Dossiê: As Políticas e Práticas de Alfabetização, Leitura e Escrita
Dossier: Literacy, Reading and Writing Policies and Practices
Dossier: Políticas y prácticas de alfabetización, lectura y escritura
Elvira
Cristina Martins Tassoni
Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP, Brasil
cristinatassoni@puc-campinas.edu.br
Universidade Federal do Piauí, Teresina, PI, Brasil
raimundinamelo@yahoo.com.br
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Rio Claro, SP, Brasil
andreia.osti@unesp.br
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil
sueli.salva@ufsm.br
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil
tania.miorando@ufsm.br
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil
clenio.berni@ufsm.br
Apresentação
Aprender a ler e a escrever é um direito fundamental e representa um salto qualitativo no desenvolvimento de qualquer pessoa, pois traz, como consequência, uma mudança significativa nas formas de se relacionar com o mundo, com os outros e consigo mesma. Vygotsky (1996), em seus postulados sobre o desenvolvimento humano, ressaltou o papel da cultura nesse processo que nos constitui humanos. O autor refere-se a um intenso processo de internalização de formas de conduta culturais, em que a pessoa amplia as possibilidades de atuação, enriquece as formas de compreender e reelabora continuamente seu modo de estar do mundo.
Biarnes (1998, p. 137), em consonância com Vygotsky, destaca que na sociedade em que vivemos a necessidade de se relacionar com a linguagem escrita se impõe. “Queira-se ou não, cada um de nós tem de construir uma relação com a letra e, portanto, constrói-se, em parte, nessa e através dessa relação”. Em suas reflexões, Biarnes mostra que a questão principal é compreender as funcionalidades que as pessoas constroem em suas relações com a escrita. O autor alerta que tal relação é heterogênea, pois está pautada em um amplo sistema de significações, que se referem tanto aos sentidos atribuídos pelas pessoas às suas formas de se relacionar com a linguagem escrita, como também às formas com que os outros se relacionam com ela. Portanto, funcionalidade refere-se à articulação entre os sentidos produzidos e os seus efeitos para a própria pessoa e para as suas relações com o outro. Trata-se de um sentido social e individual, em que as condições nas quais as funcionalidades são construídas ganham relevância.
Considerando que a relação com a escrita envolve um complexo e heterigêneo processo de atribuição de sentidos, que se constroe na relação com o outro e com a cultura, Biarnes (1998, p. 140) problematiza que
a letra me permite encontrar o outro, encontrar a alteridade e, sobretudo, construir "meu outro" em mim. A letra, objeto do outro se a leio, objeto para o outro se a escrevo, é um espelho mágico que me permite reconhecer-me, descobrindo-me outro. O problema do acesso à leitura, como o da iniciação à escrita, está aí. Para que, pela letra, eu possa conhecer-me outro, é necessário que eu possa antes reconhecer-me nela.
Os pressupostos de Vygotsky e de Biarnes reverberam nos dizeres de Smolka (2000, p. 69) ao propor um processo de alfabetização em uma perspectiva discursiva, o que pressupõe a “constituição do sentido” – implica “uma forma de interação com o outro pelo trabalho de escritura – para quem eu escrevo o que escrevo e por quê?” É preciso ter motivos para escrever, ter o desejo e ter um interlocutor.
Vivemos no campo da alfabetização muitas tensões e contradições epistemológicas e metodológicas. Apesar dos avanços em políticas educacionais, o acesso pleno à alfabetização ainda é um desafio em países como o Brasil, marcado por desigualdades territoriais e sociais. Soma-se a esse contexto, um cenário de disputas político-ideológicas e de divergentes concepções científico-conceituais que rezingam lugar na fundamentação das políticas educacionais e das práticas de leitura, escrita e alfabetização.
Em resposta a esta problemática, e sob a influência de organismos internacionais que regem as políticas públicas, impregnando a elas um caráter neoliberal, os governos vêm propondo políticas educacionais que têm como carro-chefe as reformas educacionais, e como mote de sua implementação a padronização do currículo escolar, a formação continuada de professores e a avaliação do desempenho em larga escala.
