Carmela Gross. Nesta produção, composta por seis unidades de madeira esmaltada em uma tonalidade azul, a artista apresenta nuvens que parecem ter sido extraídas de um desenho infantil estereotipado (figura 3).
Figura 3 – Nuvens
Fonte: Carmela Gross, 1967[4].
No entanto, por qual razão, para tantos professores e professoras de arte, os desenhos esquemáticos limitam a espontaneidade gráfica? Importante ressaltar que as crianças, por vezes, estão à procura de recursos que as auxiliem a desenhar, como circular um objeto para fazer um círculo perfeito para representar um sol, por exemplo. Além disso, procuram referências e esquemas de desenhos que as ajudem na criação de um novo desenho, com frequência encontram referências em cartazes e molduras dentro da própria sala de aula. Vale lembrar que cada professor possui autonomia para trabalhar da maneira que achar mais conveniente, respeitando seus próprios limites e as necessidades dos estudantes. Todavia, vejamos algumas questões, relacionadas ao desenho estereotipado, que, de fato, podem levar ao empobrecimento da criatividade e senso crítico dos estudantes.
Em sua “guerra declarada” contra o desenho estereotipado, travada desde o início dos anos 1980, Vianna (1995), vigorosamente destaca os aspectos negativos dessa prática: monótonos, impessoais e ervas daninhas, são apenas alguns dos adjetivos atribuídos pela autora, a qual, sobretudo a partir do início da sua atuação na formação docente, desenvolveu seu método para “desestereotipar desenhos”, que consiste em uma série de exercícios envolvendo, dentre outras práticas, a observação, a memória visual e a imaginação. De acordo com ela, os desenhos estereotipados minam a criatividade e a individualidade dos alunos, os quais perdem a confiança no seu próprio desenho e passam a aderir definitivamente ao desenho estereotipado, já que ele conta com a ampla aprovação dos adultos (VIANNA, 1995). Ainda segundo Vianna (1995, p. 04):
Os desenhos estereotipados empobrecem a percepção e a imaginação da criança, inibem sua necessidade expressiva; embotam seus processos mentais, não permitem que desenvolvam naturalmente suas potencialidades.
Assim, as escolas são os lugares onde os estereótipos proliferam largamente, sobretudo com o intuito de decorar as salas de aula em datas comemorativas. É nesse local que ocorre a perpetuação dos estereótipos, por serem amplamente utilizados pelos professores e difundidos entre eles (VIANNA, 1995). Certamente, desenhos estereotipados de determinados grupos sociais reforçam e reiteram aspectos que devem ser analisados criticamente, conforme argumentam Martins e Pereira (2007, p. 614-615):
Portanto, forças de desestabilização de identidades precisam ser acionadas para desconstruir, por exemplo, um universo de representações visuais de principezinhos e princesinhas etnicamente homogêneos e de olhos azuis, instalados nos desenhos pedagógicos e nas escolas. Nesse universo, representações de identidade que lidam com a alteridade são consideradas acriticamente como um gesto de complacência onde a representação do negro, quase sempre, se resume a um desenho simplificado de uma criança mal vestida, e a do índio, como aquele ser exótico que ainda atira flechas ou usa penacho e tanga de couro.
São essas questões sociais e políticas que envolvem os estereótipos que valem a pena combatermos. Um exemplo significativo dessas práticas são os “desenhos prontos”, constituídos por um desenho prévio, geralmente realizado pelo professor ou retirado da internet, comumente entregues em datas comemorativas para serem coloridos pelos estudantes. Tais desenhos são pouco contextualizados e, além de não estimularem a criatividade, muitas vezes prezam pelo resultado em detrimento do processo criativo.
Ademais, reforçam no imaginário coletivo das crianças, não apenas estereótipos gráficos, mas também estereótipos culturais. Quem nunca pintou o rosto e vestiu um cocar para celebrar o “dia do índio”, sem nenhum tipo de aprofundamento sobre a cultura indígena ou as adversidades enfrentadas constantemente por esses povos originários? Todavia, com o objetivo de permanecermos em nosso debate principal, vejamos alguns pontos positivos dessa prática no âmbito gráfico. O preenchimento das linhas desenvolve e fortalece a habilidade motora fina, além do trabalho de conhecimento das cores e a exploração de recursos para colorir, bem como podem servir enquanto processos de estudos, ideias e técnicas.
Além disso, poderíamos trabalhar com as mesmas habilidades e incentivar o estudante a criar seus próprios desenhos, seja de forma livre ou temática, aguçando o senso crítico e a reflexão acerca do seu trabalho e dos colegas, além de aprender com eles. A esse respeito, Luquet (1969), verificou que crianças diminuem a frequência ou deixam de desenhar no período correspondente ao final da infância e início da adolescência, pois, à medida que ficam mais críticas com relação aos seus desenhos, começam a perceber que eles não correspondem à realidade visual. Apenas algumas crianças seguem desenhando quando estimuladas, seja pela escola ou pela família. Podemos sugerir que essa diminuição da frequência em desenhar, ou o sentimento de incapacidade de desenhar de acordo com a realidade, tenha como um dos pontos de partida os “desenhos prontos” que impregnaram seu imaginário durante os anos escolares.
Nesse sentido, Cunha (2010, p. 112) comenta:
Os significados das imagens são construídos nas interações sociais e culturais que realizamos com elas. Os contextos sociais e culturais, amplos ou específicos, e as pessoas, dão existência aos materiais visuais atribuindo-se significados. Portanto, o sentido não ‘emana’ das imagens, mas dos diálogos produzidos entre elas e as pessoas [...].
