Os estere�tipos e o ensino do desenho: outras perspectivas[1]
Stereotypes and the teaching of drawing: other perspectives
Liane Carvalho Oleques[2]
Universidade do Estado de Santa Catarina
Marcelo Eugenio Soares Pereira[3]
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Resumo
O presente artigo traz reflex�es sobre aquilo que � comumente conhecido como desenho estereotipado, seja gr�fica ou culturalmente. Busca-se compreender a constru��o desse desenho, seus aspectos cognitivos e seu ensino e aprendizado em sala de aula, abordando tanto pontos positivos quanto negativos. Para isso, autores como Luquet (1969) e Duarte (2011) contribuem no tocante � constru��o cognitiva do desenho. Por sua vez, Vianna (1995) auxilia a investigar esse tema no contexto do Ensino da Arte. Al�m disso, procura-se exemplificar algumas quest�es com a apresenta��o e an�lise de desenhos realizados pelos autores quando crian�as.
Palavras-chave: Desenho; Desenho infantil; Estere�tipo; Ensino da arte.
Abstract
This paper brings reflections on what we commonly know as stereotyped drawing, whether graphically or culturally. It seeks to reflect on the construction of this design, its cognitive aspects and its teaching and learning in the classroom, addressing both its positive and negative points. To this end, authors such as Luquet (1969) and Duarte (2011) contribute to the cognitive construction of drawing. In turn, Vianna (1995) helps us to investigate this theme in the context of Art Teaching. In addition, we sought to exemplify some issues with the presentation and analysis of the authors' drawings as children.
Keywords: drawing; childish drawing; stereotype; art teaching.
Introdu��o
Voc� sabe desenhar? Se ped�ssemos para voc� desenhar uma casa, um sol e uma �rvore, como faria? Nesse artigo discutiremos sobre os desenhos elaborados e aprendidos por crian�as e adultos, muitas vezes repetidos em salas de aula e ao longo da vida adulta. O debate acerca do que popularmente se denomina estere�tipo, nesse estudo se restringe ao �mbito do Ensino da Arte, especialmente na educa��o infantil e ensino fundamental, bem como a antecipa��o desse desenho no plano mental, chamado de Modelo Interno (LUQUET, 1969), e seus aspectos cognitivos.
A origem do termo estere�tipo remonta uma imagem preconcebida e replicada. Houaiss e Villar (2004) apresentam dois sentidos para o termo em quest�o, o primeiro contempla o significado literal, atrelado a produ��o gr�fica, a saber: �Chapa ou placa com caracteres fixos em relevo, usado em impress�o� (HOUAISS; VILLAR, 2004, p. 313), o segundo, por sua vez, no sentido figurado, provavelmente como � mais conhecido pelo senso comum: �Imagem preconcebida de algu�m ou algo, baseado num modelo ou numa generaliza��o� (HOUAISS; VILLAR, 2004, p. 313).
Nesse sentido, temos acompanhado os empreendimentos dos movimentos sociais em busca da desconstru��o dos estere�tipos de classe, g�nero e orienta��o sexual, para citarmos apenas alguns deles, sabemos o qu�o trabalhoso � movimentar ideias e conceitos generalizados e fixos, tal como apresentados e difundidos pelos estere�tipos presentes em diferentes segmentos culturais. O fato � que estamos t�o habituados ao uso mais difundido do termo e seu latente aspecto pejorativo, que imediatamente tomamos como depreciativa qualquer express�o que esteja atrelada a ele. Vale a pena sublinharmos que, em sua aplica��o literal, a qual originou o termo figurado, estere�tipo � t�o somente uma ferramenta a servi�o de uma demanda espec�fica. Seja como for, a ideia do desenho estereotipado como algo negativo � bastante evidente no campo dos estudos em arte-educa��o, e a simples enuncia��o do termo parece despertar um pavor abismal e, concomitantemente, investir de bravura os arte-educadores que ir�o combater esse desenho a qualquer custo.