A UNESCO define a alfabetização como um processo para a aquisição de habilidades cognitivas básicas e desde 1967 celebra o Dia Internacional da Alfabetização em 8 de setembro, para lembrar ao mundo a sua relevância para conquistas fundamentais no âmbito da dignidade e de direitos humanos. A Unesco vem definindo uma agenda de princípios e intenções, fomentando a elaboração de políticas relacionadas ao desenvolvimento da leitura e da escrita. Nesse cenário, no Brasil, por um lado houve avanços no acesso das crianças à escola, assim como no desenvolvimento de políticas que primam pelo atendimento de suas especificidades e necessidades, como é o caso daquelas que possuem alguma deficiência. Por outro lado, ainda se perpetua a aceitação do fracasso escolar daquelas que mais precisam da escola para mudar a sua condição social.
O dossiê discute políticas e práticas de alfabetização desenvolvidas no Brasil, Estados Unidos e Peru e coloca em cena os desafios da alfabetização de todas as pessoas, um problema de grande complexidade, agravado pela crise da pandemia de Covid-19. Os artigos apresentados visam colocar em cena a garantia desse direito às diferentes populações, sobretudo, às crianças, evidenciando tensões, mudanças, limites, avanços, possibilidades e perspectivas.
No âmbito das políticas públicas, é importante ressaltar a complexidade envolvida em sua elaboração e implementação. Ball e Bowe (1992) oferecem elementos para análise de políticas, abordando os diferentes contextos que marcam o processo de elaboração e implantação. O contexto de influência retrata as disputas entre grupos hegemônicos e a influência de organismos internacionais com diferentes objetivos e interesses, em intensa negociação. O contexto da produção de texto refere-se ao texto escrito, que assume formatos variados e é dirigido a públicos também muito diversificado. Nem sempre são textos coerentes e claros, apresentando convergências e divergências nas concepções que os fundamenta. Apesar disso, não resta dúvida de que excercem forte influência nas práticas docentes. Por fim, o contexto da prática se constitui o espaço de interpretação e recriação da política. Trata-se do processo de implantação, considerando a presença ou ausência de espaços para discussão coletiva e de explicitação de dúvidas, desafios, formas de compreender e interpretar, espaços para mudanças etc.
Neste dossiê, as pesquisas exploram esses diferentes contextos, problematizando limites e possibilidades em um cenário macro, contempalndo processos históricos de construção de currículos à luz das políticas, e micro, considerando as diferentes experiências em diferentes localidades.
No que se refere às práticas, Franco (2016, p. 538) contribui para a reflexão sobre a prática pedagógica como ação que organiza, potencializa e explcita intencionalidades contidas em projeto educativo. Esta forma de compreender a prática pedagógica coloca em destaque uma “perspectiva de ser crítica e não normativa; de ser práxis e não treinamento; de ser dialética e não linear”.
Os artigos que compõem esse dossiê trazem rica e singular oportunidade de compartilhar com os leitores reflexões sobre as políticas educacionais de alfabetização e de formação de professores, bem como discutem caminhos para práticas pedagógicas que buscam a inclusão de todas as pessoas, que viabilizam o acesso aos conhecimentos, que possibilitem espaço para a produção de sentidos tanto para aprendizes como para professores reconhecerem-se na e pela escrita, construindo relações de funcionalidade, de necessidade e desejo com ela.
As pesquisas aqui apresentados têm impacto direto na educação uma vez que tratam de aprofundar questões que permeiam a aprendizagem e o ensino na Educação Básica. Tais pesquisas, configuram temáticas atuais e de destaque.