Nessa perspectiva, o papel do professor de arte se assemelha ao do curador de uma exposição de arte. Tendo em vista que é impossível evitar completamente a presença do desenho estereotipado na escola, caberá ao professor compreender esse tipo de desenho como um recurso a mais à sua disposição, que pode ser explorado e debatido em sala de aula de inúmeras maneiras. Seja como for, dentre as inúmeras proposições pedagógicas à sua disposição, suas escolhas jamais serão neutras ou isentas de consequências no desenvolvimento gráfico dos seus alunos.
Considerações finais
Diante das questões aqui abordadas, podemos afirmar que o desenho infantil passa por um processo intelectual e motor de desenvolvimento, cujo amplo entendimento é essencial por parte do professor de Arte. Entender este processo é, principalmente, compreender como acontece a construção do desenho infantil no plano mental, e por quais razões este desenho continua sendo replicado até a idade adulta com intuito comunicacional.
A partir do que foi debatido, notamos que o desenho estereotipado não é, necessariamente, a erva daninha a qual somos convocados a combater. De modo análogo, o desenho original, inventivo, livre, não é a flor que deveríamos todos cultivar e preservar. Desse modo, se faz premente questionar tais dicotomias. Em tempos de efervescência da arte contemporânea e suas múltiplas manifestações, não nos cabe mais estabelecermos hierarquias no campo do ensino da arte, classificando certas expressões artísticas como louváveis e melhores, e outras como indesejáveis e piores. Antes de mais nada, é nossa responsabilidade, enquanto profissionais vinculados ao ensino da arte, repensar quaisquer rótulos que porventura se apresentem.
Sendo assim, tentamos argumentar, por meio dos exemplos e dos teóricos aqui abordados, que tudo, até mesmo o tão combatido desenho estereotipado, pode ser explorado em sala de aula, desde que o professor de Arte esteja atento para as características e possibilidades de ensino que essa categoria de desenho comporta. Por meio dos desenhos resgatados das nossas infâncias, nos quais evidencia-se as soluções representacionais estereotipadas, buscamos demonstrar que, ao contrário do que se possa pensar, talvez o desenho estereotipado não seja uma condenação fatal da criatividade, conforme argumenta Vianna (1995).
Apesar dos desenhos estereotipados realizados durante a infância, ou talvez justamente por causa da sua presença em momentos importantes dos nossos desenvolvimentos gráficos, nos tornamos artistas visuais. Nesse contexto, um exercício pertinente seria o de revisitar, vez por outra, tais desenhos realizados durante a infância. Em um primeiro momento os observaríamos atentamente, em seguida poderíamos criar uma nova produção a partir deles, seja os tomando como ponto de partida para a elaboração de um objeto tridimensional ou de uma colagem, por exemplo. O mais importante seria nos conectarmos, de algum modo, com o potencial inventivo presente nesses desenhos e trazê-los para nossas vidas adultas. Daí a importância, tanto quanto possível, da salvaguarda da produção gráfica infantil.
À guisa de encerramento, cabe destacarmos que nossa intenção foi problematizar o tão odiado desenho estereotipado como sendo impotente e abominável nos processos educacionais, buscando desconstruir alguns rótulos cristalizados e apontando possíveis novos pontos de vista acerca desse assunto. Contudo, cientes da complexidade dessa temática, acreditamos que estudos posteriores poderiam ser realizados com o intuito de aprofundar e ampliar algumas das questões aqui apresentadas e discutidas. Desse modo, procuramos abrir uma porta a esse debate, não na expectativa de que todas as questões fossem respondidas, mas, sobretudo, de que questionamentos fossem suscitados.
CUNHA, S. R. V. da. Cultura visual e infância. In: ICLE, G. (Org.). Pedagogia da arte: entre-lugares da criação. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2010. p.103-133.
DUARTE, M. L. B. Desenho infantil e seu ensino a crianças cegas: razões e método. Curitiba: Editora Insight, 2011.
HOUAISS, A; VILLAR, M. S. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
LUQUET, G. H. O desenho infantil. Porto: Do Minho,1969.
MARTINS, R; PEREIRA, A. A. Cultura visual e identidade(s) no desenho pedagógico. In: 16º ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES DE ARTES PLÁSTICAS - DINÂMICAS EPISTEMOLÓGICAS EM ARTES VISUAIS, 2007, p. 608-616, Florianópolis, Santa Catarina. Anais eletrônicos do 16º encontro nacional de pesquisadores de artes plásticas.Disponível em: <http://anpap.org.br/anais/2007/2007/artigos/061.pdf>. Acesso em: 15 fev. 2021.
VIANNA, M. L. R. Desenhos estereotipados: um mal necessário ou é necessário acabar com este mal? Revista Advir. Rio de Janeiro, nº5, 1995. Disponível em: <https://www.academia.edu/36972093>. Acesso em: 27 fev. 2021.
WILSON, B; WILSON, M. Uma visão iconoclasta das fontes de imagens nos desenhos de crianças. In: BARBOSA, A. M. Arte-educação: leituras no subsolo. São Paulo: Editora Cortez, 1997.
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[1]Algumas ideias, presentes neste estudo, fazem parte da tese Uma possibilidade de ensino de desenho para crianças com deficiência intelectual, UDESC, Florianópolis, 2017, de Liane Carvalho Oleques.
[2]Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil (2017). Professora da rede de educação básica municipal de Palhoça/SC, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9525-8722 . E-mail: lioleques@gmail.com.
[3] Mestrado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grando do Sul, Brasil (2015). Artista visual e educador, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5620-2128 . E-mail: marceloeugenio85@gmail.com.
[4]Disponível em: <https://carmelagross.com/portfolio/trabalhos/>.