Em busca de compreender um pouco mais sobre este processo, o presente artigo estabelece reflex�es sobre os aspectos cognitivos da constru��o do desenho estereotipado, assim como seu ensino e como este aprendizado � replicado em sala de aula, abordando tanto suas contribui��es quanto suas desvantagens. Para isso, autores como Luquet (1969) e Duarte (2011) contribuem no tocante � constru��o cognitiva do desenho. A seu turno, Vianna (1995) pontua os aspectos negativos da replica��o indiscriminada de desenhos e diferentes modos de desenhar.
Como surgem os desenhos?
�A crian�a desenha para se divertir� afirma Georges-Henri Luquet (1969, p. 15), compreendendo o ato de desenhar como uma atividade l�dica no desenvolvimento da crian�a. Produzidos ainda no in�cio do s�culo XX, os estudos de Luquet (1969) abordam quest�es sobre os elementos do desenho infantil, tais como o Modelo Interno e sua evolu��o do ponto de vista cognitivo - das garatujas at� o desinteresse pelo desenho no final da inf�ncia e in�cio da pr�-adolesc�ncia. O autor fez suas primeiras considera��es observando o desenho de crian�as de diversas nacionalidades e, em seguida, analisando minuciosamente o processo e desenvolvimento de apenas uma crian�a: sua filha.
Se ped�ssemos para voc� desenhar uma casa, como faria? Provavelmente, come�aria com um quadrado para a base e um tri�ngulo para o telhado, deixando para depois os pormenores, tais como portas, janelas ou chamin�s. Esse tipo de desenho, r�pido, comunicacional e, por vezes, espont�neo, obedece ao que Luquet chamou de Modelo Interno. Assim, tanto na crian�a quanto no adulto, esse modelo est� subordinado a uma imagem mental que antecipa o desenhar (LUQUET, 1969). O Modelo Interno, nessa perspectiva, corresponde aos desenhos que s�o realizados de mem�ria, mesmo quando existe a inten��o de copiar um objeto real. De acordo com Luquet (1969, p. 82):
[...] mas � ainda esse modelo que a crian�a copia mesmo quando se prop�s reproduzir um objeto (motivo ou modelo) que tem diante dos olhos [...]. A prova � que os desenhos do natural e os copiados apresentam os mesmos caracteres que os desenhos de mem�ria, cuja caracter�stica principal � serem conformes, n�o ao realismo visual, mas ao realismo intelectual.
Assim, � poss�vel perceber em desenhos de crian�as pequenas a presen�a de elementos que comp�em o objeto real e que n�o s�o vis�veis, mas que a crian�a sabe que estavam l� e os considera essenciais para que seu desenho fa�a sentido. Geralmente, esses elementos n�o vis�veis est�o relacionados � fun��o do objeto. Como exemplo, temos o sino desenhado com o badalo. O Modelo Interno tamb�m se caracteriza por representar um exemplar (gen�rico) t�pico de uma categoria de objetos, como o desenho da casa ou da flor, sendo um recurso b�sico de execu��o do desenho de um determinado objeto. Nas palavras de Luquet (1969, p. 81):
A representa��o do objeto a desenhar [...], toma necessariamente a forma de uma imagem visual; mas esta imagem nunca � a reprodu��o servil de qualquer das percep��es fornecidas ao desenhista pela observa��o do objeto ou de um desenho correspondente. � uma refra��o do objeto a desenhar atrav�s do esp�rito da crian�a, uma reconstru��o original que resulta de uma elabora��o muito complicada apesar da sua espontaneidade. O nome modelo interno � destinado a distinguir claramente do objeto ou modelo propriamente dito esta representa��o mental que traduz o desenho.
Dessa maneira, o Modelo Interno � evocado quando a crian�a desenha um ou outro objeto que lhe � familiar, por�m, quando ela desenha pela primeira vez um objeto, precisa criar um modelo que o represente. Por isso, por vezes, esquiva-se e prop�e desenhar algo j� aprendido. Logo, a dificuldade da crian�a em desenhar um objeto pela primeira vez n�o � de ordem gr�fica, mas intelectual. Em outras palavras, a complexidade est� em organizar graficamente formas e linhas de modo que elas representem um determinado objeto. Quando a crian�a cria seu Modelo Interno, ele fica dispon�vel para ela em seus desenhos subsequentes e pode ser mantido ou alterado conforme as circunst�ncias (LUQUET, 1969).