O artigo intitulado “A Unesco, a universalização da educação primária e as reformas curriculares na alfabetização latino-americana (1940-1950)”, de autoria dos pesquisadores Cláudia Maria Mendes Gontijo, Martinho Guilherme Fonseca Soares e Alcione Aparecida de Azevedo, analisa a atuação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) na revisão dos currículos da escola primária latino-americana entre as décadas de 1940 e 1950, contexto pós Segunda Guerra Mundial. Evidencia que a alfabetização se coloca como uma das principais promessas para o desenvolvimento social e econômico dos países latino-americanos e, sob a influência da Unesco, a reestruturação dos currículos visou o desenvolvimento, a modernização, o compromisso com a democracia e uma integração regional com vistas à projeção no cenário internacional, a partir da padronização do ensino, nos primeiros anos de escolarização. A pesquisa documental mobiliza reflexões sobre a influência da Unesco na definição e caracterização das políticas educacionais, e o quanto as ações propostas nas décadas de 1940 e 1950 refletem nas atuais reformas curriculares, nas propostas de formação de professores e nos projetos de alfabetização.
Focalizando a formação continuada de professores alfabetizadores, o artigo “Políticas de formação continuada de alfabetizadores na perspectiva de experiências formadoras”, de autoria da pesquisadora Antonia Edna Brito, analisa políticas de formação continuada de alfabetizadores desenvolvidas no Brasil, nos últimos dez anos. Mobiliza reflexões sobre os desafios dessas políticas no que concerne ao atendimento às necessidades formativas de alfabetizadores e à premência do desenvolvimento de processos formativos emancipatórios e humanizadores. O estudo conclui que há necessidade de investimentos em processos formativos que possibilitem aos professores, tanto a consciência sobre seus papéis sociais, quanto às particularidades da profissão docente, em que os professores são percebidos como sujeitos do pensar e do agir no mundo.
O artigo “A Educação Infantil nas políticas de alfabetização: rupturas, retomadas e (des)encontros”, de autoria das pesquisadoras Flávia Burdzinski de Souza e Gabriela Medeiros Nogueira, soma-se à discussão da formação continuada de professores, problematizando a inclusão da Educação Infantil nas políticas públicas de alfabetização. Discute a identidade da Educação Infantil, destacando a centralidade da criança em documentos e normativas para essa etapa da Educação Básica. Também apresenta três políticas educacionais para alfabetização, criadas pelo Governo Federal na última década, e que incluem a pré-escola: o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (2012), a Política Nacional de Alfabetização (2019) e o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada (2023). Esse estudo alerta para as consequências de uma educação alinhada aos princípios do mercado a fim de alcançar os resultados esperados pelas avaliações externas. Reforça a necessidade de se considerar as condições sociais, econômicas, culturais e políticas que constituem a comunidade escolar, composta por crianças, suas famílias e suas professoras, sujeitos centrais das políticas públicas.
Mantendo uma perspectiva reflexiva e dialógica na formação continuada de professores alfabetizadores, o artigo “Dos rios da palavra alheia à nascente da palavra própria. As políticas de resultados contemporâneas para a formação do docente alfabetizador e as políticas de conhecimento produzidas nos espaços coletivos e autônomos de formação”, de autoria da pesquisadora Elizabeth Orofino Lucio, analisa as reformas educacionais no campo da alfabetização, apresentando experiências formativas realizadas em âmbitos diferentes de abrangência. Defende a potencialidade da formação continuada com base em espaços de escuta de professoras e professores, como promotora de reflexões para a construção de uma concepção de uma alfabetização alicerçada no exercício discursivo de elaboração, de construção de sentidos, de interlocução e de autoria.
Em relação aos estudos internacionais, o artigo “Results of an adult literacy program: literacy and numeracy assessment of a group of rural women, produzido pelas pesquisadoras Mari Fernández Flecha e Andrea Junyent, explora um instrumento de avaliação projetado para analisar o desenvolvimento de habilidades de alfabetização e numeramento. A pesquisa foi desenvolvida no contexto de um programa específico projetado para a alfabetização de adultos em espanhol, na região rural de Andres, no Peru. As atividades desenvolvidas pelo Programa reconheciam e consideravam o contexto comunicativo e sociocultural dos participantes. Os resultados mostraram que os aprendizes desenvolveram habilidades fundamentais de leitura, escrita e operações com números, que simulavam situações cotidianas deste público. As autoras consideraram que o instrumento apresentado se constituiu em importante recurso para ser utilizado em estudos similares, focalizando populações específicas.