Wilson e Wilson (1997) salientam que crian�as tamb�m aprendem a desenhar observando seus pares fazendo o mesmo. Conforme esses autores, as crian�as precisam de modelos de desenhos a serem seguidos:
N�o ser� por meio de nenhum tipo de exame das nuvens que a pessoa aprender� a desenh�-las. [...] Sim, estamos dizendo que, sem modelos para serem seguidos, haveria pequeno ou nenhum comportamento de realiza��o de signos visuais nas crian�as (WILSON;� WILSON, 1997, p. 63).
Em sala de aula, � poss�vel observar situa��es como essas constantemente, que devem ser encaradas e estimuladas enquanto trocas ben�ficas entre os estudantes. No �mbito do desenho infantil, a cogni��o, a percep��o sensorial e a mem�ria s�o encontradas com evid�ncia no trabalho de Duarte (2007-2011), pesquisadora do desenho infantil que, inicialmente, entende o desenho em sua elabora��o no plano mental, como uma ponte entre os objetos e suas representa��es bidimensionais. Ao encaminhar sua pesquisa aos processos cognitivos alusivos ao ato de desenhar, Duarte (2011) compreende a produ��o gr�fica infantil em um terreno comunicacional. Em outras palavras, podemos compreender o desenho como um espa�o privilegiado no qual a crian�a manifesta seus desejos e amplia capacidades cognitivas.
Desse modo, Duarte (2011) interpreta o desenho infantil como um esquema gr�fico estabelecido pela crian�a, uma sintaxe visual dos elementos mais relevantes da imagem a ser grafada e acrescenta que os esquemas gr�ficos s�o representa��es bastante simplificadas dos objetos circundantes. Duarte (2011) refere-se ao que chamou de esquema gr�fico (termo adotado, neste estudo, para definir a produ��o de desenhos que servem para identificar toda uma categoria de objetos) e, embora Luquet (1969) n�o tenha adotado a denomina��o �esquema� por quest�es conceituais que permeavam o voc�bulo em sua �poca, a autora o utiliza em fun��o do termo transmitir com seguran�a a ideia de s�ntese no desenho infantil. Sendo assim, embora tenhamos a impress�o de se tratar de um procedimento gr�fico r�gido, encontramos, no cerne dessa atividade concisa, um aspecto inventivo na medida em que a crian�a apreende e representa as principais caracter�sticas dos objetos, adicionando pormenores e distribuindo esses elementos no espa�o bidimensional.
Partindo dessas problematiza��es, compreendemos que ao desenhar a crian�a estabelece rela��es de generaliza��o com o objeto a ser representado. Em outras palavras, esses objetos s�o sintetizados, de modo que, inicialmente, ela representa suas caracter�sticas mais gerais e significativas. Como exemplo, podemos citar os desenhos de crian�as pequenas, denominados como homem-girino, ou boneco-girino, ou simplesmente �girino�, por se assemelhar a estrutura de larvas de anf�bios antes de sofrerem metamorfose. Geralmente, antes de aprimorar o desenho da figura humana, o processo gr�fico da crian�a passa pela fase de girino, que pode come�ar por volta dos tr�s anos de idade. Essa etapa pode se estender por alguns dias ou meses, sua durabilidade depender� dos incentivos recebidos e da frequ�ncia com que a crian�a desenha. Ainda que as crian�as pequenas reconhe�am essas partes do corpo, elas se satisfazem com a figura de girino, possivelmente por ainda n�o haver um amadurecimento gr�fico que permita a representa��o do restante do corpo.