O artigo “Debating the “Science of Reading” and its Impact on Policy”, da pesquisadora Lesley Bartlett, explora os debates no âmbito da "ciência da leitura" e discute o seu impacto nas políticas educacionais em relação à leitura nos Estados Unidos, evidenciando que há oscilações dessas políticas, ora privilegiando uma ênfase intensa na fonética e ora uma ênfase maior na criação de significado e na compreensão. O estudo aponta que em nome de uma “ciência da leitura” reúnem-se evidências para sugerir que existe um caminho claro e incontestável para uma melhor instrução, focalizando a fonética. Essa visão estreita da ciência da leitura tem afetado direta e materialmente as políticas públicas, impulsionando nova legislação sobre leitura em 45 estados e no Distrito de Columbia. Este estudo evidencia que a fonética é necessária, mas, por si só, é insuficiente para desenvolver fortes competências de leitura.
Por fim, contemplando a discussão no campo da educação inclusiva, o artigo “Reflexões sobre a soletração datilológica na educação de surdos e o ensino da língua de sinais e da língua portuguesa”, de autoria de Cássia Geciauskas Sofiato e Felipe Venâncio Barbosa, discute a soletração datilológica como um meio de favorecer a compreensão do processo de acesso às palavras da língua portuguesa e seus respectivos sinais em Libras, visando ampliar o repertório linguístico do surdo, a partir do desenvolvimento de habilidades metalinguísticas que mobilizam itens lexicais e a estrutura sintática das duas línguas. O trabalho apresenta uma caracterização histórica sobre a educação de surdos, mostrando indícios relacionados à criação da datilologia e seus usos em práticas pedagógicas preconizadas pelos precursores neste tipo de educação. O estudo suscita reflexões sobre a importância do uso da datilologia na escolarização de surdos como mais uma das estratégias visando a educação bilíngue.
Em conjunto e de forma articulada, os artigos que compõem este dossiê reúnem posicionamentos de pesquisadores/as com competência científica e experiência acumuladas na pesquisa, possibilitando uma análise coletiva das políticas e práticas de alfabetização em diferentes públicos e olhares, em âmbito nacional e internacional. Considera-se que as pesquisas desenvolvidas pelos diferentes profissionais aqui representados têm impacto direto na educação uma vez que tratam de aprofundar questões que permeiam a aprendizagem e a garantia de direitos fundamentais para o exercício da cidadania.
A alfabetização compreendida como um ato político e um compromisso social, tem potência para garantir oportunidades para todos, independentemente de suas condições econômicas, culturais e físicas. Os desafios são muitos, mas os avanços e pesquisas aqui apresentados contribuem significativamente para a construção de políticas mais eficientes e humanizadas.
Referências
BALL, Stephen John, BOWE, Richard. Subject departments and the “implementation” of National Curriculum policy: an overview of the issues. Journal of Curriculum Studies, 24(2), 97-115, 1992. https://doi.org/10.1080/0022027920240201.
BIARNÉS, Jean. O ser e as letras: da voz à letra, um caminho que construímos todos. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v.24, n.2, p. 137-161, jul./dez. 1998. https://doi.org/10.1590/S0102-25551998000200009.
FRANCO, Maria Amélia do Rosário Santoro. Prática Pedagógica e docência: um olhar a partir da epistemologia do conceito. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (on-line), Brasília, v. 97, n. 247, p. 534-551, set/dez, 2016. https://doi.org/10.1590/S2176-6681/288236353
SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A criança na fase inicial da escrita. São Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2000.
VYGOTSKY, Lev. Semenovich. Obras Escogidas. Madrid: Visor, 1996.
This work is licensed under a Creative Commons Attribution- NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)