Desenhos e estere�tipos
Os esquemas gr�ficos s�o recursos utilizados pelas crian�as em diferentes est�gios do seu desenvolvimento gr�fico, como meios de continuarem se comunicando por meio do desenho. Tais recursos se assemelham, por suas caracter�sticas formais e conceituais, ao que popularmente se denomina desenho estereotipado. Dito de outro modo, o t�o condenado desenho estereotipado pode contribuir para o desenvolvimento gr�fico e intelectual das crian�as.
A esse respeito, Duarte (2011, p. 38) afirma que:
Quando dizemos �desenho infantil�, estamos nos referindo a um per�odo da inf�ncia no qual o desenho pode se configurar como uma importante pr�tica no cotidiano das crian�as. Trata-se de um per�odo correspondente entre 5 e os 9 anos de idade, no qual, ap�s vencer as dificuldades gr�ficas iniciais, a crian�a desenha objetos plenamente identific�veis ao olhar de terceiros e, especialmente, torna evidente sua inten��o representacional ao nomear com a palavra justa cada uma das figuras desenhadas.
Com vistas a um melhor entendimento dessa quest�o, vejamos alguns exemplos de desenhos realizados durante a inf�ncia pelos pr�prios autores deste artigo. Ao observarmos a figura 1, produzida pelo autor aos 9 anos de idade, nos deparamos com uma s�rie de elementos estereotipados, tais como as nuvens azuis, onde vemos por detr�s um sol radial amarelo. Ademais, os p�ssaros no c�u, semelhantes a letra M aberta e as copas das �rvores redondas e esverdeadas, s�o desenhos aprendidos e replicados por um sem-n�mero de crian�as. Ao observarmos a imagem, notamos que tais esquemas gr�ficos n�o as empobrecem, pelo contr�rio, foram recursos utilizados para a elabora��o do desenho naquele momento do seu desenvolvimento gr�fico e deixados de lado nos anos subsequentes, sem a necessidade de serem banidos do seu imagin�rio por parte dos adultos.
Figura 1 � Desenho
Fonte: Acervo do autor Marcelo Eugenio Soares Pereira.
Na imagem seguinte (figura 2) � poss�vel identificar o desenvolvimento gr�fico da autora aos 6 anos de idade, no decorrer de um ano. Nota-se uma modifica��o do esquema de representa��o da casa, possivelmente aprendido com colegas da mesma idade ou adultos, e amadurecido posteriormente. J� o esquema de nuvens e �rvores se mant�m muito parecido no decorrer daquele per�odo. Luquet (1969) denominou esta situa��o, respectivamente, como Modifica��o do Tipo, quando a crian�a come�a a mudar ou acrescentar novos detalhes em seus desenhos, os quais n�o se viam em exemplos anteriores; Conserva��o do Tipo, quando h� um automatismo quanto ao modo de desenhar determinado objeto. Esta conserva��o que permanece no desenho infantil obedece, conforme o mesmo autor, ao Modelo Interno.
Figura 2 � Sequ�ncia de desenhos
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Fonte:Acervo da autora Liane Carvalho Oleques.
Assim, cabe salientar que estes desenhos aprendidos e replicados ao longo da vida ficam dispon�veis at� a idade adulta, nos auxiliando nas �reas criativas, expressivas e comunicacionais. Nesse aspecto, diversos artistas visuais se utilizam de desenhos esquem�ticos, tais como aqueles aprendidos na inf�ncia e disseminados em um �mbito comunicacional, conferindo a eles protagonismo em suas obras, como no caso de Tarsila do Amaral, Mario Rubinsk, Alfredo Volpi, entre outros. Como exemplo emblem�tico de uma produ��o art�stica contempor�nea inspirada no repert�rio dos desenhos estereotipados, temos a obra Nuvens (1967), de Carmela Gross. Nesta produ��o, composta por seis unidades de madeira esmaltada em uma tonalidade azul, a artista apresenta nuvens que parecem ter sido extra�das de um desenho infantil estereotipado (figura 3).
Figura 3 � Nuvens
Fonte: Carmela Gross, 1967[4].
No entanto, por qual raz�o, para tantos professores e professoras de arte, os desenhos esquem�ticos limitam a espontaneidade gr�fica?� Importante ressaltar que as crian�as, por vezes, est�o � procura de recursos que as auxiliem a desenhar, como circular um objeto para fazer um c�rculo perfeito para representar um sol, por exemplo. Al�m disso, procuram refer�ncias e esquemas de desenhos que as ajudem na cria��o de um novo desenho, com frequ�ncia encontram refer�ncias em cartazes e molduras dentro da pr�pria sala de aula. Vale lembrar que cada professor possui autonomia para trabalhar da maneira que achar mais conveniente, respeitando seus pr�prios limites e as necessidades dos estudantes. Todavia, vejamos algumas quest�es, relacionadas ao desenho estereotipado, que, de fato, podem levar ao empobrecimento da criatividade e senso cr�tico dos estudantes.
Em sua �guerra declarada� contra o desenho estereotipado, travada desde o in�cio dos anos 1980, Vianna (1995), vigorosamente destaca os aspectos negativos dessa pr�tica: mon�tonos, impessoais e ervas daninhas, s�o apenas alguns dos adjetivos atribu�dos pela autora, a qual, sobretudo a partir do in�cio da sua atua��o na forma��o docente, desenvolveu seu m�todo para �desestereotipar desenhos�, que consiste em uma s�rie de exerc�cios envolvendo, dentre outras pr�ticas, a observa��o, a mem�ria visual e a imagina��o. De acordo com ela, os desenhos estereotipados minam a criatividade e a individualidade dos alunos, os quais perdem a confian�a no seu pr�prio desenho e passam a aderir definitivamente ao desenho estereotipado, j� que ele conta com a ampla aprova��o dos adultos (VIANNA, 1995). Ainda segundo Vianna (1995, p. 04):
Os desenhos estereotipados empobrecem a percep��o e a imagina��o da crian�a, inibem sua necessidade expressiva; embotam seus processos mentais, n�o permitem que desenvolvam naturalmente suas potencialidades.
Assim, as escolas s�o os lugares onde os estere�tipos proliferam largamente, sobretudo com o intuito de decorar as salas de aula em datas comemorativas. � nesse local que ocorre a perpetua��o dos estere�tipos, por serem amplamente utilizados pelos professores e difundidos entre eles (VIANNA, 1995). Certamente, desenhos estereotipados de determinados grupos sociais refor�am e reiteram aspectos que devem ser analisados criticamente, conforme argumentam Martins e Pereira (2007, p. 614-615):
Portanto, for�as de desestabiliza��o de identidades precisam ser acionadas para desconstruir, por exemplo, um universo de representa��es visuais de principezinhos e princesinhas etnicamente homog�neos e de olhos azuis, instalados nos desenhos pedag�gicos e nas escolas. Nesse universo, representa��es de identidade que lidam com a alteridade s�o consideradas acriticamente como um gesto de complac�ncia onde a representa��o do negro, quase sempre, se resume a um desenho simplificado de uma crian�a mal vestida, e a do �ndio, como aquele ser ex�tico que ainda atira flechas ou usa penacho e tanga de couro.
S�o essas quest�es sociais e pol�ticas que envolvem os estere�tipos que valem a pena combatermos. Um exemplo significativo dessas pr�ticas s�o os �desenhos prontos�, constitu�dos por um desenho pr�vio, geralmente realizado pelo professor ou retirado da internet, comumente entregues em datas comemorativas para serem coloridos pelos estudantes. Tais desenhos s�o pouco contextualizados e, al�m de n�o estimularem a criatividade, muitas vezes prezam pelo resultado em detrimento do processo criativo.
Ademais, refor�am no imagin�rio coletivo das crian�as, n�o apenas estere�tipos gr�ficos, mas tamb�m estere�tipos culturais. Quem nunca pintou o rosto e vestiu um cocar para celebrar o �dia do �ndio�, sem nenhum tipo de aprofundamento sobre a cultura ind�gena ou as adversidades enfrentadas constantemente por esses povos origin�rios? Todavia, com o objetivo de permanecermos em nosso debate principal, vejamos alguns pontos positivos dessa pr�tica no �mbito gr�fico. O preenchimento das linhas desenvolve e fortalece a habilidade motora fina, al�m do trabalho de conhecimento das cores e a explora��o de recursos para colorir, bem como podem servir enquanto processos de estudos, ideias e t�cnicas.
Al�m disso, poder�amos trabalhar com as mesmas habilidades e incentivar o estudante a criar seus pr�prios desenhos, seja de forma livre ou tem�tica, agu�ando o senso cr�tico e a reflex�o acerca do seu trabalho e dos colegas, al�m de aprender com eles. A esse respeito, Luquet (1969), verificou que crian�as diminuem a frequ�ncia ou deixam de desenhar no per�odo correspondente ao final da inf�ncia e in�cio da adolesc�ncia, pois, � medida que ficam mais cr�ticas com rela��o aos seus desenhos, come�am a perceber que eles n�o correspondem � realidade visual. Apenas algumas crian�as seguem desenhando quando estimuladas, seja pela escola ou pela fam�lia. Podemos sugerir que essa diminui��o da frequ�ncia em desenhar, ou o sentimento de incapacidade de desenhar de acordo com a realidade, tenha como um dos pontos de partida os �desenhos prontos� que impregnaram seu imagin�rio durante os anos escolares.
Nesse sentido, Cunha (2010, p. 112) comenta:
Os significados das imagens s�o constru�dos nas intera��es sociais e culturais que realizamos com elas. Os contextos sociais e culturais, amplos ou espec�ficos, e as pessoas, d�o exist�ncia aos materiais visuais atribuindo-se significados. Portanto, o sentido n�o �emana� das imagens, mas dos di�logos produzidos entre elas e as pessoas [...].
Nessa perspectiva, o papel do professor de arte se assemelha ao do curador de uma exposi��o de arte. Tendo em vista que � imposs�vel evitar completamente a presen�a do desenho estereotipado na escola, caber� ao professor compreender esse tipo de desenho como um recurso a mais � sua disposi��o, que pode ser explorado e debatido em sala de aula de in�meras maneiras. Seja como for, dentre as in�meras proposi��es pedag�gicas � sua disposi��o, suas escolhas jamais ser�o neutras ou isentas de consequ�ncias no desenvolvimento gr�fico dos seus alunos.
Considera��es finais
Diante das quest�es aqui abordadas, podemos afirmar que o desenho infantil passa por um processo intelectual e motor de desenvolvimento, cujo amplo entendimento � essencial por parte do professor de Arte. Entender este processo �, principalmente, compreender como acontece a constru��o do desenho infantil no plano mental, e por quais raz�es este desenho continua sendo replicado at� a idade adulta com intuito comunicacional.
A partir do que foi debatido, notamos que o desenho estereotipado n�o �, necessariamente, a erva daninha a qual somos convocados a combater. De modo an�logo, o desenho original, inventivo, livre, n�o � a flor que dever�amos todos cultivar e preservar. Desse modo, se faz premente questionar tais dicotomias. Em tempos de efervesc�ncia da arte contempor�nea e suas m�ltiplas manifesta��es, n�o nos cabe mais estabelecermos hierarquias no campo do ensino da arte, classificando certas express�es art�sticas como louv�veis e melhores, e outras como indesej�veis e piores. Antes de mais nada, � nossa responsabilidade, enquanto profissionais vinculados ao ensino da arte, repensar quaisquer r�tulos que porventura se apresentem.
Sendo assim, tentamos argumentar, por meio dos exemplos e dos te�ricos aqui abordados, que tudo, at� mesmo o t�o combatido desenho estereotipado, pode ser explorado em sala de aula, desde que o professor de Arte esteja atento para as caracter�sticas e possibilidades de ensino que essa categoria de desenho comporta. Por meio dos desenhos resgatados das nossas inf�ncias, nos quais evidencia-se as solu��es representacionais estereotipadas, buscamos demonstrar que, ao contr�rio do que se possa pensar, talvez o desenho estereotipado n�o seja uma condena��o fatal da criatividade, conforme argumenta Vianna (1995).
Apesar dos desenhos estereotipados realizados durante a inf�ncia, ou talvez justamente por causa da sua presen�a em momentos importantes dos nossos desenvolvimentos gr�ficos, nos tornamos artistas visuais. Nesse contexto, um exerc�cio pertinente seria o de revisitar, vez por outra, tais desenhos realizados durante a inf�ncia. Em um primeiro momento os observar�amos atentamente, em seguida poder�amos criar uma nova produ��o a partir deles, seja os tomando como ponto de partida para a elabora��o de um objeto tridimensional ou de uma colagem, por exemplo. O mais importante seria nos conectarmos, de algum modo, com o potencial inventivo presente nesses desenhos e traz�-los para nossas vidas adultas. Da� a import�ncia, tanto quanto poss�vel, da salvaguarda da produ��o gr�fica infantil.
� guisa de encerramento, cabe destacarmos que nossa inten��o foi problematizar o t�o odiado desenho estereotipado como sendo impotente e abomin�vel nos processos educacionais, buscando desconstruir alguns r�tulos cristalizados e apontando poss�veis novos pontos de vista acerca desse assunto. Contudo, cientes da complexidade dessa tem�tica, acreditamos que estudos posteriores poderiam ser realizados com o intuito de aprofundar e ampliar algumas das quest�es aqui apresentadas e discutidas. Desse modo, procuramos abrir uma porta a esse debate, n�o na expectativa de que todas as quest�es fossem respondidas, mas, sobretudo, de que questionamentos fossem suscitados.
CUNHA, S. R. V. da. Cultura visual e inf�ncia. In: ICLE, G. (Org.). Pedagogia da arte: entre-lugares da cria��o. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2010. p.103-133.
DUARTE, M. L. B. Desenho infantil e seu ensino a crian�as cegas: raz�es e m�todo. Curitiba: Editora Insight, 2011.
HOUAISS, A; VILLAR, M. S. Dicion�rio da L�ngua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
LUQUET, G. H. O desenho infantil. Porto: Do Minho,1969.
MARTINS, R; PEREIRA, A. A. Cultura visual e identidade(s) no desenho pedag�gico. In: 16� ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES DE ARTES PL�STICAS - DIN�MICAS EPISTEMOL�GICAS EM ARTES VISUAIS, 2007, p. 608-616, Florian�polis, Santa Catarina. Anais eletr�nicos do 16� encontro nacional de pesquisadores de artes pl�sticas.Dispon�vel em: <http://anpap.org.br/anais/2007/2007/artigos/061.pdf>. Acesso em: 15 fev. 2021.
VIANNA, M. L. R. Desenhos estereotipados: um mal necess�rio ou � necess�rio acabar com este mal? Revista Advir. Rio de Janeiro, n�5, 1995. Dispon�vel em: <https://www.academia.edu/36972093>. Acesso em:� 27 fev. 2021.
WILSON, B; WILSON, M. Uma vis�o iconoclasta das fontes de imagens nos desenhos de crian�as. In: BARBOSA, A. M. Arte-educa��o: leituras no subsolo. S�o Paulo: Editora Cortez, 1997.
This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)
[1]Algumas ideias, presentes neste estudo, fazem parte da tese Uma possibilidade de ensino de desenho para crian�as com defici�ncia intelectual, UDESC, Florian�polis, 2017, de Liane Carvalho Oleques.
[2]Doutorado pelo Programa de P�s-Gradua��o em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil (2017). Professora da rede de educa��o b�sica municipal de Palho�a/SC, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9525-8722 . E-mail: lioleques@gmail.com.
[3] Mestrado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grando do Sul, Brasil (2015). Artista visual e educador, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5620-2128 . E-mail: marceloeugenio85@gmail.com.
[4]Dispon�vel em: <https://carmelagross.com/portfolio/trabalhos/>.